Tem uma reflexão interessante de Eric Voegelin (aquele que ocupou a cátedra de Max Weber após a Segunda Guerra) em "Hitler e os Alemães" onde ele se detém justamente sobre a questão da "migração para a segunda realidade" usando o conceito de Pascal de "diversionismo" (divertissement), pegando Dom Quixote para explicar a questão. O argumento é simples e de fácil apreensão, mas muito profundo.
sexta-feira, 10 de setembro de 2021
Eric Voegelin, os Movimentos de Massa e a Segunda Realidade
Comentários no Livro de Isaías 2.1-5: (וְלֹא־יִלְמְד֥וּ עֹ֖וד מִלְחָמָֽה) E não mais aprenderão a guerra.
Texto Hebraico de Isaías 1.1-5:
Aqui temos, ao que parece, uma segunda introdução da profecia de Isaías; e se repararmos bem, essa profecia aqui, dos vs.1-4, é idêntica à profecia registrada no livro de Miquéias em Mq 4.1-3. E isso não é incrível, levando em consideração que ambos os profetas exerceram seu ministério no séc. VIII a.C. Isso nos ajuda a termos uma pista sobre o clima da época, nos auxiliando na compreensão da profecia.
No começo temos a afirmação: A Palavra que viu Isaías. É um frase semelhante, mas não igual, a Isaías 1.1, onde temos חֲזוֹן֙ יְשַֽׁעְיָ֣הוּ, e que significa Visão de Isaías, mais אֲשֶׁ֣ר חָזָ֔ה que significa que viu. O segundo conjunto de palavras (אֲשֶׁ֣ר חָזָ֔ה) encontramos em ambos os versículos; assim, a distinção é que em 1.1 se diz que o que via a seguir se tratavam das visões que viu de Isaías, e em 2.1 era a palavra que viu Isaías. A distinção, por tanto, não deve nos impressionar e nem nos levar a maiores especulações. O fato é que tanto a visão que viu quanto a palavra que viu assinalam a origem sobrenatural da profecia, consignando a ela a autoridade devida. Da mesma maneira, a profecia diz respeito a um certo contexto geográfico: Judá (יְהוּדָ֖ה) e Jerusalém (וִירוּשָׁלִָֽם). E como afirmei no comentário a Isaías 1.1-9, ao apontar para o lugar específico para qual a Palavra de Deus se manifesta, isso só pode significar que Deus tem interesse nas realidades particulares como o Deus da história, ou como alguém que se manifesta na história e através da história.
A profecia é escatológica, ou seja, se refere às últimas coisas. Assim, ele se refere ao fim dos dias (בְּאַחֲרִ֣ית הַיָּמִ֗ים), e aponta para uma posição geográfica que, por natureza, também possui certo significado simbólico. O fato de a casa de Yahweh (בֵּית־יְהוָה֙) se estabelecer no cume dos montes (בְּרֹ֣אשׁ הֶהָרִ֔ים) indica tanto a posição de destaque, quanto a sua autoridade que se alteia acima de tudo o mais, tal como a Palavra de Deus se alteia acima de todos os homens e de tudo o que existe. Assim, à Cidade dos Montes afluirão os povos, sendo ela estabelecida como o centro e o fim (τέλος) das nações no sentido de atraí-las todas a si, movendo suas intenções e afetos na busca pela orientação da sua razão para a realização das coisas que às nações mais importam.
מִצִּיּוֹן֙ תֵּצֵ֣א תוֹרָ֔ה וּדְבַר־יְהוָ֖ה מִירוּשָׁלִָֽם׃
Muitos povos ou nações (עַמִּ֣ים) irão ao encontro de Yahweh, apontando para ponto da instrução que se encontra no cume dos montes. Assim ocorrerá para que Yahweh instrua (וְיֹרֵ֨נוּ֙) nos caminhos dele (מִדְּרָכָ֔יו) e andemos (וְנֵלְכָ֖ה) nas veredas d'Ele (בְּאֹרְחֹתָ֑יו). Então o ensino e o caminho atrairão os povos. Mas cada qual é atraído por aquilo que ama e deseja no mesmo sentido de que muitos profetas e justos desejaram ouvir as palavras de Cristo (Mt 13.17). Assim, eles serão atraídos a Sião. E eis a razão: Porque (כִּ֤י) de Sião (מִצִּיּוֹן֙) sairá (תֵּצֵ֣א) a Lei (תוֹרָ֔ה) e a Palavra de Yahweh (וּדְבַר־יְהוָ֖ה) de Jerusalém (מִירוּשָׁלִָֽם). É importante nos concentrarmos nessas palavras, dado tudo o que ainda se seguirá. Assim, Sião, como metáfora do locus de ensino de Yahweh, é, assim, a instrutora dos povos e está nisso a razão de ela ser o local da atração dos povos, pois em Sião eles encontram o seu τέλος, ou seja, o seu fim, a sua razão fundamental do como existir verdadeiramente. É na ciência da Lei e nas Palavras de Yahweh que eles podem achar a razão do seu repouso.
Assim procederá Yahweh no fim dos dias: E julgará (וְשָׁפַט֙) entre (em meio) (בֵּ֣ין) as nações (הַגּוֹיִ֔ם) e repreenderá (וְהוֹכִ֖יחַ) muitos (רַבִּ֑ים) povos (לְעַמִּ֣ים). O Senhor no uso de sua plenipotência fará como se procede o juiz em sua própria corte: julga, repreende, retifica. No caso do Todo-Poderoso, ele próprio é a sua Justiça, já que ele é a instrução (תוֹרָ֔ה) e o julgamento (שׁפט).
Podemos a partir de agora expor elementos para uma síntese importante, síntese que expressará o tom de muito da mensagem característica da profecia de Isaías em relação à política teológica das nações, se assim podemos nos expressar. Sim, e como a profecia de Isaías não tem razão de ser se não há implicações morais, e como a mensagem se dirige ao povo de Deus constituído em uma comunidade política, todos os assuntos morais importam à profecia, o que não exclui a política. Nesse sentido podemos caracterizar um fim no sentido pleno de um ideal inspirador e poderoso que se constitui na condição plena e última dos povos ensinados pelo Senhor, assim como ideal desejado pelo Senhor às nações. Portanto, nas ações do Senhor Ele ensinará e os povos transformarão (וְכִתְּת֨וּ) as espadas deles (חַרְבוֹתָ֜ם) em enxadas (לְאִתִּ֗ים) e as suas lanças (וַחֲנִיתֹֽותֵיהֶם֙) em podadeiras (לְמַזְמֵרֹ֔ות). A palavra hebraica que traduzimos por e transformarão (וְכִתְּת֨וּ) pode ser traduzida mais especificamente por e triturarão. Assim, a ideia é de que as armas de guerra seriam destruídas, e de seus restos seriam feitos instrumentos de plantio. A metáfora é maravilhosa, e faz lembrar, a título de exemplo, que o gás mostarda usado como uma das armas mais letais na Primeira Guerra, sendo posteriormente seu uso proibido nos campos de batalha, serviu como um poderoso fertilizante, aumentando drasticamente o rendimento das lavouras - assim, a ciência quer produz a arma é neutra, importando para o seu bom ou mau uso a disposição dos corações, ali onde o Senhor pode atuar e transformar.
De tudo o que foi dito, ainda resta a complementação do versículo que deixará a síntese ainda mais evidente: e não levantará (לֹא־יִשָּׂ֨א) a espada (חֶ֔רֶב) nação (גֹ֤וי) contra nação (אֶל־גּוֹי֙) e nem aprenderão (וְלֹא־יִלְמְד֥וּ) mais (עֹ֖וד) a guerra (מִלְחָמָֽה). À guisa do que foi dito, aqui temos também um exemplo da profecia pacifista de Isaías. Resta óbvio que a cidade, modelo último como guia dos povos e estabelecida no cimo dos montes, está fundada em uma proposta avessa à guerra. Assim, tal paz foi conquistada mediante a repreensão, o juízo e o ensino do Senhor, em cuja sombra nenhuma nação irá mais levantar a espada uma contra a outra. É importante perceber nessa visão de Isaías o fundamento da sua profecia, cuja mensagem irá reverberar em toda sua atuação e intervenção como profeta. E se no capítulo anterior fomos defrontados com uma Jerusalém que traiu a sua vocação torcendo o direito, aqui estamos diante do cume da realização do propósito da cidade sobre os montes que foi absorvida absolutamente pela plenitude da perfeição no cumprimento total da sua vocação.
Assim como no Apocalipse de João, aqui quem ouve diz: "Vem!" (Ap 22.17b). E o povo persuadido pela altitude absoluta do ensino proferido na Cidade sobre os Montes, chama outro povo para lhe ouvir a voz e andar na luz (בְּאֹ֥ור) do Senhor (יְהוָֽה) o qual guiará a razão e a vontade dos povos na direção da sua paz e do verdadeiro repouso. Como pastor, o Senhor há de guiar a razão e o desejo dos povos para o seu fim último, e a guiará para a sua perfeição, à visão eterna de Deus, pois na comunhão entre aqueles que deram fim à guerra entre a mente e da vontade com a realidade, guerra gerada pelo pecado que conduz o homem para a discórdia interna (em sua alma) e externa (entre os homens), não há mais razão ou possibilidade para o conflito entre aqueles que são concordes entre si e Deus. Assim, livre dos pecados, agora repousam, sem conflito, em Deus. Assim, aqui é realizada a concreção absoluta da paz dos povos que desfrutarão da bem-aventurança eterna, pois estes alcançaram a comunhão plena com o seu fim último na visão eterna do Senhor.
Amém!
terça-feira, 7 de setembro de 2021
Declaração Teológica de Barmen
A Declaração Teológica de Barmen
domingo, 29 de agosto de 2021
A Noção Participativa de Justiça e o Pecado Original
Certo concepção liberal, atomista e mesmo nominalista de justiça é uma das coisas que hoje influenciam na oposição que encontramos em certos teólogos contra a teologia do pecado original (a exemplo do Padre Queiruga), pois a teologia do pecado original afirma punibilidade da raça em razão do pecado de um só, cuja transgressão levou a consequências catastróficas, trazendo juízo para toda a extensão do mundo. A questão é que a percepção de justiça no mundo antigo era algo infinitamente mais vertical do que como consideramos hoje; e isso é uma das razões pelas quais a percepção de justiça do Antigo Testamento é para nós algo quase impenetrável diante da consideração atomista onde uma sociedade é percebida como um aglomerado de átomos individuais e não uma comunidade unida por um laço universal.
Mas se nas sociedades antigas a noção da responsabilidade individual não era inexistente, os laços de família ou de comunidade eram mais acentuados em virtude de uma noção mais profunda de participação. Isso é relatado na literatura antiga de forma evidente, e a obra "O Trabalho e os Dias" de Hesíodo disso é um testemunho, como se segue:
"Mas para aqueles que praticam excessos cruéis e obras malignas, o Crônida [Zeus], aquele que tudo vê, lança contra eles sua justiça. Muitas vezes, toda uma cidade paga pela culpa de um único homem que se extravia e trama perversidades. Grandes sofrimentos são lançados do céu contra eles pelo filho de Crono: fome e peste de uma só vez. E assim esses povos desaparecem" (HESÍODO - O Trabalho e os Dias. 238-247).
No Antigo Testamento, possivelmente um dos testemunhos mais evidentes disso está em Números 16.1-40, ali onde se fala sobre o caso da rebelião de Corá liderada por Datã e Abrirão, quando esses fizeram oposição à liderança de Moisés e Arão.
Após a sedição Moisés pede para que todos se afastem das tendas desses, e pede para que os líderes da rebelião, Datã e Abirão se reúnam diante da tenda da congregação com sua mulheres, e seus filhos grandes e pequenos. No hebraico a palavra para filhos pequenos é 'tappam' e que também denota "pequeninos", significando também os 'passos curtos' característicos de crianças.
No vs. 31 temos a conclusão de todo um processo, e a exclamação de Moisés nos versículos anteriores de que se houvesse algo miraculoso e Deus criasse algo como tragar a família pela criação de um abismo, então assim seria confirmada na sinalização divina a veracidade da rebelião de Datã e Abrirão. Então a Escritura afirma que a terra se fendeu, e no vs. 32 se diz que a fenda tragou as casas (que significa, grosso modo, famílias), todo ser humano (kal ha'adam) e seus bens - muito ao estilo da consideração teológica a respeito dos anátemas.
A questão da justiça que enfrentamos aqui é simplesmente teológica. Não se trata de olhar a questão meramente a partir da esfera da justiça civil, pois desse modo o argumento perde toda sua luz. Em ambos os casos, tanto no Antigo Testamento quanto no "O Trabalho e os Dias", a consideração é feita à luz da teologia. Então ela não segue uma consideração atomista, onde a punição cobre meramente o agente, pois está vinculada a uma noção mais estreita de participação e da honra partilhada dos membros de uma comunidade estreitada por laços de pertença grupal, religiosa ou familiar.
No caso do Antigo Testamento é interessante notar que o juízo pela rebelião não é provocado por Moisés; a causação do juízo é divina e é levada a efeito por meio de uma operação miraculosa. Se tivermos estômago suficiente para entender o caso, aqui temos temos literalmente em ato a mente de Deus. Assim o juízo cobre tudo o que pertence a Datã e Abirão e, por isso, toda família, punindo-os pela ofensa dos cabeças da congregação (Datã e Abirão), e nisso se inclui até mesmo aqueles que estão fora da idade da razão.
Contudo, se noção de participação é responsável pelo alargamento da catástrofe, também é necessário que vejamos isso não apenas em seu aspecto prejudicial e negativo, mas também em seu aspecto bonificador e positivo. Pois se a injustiça de um ou dois é a causa da ruína de muitos, a justiça de um ou mais é também responsável pela salvação de muitos. No Antigo Testamento em Gn 18.32 Deus confirma que não destruiria Sodoma e Gomorra se ali houvessem dez justos, e em honra a eles. Talvez aqui entendamos o adágio de Lutero que afirma que Deus nos considera justos, nos perdoando por amor a Cristo. Assim, iluminados pela honra de Cristo, ganhamos a nossa justificação.
sexta-feira, 27 de agosto de 2021
Glorificado com a Glória que Tinha Antes Junto ao Pai; Ou: O Kenoticismo e a Encarnação
Alguns kenoticistas afirmam que as palavras de Jesus na oração sacerdotal onde pediu ao Pai que "glorifica-me junto a Ti, com a glória que Eu tinha contigo antes que o mundo existisse" (Jo 17.5) significa necessariamente que Jesus "se esvaziou dos atributos" no sentido de que houve uma mutação na natureza divina. Mas isso é um disparate, já que natureza divina é imutável. No entanto, se os kenoticistas estão errados, como é possível entender a afirmação que Jesus "tinha uma glória" que agora pedia para ser "reintegrada"? A explicação se dá pela via da verdade na consideração da noção de "pessoa" (hypóstasis) na qual subsistem duas naturezas distintas.
quinta-feira, 12 de agosto de 2021
A Igreja, a Homossexualidade e a Justificação
Há um movimento recente nos EUA que busca fazer a distinção entre a atração homoerótica e o ato. De resto há verdadeiro respaldo na tradição cristã entre a distinção entre pecados atuais e veniais (ou materiais), sendo o último considerado aquilo que a Escritura nomeia como concupiscência.
quarta-feira, 4 de agosto de 2021
O Infinito Atual e a Corporeidade de Cristo; Ou: Breve Consideração Sobre a Comunicação dos Atributos
Tomar a comunicação de atributos entre a humanidade e a divindade de Cristo em sentido ontológico estrito, e não no sentido atributivo (no sentido de atribuir formalmente as operações das distintas naturezas à pessoa una de Cristo) é afirmar que existe um infinito atual, o que é impossível. Se se diz que a humanidade de Cristo se torna onipresente em função da onipresença do verbo, devemos afirmar que há um espaço atual infinito, pois é da natureza de um corpo habitar em um espaço, e um corpo infinito requer a existência de um espaço infinito. Também temos que nos perguntar se esse espaço atual infinito foi criado com Cristo ou se é antes dele.
Contudo a questão é mais complexa, pois nesse sentido o conceito de corpo infinito é um contrassenso, já que é da essência de um corpo possuir uma superfície, e um corpo infinito atual não pode possui superfície, pois se possuísse possuiria um limite, e um corpo infinito limitado é impossível por definição. Da mesma forma, um corpo é divisível; contudo um corpo infinito, se dividido, seria cada parte dele mesmo infinito, pois uma pedra dividida é ainda uma pedra, como um corpo dividido ainda é um corpo, não sendo assim distinto da sua essência; contudo uma substância infinita corpórea dividida requer espaços infinitos distintos; e se um infinito atual não é possível (pois todo infinito requer sucessão), quanto mais vários infinitos atuais e vários espaços infinitos atuais.
Portanto, tal como Deus não pode realizar um milagre criando um triângulo redondo, não é possível vários infinitos atuais - o infinito o é só potencialmente. Assim também o corpo de Cristo não pode assumir o atributo da onipresença, pois o conceito de onipresença divina é algo para além do conceito de infinito e transcende o conceito de espaço, mas a corporeidade exige espaço, não podendo, dessa forma, ser ela mesma onipresente, pois se fosse já não seria mais corporeidade.