sexta-feira, 29 de abril de 2022
O Poder do Mal e a Graça na Oração
quarta-feira, 27 de abril de 2022
"SENHOR, Eis Aqui Duas Espadas": A Interpretação de Calvino de Lucas 22.36-38 a 22.51, e a posse das espadas.
Lucas 22.35-38 é geralmente usado como uma licença de Cristo para que os discípulos pudessem levantar uma defesa armada contra a guarda do Sinédrio. Trata-se de uma passagem que tem sido usada de forma panfletária aqui no Brasil desde Olavo de Carvalho, que importou essa interpretação de grupos dos EUA. Eu não quero entrar nesses detalhes exteriores e políticos, mas como a questão diz respeito a uma interpretação bíblica, julgo poder avaliar essa passagem - e por que, como pastor, eu não poderia fazer isso?
sexta-feira, 8 de abril de 2022
Atanásio Contra os Panfletários: Ou: A Questão da Expiação Penal na Obra "A Encarnação do Verbo"
Uma carteirada influente em relação a Atanásio é que o tipo de teologia da redenção oferecida pelo bispo alexandrino exclui absolutamente qualquer forma de substituição penal. Ou a substituição é "não penal", ou a pena que Cristo sofre é "não substitutiva". E no caso de Atanásio há ainda uma tese um tanto quanto improcedente de que o alexandrino defendia que a entrega de Cristo à cruz era um sacrifício prestado à morte (sem mais) - seja lá o que isso signifique de proveitoso para nós.
A questão é que ainda que padecendo de certas lacunas, a reflexão de Atanásio une de forma importante certos atributos divinos que perfazem a equação da redenção, como a bondade divina e o princípio de veracidade, como ele chama. Pois se, como ele diz, era indigno de Deus deixar o homem perecer em sua própria corrupção, por outro lado Deus não poderia "deixar barato" a transgressão, já que no início da criação Ele já havia proferido a sentença de que se o homem transgredisse a lei, comendo o fruto proibido, ele morreria.
Atanásio explica a questão da seguinte forma:
"Além disso, ciente de que o livre-arbítrio do homem inclina-se num ou noutro sentido, adiantou-se e consolidou pela lei e em determinado lugar a graça que já lhe havia outorgado. Introduziu-o no paraíso, efetivamente, no paraíso e impôs-lhe uma lei. Se os homens conservassem a graça, permanecendo na virtude, teriam no paraíso vida isenta de tristeza [...]. Se, ao invés, transgredissem a lei [...], deixariam de viver no paraíso. [...]
A Sagrada Escritura, o assinala previamente, referindo a palavra de Deus: 'Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas a árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela comeres terás de morrer' (Gn 2.16,17). 'Terás de morrer' não significa apenas: Morrereis, mas permanecereis sujeitos à corrupção e à morte"1.
Nesse ponto deve ficar claro algo: a sentença da corrupção é fundamental para a compreensão daquilo que Atanásio exporá como o "princípio de veracidade divina". E sabendo que o homem não permaneceu na justiça enquanto habitante do paraíso, logo a sentença deveria ser consumada contra o homem.
Como veremos abaixo, tal princípio de veracidade, pelo qual Deus rigorosamente deseja a execução da sentença contra a transgressão, acaba criando um dilema divino em virtude de outro princípio divino, que é a sua bondade, que é algo constitutivo de sua natureza. Assim, se por um lado Deus não pode mentir e a sentença contra a corrupção deve ser mantida contra o homem, por outro Deus é bom e não deseja que o mesmo homem transgressor, criado à Sua imagem, pereça.
Atanásio expõe o dilema nestes termos:
"Por conseguinte, não convinha deixar os homens serem arrebatados pela corrupção, por ser isso impróprio e indigno da bondade de Deus.
"Como, porém, devia ser assim [,ou seja: é digno da bondade de Deus salvar o homem e não deixa-lo perecer], era também oportuno, ao invés, manter o princípio de veracidade de Deus na legislação sobre a morte [, já que "quem comeu o fruto da ciência morrerá]. Seria impensável que, para utilidade a nossa conservação, Deus, Pai da verdade, se mostrasse mentiroso.
Que devia, pois acontecer? Que faria Deus? Exigir dos homens arrependimento da transgressão? Poder-se-ia afirmar ser isso digno de Deus. [...]
Mas, o arrependimento não salvaguardaria o que a Deus convinha; pois uma vez mais, ele não continuaria a ser verídico se os homens não ficassem sob o poder da morte. Além disso o arrependimento não põe termo às condições naturais, mas apenas põe termo aos pecados"2.
Nessa parte Atanásio, expondo um duplo princípio, deixa evidente a dupla polaridade dos interesses divinos que deveriam ser mantidos em função da dignidade de Deus, e mesmo de sua natureza, ou seja: 1) Deus não pode mentir, 2) mas também Deus é bom? O que então fazer nessa situação paradoxal na qual Deus deve conservar a sua integridade, reconciliando dois princípios cujo tensionamento parece nos conduzir a uma espécie de aporia? A resposta a tudo isso está na encarnação de Cristo.
Mas note antes de tudo que a necessidade da aplicação do princípio de veracidade é algo necessário, neste contexto, somente em razão de uma demanda hipotética, ou seja, Deus poderia não ter exigido necessariamente a morte do transgressor, contudo, já que assim fez, Deus necessita agir segundo o seu o princípio de veracidade e executar a sentença da morte. Compreender isso é fundamental para o que vem a seguir.
Então Atanásio explica como Deus concilia o "princípio de veracidade" com sua bondade para a realização da expiação dos pecados:
"Assim, de algo que é nosso, tomou um corpo semelhante ao nosso, e como todos estamos sujeitos à corrupção da morte, ele o entregou à morte, em prol de todos, apresentando-o ao Pai. Agiu, desta maneira por filantropia. Desta maneira, uma vez que todos nele morrem, a sentença de corrupção proferida contra os homens será ab-rogada. [...]
Por conseguinte, qual sacrifício e vítima imaculada, oferece à morte o corpo que assumiu, e logo faz desaparecer a morte de todos os corpos idênticos ao seu, através da oferta de vítima correspondente.
É justo que o Verbo de Deus, superior a todos, ao oferecer seu corpo, templo e instrumento, qual resgate por todos, solva a nossa dívida por sua morte. Deste modo, unindo todos os homens pelo corpo semelhante ao deles, o Filho incorruptível de Deus pode justamente a todos os homens revestir da incorruptibilidade. [...]
Com efeito, pelo sacrifício do seu próprio corpo, ele pôs termo à lei que pesava sobre nós, renovou-nos o princípio da vida, deu-nos a esperança da ressurreição"3.
Essa coletânea de quatro citações indicam muito do que é a teologia da redenção de Atanásio. Em primeiro lugar vale ressaltar que Atanásio se situa entre aqueles que adotam a "teoria física" da expiação, escola que tem em Irineu de Lyon o seu maior representante. Assim, para Atanásio a expiação é também uma questão de "devolução da imortalidade" mediante a habitação do verbo na carne humana, e isso é bem explícito no terceiro parágrafo citado na última coletânea onde ele diz: "Deste modo, unindo todos os homens pelo corpo semelhante ao deles, o Filho incorruptível de Deus pode justamente a todos os homens revestir da incorruptibilidade".
Mas seria reducionismo da nossa parte resumir a complexidade da teologia de Atanásio a esse nicho específico da teologia da expiação, perdendo assim as nuances do seu pensamento. E ao contrário do que dizem os panfleteiros contra qualquer forma de expiação penal, por demanda lógica é impossível não concluir que o próprio aspecto penal está presente na teoria da expiação de atanasiano - de modo muito explícito.
Em duas partes específicas nas citações acima Atanásio afirma que Jesus entregou o seu corpo à morte. Ora, tal entrega à morte não é uma entrega a uma certa entidade chamada "morte". A afirmação de Atanásio, antes, é uma fórmula resumida a que o bispo recorre para dizer que Jesus entregou seu corpo imaculado à sentença de Deus proferida contra o homem por ocasião da transgressão. E que fique claro: trata-se da entrega que Jesus faz de seu corpo à execução penal de uma sentença proferida por Deus contra o homem. O proveito disso para o homem é que, de agora em diante, o homem em Cristo não morre mais como um condenado4, já que assim sua dívida para com a sentença é quitada pela morte de Cristo.
E para que não sobre dúvida que Atanásio tem em vista que a encarnação oferece uma dupla solução para o problema da perdição do homem, ou seja, a solução da "abolição da dívida", e a anulação da corrupção propriamente dita, ele escreve deste modo:
"Restava, contudo, ainda saldar a dívida de todos, pois todos, conforme mencionamos acima, deveriam morrer [em função do princípio de veracidade divina], e esta foi a causa principal de sua vinda à terra. Por isso, após ter revelado sua divindade pelas obras, restava ainda oferecer o sacrifício por todos, entregando por todos à morte o templo de seu corpo [...].
Assim, encontram-se no mesmo ser dois prodígios: a morte de todos se cumpria no corpo do Senhor, e de outro lado a morte e a corrupção eram destruídas pelo Verbo unido a este corpo. Necessário era a morte, forçoso advir para todos. a fim de que a dívida comum fosse saldada"5.
Veja que termos penais e jurídicos rasgam de alto a baixo as reflexões de Atanásio, e que tal argumentação concorre juntamente com afirmações que se enquadram melhor na teoria física da expiação, pois os efeitos deletérios da corrupção são anulados por Cristo ter assumido a humanidade em si. Uma coisa não exclui a outra. Assim, a encarnação devolve ao corpo humano tanto a imortalidade (pelo princípio da bondade divina), como também, tomando que é nosso (o corpo), Jesus o entrega à morte para desfazer a sentença da corrupção proferida por Deus contra nós, solvendo a nossa dívida (pelo princípio da veracidade) em seu próprio corpo.
Em Atanásio, por motivos distintos e complementares, tanto a encarnação quanto a morte de Cristo tem efeitos redentivos. E mesmo na parte em que Atanásio afirma que pelo só perdão Deus poderia por termo aos pecados, isso não pode nos levar à consideração de que o perdão puro pode isentar o homem da "sentença" - ora, se isso é impossível, vai a pique a tese do perdão absoluto. Se as palavras ainda possuem sentido a execução de uma sentença só tem razão de ser em função de uma culpa. Não à toa Atanásio chama a nossa corrupção de "dívida", e "dívida contraída em função de uma transgressão", o que nos sujeita à morte como sentença, coisa pela qual Cristo também morre em favor de nós, abolindo essa sentença.
É bem possível que Atanásio só estivesse sendo contraditório, e suas palavras não possuem consistência lógica - o que não é raro nos pais da igreja -, e ele afirmasse a noção da "sentença" sem querer a sua conclusão, ou visse a redenção apenas pela via da encarnação. Fato é que não retirar de nós a sentença é ainda a não execução de uma absolvição absoluta, pois a absolvição absoluta que deixa correr livre uma sentença ainda não é absolvição. Também, se há perdão absoluto, não há necessidade de alguém morrer para "abolir a dívida" e "solver a sentença". Mas se quisermos ser mais consistentes e fazer justiça ao pensamento de Atanásio, o princípio de veracidade, ao ser mantido, deve requerer uma compensação, e essa é encontrada no corpo de Cristo, o qual é oferecido ao Pai em favor de nós.
E para reforçarmos ainda mais essa compreensão, podemos recorrer à célebre carta de Atanásio a Marcelino onde o alexandrino escreve sobre a interpretação dos salmos. Essa carta é do nosso interesse porque Atanásio recorre ao termo "ira de Deus" para definir a razão pela qual Cristo padece na cruz. Atanásio é explícito em definir o sofrimento de Cristo como uma penalidade sofrida em favor de nós - e mais do que isso: Atanásio afirma que Jesus sofre a penalidade do pecado que deveria recais sobre nós. É como segue:
Dado tudo o que expomos, só resta a conclusão: Ora, se Cristo sofre a morte como sentença proferida em função da transgressão, coisa demandada pelo "princípio de veracidade", sua morte é penal; e se, como o próprio Atanásio diz no terceiro paragrafo da última coletânea acima, ele faz a morte desaparecer de todos os corpos semelhantes aos seus pelo oferecimento da oferta de uma "vítima correspondente", sua morte é substitutiva.
Antes de alguém imputar a mim coisas que eu não disse, não estou afirmando que Atanásio é um "calvinista" ou um "luterano". Essa questão nem em jogo está. Antes, o que desejo com o texto é expor que a noção de que Cristo sofreu uma pena que pesa sobre todos nós, e que a execução dessa pena (que era nossa) redunda em efeitos positivos e redentivos para nós não é uma invenção dos reformadores. Para Atanásio "todos morrem em Cristo", pois Cristo "morre a morte de todos", e que por isso "não morremos mais como condenados", já que com isso ele "saldou a nossa dívida".
A confecção de uma quimera que visa por na pena e na cabeça do alexandrino a ideia de que para ele a morte de Cristo é penal, mas não substitutiva, e também é substitutiva, mas não penal, não passa de um festim tosquíssimo confeccionado para alimentar a fantasia de descoberta típica dos incautos. Enquanto esses acham que estão descobrindo a roda, outros já os atropelaram em desabalada corrida.
_____________________________________________
[1] ATANÁSIO. A Encarnação do Verbo. I.3.4,5.
[2] Idem. I.7.1-3.
[3] Idem. II.8.4, 9.1,2 e 10.5.
[4] Ver em II.10.5b.
[5] Idem. IV.20.2 e 5
[6] ATANÁSIO. Carta a Marcelino. par. 7. Disponível em: UMA CARTA DE ATHANASIUS, SOBRE A INTERPRETAÇÃO DOS SALMOS | Teologia Reformada na Semper Reformanda
sábado, 2 de abril de 2022
Agostinho, o Aniconismo e a Metodologia Espiritual
Com toda segurança é possível afirmar características seriamente aniconistas na teologia de Agostinho. E apesar de todo contorcionismo mental para provar o contrário, é possível encontrar muitos testemunhos nos escritos dele que corroboram com isso. Contudo, mais do que uma simples "negação das imagens", ao que tudo indica o aniconismo agostiniano é uma metodologia espiritual, uma metodologia que visa distinguir radicalmente a realidade última (Deus) das realidades penúltimas (o mundo, o corpo e o espírito), como se segue: