sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Eric Voegelin, os Movimentos de Massa e a Segunda Realidade

    Tem uma reflexão interessante de Eric Voegelin (aquele que ocupou a cátedra de Max Weber após a Segunda Guerra) em "Hitler e os Alemães" onde ele se detém justamente sobre a questão da "migração para a segunda realidade" usando o conceito de Pascal de "diversionismo" (divertissement), pegando Dom Quixote para explicar a questão. O argumento é simples e de fácil apreensão, mas muito profundo.

    Dom Quixote foi alguém que tinha certo saudosismo da época da cavalaria, pois vivia em uma época, no fim da idade-média, onde essa instituição já era decadente. Explicando de forma muito superficial Dom Quixote era aficcionado com as histórias fantásticas de cavalaria e lutava com moinhos de vento achando que eram dragões etc. A graça é que ele começa a angariar certos seguidores e até chega a ter entrada no mundo palaciano (na alta esfera de poder).
    A questão começa a ficar séria quando alguns começam a levá-lo a sério, e o que era um diversionismo meio bizarro passa a se cristalizar na mente de certas pessoas como ideia séria. Grosso modo Eric Voegelin diz que a partir daí o que se dá é aquele descolamento do mundo e uma migração para uma segunda realidade, onde a brincadeira passa para a disposição homicida.
    Muito dos movimentos de massa tem essa característica, e o diversionismo nada mais é do que aquela disposição que passa a cristalizar ideias que antes até pareciam loucura ou motivo de piada para quem estava de fora, ou de mera diversão para os de dentro. O problema é quando certas idéias adquirem o contorno de problemas existenciais.
    Grande parte do nosso país está imerso em uma certa narrativa política a qual não conhece direito, esposando certas idéias sem pensar em suas consequências, e isso a ponto de se dispor a matar. Esse diversionismo assassino faz parte de uma longa propagação de mentiras, e a Pandemia já nos mostrou o quão longe isso pode ir.
    Como o feiticeiro, muita gente está conjurando forças que desconhecem, sonhando com certo paraíso construído por meios que só podem conduzir ao pesadelo. E sim, nesses últimos anos desde 2013, nunca a feitiçaria política esteve tão em uso quanto nesses últimos dias, pois toda feitiçaria está calcada nessa migração para uma segunda realidade.

Comentários no Livro de Isaías 2.1-5: (וְלֹא־יִלְמְד֥וּ עֹ֖וד מִלְחָמָֽה) E não mais aprenderão a guerra.

Texto Hebraico de Isaías 1.1-5:

1 הַדָּבָר֙ אֲשֶׁ֣ר חָזָ֔ה יְשַֽׁעְיָ֖הוּ בֶּן־אָמֹ֑וץ עַל־יְהוּדָ֖ה וִירוּשָׁלִָֽם׃
2 וְהָיָ֣ה׀ בְּאַחֲרִ֣ית הַיָּמִ֗ים נָכֹ֨ון יִֽהְיֶ֜ה הַ֤ר בֵּית־יְהוָה֙ בְּרֹ֣אשׁ הֶהָרִ֔ים וְנִשָּׂ֖א מִגְּבָעֹ֑ות וְנָהֲר֥וּ אֵלָ֖יו כָּל־הַגּוֹיִֽם׃
3 וְֽהָלְכ֞וּ עַמִּ֣ים רַבִּ֗ים וְאָמְרוּ֙ לְכ֣וּ׀ וְנַעֲלֶ֣ה אֶל־הַר־יְהוָ֗ה אֶל־בֵּית֙ אֱלֹהֵ֣י יַעֲקֹ֔ב וְיֹרֵ֨נוּ֙ מִדְּרָכָ֔יו וְנֵלְכָ֖ה בְּאֹרְחֹתָ֑יו כִּ֤י מִצִּיּוֹן֙ תֵּצֵ֣א תוֹרָ֔ה וּדְבַר־יְהוָ֖ה מִירוּשָׁלִָֽם׃
4 וְשָׁפַט֙ בֵּ֣ין הַגּוֹיִ֔ם וְהוֹכִ֖יחַ לְעַמִּ֣ים רַבִּ֑ים וְכִתְּת֨וּ חַרְבוֹתָ֜ם לְאִתִּ֗ים וַחֲנִיתֹֽותֵיהֶם֙ לְמַזְמֵרֹ֔ות לֹא־יִשָּׂ֨א גֹ֤וי אֶל־גּוֹי֙ חֶ֔רֶב וְלֹא־יִלְמְד֥וּ עֹ֖וד מִלְחָמָֽה׃ פ
5 בֵּ֖ית יַעֲקֹ֑ב לְכ֥וּ וְנֵלְכָ֖ה בְּאֹ֥ור יְהוָֽה׃

Tradução e Comentário:

1)                                                                     הַדָּבָר֙ אֲשֶׁ֣ר חָזָ֔ה יְשַֽׁעְיָ֖הוּ בֶּן־אָמֹ֑וץ עַל־יְהוּדָ֖ה וִירוּשָׁלִָֽם׃
A Palavra que viu Isaías, filho de Amoz, sobre Judá e Jerusalém.

    Aqui temos, ao que parece, uma segunda introdução da profecia de Isaías; e se repararmos bem, essa profecia aqui, dos vs.1-4, é idêntica à profecia registrada no livro de Miquéias em Mq 4.1-3. E isso não é incrível, levando em consideração que ambos os profetas exerceram seu ministério no séc. VIII a.C. Isso nos ajuda a termos uma pista sobre o clima da época, nos auxiliando na compreensão da profecia.

    No começo temos a afirmação: A Palavra que viu Isaías. É um frase semelhante, mas não igual, a Isaías 1.1, onde temos חֲזוֹן֙ יְשַֽׁעְיָ֣הוּ, e que significa Visão de Isaías, mais אֲשֶׁ֣ר חָזָ֔ה que significa que viu. O segundo conjunto de palavras (אֲשֶׁ֣ר חָזָ֔ה) encontramos em ambos os versículos; assim, a distinção é que em 1.1 se diz que o que via a seguir se tratavam das visões que viu de Isaías, e em 2.1 era a palavra que viu Isaías. A distinção, por tanto, não deve nos impressionar e nem nos levar a maiores especulações. O fato é que tanto a visão que viu quanto a palavra que viu assinalam a origem sobrenatural da profecia, consignando a ela a autoridade devida. Da mesma maneira, a profecia diz respeito a um certo contexto geográfico: Judá (יְהוּדָ֖ה) e Jerusalém (וִירוּשָׁלִָֽם). E como afirmei no comentário a Isaías 1.1-9, ao apontar para o lugar específico para qual a Palavra de Deus se manifesta, isso só pode significar que Deus tem interesse nas realidades particulares como o Deus da história, ou como alguém que se manifesta na história e através da história.

2)            וְהָיָ֣ה׀ בְּאַחֲרִ֣ית הַיָּמִ֗ים נָכֹ֨ון יִֽהְיֶ֜ה הַ֤ר בֵּית־יְהוָה֙ בְּרֹ֣אשׁ הֶהָרִ֔ים וְנִשָּׂ֖א מִגְּבָעֹ֑ות וְנָהֲר֥וּ אֵלָ֖יו כָּל־הַגּוֹיִֽם׃
E acontecerá no fim dos dias que a casa de Yahweh será estabelecida no cume das montanhas e afluirão para ela todos os povos.

    A profecia é escatológica, ou seja, se refere às últimas coisas. Assim, ele se refere ao fim dos dias (בְּאַחֲרִ֣ית הַיָּמִ֗ים), e aponta para uma posição geográfica que, por natureza, também possui certo significado simbólico. O fato de a casa de Yahweh (בֵּית־יְהוָה֙) se estabelecer no cume dos montes (בְּרֹ֣אשׁ הֶהָרִ֔ים) indica tanto a posição de destaque, quanto a sua autoridade que se alteia acima de tudo o mais, tal como a Palavra de Deus se alteia acima de todos os homens e de tudo o que existe. Assim, à Cidade dos Montes afluirão os povos, sendo ela estabelecida como o centro e o fim (τέλος) das nações no sentido de atraí-las todas a si, movendo suas intenções e afetos na busca pela orientação da sua razão para a realização das coisas que às nações mais importam.

3)   'וְֽהָלְכ֞וּ עַמִּ֣ים רַבִּ֗ים וְאָמְרוּ֙ לְכ֣וּ׀ וְנַעֲלֶ֣ה אֶל־הַר־יְהוָ֗ה אֶל־בֵּית֙ אֱלֹהֵ֣י יַעֲקֹ֔ב וְיֹרֵ֨נוּ֙ מִדְּרָכָ֔יו וְנֵלְכָ֖ה בְּאֹרְחֹתָ֑יו כִּ֤י
                                                                                             מִצִּיּוֹן֙ תֵּצֵ֣א תוֹרָ֔ה וּדְבַר־יְהוָ֖ה מִירוּשָׁלִָֽם׃
E irão muitas nações e dirão: Vamos, subamos ao monte da casa do Deus de Jacó, para que nos instrua acerca dos seus caminhos e andemos em suas veredas. Porque de Sião sairá a Lei e a Palavra de Yahweh de Jerusalém.                                                                

    Muitos povos ou nações (עַמִּ֣ים) irão ao encontro de Yahweh, apontando para ponto da instrução que se encontra no cume dos montes. Assim ocorrerá para que Yahweh instrua (וְיֹרֵ֨נוּ֙) nos caminhos dele (מִדְּרָכָ֔יו) e andemos (וְנֵלְכָ֖ה) nas veredas d'Ele (בְּאֹרְחֹתָ֑יו). Então o ensino e o caminho atrairão os povos. Mas cada qual é atraído por aquilo que ama e deseja no mesmo sentido de que muitos profetas e justos desejaram ouvir as palavras de Cristo (Mt 13.17). Assim, eles serão atraídos a Sião. E eis a razão: Porque (כִּ֤י) de Sião (מִצִּיּוֹן֙) sairá (תֵּצֵ֣א) a Lei (תוֹרָ֔ה) e a Palavra de Yahweh (וּדְבַר־יְהוָ֖ה) de Jerusalém (מִירוּשָׁלִָֽם).     É importante nos concentrarmos nessas palavras, dado tudo o que ainda se seguirá. Assim, Sião, como metáfora do locus de ensino de Yahweh, é, assim, a instrutora dos povos e está nisso a razão de ela ser o local da atração dos povos, pois em Sião eles encontram o seu τέλος, ou seja, o seu fim, a sua razão fundamental do como existir verdadeiramente. É na ciência da Lei e nas Palavras de Yahweh que eles podem achar a razão do seu repouso.

4) וְשָׁפַט֙ בֵּ֣ין הַגּוֹיִ֔ם וְהוֹכִ֖יחַ לְעַמִּ֣ים רַבִּ֑ים וְכִתְּת֨וּ חַרְבוֹתָ֜ם לְאִתִּ֗ים וַחֲנִיתֹֽותֵיהֶם֙ לְמַזְמֵרֹ֔ות לֹא־יִשָּׂ֨א גֹ֤וי אֶל־גּוֹי֙
                                                                                                         חֶ֔רֶב וְלֹא־יִלְמְד֥וּ עֹ֖וד מִלְחָמָֽה׃ פ
E julgará entre as nações e repreenderá muitos povos. E transformarão as espadas deles em enxadas e as lanças deles em podadeiras; e não erguerá a espada nação contra nação e nem aprenderão mais a guerra.

    Assim procederá Yahweh no fim dos dias: E julgará (וְשָׁפַט֙) entre (em meio) (בֵּ֣ין) as nações (הַגּוֹיִ֔ם) e repreenderá (וְהוֹכִ֖יחַ) muitos (רַבִּ֑ים) povos (לְעַמִּ֣ים). O Senhor no uso de sua plenipotência fará como se procede o juiz em sua própria corte: julga, repreende, retifica. No caso do Todo-Poderoso, ele próprio é a sua Justiça, já que ele é a instrução (תוֹרָ֔ה) e o julgamento (שׁפט).

    Podemos a partir de agora expor elementos para uma síntese importante, síntese que expressará o tom de muito da mensagem característica da profecia de Isaías em relação à política teológica das nações, se assim podemos nos expressar. Sim, e como a profecia de Isaías não tem razão de ser se não há implicações morais, e como a mensagem se dirige ao povo de Deus constituído em uma comunidade política, todos os assuntos morais importam à profecia, o que não exclui a política. Nesse sentido podemos caracterizar um fim no sentido pleno de um ideal inspirador e poderoso que se constitui na condição plena e última dos povos ensinados pelo Senhor, assim como ideal desejado pelo Senhor às nações. Portanto, nas ações do Senhor Ele ensinará e os povos transformarão (וְכִתְּת֨וּ) as espadas deles (חַרְבוֹתָ֜ם) em enxadas (לְאִתִּ֗ים) e as suas lanças (וַחֲנִיתֹֽותֵיהֶם֙) em podadeiras (לְמַזְמֵרֹ֔ות). A palavra hebraica que traduzimos por e transformarão (וְכִתְּת֨וּ) pode ser traduzida mais especificamente por e triturarão. Assim, a ideia é de que as armas de guerra seriam destruídas, e de seus restos seriam feitos instrumentos de plantio. A metáfora é maravilhosa, e faz lembrar, a título de exemplo, que o gás mostarda usado como uma das armas mais letais na Primeira Guerra, sendo posteriormente seu uso proibido nos campos de batalha, serviu como um poderoso fertilizante, aumentando drasticamente o rendimento das lavouras - assim, a ciência quer produz a arma é neutra, importando para o seu bom ou mau uso a disposição dos corações, ali onde o Senhor pode atuar e transformar.

    De tudo o que foi dito, ainda resta a complementação do versículo que deixará a síntese ainda mais evidente: e não levantará (לֹא־יִשָּׂ֨א) a espada (חֶ֔רֶב) nação (גֹ֤וי) contra nação (אֶל־גּוֹי֙) e nem aprenderão (וְלֹא־יִלְמְד֥וּ) mais (עֹ֖וד) a guerra (מִלְחָמָֽה). À guisa do que foi dito, aqui temos também um exemplo da profecia pacifista de Isaías. Resta óbvio que a cidade, modelo último como guia dos povos e estabelecida no cimo dos montes, está fundada em uma proposta avessa à guerra. Assim, tal paz foi conquistada mediante a repreensão, o juízo e o ensino do Senhor, em cuja sombra nenhuma nação irá mais levantar a espada uma contra a outra. É importante perceber nessa visão de Isaías o fundamento da sua profecia, cuja mensagem irá reverberar em toda sua atuação e intervenção como profeta. E se no capítulo anterior fomos defrontados com uma Jerusalém que traiu a sua vocação torcendo o direito, aqui estamos diante do cume da realização do propósito da cidade sobre os montes que foi absorvida absolutamente pela plenitude da perfeição no cumprimento total da sua vocação.

5)                                                                                                    בֵּ֖ית יַעֲקֹ֑ב לְכ֥וּ וְנֵלְכָ֖ה בְּאֹ֥ור יְהוָֽה׃
Vamos à casa de Jacó e andemos na luz de Yahweh.

    Assim como no Apocalipse de João, aqui quem ouve diz: "Vem!" (Ap 22.17b). E o povo persuadido pela altitude absoluta do ensino proferido na Cidade sobre os Montes, chama outro povo para lhe ouvir a voz e andar na luz (בְּאֹ֥ור) do Senhor (יְהוָֽה) o qual guiará a razão e a vontade dos povos na direção da sua paz e do verdadeiro repouso. Como pastor, o Senhor há de guiar a razão e o desejo dos povos para o seu fim último, e a guiará para a sua perfeição, à visão eterna de Deus, pois na comunhão entre aqueles que deram fim à guerra entre a mente e da vontade com a realidade, guerra gerada pelo pecado que conduz o homem para a discórdia interna (em sua alma) e externa (entre os homens), não há mais razão ou possibilidade para o conflito entre aqueles que são concordes entre si e Deus. Assim, livre dos pecados, agora repousam, sem conflito, em Deus. Assim, aqui é realizada a concreção absoluta da paz dos povos que desfrutarão da bem-aventurança eterna, pois estes alcançaram a comunhão plena com o seu fim último na visão eterna do Senhor.

    Amém!

terça-feira, 7 de setembro de 2021

Declaração Teológica de Barmen

A Declaração Teológica de Barmen

31/05/1934

A Declaração Teológica de Barmen

1. UM APELO ÀS CONGREGAÇÕES EVANGÉLICAS E AOS CRISTÃOS NA ALEMANHA

O Sínodo Confessional da Igreja Evangélica Alemã reuniu-se na cidade de Barmen, de 29 a 31 de maio de 1934. Representantes de todas as Igrejas Confessionais alemãs uniram-se unanimemente numa confissão do único Senhor da Igreja una, santa e apostólica. Fiéis à sua confissão de fé, membros das Igrejas Luteranas, Reformada e Unida procuraram redigir uma mensagem comum e para ir ao encontro das necessidades e tentação da igreja em nossos dias. Com gratidão a Deus, estão convictos de que lhes foi concedida uma palavra comum para dizerem. Não foi sua intenção fundar uma nova Igreja ou formar uma união de Igrejas. Nada esteve tão longe dos seus pensamentos do que a abolição do status confessional das nossas igrejas. Pelo contrário, sua intenção era resistir com fé e unanimidade à destruição da Confissão de Fé, e, por conseguinte, da Igreja Evangélica na Alemanha. Em oposição às tentativas de estabelecer a unidade da Igreja Evangélica Alemã mediante uma falsa doutrina, fazendo uso da força e de práticas insinceras, o Sínodo Confessional insiste que a unidade das Igrejas Evangélicas na Alemanha só poderá provir da Palavra de Deus na fé concedida pelo Espírito Santo. Somente assim a igreja se renova.

O Sínodo Confessional, portanto, conclama as congregações para se unirem em oração e coesas cerrarem fileiras em torno dos pastores e mestres que permanecem fiéis às Confissões.

Não vos deixeis enganar pelos boatos de que pretendemos opor-nos à unidade da nação alemã! Não deis ouvidos aos sedutores que pervertem nossas intenções, dando a impressão de que desejaríamos quebrar a unidade da Igreja Evangélica Alemã ou abandonar as Confissões dos Pais da Igreja.

Examinai os espíritos, a ver se eles são de Deus! Provai também as palavras do Sínodo Confessional da Igreja Evangélica Alemã pare testar se estão conformes com a Sagrada Escritura e com a Confissão dos Pais. Se achardes que nossas palavras se opõem à Escritura, então não nos deis atenção! Mas se julgardes que nossa posição está conforme com a Escritura, então não permitais que o medo ou a tentação vos impeça de trilhar conosco a vereda da fé e da obediência à Palavra de Deus, a fim de que o povo de Deus tenha um só pensamento na terra e que nós experimentemos pela fé aquilo que ele mesmo disse: Nunca vos deixarei, nem vos abandonarei. Por esse motivo, não temais, ó pequenino rebanho, porque vosso Pai se agradou em dar-vos o seu reino.

2. DECLARAÇÃO TEOLÓGICA A RESPEITO DA SITUAÇÃO ATUAL DA IGREJA EVANGÉLICA ALEMÃ

Conforme as palavras iniciais da sua Constituição, datada de 11 de julho de 1933, a Igreja Evangélica Alemã é uma federação de Igrejas Confessionais, oriundas da Reforma, gozando de direitos iguais. O fundamento teológico para a unificação dessas igrejas se acha nos artigos 1º. e 2º. (1) da Constituição da Igreja Evangélica Alemã, reconhecida pelo Governo do Reich em 14 de julho de 1933:

Artigo 1º. - A base inviolável da Igreja Evangélica Alemã é o Evangelho de Jesus Cristo, conforme nos é atestado nas Sagradas Escritures e trazido novamente à luz nas Confissões da Reforma. Todos os poderes necessários à Igreja para cumprir sua missão por ele são determinados e limitados.

Artigo 2º. (1) - A Igreja Evangélica Alemã é dividida em igrejas regionais (Landeskirchen).

Nós, os representantes das igrejas Luterana, Reformada e Unida, dos Sínodos livres, das assembleias eclesiásticas e organizações paroquiais unidas no Sínodo Confessional da Igreja Evangélica Alemã, declaramos estarmos unidos na base da Igreja Evangélica Alemã como uma federação de Igrejas Confessionais. Unifica-nos a confissão de um só Senhor da Igreja una, santa, católica e apostólica.

Declaramos publicamente nesta Confissão, perante todas as igrejas evangélicas da Alemanha, que aquilo que ela mantém como patrimônio comum está em grande perigo que também ameaça a unidade da Igreja Evangélica Alemã. Ela se acha ameaçada pelos métodos de ensino e de ação do partido eclesiástico dominante dos cristãos alemães e pela administração da Igreja conduzida por ele. Esses métodos se vêm tornando cada vez mais salientes neste primeiro ano de existência da Igreja Evangélica Alemã. Essa ameaça reside no fato de que a base teológica da unidade da Igreja Evangélica Alemã tem sido contrariada contínua e sistematicamente e tornada ineficaz por doutrinas estranhas, da parte dos líderes e porta-vozes dos cristãos alemães, bem como da parte da administração da igreja. Se tais doutrinas conseguirem impor-se, então, conforme todas as Confissões em vigor em nosso meio, a Igreja deixará de ser Igreja, e a Igreja Evangélica Alemã, como federação de Igrejas Confessionais, tornar-se-á intrinsecamente impossível.

Na qualidade de membros das Igrejas Luterana, Reformada e Unida, podemos e devemos falar com uma só voz neste assunto. Precisamente por querermos ser e permanecer fiéis às nossas várias Confissões, não podemos silenciar, pois cremos ter recebido urna mensagem comum para proclamá-la numa época de necessidades e tentações gerais. Depositamos nossa confiança em Deus pelo que isto possa significar para as interrelações das igrejas Confessionais.

Face dos erros dos cristãos alemães da presente administração da Igreja do Reich, erros que estão assolando a igreja e, também rompendo, por esse motivo, a unidade da Igreja Evangélica Alemã, confessamos as seguintes verdades evangélicas:

1. Eu sou o caminho e a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim (Jo 14.6).
Em verdade, em verdade vos digo: o que não entra pela porta no aprisco das ovelhas, mas sobe por outra parte, esse é ladrão e salteador... Eu sou a porta: se alguém entrar por mim, será salvo (Jo 10.1 e 9).

Jesus Cristo, como nos é atestado na Sagrada Escritura, é a única Palavra de Deus que devemos ouvir, e em quem devemos confiar e a quem devemos obedecer na vida e na morte.

Rejeitamos a falsa doutrina de que a igreja teria o dever de reconhecer — além e aparte da Palavra de Deus — ainda outros acontecimentos e poderes, personagens e verdades como fontes da sua pregação e como revelação divina.

2. Mas vós sois dele, em Cristo Jesus, o qual se nos tornou da parte de Deus sabedoria e justiça e santificação e redenção (I Co 1.30).

Assim como Jesus Cristo é a certeza divina do perdão de todos os pecados, assim e também com a mesma seriedade, é a reivindicação poderosa de Deus sobre toda a nossa existência. Por seu intermédio experimentamos uma jubilosa libertação dos ímpios grilhões deste mundo, para servirmos livremente e com gratidão às suas criaturas.

Rejeitamos a falsa doutrina de que em nossa existência haveria áreas em que não pertencemos a Jesus Cristo, mas a outros senhores, áreas em que não necessitaríamos da justificação e santificação por meio dele.

3. Mas, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é o cabeça, Cristo, de quem todo o corpo, bem ajustado e consolidado, pelo auxílio de toda junta, segundo a justa cooperação de cada parte, efetua seu próprio crescimento para a edificação de si mesmo em amor (Ef 4.15-16).

A Igreja Cristã é a comunidade dos irmãos, na qual Jesus Cristo age atualmente como o Senhor na Palavra e nos Sacramentos através do Espírito Santo. Como Igreja formada por pecadores justificados, ela deve, num mundo pecador, testemunhar com sua fé, sua obediência, sua mensagem e sua organização que só dele ela é propriedade, que ela vive e deseja viver tão somente da sua consolação e das suas instruções na expectativa da sua vinda.

Rejeitamos a falsa doutrina de que à Igreja seria permitido substituir a forma da sua mensagem e organização, a seu bel prazer ou de acordo com as respectivas convicções ideológicas e políticas reinantes.

4. Sabeis que os governadores dos povos os dominam e que os maiorais exercem autoridade sobre eles. Não é assim entre vós; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva (Mt 20.25-26).

A diversidade de funções na Igreja não estabelece o predomínio de uma sobre a outra, mas, antes o exercício do ministério confiado e ordenado a toda a comunidade.

Rejeitamos a falsa doutrina de que a Igreja, desviada deste ministério, poderia dar a si mesma ou permitir que se lhe dessem líderes especiais revestidos de poderes de mando.

5. Temei a Deus, honrai ao rei! (1 Pe 2.17).

A Escritura nos diz que o Estado tem o dever, conforme ordem divina, de zelar pela justiça e pela paz no mundo ainda que não redimido, no qual também vive a Igreja, segundo o padrão de julgamento e capacidade humana com emprego da intimidação e exercício da força. A Igreja reconhece o benefício dessa ordem divina com gratidão e reverência a Deus. Lembra a existência do Reino de Deus, dos mandamentos e da justiça divina, chamando, dessa forma a atenção para a responsabilidade de governantes e governados. Ela confia no poder da Palavra e lhe presta obediência, mediante a qual Deus sustenta todas as coisas.

Rejeitamos a falsa doutrina de que o Estado poderia ultrapassar a sua missão específica, tornando-se uma diretriz única e totalitária da existência humana, podendo também cumprir desse modo, a missão confiada à Igreja.

Rejeitamos a falsa doutrina de que a igreja poderia e deveria, ultrapassando a sua missão específica, apropriar-se das características, dos deveres e das dignidades estatais, tornando-se assim, ela mesma, um órgão do Estado.

6. Eis que estou convosco todos os dias até a consumação do século (Mt 28.20). A Palavra de Deus não está algemada (II Tm 2.9)

A missão da Igreja, na qual repousa sua liberdade, consiste em transmitir a todo o povo — em nome de Cristo e, portanto, a serviço da sua Palavra e da sua obra pela pregação e pelo sacramento— a mensagem da livre graça de Deus.

Rejeitamos a falsa doutrina de que a Igreja, possuída de arrogância humana, poderia colocar a Palavra e a obra do Senhor a serviço de quaisquer desejos, propósitos e planos escolhidos arbitrariamente.

O Sínodo Confessional da Igreja Evangélica Alemã declara ver no reconhecimento destas verdades e na rejeição desses erros, a base teológica indispensável da Igreja Evangélica Alemã na sua qualidade de federação de igrejas Confessionais. Ele convida a todos os que estiverem aptos a aceitar esta declaração a terem sempre em mente estes princípios teológicos em suas decisões na política eclesiástica. Ele concita a não pouparem esforços para o retorno à unidade da fé, do amor e da esperança.

Verbum Dei manet in aeternum* ________________________________ Texto retirado do Portal Luteranos.

domingo, 29 de agosto de 2021

A Noção Participativa de Justiça e o Pecado Original

Certo concepção liberal, atomista e mesmo nominalista de justiça é uma das coisas que hoje influenciam na oposição que encontramos em certos teólogos contra a teologia do pecado original (a exemplo do Padre Queiruga), pois a teologia do pecado original afirma punibilidade da raça em razão do pecado de um só, cuja transgressão levou a consequências catastróficas, trazendo juízo para toda a extensão do mundo. A questão é que a percepção de justiça no mundo antigo era algo infinitamente mais vertical do que como consideramos hoje; e isso é uma das razões pelas quais a percepção de justiça do Antigo Testamento é para nós algo quase impenetrável diante da consideração atomista onde uma sociedade é percebida como um aglomerado de átomos individuais e não uma comunidade unida por um laço universal.

Mas se nas sociedades antigas a noção da responsabilidade individual não era inexistente, os laços de família ou de comunidade eram mais acentuados em virtude de uma noção mais profunda de participação. Isso é relatado na literatura antiga de forma evidente, e a obra "O Trabalho e os Dias" de Hesíodo disso é um testemunho, como se segue:

"Mas para aqueles que praticam excessos cruéis e obras malignas, o Crônida [Zeus], aquele que tudo vê, lança contra eles sua justiça. Muitas vezes, toda uma cidade paga pela culpa de um único homem que se extravia e trama perversidades. Grandes sofrimentos são lançados do céu contra eles pelo filho de Crono: fome e peste de uma só vez. E assim esses povos desaparecem" (HESÍODO - O Trabalho e os Dias. 238-247).

No Antigo Testamento, possivelmente um dos testemunhos mais evidentes disso está em Números 16.1-40, ali onde se fala sobre o caso da rebelião de Corá liderada por Datã e Abrirão, quando esses fizeram oposição à liderança de Moisés e Arão.

Após a sedição Moisés pede para que todos se afastem das tendas desses, e pede para que os líderes da rebelião, Datã e Abirão se reúnam diante da tenda da congregação com sua mulheres, e seus filhos grandes e pequenos. No hebraico a palavra para filhos pequenos é 'tappam' e que também denota "pequeninos", significando também os 'passos curtos' característicos de crianças.

No vs. 31 temos a conclusão de todo um processo, e a exclamação de Moisés nos versículos anteriores de que se houvesse algo miraculoso e Deus criasse algo como tragar a família pela criação de um abismo, então assim seria confirmada na sinalização divina a veracidade da rebelião de Datã e Abrirão. Então a Escritura afirma que a terra se fendeu, e no vs. 32 se diz que a fenda tragou as casas (que significa, grosso modo, famílias), todo ser humano (kal ha'adam) e seus bens - muito ao estilo da consideração teológica a respeito dos anátemas.

A questão da justiça que enfrentamos aqui é simplesmente teológica. Não se trata de olhar a questão meramente a partir da esfera da justiça civil, pois desse modo o argumento perde toda sua luz. Em ambos os casos, tanto no Antigo Testamento quanto no "O Trabalho e os Dias", a consideração é feita à luz da teologia. Então ela não segue uma consideração atomista, onde a punição cobre meramente o agente, pois está vinculada a uma noção mais estreita de participação e da honra partilhada dos membros de uma comunidade estreitada por laços de pertença grupal, religiosa ou familiar.

No caso do Antigo Testamento é interessante notar que o juízo pela rebelião não é provocado por Moisés; a causação do juízo é divina e é levada a efeito por meio de uma operação miraculosa. Se tivermos estômago suficiente para entender o caso, aqui temos temos literalmente em ato a mente de Deus. Assim o juízo cobre tudo o que pertence a Datã e Abirão e, por isso, toda família, punindo-os pela ofensa dos cabeças da congregação (Datã e Abirão), e nisso se inclui até mesmo aqueles que estão fora da idade da razão.

Contudo, se noção de participação é responsável pelo alargamento da catástrofe, também é necessário que vejamos isso não apenas em seu aspecto prejudicial e negativo, mas também em seu aspecto bonificador e positivo. Pois se a injustiça de um ou dois é a causa da ruína de muitos, a justiça de um ou mais é também responsável pela salvação de muitos. No Antigo Testamento em Gn 18.32 Deus confirma que não destruiria Sodoma e Gomorra se ali houvessem dez justos, e em honra a eles. Talvez aqui entendamos o adágio de Lutero que afirma que Deus nos considera justos, nos perdoando por amor a Cristo. Assim, iluminados pela honra de Cristo, ganhamos a nossa justificação.

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Glorificado com a Glória que Tinha Antes Junto ao Pai; Ou: O Kenoticismo e a Encarnação

    Alguns kenoticistas afirmam que as palavras de Jesus na oração sacerdotal onde pediu ao Pai que "glorifica-me junto a Ti, com a glória que Eu tinha contigo antes que o mundo existisse" (Jo 17.5) significa necessariamente que Jesus "se esvaziou dos atributos" no sentido de que houve uma mutação na natureza divina. Mas isso é um disparate, já que natureza divina é imutável. No entanto, se os kenoticistas estão errados, como é possível entender a afirmação que Jesus "tinha uma glória" que agora pedia para ser "reintegrada"? A explicação se dá pela via da verdade na consideração da noção de "pessoa" (hypóstasis) na qual subsistem duas naturezas distintas.

    Ora, se a pessoa do Verbo assumiu a natureza humana da substância da Virgem Maria, afirmamos a realidade de um suposto único, onde a pessoa do Verbo assume para si a natureza humana; e é por isso que as operações da natureza divina dizem respeito a Jesus enquanto Deus-homem (theanthropon). Nesta união se diz que formalmente tudo que oque se predica das operações de ambas as naturezas se atribui formalmente a essa hipóstase (pessoa, substância) singularíssima, naturezas que continuam essencialmente distintas por se atribuir operações distintas quanto à peculiaridade dessas formas (a forma humana e a forma divina).
    Aqui entendemos que não se predica o que é comum à natureza segunda a forma divina se atribuindo àquilo que é comum à forma da natureza humana e vice-versa, mas isso enquanto realidades separadas não unidas na hipóstase; mas se atribui comumente ambas as operações a uma única pessoa, e isso em sentido absoluto porque a a singularidade da hipóstase é absoluta. Nesse sentido é a pessoa divina que morre na Cruz, porque é Deus quem morre na Cruz, e é a pessoa divina que assume a natureza humana, sendo uma só a pessoa do Verbo e a do homem.
    É por isso que dizemos "aquele homem criou as estrelas", ou "aquele homem que criou os anjos"; pois embora não seja próprio da natureza humana a criação de nada, contudo é próprio da pessoa de Cristo a criação, já que nessa pessoa há a unidade pessoal de ambas as naturezas, uma criadora e outra criatura. Nesse sentido não é impróprio Jesus dizer que "tinha uma glória", se tudo o que é do Verbo é também do homem; pois como unicamente como Deus antes da encarnação estava pleno de glória, mas como homem não manifestou-se ao mundo até aquele momento em sua glória total, como é próprio à glória de Deus a qual o Verbo nunca perdeu, nem mesmo na encarnação. Também não é impróprio Jesus dizer, ao mesmo tempo, que o Filho ia "subir onde primeiro estava" (Jo 6.62), ou que "o Filho desceu do céu, mas ainda continua no céu" (Jo 3.13).
    Ora, entendemos que essa é uma linguagem paradoxal usada no Evangelho de João pela qual ele atribui a mutabilidade característica das coisas humanas àquilo que é divino (descer do céu, p. ex.). Jesus faz isso em duplo sentido, tanto para a acomodação ao nosso entendimento, atribuindo o mutável ao imutável e o imutável ao mutável, tanto porque porque ambas as coisas (o mutável e o imutável) se predicam de uma pessoa única. Assim em certo sentido Jesus "tinha uma glória" porque como homem a ele pertence tudo o que é de Deus, e ainda não havia manifestado em todo poder a glória de Deus que é uma glória sua, mas nunca manifesta enquanto homem (assim, na unidade da pessoa, por certo ângulo, Jesus tinha uma glória); mas em outro sentido ele nunca perdeu a glória, porque tudo o que é característico de Deus é necessariamente imutável, e Jesus é Deus.
    Enfim, como homem ele nunca havia manifestado a totalidade da sua glória, pois Jesus aprendeu e cresceu na graça e no entendimento (Lc 2.52), embora a ele pertencesse essa glória que manifestava em todo o seu esplendor enquanto apenas Deus e Segunda Pessoa da Santíssima Trindade antes da encarnação; mas como Deus ele sempre esteve no Céu e é imutável tal como o Pai é imutável (Jo 1.1; Jo 3.13) em todo esplendor da sua glória. Entendido assim o que entendemos por auto-esvaziar-se se diz do ocultamento da glória de Deus sob o véu da carne humana de Cristo a qual, em seu próprio tempo, manifesta gloriosamente toda a plenitude da divindade.

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

A Igreja, a Homossexualidade e a Justificação

    Há um movimento recente nos EUA que busca fazer a distinção entre a atração homoerótica e o ato. De resto há verdadeiro respaldo na tradição cristã entre a distinção entre pecados atuais e veniais (ou materiais), sendo o último considerado aquilo que a Escritura nomeia como concupiscência.

    Devemos lembrar, contudo que esse é o tema decisivo do embate ente a Reforma e o Catolicismo Romano, e ouso dizer que também isso se trata do cerne de muitas das discussões disciplinares e mesmo da tendência em enxergar uma maior austeridade nas Igrejas provenientes do movimento de Reforma e uma maior liberalidade no Catolicismo Romano. - e isso não é mera picuinha, ou ranhetagem teológica, pois os desdobramentos dessa questão são realmente imensos.
    Uma coisa a se notar: há uma tendência crescente das Igrejas nos EUA a se distanciarem de certos moldes impressos pela Reforma, seja pelo molde da "Primeira Reforma" ou da assim chamada "Reforma Radical" - de onde surgiram os batistas etc. E a questão aqui disputada é evidência disso: a distinção entre pecados atuais e materiais está, na verdade, na base da teologia da Justificação pela Fé, e a própria justificação compreendida como a imputação da justiça de Cristo ('Iustitia Imputata Christi') ou justiça de outro (Iustitia Aliena) é indiscernível sem essa compreensão de pecado. E quando esse moviento desconsidera a era "atração homoerótica" como pecado, esse movimento apostatou de toda consideração da Reforma a respeito da questão.
    Falando mais especificamente, a distinção entre pecados atuais e pecado material é uma distinção que existe tanto no catolicismo romano quanto no protestantismo; contudo, embora a distinção seja semelhante, a conclusão teológica é absolutamente diversa, e isso pelas seguintes razões: 1) Embora tanto o protestantismo quanto o catolicismo romano concordem que o pecado atual, imputado como razão de condenação, é aquilo que chamamos de 'pecado contra a razão', posto que a vontade aqui (que é um faculdade distintamente racional, diferentemente do apetite) é vista como deficiente em função da concordância entre a razão e os apetites maus, 2) eles discordam quanto à consideração dos pecados veniais como razão de condenação.
    Para melhor definição da questão, os pecados veniais são aqueles que não contam com a concordância entre a razão e a apetição em estado de defecção, sendo estes meramente resultado do seguimento irrefletido da vontade a qual pode ser materializada como uma explosão de ira, um pensamento libidinoso, uma cobiça má etc. Podemos encontrar essa discussão até mesmo em autores como Aristóteles ( in E.E. VI.7), que fez a distinção entre o desregrado, que faz as suas ações deliberadamente por prévia escolha - e esses são efetivamente maus, pois fazem o mal com o concurso da razão; e o descontrolado que pratica seus atos por certa impulsividade, não contanto com isso com o pleno concurso da razão para a realização dos atos maus, sendo, portanto, passíveis de indulgência.
    Assim, a questão dos pecados veniais pode ser discutida sob o ângulo da consideração das seguintes esferas: a civil e a teológica, ou religiosa. Temos, na esfera civil, um indivíduo justo como aquele que não age como transgressor da lei, muito embora suas intenções por vezes não sejam computadas para a consideração do seu status de justo, e a discussão aristotélica casa evidentemente com essa esfera; mas diferentemente disso é a discussão teológica em relação à questão. Os reformadores acusaram a teologia católica de fazer uma confusão entre a esfera teológica e civil e, como disse Tillich, Berkhof etc., o catolicismo romano parece não considerar o aspecto teológico do pecado, já que não afirma que pecados veniais são suficientes para a condenação, mas apenas o chamados "pecados mortais", os quais se caracterizam por serem pecados praticados, como dito anteriormente, com o concurso da razão (ou os pecados conscientes).
    Diferentemente da consideração católica romana, os reformadores disseram que os pecados veniais, por estarem fundados na concupiscência (a depravação inerente), são anomia, e por serem assim estão em frontal colisão contra o mandamento de Deus e a sua justiça; assim, a depravação inerente é condenável porque se constitui como óbice para a realização da perfeita justiça, e por ser como tal está devotada à ira de Deus, por ser a característica desse "corpo de morte" (Rm 7.24). Assim concorda a Escritura, pois em Rm 7 temos que a "lei que milita em meus membros" é contrária à lei de Deus; e como tal, exige salvação, e salvação de Deus, sendo portanto, em sentido reflexo, algo suficiente para a condenação.
    Isso tem algumas implicações para o aconselhamento pastoral no universo do protestantismo, e por mais radicais que sejam as premissas teológicas aqui, como veremos essas premissas teológicas não levam a uma prática excludente nas igrejas senão que lançam uma a verdadeira luz sobre a condição da existência do cristão sob Cristo, consignando a vida cristã com a luta contra o pecado. Na verdade, a teologia sobre a imputação da justiça de Cristo, por esse ângulo, ganha aqui toda a sua razão de ser.
    Os reformadores foram unânimes em considerar que mesmo depois da regeneração, a corrupção inerente, que é imputável por ser anomia, não é retirada do homem. Assim, após a outorga da fé salvadora os cristãos ainda contam com os "resquícios do pecado" característicos da natureza caída em Adão. Esses resquícios de pecado não são apenas pecado, mas também pena do pecado (Rm 1.24ss). Ainda na época da Reforma, a corrupção inerente era denominada - como já haviam feito os teólogos antigos - concupiscência, mas essa denominação abarcava mais do que a mera pulsão sexual desordenada, cobrindo ainda a noção dos "pecados espirituais", como a cobiça de bens, a soberba o ódio etc. Nesse sentido, a única justificação possível não era a justificação entendida como "infusão de justiça", como havia feito Trento e o velho catolicismo romano medieval, pois a justificação por "infusão de justiça" só poderia ser possível na esteira do enfraquecimento da própria noção de justiça, excluindo dela a real ofensa dos chamados pecados veniais - os quais, para o catolicismo romano, embora ofensivos à vida cristã, por diminuírem a caridade, não eram considerados como razão de "ruptura da amizade", ou da destruição da posse da graça salvadora.
    Lutero defendeu uma consideração diversa da justificação, estando esta não mais presa à estreiteza de uma confusão da justiça civil com a justiça teológica, mas separando ambas as esferas. Assim fazendo, localizou o problema da justificação de sua época, alegando a impossibilidade de uma justificação como fundada na justiça própria, já que essa justiça infusa não era alcançada pelos cristãos nem por obras e nem mesmo pelo batismo. Por isso a justiça com a qual somos justificados só pode ser uma "justiça imputada", não uma "justiça infusa"; uma justiça extrínseca, não uma justiça intrínseca; uma justiça dada por Deus por amor a Cristo, não uma justiça reconhecida porque adquirimos pelo que somos o amor de Deus; uma justiça pela fé, e não uma justiça visível pela qualidade das nossas obras; e assim é porque mesmo depois de regenerados e justificados, permanece em nós a deficiência da justiça pela permanência do pecado, o qual agora não nos é mais imputado por amor a Cristo - ora, se o pecado não é imputado, logo somos considerados (declarativamente) justos (por amor a Cristo).
    Aqui Lutero considerou que embora fosse metafisicamente plausível a consideração de que a presença do pecado no sujeito é como a presença de uma qualidade na substância, teologicamente essa sentença não alcançou a verdade da justificação. A questão é que só essa consideração da justificação como justiça imputada atinge abarca toda a amplitude da noção teológica de justiça, pois o pecado inerente (material) é pecado, e como tal está devotado à ira de Deus; assim, só a não imputação do pecado faz sentido para a realização da justificação - pois todos os pecados foram destruídos quando Jesus os levou sobre si, carregando também em si a responsabilidade sobre todos eles, destruindo-os na Cruz. Aqui aqueles que se aliançam com Cristo tomam sobre si tudo o que é de Cristo (sua justiça, santidade, vida e paz com Deus), tal como Cristo tomou sobre si tudo o que era nosso (a condenação, o pecado e a morte e a ira de Deus).
    Entendido isso chegamos ao cerne da questão da condição do homem justificado na Igreja; não que nenhum deles não tenham pecado, nem mesmo corrupção; mas todos se encontram, pela fé, sob a justiça de Cristo, e, como tais, não possuem nenhuma condenação. Portanto, não é um tipo ou outro de concupiscência que é condenável diante de Deus; não só a pulsão homoerótica que está sob a sanção do mandamento; todas as concupiscências de todos os homens que caminham sob este mundo, atados a esse corpo, estão sob a sanção do mandamento. Mas em Cristo todos estão perdoados sob o ângulo da justificação.
    Mas é importante notar que a justificação não resume a vida cristã, pois todos os seus efeitos também pertencem à Igreja; assim, não pertence ao fiel apenas a justiça, mas também a santidade, santidade onde Deus vai infundindo em nós a sua justiça.
    Daqui se segue que embora a regeneração não retire do homem a sua corrupção, contra ela o homem ficou obrigado a lutar unindo-se a Cristo na Cruz. Assim, se Cristo para nós é justificação, a orientação da nossa vida em virtude dos benefícios de Cristo só pode ser a santificação. A Cruz então é vista sobre esse duplo aspecto, o da justificação e o da santificação, e é sob esse duplo aspecto que está submetida toda vida cristã, pois a vida cristã só é cristã se está sob a Cruz. A luta contra as chagas do pecado - a concupiscência - é o meio pelo qual nos unimos a Cristo na Cruz, e é por isso que tal como o efeito assinala a realidade de uma causa, a santificação assinala a realidade da justificação, mas não é assim tão simetricamente que a causa seja totalmente equiparada a seu efeito, tal como o mundo, como efeito, não está em um mesmo nível de realidade do que a sua Causa, que é Deus; pois embora a justificação quite a condenação contraída pelo pecado, a santificação não quita em nós todas as corrupções, permanecendo elas em nós como realidade, mas sendo destruídas em nós no que diz respeito à culpa.
    Do que foi dito acima é importante compreender que não é da santificação como remoção de toda impureza inerente de onde flui a nossa justificação e a nossa salvação; ela é um efeito da posse da graça salvadora, não a causa dela. Portanto, há espaço na Igreja de Cristo para todos os concupiscentes, e isso inclui todos aqueles que possuem atração homoerótica. Em sentido idêntico, todos os glutões, beberrões, ávaros, iracundos e adúlteros no nível das pulsões e mesmo dos atos, estão, perdoados e justificados, na Igreja de Cristo, mas como tais estão convocados, em virtude da graça da justificação que repousa sobre eles, à luta contra a tendência das suas pulsões e à realidade dos seus atos. A Igreja só pode ser a igreja daqueles que são ao mesmo tempo justos e pecadores, o que não significa que haja leniência em favor da realidade dos pecados atuais - muito embora haja perdão e tolerância -, pois a Igreja é a Igreja que também está sob o mandamento de Deus, e como tal ela deve segui-lo.
    Para concluir, é muito possível que alguém que possua tentações homoeróticas assim permaneça por toda a sua vida, como também é possível que não permaneça - da mesma maneira que é possível ao ávaro, ao glutão e ao iracundo permanecerem assim toda sua vida, embora devam lutar contra isso por toda a vida. Mas é relevante notar que a posse da concupiscência não influi no status da nossa justificação; o que influi é a posse da fé pela qual somos justificados diante de Deus, pois é pela fé que recebemos o perdão de Cristo. É possível que certas feridas permaneçam por todo tempo do mundo sobre o corpo de Cristo, chagas essas que serão abolidas completamente na ressurreição, e é assim convidados à esperança da libertação que como cristãos exortamos os homens à fé e à luta que à qual nos convoca a fé, tendo a consciência consoladora de que as chagas da Igreja, do corpo de Cristo, ainda são as chagas do corpo de Cristo, e não chagas fora do corpo de Cristo, o que sinaliza para nós que ainda que possuídos da corrupção, há para nós a esperança da liberdade da ressurreição e a realidade da paz com Deus.
    Portanto, que permaneçamos na fé crendo, resistindo e confiando.

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

O Infinito Atual e a Corporeidade de Cristo; Ou: Breve Consideração Sobre a Comunicação dos Atributos

    Tomar a comunicação de atributos entre a humanidade e a divindade de Cristo em sentido ontológico estrito, e não no sentido atributivo (no sentido de atribuir formalmente as operações das distintas naturezas à pessoa una de Cristo) é afirmar que existe um infinito atual, o que é impossível. Se se diz que a humanidade de Cristo se torna onipresente em função da onipresença do verbo, devemos afirmar que há um espaço atual infinito, pois é da natureza de um corpo habitar em um espaço, e um corpo infinito requer a existência de um espaço infinito. Também temos que nos perguntar se esse espaço atual infinito foi criado com Cristo ou se é antes dele.

    Contudo a questão é mais complexa, pois nesse sentido o conceito de corpo infinito é um contrassenso, já que é da essência de um corpo possuir uma superfície, e um corpo infinito atual não pode possui superfície, pois se possuísse possuiria um limite, e um corpo infinito limitado é impossível por definição. Da mesma forma, um corpo é divisível; contudo um corpo infinito, se dividido, seria cada parte dele mesmo infinito, pois uma pedra dividida é ainda uma pedra, como um corpo dividido ainda é um corpo, não sendo assim distinto da sua essência; contudo uma substância infinita corpórea dividida requer espaços infinitos distintos; e se um infinito atual não é possível (pois todo infinito requer sucessão), quanto mais vários infinitos atuais e vários espaços infinitos atuais.

    Portanto, tal como Deus não pode realizar um milagre criando um triângulo redondo, não é possível vários infinitos atuais - o infinito o é só potencialmente. Assim também o corpo de Cristo não pode assumir o atributo da onipresença, pois o conceito de onipresença divina é algo para além do conceito de infinito e transcende o conceito de espaço, mas a corporeidade exige espaço, não podendo, dessa forma, ser ela mesma onipresente, pois se fosse já não seria mais corporeidade.