A rejeição de Aristóteles por parte de Lutero, além de se relacionar com a rejeição da ética aristotélica, também em partes estava na rejeição parcial da confusão entre os domínios da metafísica e da religião feita pelos teólogos. Lutero rejeita a ética aristotélica - ao menos certas premissas fundamentais - pois rejeitava a intromissão das obras na questão da justificação, como na ideia da concretização da justificação considerada a partir da categoria do hábito, já que para Aristóteles é o hábito que faz o justo (muito embora Aristóteles reconheça certo paradoxo nesse campo, pois se o justo se faz pelo hábito, só o justo pratica atos justos).
quarta-feira, 28 de julho de 2021
Lutero, a Metafísica e a Justificação
terça-feira, 27 de julho de 2021
A Linguagem Teológica e a Reta Compreensão Acerca da Natureza dos Sacramentos
A discussão sobre a linguagem teológica adequada a respeito dos sacramentos é evidentemente importante. A questão da linguagem para expressar a realidade adequada do sacramento remonta à própria Escritura Sagrada. Em 1Pe 3.21a temos a afirmação de que o batismo é um antítipo, como entendemos assim do texto grego: ὃ καὶ ὑµᾶς ἀντίτυπον νῦν σῴζει βάπτισµα, ou seja: "O qual também como antítipo agora vos salva - o Batismo". O texto se remete ao dilúvio, o qual salvou apenas oito almas através das águas. Assim segue-se que o batismo (βάπτισµα) agora (νῦν), como antítipo (ou seja, in figura = ἀντίτυπον), salva (σῴζει).
Neste contexto da Sagrada Escritura é importante apresentar a teologia paulina que estabelece a relação entre circuncisão e o batismo. Em Cl 2.11, 12 Paulo afirma que "Nele também vocês foram circuncidados" (ἐν ᾧ καὶ εριετµήθητε), e: "tendo sido sepultados juntamente com ele no batismo" (συνταφέντες αὐτῷ ἐν τῷ βαπτισµῷ), levando muito em consideração que a própria circuncisão é, para a teologia Paulina, o sinal (σηµεῖον) e selo (σφραγῖδα) da justiça da fé (δικαιοσύνης τῆς πίστεως), como se afirma em Rm 4.11a: "E [Abraão] recebeu o sinal da circuncisão como selo da justiça da fé que teve quando ainda incircunciso" (καὶ σηµεῖον ἔλαβεν περιτοµῆς, σφραγῖδα τῆς δικαιοσύνης τῆς πίστεως τῆς ἐν τῇ ἀκροβυστίᾳ). Portanto se se recebe o batismo como antítipo da salvação em Pedro, em Paulo, ainda que ele obviamente se refira à velha aliança, a circuncisão (que sinaliza o batismo, muito embora o batismo seja a verdadeira "circuncisão de Cristo") é o sinal como selo da justiça da fé - sendo que os sinais e selos da velha aliança em vários autores patrísticos, como Orígenes e o próprio Agostinho, são sacramentos que contam como sinais divinos significados com a própria virtude divina, não existindo meramente como sinais ocos sem qualquer presença.
Em relação a Rm 4.11 Calvino afirma: "Esta passagem [Rm 4.11] é muito notável no tocante aos benefícios gerais dos sacramentos. Segundo Paulo testifica, estes são selos pelos quais as promessas de Deus são, de certa forma, impressas nos nossos corações, e a certeza da graça e confirmada. Embora eles, inerentemente [ou seja: em sua realidade meramente materia], são de nenhum proveito, todavia Deus os designou para que fossem instrumentos da sua graça, e pela graça secreta do seu Espírito promovem o bem dos eleitos através dos seus efeitos. Ainda que para os réprobos eles sejam símbolos inanimados e inúteis, todavia retém sempre seu poder e seu caráter. Mesmo que nossa descrença nos prive de seus efeitos, todavia tal fato não debilita nem extingue a verdade de Deus. Portanto o seguinte princípio permanece, a saber: os símbolos sagrados são testemunhas pelas quais Deus sela sua graça em nossos corações"1.
E sobre a permuta de nomes que existe entre o sinal e a coisa sinalizada a II Confissão Helvética é explícita: "Porque aprendemos da Palavra de Deus que estes sinais foram instituídos para outro fim, diverso do uso comum, ensinamos que eles agora, em seu santo uso, assumem em si os nomes das coisas significados e não são mais chamados apenas água, pão ou vinho, mas também, regeneração ou o lavar com água e o corpo e sangue do Senhor, ou símbolos e sacramentos do corpo e sangue do Senhor. Não que os símbolos se transformem nas coisas significados ou cessem de ser o que são por sua natureza. Pois de outro modo não poderiam ser sacramentos. Se fossem apenas a coisa significado, não seriam sinais"2.
Assim também a mesma confissão diz a respeito da natureza dos sacramentos: "Portanto, os sinais adquirem os nomes das coisas, porque são símbolos místicos de coisas sagradas, e porque os sinais e as coisas significados estão sacramentalmente ligados; ligam-se, digo, ou unem-se pela significação mística e pela vontade e conselho daquele que instituiu os sacramentos. A água, o pão e o vinho não são sinais comuns, mas sagrados. E aquele que instituiu a água no batismo não a instituiu com a vontade e intenção de que os fiéis apenas fossem aspergidos pela água do batismo; e aquele que mandou comer o pão e beber o vinho na ceia não queria que os fiéis recebessem apenas pão e vinho sem qualquer mistério, da maneira como comem pão em suas casas, mas, que participassem espiritualmente das coisas significados, sendo pela fé verdadeiramente lavados de seus pecados e participantes de Cristo"3.
Assim a Confissão segue aqui de forma mais ampliada aquilo que Calvino afirmou na citação acima, citando-o em certas partes quase literalmente: "Não aprovamos a doutrina daqueles que ensinam que a graça e as coisas significadas estão de tal modo ligadas aos sinais e neles incluídas que, todos aqueles que participarem externamente dos sinais, não importando que espécie de pessoas sejam, são também interiormente participantes da graça e das coisas significados.
No entanto, como não julgamos o valor dos sacramentos pela dignidade ou indignidade dos ministros, assim também não os avaliamos pela condição daqueles que os recebem. Pois, sabemos que o valor dos sacramentos depende da fé e da veracidade e exclusiva bondade de Deus. Assim como a Palavra de Deus permanece a verdadeira Palavra de Deus que, em sendo pregada, não são meras palavras repetidas, mas ao mesmo tempo, as coisas significadas ou anunciadas em palavras são oferecidas por Deus, embora os ímpios e incrédulos as ouçam e compreendam, contudo não aproveitam as coisas significadas, porque não as recebem pela verdadeira fé, assim os sacramentos, que pela Palavra consistem de sinais e de coisas significadas, continuam sendo sacramentos verdadeiros e invioláveis, significando não somente coisas sagradas mas, pelo oferecimento de Deus, as próprias coisas significadas, embora os incrédulos não percebam as coisas oferecidas. Neste caso, a culpa não é de Deus que as dá e as oferece, mas dos homens que as recebem sem fé e de modo ilegítimo, cuja incredulidade, porém, não invalida a fidelidade de Deus (Rom 3.3 ss)" 4.
Entendimento semelhante sobre a coisa e o sinal ocorre em Agostinho - em quem muita coisa foi colhida pela tradição reformada. Na carta nº 98 escrita a Bonifácio Agostinho, em 98.9, fala a respeito da permuta de nomes entre o sinal e a coisa sinalizada: "Pois se os sacramentos não tivessem alguns pontos de semelhança real com as coisas das quais são os sacramentos, eles não seriam sacramentos. Na maioria dos casos, além disso, eles fazem em virtude dessa semelhança comportar os nomes das realidades que eles se assemelham. Como, portanto, de certa forma o sacramento do corpo de Cristo é o corpo de Cristo, e o sacramento do sangue de Cristo é o sangue de Cristo, da mesma forma que o sacramento da fé é a fé"5. Além disso essa é a razão pela qual Agostinho reiteradamente nomeia o sacramento da ceia como sacrifício, pois os sinais do corpo e do sangue comportam em si a virtude daquilo que sinalizam, muito embora o sinal e a coisa sinalizada a rigor não sejam a mesma coisa.
domingo, 25 de julho de 2021
Os Prolegômenos Teológicos Na Tradição Reformada (por Joel Pereira)*
Dado que a reforma protestante foi vista pelos próprios reformadores não como um ataque a todo corpo de doutrina anterior, mas como uma melhor compreensão a respeito de certos pontos da teologia já estabelecida (especialmente o tópico sobre a justificação), há uma certa conexão entre o desenvolvimento dos prolegômenos teológicos e o background medieval anterior, aduzido, especialmente de Pedro Lombardo e seu ‘Sententiarum’, de Tomás de Aquino e de sua Suma, e especialmente de Henri de Gante no seu ‘Summae quaestionum ordinariarum theologi’.
quinta-feira, 8 de julho de 2021
A Justificação na Reforma; Ou: O Ilustre Desconhecido
A maioria dos evangélicos - mesmo os protestantes de igreja históricas - desconhecem integralmente o teor da disputa em torno da justificação levantada por Lutero e pela Reforma. Que há justificação pela fé até mesmo no catolicismo romano, e isso pouca gente sabe quando se reporta à teologia católica romana, como se ela afirmasse que a salvação não se dá mediante a fé e graça.
Nem é o termo "justificação pela fé" em si onde estão fincadas as bases da Reforma, mas sim na forma da justificação a qual envolve uma questão muito complexa em relação àquilo que se chama de "pecado material" e "pecado formal", já que é universalmente conhecido no cristianismo que a justificação não retira a materialidade do pecado (nossa inclinação física para o mal, impulsos e desejos desordenados), sendo esse pecado distinto do ato formal pecaminoso (que é o consentimento da razão às inclinações más).
A Estética, a Lógica e o Discurso
Muito dos debates apologéticos parecem discussão de tabloide inglês. Mas tanto uma parte como a outra da disputa geralmente caem na ilusão de que a outra parte o levará a sério, o que em grande parte se mostra pura ilusão.
Esperar a priori honra, reconhecimento, ausência de ironia etc. para a sua exposição é imaturidade pura, e inexperiência. Tanto é assim que mesmo que você vença na argumentação é possível que pela exasperação e nervosismo você não leve o prêmio, principalmente em um terreno onde o que prevalece é o clima de torcida, e não a neutralidade - ninguém se descarna para ouvir algum discurso.
Esse caso específico lança luz sobre uma regra geral do discurso: Há quem realmente seja bom na argumentação, mas péssimo em espirituosidade, o que me leva a crer que grande parte da forma como alguns colhem os louros dos debates não colhem exclusivamente pela perfeição das suas ideias, mas também pela forma como se portam no contexto do debate.
Ainda que as coisas não devessem ser assim, a grande maioria das pessoas geralmente estão se lixando para longos encadeamentos argumentativos, se importando muito mais com certo afeto e estilo, ou seja, se importam com o que é também estético. E isso não é um absurdo, e nem um absurdo antropológico, pois a estimulação da sensibilidade é, na verdade, a primeira etapa para o processo de cognição.
Não estou me importando se isso é errado ou certo, mas geralmente o paciente espirituoso é mais agradável do que o lógico irritado, pois o primeiro não chega manifestando as notas da agressão pelas quais é percebido como alguém odioso a quem o experimenta, independentemente se ele carrega a informação correta ou a informação errada.
segunda-feira, 5 de julho de 2021
Simul Iustus et Peccator; Ou: Lutero, a Justificação e o Paradoxo
A teologia da justificação protestante possui uma harmonização sistemática que ao menos parece estar longe de uma apreensão consciente das inúmeras igrejas evangélicas que se dizem caudátarias da teologia do reformador Martinho Lutero. Isso é visível pelo fato de que para muitos a relação entre a paixão de Cristo na cruz e a justificação é algo vagamente compreensível, sendo o nexo paradoxal que une as duas coisas, para alguns, algo tão claro quanto a vista de uma casa no alto de uma colina em uma dia de nevoeiro.