O Cristianismo, indo
para além de uma relação subjetiva com Deus implica a imersão do sujeito na
estrutura da realidade. A revelação de Cristo, por esse prisma, é a própria
revelação do sentido pleno da história, assim como a revelação do sentido do
homem nela. Há na revelação um sentido inesgotável que lança luz sobre a
história da humanidade em todos os níveis, desde o inconsciente individual e
das estruturas mais profundas do indivíduo humano até a existência humana como
um todo, abrangendo as pessoas que existiram, que existem e das que ainda
haverão de existir. A revelação em Jesus de Nazaré é o pomo amadurecido na
história.
A elaboração teológica
sempre ocorreu à luz de dilemas existentes no contexto histórico onde as
doutrinas foram elaboradas. Com o passar do tempo se percebeu que, para além de
um querela teológica entre os primeiros padres da igreja e os heréticos, a disputa
para alcançar a verdade da revelação cristã estava intimamente relacionada com
a questão da salvação. Mas como percebeu o filósofo germano-americano Eric
Voegelin, vários movimentos revolucionários da era moderna, incluindo a
estrutura da política moderna, e que tiveram um papel central na desintegração
da razão e no enlouquecimento genocida do século XX, estão assentados sobre as
bases mesmas das heresia combatidas pelo cristianismo.
Aqui não é lugar para
uma dissecação completa das relação entre as heresias combatidas ao longo da
história do cristianismo e o descarrilamento revolucionário dos vários
movimentos políticos da modernidade. Contudo desejo refletir aqui brevemente
sobre o docetismo.
O docetismo foi um
movimento gnóstico influenciado pelas religiões de mistério gregas (carregadas
de orientalismo) e pelo próprio resíduo da filosofia helênica, e que se pôs a
interpretar o cristianismo e o ministério terreno de Jesus. A palavra docetismo
vem do grego"dokeo" (δοκέω) e que
significa "parecer". Esta heresia afirmava plenamente que o Lógos
divino (ou o Verbo Divino, como está escrito no primeiro capítulo do Evangelho
de João) não havia encarnado definitivamente em Jesus de Nazaré, mas estava
presente em Jesus apenas em aparência. Por tanto o Logos não havia sido
crucificado na Cruz, e Deus não havia sido crucificado, como afirmavam os
primeiros cristãos. Mas isso suscitou alguns questionamentos para os primeiros
cristãos, pois: (1) se o Lógos não encarnou em Jesus, isso quer dizer que Deus
não assumiu a natureza humana; (2) E se Deus não assumiu a natureza humana
então o sacrifício na Cruz não foi um sacrifício de Deus em favor dos homens;
(3) e se Deus não se sacrificou pelos homens então não fomos salvos e
permanecemos em nossos pecados pois só Deus pode salvar. Aqui, pela negação dos
docetas sobre a encarnação, duas bases teológicas essenciais para o
cristianismo estavam ameaçadas: (1) a unidade amorosa de Deus com os homens
manifesta na pessoa de Jesus (por ser ele totalmente Deus e totalmente homem);
(2) a eficácia salvífica do sacrifício de Jesus para trazer ao homem a salvação
eterna.
Alguns esclarecimentos
são necessários para termos bem claro as relações entre o descarrilamento
revolucionário moderno e o docetismo, a começar pela impossibilidade da junção
entre o humano e o divino na heresia docetista. Um elemento fundamental estava
na questão relacionada à natureza humana e divina de Jesus. O docetismo
afirmava taxativamente a impossibilidade da união singular de Deus no homem Jesus
de Nazaré. Nesse sentido devemos lembrar a questão do destino da ressurreição.
Será que para eles Jesus ressuscitou corporalmente? A resposta é negativa. Eles
não aceitariam Deus sofrendo na Cruz (algo já presente em Atos dos Apóstolos
17:16-32), mas também negariam por sequência lógica o matrimônio entre Deus e a
Igreja, aquela unidade desejada por Jesus e o seu desejo pela salvação do corpo
humano. Nesse sentido há uma clara cisão entre o corpo e o espírito e a
elevação desmensurada de um sobre o outro. As consequência lógicas do docetismo
são três: (1) o pecado é algo que pode ser deliberadamente praticado que não
afetaria o espírito; (2) o ódio radical e deliberado ao mundo segue a ideia de
que o mundo é substancialmente mau, elevando o mal ao grau de substância. (3)
ao elevar o corpo à condição de substância má, a meta final da fé é o da
libertação do corpo por meio da liberação final do espírito. Não é estranha a
identidade destes pensamentos e o preconceito de classes marxista, ou o ódio
racista dos judeus pelos nazistas e a teologia gnóstica: os burgueses são maus
em si mesmos, ou o judeu é mau em si mesmo. Do lado invertido, o docetismo
também produziu a sacralização do cosmos por meio da heresia monofisita, que
afirmava que a natureza humana havia sido absorvida pela natureza divina de
Jesus. Desta forma, a sacralização de classes em Marx, onde os proletários são
o povo messiânico que trazem em seu bojo o futuro, mesmo quando queimam vivos
os kuláks, ou a raça ariana dos nazistas, que sendo sagrada em si mesma, pode
criar campos de concentração e envenenarem judeus apenas por serem o que são,
toca na questão da imanentização da eternidade no tempo, fechando a humanidade
em si mesma e realizando a sacralização do cosmos que o Cristianismo tanto lutou
por desfazer. O caráter de transcendência de Deus aqui é plenamente destruído
em favor da imanência - o que mais tarde resultaria na morte de Deus e na
elevação das ciências naturais ao grau de verdade divina abarcadora da
totalidade da realidade.
A presente heresia
gnóstica gerou dois movimentos aparentemente distintos, mas que se
atentadamente observados, revelam uma identidade fundamental. Sendo que o
primeiro ramo do gnosticismo gerou aquilo que podemos chamar de um
"gnosticismo de direita". O movimento de direita no interior do
gnosticismo é caracterizado pela austeridade absoluta e pelo distanciamento
radical de tudo aquilo que toca a existencialidade da vida. É aquela busca pelo
purismo exacerbado que regulamenta alimentos - e até proíbe-os -, que acha
errado comer carne de animais, arrancar árvores, flores, folhas e sementes, e
que exige jejuns extensivos, proibindo também todos os prazeres e até o
casamento (I Timóteo 4:1-5 mostra expressamente Paulo possuía a consciência que
alguns movimentos gnósticos estavam em plena floração no fim de sua vida). Tal
movimento foi visto entre, por exemplo, os albigenses, onde há relatos de morte
por inanição (morte por falta de nutrientes derivado pela abstenção de comida)
de vido a jejuns extensos. O outro ramo foi o "gnosticismo de
esquerda", que também partindo da premissa da malignidade do mundo e da
matéria, se entregavam a toda sorte de erros tal como sexo grupal com intuito
de praticar ritos sexuais, e até crimes - não importava a desordem generalizada
que também poderia ser uma forma de libertação das estruturas malignas deste
mundo. Um exemplo moderno bem claro deste gnosticismo de esquerda é o
revolucionário Mikhail Bakúnin. A revolta de Bakúnin não parte de um utopismo
como o de Marx, mas é mais altamente niilista do que o pensamento dele. Para
Bakúnin a tarefa dos revolucionários era o de apenas destruir e não de
construir nada, já que, segundo ele, eram profundamente corruptos para uma
tarefa como a de construir algo paro mundo. Essa "corrupção total",
essa insuficiência é algo como que uma outra natureza. E quem buscar uma
identidade entre isso e as as ideias defeituosas dos reformadores Lutero e
Clavino sobre a "corrupção total", não buscará em vão - apesar de
eles tentarem a todo custo refrear as consequências destas ideias em vida. É
como constatou com felicidade o teólogo reformado Karl Barth no fim de sua
vida: o pecado não pode criar uma natureza ao lado da natureza de Deus. O
Pecado, definitivamente, não cria.
Cá em nosso século,
várias formas de "sexo livre" e a compreensão da incontaminação moral
do sexo livre possui o mesmo amoralismo gnóstico que se apregoava nos séculos
iniciais do cristianismo. Da mesma maneira a tendência revolucionária de
considerar qualquer autoridade algo maligno em si mesmo é, por sua vez, uma
reminiscência do gnosticismo, ou melhor, a sua melhor expressão. A disjunção da
natureza humana e a separação entre consciência e verdade é, da mesma forma,
uma variação da impossibilidade da encarnação da verdade na história. Não por
acaso que muito do irracionalismo iniciado pela filosofia nominalista, que
visava preservar a autoridade da revelação cristã do ácido das especulações
racionalistas, guarda uma identidade emergente com os totalitarismos
autoritários a que o Ocidente se viu imergido durante o século XX e que tão de
perto nos ameaça hoje. A egofania vista em movimentos totalitários que
apregoavam a total destruição das amarras da tradição são hoje as mesmas vistas
em indivíduos que desejando a plena liberdade das amarras dos compromissos com
a comunidade e com a família, e acabam por gerar um solipsismo tipicamente
Ocidental que geram indivíduos cada vez mais atomizados, solitários e sujeitos
às garras de um poder superior como o Estado. O trabalho longo e doloroso de
conhecimento, assimilação e superação foi suplantado pela iluminação gnóstica
individual, e hoje temos tantas verdades como cabeças no mundo. Mas até mesmo
como Bakunín previu: um poder organizado tenderá a absorver os átomos
soltos.
Mas o gnosticismo não
acaba por aí, disjunção do equilíbrio entre espírito e matéria, alcançado na
Idade Média, acabou por gerar na modernidade a destruição do Rosto do Mundo.
Como bem observou o filósofo Roger Scruton, a destruição da arquitetura tem
todo esse caráter egofânico. A cisão entre o belo e o verdadeiro - união
característica da tradição filosófica cristã medieval - arruinou os gostos. As
pichações, os lixos nas ruas e a destruição das pequenas comunidades em nome
dos grandes empreendimentos tem todo esse caráter revolucionário e
desrespeitoso para com a boa criação de Deus que só um gnóstico consegue ao
considerar toda a criação má. A deformação do corpo por meio de plásticas, as
pichações corporais adquirem o caráter da profanação que tanto ofendem os olhos
e o bom senso daqueles que foram chamados a cuidarem dos jardim de Deus,
compreendendo o contexto das palavras divinas, segundo as quais tudo aquilo que
Deus criou é bom. A disjunção entre essência e aparência, nesse sentido,
caracteriza também a negação das possibilidades de o Verbo se tornar carne, e
que destruir o mundo e o corpo é destruir o objeto de amor de Deus.
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