segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Comentário em Tiago 2.14-26: (ἡ πίστις χωρὶς ἔργων νεκρά ἐστιν) A fé impotente para a salvação

 Texto Grego de Tiago 2.14-26:

14 Τί τὸ ὄφελος, ἀδελφοί µου, ἐὰν πίστιν λέγῃ τις ἔχειν, ἔργα δὲ µὴ ἔχῃ; µὴ δύναται ἡ πίστις σῶσαι αὐτόν; 15 ἐὰν ἀδελφὸς ἢ ἀδελφὴ γυµνοὶ ὑπάρχωσιν καὶ λειπόµενοι τῆς ἐφηµέρου τροφῆς, 16 εἴπῃ δέ τις αὐτοῖς ἐξ ὑµῶν, Ὑπάγετε ἐν εἰρήνῃ, θερµαίνεσθε καὶ χορτάζεσθε, µὴ δῶτε δὲ αὐτοῖς τὰ ἐπιτήδεια τοῦ σώµατος, τί τὸ ὄφελος; 17 οὕτως καὶ ἡ πίστις, ἐὰν µὴ ἔχῃ ἔργα, νεκρά ἐστιν καθí ἑαυτήν. 18 Ἀλλí ἐρεῖ τις, Σὺ πίστιν ἔχεις κἀγὼ ἔργα ἔχω. δεῖξόν µοι τὴν πίστιν σου χωρὶς τῶν ἔργων, κἀγώ σοι δείξω ἐκ τῶν ἔργων µου τὴν πίστιν. 19 σὺ πιστεύεις ὅτι εἷς θεός ἐστιν; καλῶς ποιεῖς· καὶ τὰ δαιµόνια πιστεύουσιν καὶ φρίσσουσιν. 20 θέλεις δὲ γνῶναι, ὦ ἄνθρωπε κενέ, ὅτι ἡ πίστις χωρὶς τῶν ἔργων ἀργή ἐστιν; 21 Ἀβραὰµ ὁ πατὴρ ἡµῶν οὐκ ἐξ ἔργων ἐδικαιώθη, ἀνενέγκας Ἰσαὰκ τὸν υἱὸν αὐτοῦ ἐπὶ τὸ θυσιαστήριον; 22 βλέπεις ὅτι ἡ πίστις συνήργει τοῖς ἔργοις αὐτοῦ καὶ ἐκ τῶν ἔργων ἡ πίστις ἐτελειώθη, 23 καὶ ἐπληρώθη ἡ γραφὴ ἡ λέγουσα, Ἐπίστευσεν δὲ Ἀβραὰµ τῷ θεῷ, καὶ ἐλογίσθη αὐτῷ εἰς δικαιοσύνην, καὶ φίλος θεοῦ ἐκλήθη. 24 ὁρᾶτε ὅτι ἐξ ἔργων δικαιοῦται ἄνθρωπος καὶ οὐκ ἐκ πίστεως µόνον. 25 ὁµοίως δὲ καὶ Ῥαὰβ ἡ πόρνη οὐκ ἐξ ἔργων ἐδικαιώθη, ὑποδεξαµένη τοὺς ἀγγέλους καὶ ἑτέρᾳ ὁδῷ ἐκβαλοῦσα; 26 ὥσπερ γὰρ τὸ σῶµα χωρὶς πνεύµατος νεκρόν ἐστιν, οὕτως καὶ ἡ πίστις χωρὶς ἔργων νεκρά ἐστιν.

Tradução e Comentário:

14 Τί τὸ ὄφελος, ἀδελφοί µου, ἐὰν πίστιν λέγῃ τις ἔχειν, ἔργα δὲ µὴ ἔχῃ; µὴ δύναται ἡ πίστις σῶσαι αὐτόν; - Que proveito há, meus irmãos, se alguém disser que tem fé, mas não tem obras? Será que a fé é potente para salva-lo?

    O mensagem de Tiago, o presbítero, verte sabedoria prática, sabedoria com todo sabor experimental como nos mostra o Antigo Testamento. Sabedoria no hebraico é חָכְמָה (hacmâh), e significa, grosso modo, habilidade, sagacidade, experiência. Se levarmos em consideração livros de sabedoria como o קֹהֶ֣לֶת (Qoéleth = Eclesiastes), vemos que esse tipo de sabedoria tem uma poderosa base empírica, nascendo do acúmulo de experiência, pois parte da observação reiterada de fatos circundantes: a brevidade da vida, a observação das coisas que ao longo do tempo importam, os efeitos positivos de se guardar os preceitos de Deus, a loucura do vida baseada na pratica da maldade, a falta de sabedoria na avareza, a loucura de se fazer do trabalho sem o gozo dos seus frutos uma forma de vida etc. E a epístola de Tiago sendo um livro de sabedoria, tem também forte fundamentação empírica e, por assim dizer, um gosto pelo concreto.

   O divino Tiago começa indagando a consciência dos ouvintes: Que proveito há meus irmãos, se alguém disser que tem fé, mas não tem obras? Há a interposição de um questionamento metódico. Também há um pressuposto que afirma a interconexão necessária entre a (πίστιν) e as obras (ἔργα), sendo a relação entre e obras proporcional à relação entre causa e efeito. Assim, se a relação entre e obras é proporcional à relação entre causa e efeito, a afirmação da presença da na ausência de obras padece de um lapso grave.

    Segue-se a arguição: Será que a fé tem potência para salva-lo? A interrogação em questão começa com µὴ () e pressupõe uma certa insinuação também metódica que tem o fim de provocar certa reflexão. Portanto: Não tem a fé potência (δύναται) ...? Aqui δύναται se refere à potência que algo possui para causar certo efeito. A arguição de Tiago visa lançar luz sobre a impotência de uma fé sem obras. Assim, tal (πίστις) é impotente (αδυνατος) para levar a efeito a salvação (σῶσαι = salvar).

15, 16, 17 ἐὰν ἀδελφὸς ἢ ἀδελφὴ γυµνοὶ ὑπάρχωσιν καὶ λειπόµενοι τῆς ἐφηµέρου τροφῆς, εἴπῃ δέ τις αὐτοῖς ἐξ ὑµῶν, Ὑπάγετε ἐν εἰρήνῃ, θερµαίνεσθε καὶ χορτάζεσθε, µὴ δῶτε δὲ αὐτοῖς τὰ ἐπιτήδεια τοῦ σώµατος, τί τὸ ὄφελος; οὕτως καὶ ἡ πίστις, ἐὰν µὴ ἔχῃ ἔργα, νεκρά ἐστιν καθí ἑαυτήν. - Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e necessitados de alimento diário, e alguém de vós disser a eles: Ide em paz, aqueçam-se e fartem-se, mas não der a eles as coisas necessárias ao corpo, que proveito isso terá? Assim também a fé, se não tiver obras, está morta em si mesma.

    No versículo anterior, que serve como um caput daquilo que será detalhado, vimos uma pergunta que também apresenta um quadro esquemático. Qual o proveito da fé sem obras? Seguindo o modo empírico da sabedoria hebraica, São Tiago serve-se agora de uma situação hipotética para novamente provocar uma reflexão dos ouvintes. A hipótese levantada no versículo inclui elementos interessantes como a necessidade de vestes e comida por parte de um irmão ou irmã (ἀδελφὸς ἢ ἀδελφὴ), e a indiferença grosseira por parte de irmãos um pouco mais abastados. Assim, a indiferença é exposta pela situação terrível dos irmãos e pelo simples aceno indiferente: Ide em paz (Ὑπάγετε ἐν εἰρήνῃ). Como haverá paz na nudez e na fome? Trata-se de manifestação de uma insensibilidade cruel que não tem capacidade alguma de ocupar um mesmo espaço com aquela fé que salva, e portanto, tal , como dom de Deus, não pode ser causa de um efeito semelhante à indiferença cruel com os conservos na fé. Cada árvore tem o seu correspondente fruto, logo: Pode semelhante fé salvar? Ou: Está o indiferente na posse da fé salvadora?

    Aqui fala o grosseiro apartado de toda sensibilidade ao irmão nu e faminto: Ide em paz, aqueçam-se e fartem-se. Mas ao lado dos votos a indiferença, a questão: mas não der a eles as coisas necessárias ao corpo. Aqui São Tiago faz nova arguição: que proveito isso terá? Assim não tem proveito (ὄφελος) afirmar tal fé, pois a fé (ἡ πίστις,), se não tiver obras (ἐὰν µὴ ἔχῃ ἔργα) está morta (νεκρά ἐστιν).

18, 19 - Ἀλλí ἐρεῖ τις, Σὺ πίστιν ἔχεις κἀγὼ ἔργα ἔχω. δεῖξόν µοι τὴν πίστιν σου χωρὶς τῶν ἔργων, κἀγώ σοι δείξω ἐκ τῶν ἔργων µου τὴν πίστιν. σὺ πιστεύεις ὅτι εἷς ἐστιν θεός; καλῶς ποιεῖς· καὶ τὰ δαιµόνια πιστεύουσιν καὶ φρίσσουσιν. - Mas dirá alguém: Tu tens fé, e eu tenho obras; mostra a mim a tua fé sem obras, e eu mostrarei a ti pelas obras a minha fé. Você crê que Deus é um? Fazem bem; também os demônios crêem e estremecem.

    O presbítero expõe agora algo que nos dá ocasião para comentar sobre um equívoco influente, ou seja, sobre a oposição entre e obras. Em um primeiro momento há uma oposição aparente, quando é exposto o partidário da fé solitária e aquele que diz manifestar suas obras (ἔργων). Mas se torna imperioso salientar a expressão: e eu mostrarei a ti de + as = das (ἐκ τῶν = ek tôn, também pelas) minhas obras (ἔργων µου) a fé (τὴν πίστιν). O expositor segue o método fenomenológico, ou seja, pela apresentação do efeito Tiago aqui quer deixar evidente a realidade causa. Tiago com isso não está fazendo oposição à fé, mas sim mostrando a sua presença e a realidade de sua operação através de seu efeito, ou seja, das obras.

    Há real posição aqui àquilo que chamamos de fé solitária. Muito disputada é a questão da relação entre a fé e as obras nesse texto, e muito imprecisas são, não raro, as considerações a respeito da suposta oposição entre a noção paulina de e a noção jacobita* de . Também polêmica é a questão relacionada ao sola fide, ou somente a fé, tal como postulou a Reforma quando afirmou que somente a fé é o meio da justificação - não confunda-se aqui a como meio e a como causa da justificação, pois resta óbvio que a Reforma não afirma a fé como causa, mas como meio da justificação, muito embora ela, a fé, seja causa das boas obras.

    A postulação paulina em textos como Rm 3.28 e 4.1-5, onde se afirma uma forma de justificação pela fé em Cristo independente das obras da lei, pode, por imperícia, ser jogada contra aquilo que Tiago expõe na sua argumentação. A princípio, podemos falar que tanto Tiago quanto Paulo observam a relação entre a fé e as obras por ângulos diferentes, pois vemos Paulo partindo da noção da justificação como um dom divino que foge do escopo da lei de Moisés, e Tiago analisando a questão por uma perspectiva fenomenológica, buscando as evidências pelas quais podemos afirmar a presença real da fé salvadora. Paulo tratando a questão da fé a partir de um ponto de vista mais teórico e Tiago por um ponto de vista mais empírico - o que, certamente, não impugna a ideia de que Paulo também analisa a questão por meio de considerações fenomenológicas, como quando, em Rm 7, fala sobre a presença do pecado que nos tornou impotentes para a perfeita justiça.

    O que é evidente, no entanto, é que Paulo não nega a verdade de uma fé operante, quando, por exemplo, em Gl 5.6, afirma a realidade de uma fé que opera pelo amor (πίστις διí ἀγάπης ἐνεργουµένη). Ora, a fé opera pelo amor quando realiza obras; assim, se é pela que os gentios são justificados, essa mesma fé justificadora tem certas notas distintivas, e uma delas é que ela opera pelo amor. Não se trata de uma fé inoperante, o que a opõe frontalmente com o tipo de fé solitária que Tiago aqui combate em sua epístola. Portanto, a fé que justifica independentemente das obras da lei não é compatível com a fé de quem vê seu irmão em apuros e desconsidera seu sofrimento, não oferecendo nada para o seu alívio.

     Assim Tiago vai mais fundo e faz uma arguição retórica, contestando um tipo de fé simplesmente contemplativa, ou teórica, afirmando que embora os demônios (δαιµόνια), que "criam" melhor do que os politeístas, afirmando existir um único Deus (εἷς ἐστιν θεός = um é Deus), isso nada era de proveito para eles. Uma fé solitária é comum até aos demônios. E distinguimos aqui a fé solitária como composta por duas notas distintivas: notitia e assensus. Então seguimos com as distinções: não é suficiente termos em nós a noção (notitia), ou a informação em nossa mente, da realidade de um Deus. Nem mesmo é suficiente dar o nosso assentimento (assensus) a essa noção. Pois é possível ter em nossa mente a informação da existência de Deus, aceitarmos Sua existência, mas negarmos a esse Deus tanto a confiança quanto a obediência, ou o amor. De fato, essa nada leva a efeito e é impotente (αδυνατος) para salvar (σῶσαι). Portanto de nada vale esse crer que nada leva a operar e a operar no sentido de amar, pois assim até demônios "creem", e não só creem como também entram em transe, estremecendo (φρίσσουσιν) diante do Senhor.

20, 21, 22, 23 - θέλεις δὲ γνῶναι, ὦ ἄνθρωπε κενέ, ὅτι ἡ πίστις χωρὶς τῶν ἔργων ἀργή ἐστιν; Ἀβραὰµ ὁ πατὴρ ἡµῶν οὐκ ἐξ ἔργων ἐδικαιώθη, ἀνενέγκας Ἰσαὰκ τὸν υἱὸν αὐτοῦ ἐπὶ τὸ θυσιαστήριον; βλέπεις ὅτι ἡ πίστις συνήργει τοῖς ἔργοις αὐτοῦ καὶ ἐκ τῶν ἔργων ἡ πίστις ἐτελειώθη, καὶ ἐπληρώθη ἡ γραφὴ ἡ λέγουσα, Ἐπίστευσεν δὲ Ἀβραὰµ τῷ θεῷ, καὶ ἐλογίσθη αὐτῷ εἰς δικαιοσύνην, καὶ φίλος θεοῦ ἐκλήθη. Mas você quer saber, homem tolo, que a fé sem obras é sem efeito? Não é assim que, Abraão, nosso pai, foi justificado por obras tendo oferecido Isaque, seu filho, sobre o altar? Veja que a fé cooperava com as obras e pelas obras a fé cominou em seu fim? E foi cumprida a Escritura que diz: E creu Abraão em Deus e isso foi computado como justiça, e foi declarado amigo de Deus.

    Aqui somos levados à próxima exemplificação de Tiago que é feita com base na história de Abraão, o amigo de Deus, para provar que a verdadeira é aquela reconhecida como presente no fiel apenas pela produção das obras.

    O presbítero começa desafiando o descrente ao se dirigir a ele como homem tolo (ἄνθρωπε κενέ). E somos levados a considerar a razão pela qual ele usa palavras tão duras. De fato, toda obstinação teimosa contra a Palavra de Deus, que é a Verdade, é tolice, é algo que vai contra a razão. É insensatez obstinada. Ora, a Palavra do Senhor não é contra a razão. De fato, não encontramos na teologia revelada qualquer resquício de uma fé inoperante, ou uma fé que salvando o homem alargue o espaço para a pratica de males sem qualquer risco de condenação. De fato, não negamos que segundo a potência absoluta de Deus Ele poderia conceder uma fé que quitasse o mal de uma vez por todas no homem no último segundo de sua vida. Mas não é disso de que estamos falando aqui, pois o que Tiago contesta é uma fé que não provoca uma transformação, que não produz amor, pois isso contradita qualquer noção real de salvação, pois verdadeira salvação é o homem ser salvo de seus pecados, da torção de sua vontade má a qual produz destruição. Sem a conversão da vontade não é possível conceder a presença da fé.

    Assim, Abraão foi justificado pelas obras na sua obediência ao se dispor a entregar Isaque, seu filho amado, em sacrifício. A passagem escolhida é sugestiva e aterradora. Mas ela é proveitosa para elucidarmos tanto o conceito de amor a Deus, como o conceito que estamos defendendo aqui ao interpretar a presença das boas obras como efeitos que sinalizam a presença da fé. Ora, a presença curativa da verdadeira fé provoca aquilo que chamamos de conversão. Essa é operada exclusivamente pela graça de Deus e alçada sem qualquer obra da nossa parte. A fé vem a nós sem qualquer mérito e nos salva, e nos salva porque mediante a fé fazemos dos méritos de Cristo os nosso méritos por estarmos unidos a ele, pois pela fé o que é de Cristo é nosso, já que o que é da cabeça pertence também ao corpo, tal como aquilo que pertence a Cristo é também de sua Igreja. Assim, pela fé, ganhamos a nossa justificação por termos a posse da justiça de Cristo. Mas o sentido de que as obras justificam se orienta segundo o mesmo sentido de que a sabedoria foi justificada por todos os seus filhos (καὶ ἐδικαιώθη ἡ σοφία ἀπὸ πάντων τῶν τέκνων αὐτῆς) (Lc 7.36), ou de que o povo e os publicanos que se batizaram justificaram a Deus (ἐδικαίωσαν τὸν θεόν) (Lc 7.29). Ora, nem a sabedoria e nem mesmo Deus precisam de justificação. Considero, por tanto, o sentido da justificação no sentido de que tanto a sabedoria se fez valer segundo o triunfo dos seus filhos, quando quando os publicanos e o povo tomaram sobre si o batismo e fizeram jus à justiça de Deus. Assim, as obras fazem jus à presença da verdadeira fé, salvando - pelo ângulo da necessidade de consequência que se relaciona com a presença da fé -, como também a presença da fé real foi justificada pelos seus filhos na presença das boas obras. Assim, as obras solitárias não salvam, e só são salutíferas na posse da fé salvadora pela qual se fazem presentes as obras como efeitos, ou como a concreção da salvação, não no sentido causativo, mas no sentido consecutivo, pois a fé atinge a sua finalidade unida absolutamente à presença das boas obras. Nesse sentido as boas obras são necessárias para a salvação.

    Abraão, por assim dizer, justificou a sua fé por aquilo que na sua posse fez, e disso sua disposição de dispor Isaque em sacrifício testemunha. A questão é que o homem ordenado, perfeitamente sintonizado com a vontade divina, dispõe também de uma reta hierarquia de prioridades, e assim põe o que é vontade de Deus em primeiro lugar. A vontade divina possui o primado em relação à nossa vontade, que a Deus é subordinada. Por isso, se Isaque ocupava um lugar de honra e destaque entre os interesses de Abraão, a reta ordem das coisas exigia que Deus ocupasse lugar superior. Mas aquilo que é disposto como ideal, como a reta disposição das coisas na mente deve também ser concreta na realidade; e ao Deus pedir Isaque em sacrifício o Senhor colocou em prova a Abraão e assim testou a sua disposição em relação a Si. Certamente Gn 22.1-24 é um texto sacerdotal no qual consta uma evidente apologia contra o sacrifício humano, não incomum no mundo antigo e na época de Abraão. Nesse sentido entre uma das obediência de Abraão também foi não sacrificar seu filho após sua sinceridade diante de Deus ser evidenciada.

    O texto posto por Tiago visa explanar a realidade de que a fé cooperou (συνήργει) com as obras. A sinergia (συνήργει) significa uma operação que visa um efeito único produzido por duas partes cooperantes. Podemos aqui afirmar a realidade de uma "graça cooperante" que nos auxilia a atingir certos efeitos, tal como atos honestos de santidade. Assim os atos de Abraão cooperaram com sua fé na produção de um efeito. No entanto é importante percebermos algo: somente um justo é capaz de atos justos; só alguém com a alma ordenada é capaz de atos honestos. Aqui há, mesmo nesses atos de , a presença absoluta do Espírito nos habilitando para tais atos. Assim, é óbvio que do justo precede o operar justamente, e é preciso ser justo para praticar atos justos. Então, tal como os filhos justificam a sabedoria e o povo e os publicanos justificaram a Deus, também as obras justificaram a Abraão, o qual já cria poderosamente, e nesse ato Abraão foi chamado o amigo de Deus (καὶ φίλος θεοῦ ἐκλήθη).

    É importante notar que quando Tiago afirma essa justificação pelas obras, não é possível que ele esteja se referindo ao mesmo evento que Paulo, dado que o evento a que Paulo se remete antecede o nascimento de Ismael. Na época do nascimento de Isaque, em Gn 15.6, Ismael era adolescente, pouco antes disso Deus afirmou que da semente de Abraão o Senhor daria descendentes como as estrelas do céu. Já o sacrifício de Isaque se dá anos depois, com ele já crescido, conforme Gn 22.1-24. E aqui Tiago afirma que se cumpriu a Escritura, pois logicamente se se fala de um cumprimento, afirmamos algo já declarado anteriormente. De fato, vemos que Tiago fala da eficácia da fé, enquanto que Paulo fala da causação da justificação pela graça, mediante a fé. Paulo fala de uma obtenção da justiça pela fé, enquanto que Tiago fala do sinal exterior da eficácia da graça salvadora, onde a fé atinge a consumação da sua finalidade (ἐκ τῶν ἔργων ἡ πίστις ἐτελειώθη = e nas obras a fé atingiu o seu fim). Por isso a presença das boas obras são necessárias à salvação, não porque causem a salvação, mas porque mediante elas recebemos a declaração da justiça já presente naquele que está em posse da fé salvadora. Assim, as obras são sinais da graça necessários naquele que tem fé. Por isso as obras justificam a Abraão, pois justificam a fé operante de Abraão.     

24, 25, 26 ὁρᾶτε ὅτι ἐξ ἔργων δικαιοῦται ἄνθρωπος καὶ οὐκ ἐκ πίστεως µόνον. ὁµοίως δὲ καὶ Ῥαὰβ ἡ πόρνη οὐκ ἐξ ἔργων ἐδικαιώθη, ὑποδεξαµένη τοὺς ἀγγέλους καὶ ἑτέρᾳ ὁδῷ ἐκβαλοῦσα; ὥσπερ γὰρ τὸ σῶµα χωρὶς πνεύµατος νεκρόν ἐστιν, οὕτως καὶ ἡ πίστις χωρὶς ἔργων νεκρά ἐστιν. - Veja que os homens são justificados por obras e não por fé somente. E semelhantemente também Raabe, a prostituta, não foi justificada por obras tendo acolhido os mensageiros, fazendo eles irem também partirem por outro caminho? Assim, pois, como o corpo sem espírito está morto, assim também a fé sem obras é morta.

    Tiago cita mais um exemplo da fé eficaz que produz obras de justiça. E antes do exemplo há a conclusão: os homens são justificados por obras e não por fé somente. Citando Raabe ele nos remete a Josué 2, onde Raabe acolhe os espias e os esconde, entrando também em aliança com eles, os despedindo depois por outro caminho (ἑτέρᾳ ὁδῷ). Assim, Raabe, uma prostituta (πόρνη), sabendo que Deus havia dado Jericó nas mãos dos israelitas, teme e se une a eles, fazendo a eles o bem. Ora, Raabe não faria o bem se a isso não estivesse disposta. Assim, seus atos sinalizam sua disposição para com Deus. Suas obras justificam essa disposição, ou melhor, a declaram. Ninguém pode ser elevado a isso senão na posse da fé salvadora, pois afirmamos a realidade de uma fé que opera (Gl 5.6), e é só essa que salva.

    O autor parte para a sentença: Assim, pois, como o corpo sem espírito está morto, assim também a fé sem obras é morta. Tiago estabelece uma analogia e ela deve orientar toda a nossa compreensão sobre esse bloco textual. Aqui não há oposição entre fé e obras. Nem mesmo há contraste com a noção Paulina de uma justificação independente da justiça própria. Tiago discute a natureza da fé salvadora à maneira daquilo que Paulo declara sobre a fé que atua pelo amor. Por isso, tal como um corpo com espírito está vivo, uma fé operante é viva. Por isso como um corpo sem espírito (σῶµα χωρὶς πνεύµατος) está morto (νεκρόν ἐστιν), a fé sem obras (ἡ πίστις χωρὶς ἔργων) está morta (νεκρά ἐστιν), ou seja, uma fé que não opera é impotente e nada leva a efeito, nem mesmo a salvação.  

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*O nome que traduzimos por Tiago vem do gregoΙάκωβος (Iákōbos), o qual é uma transliteração grega do nome hebraico יַעֲקֹ֛ב (ya'akov), o qual traduzimos no português por Jacó. Daí que nomeamos o pensamento teológico de Tiago de jacobita.

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Comentário em Isaías 2.6-22: (מִפְּנֵי֙ פַּ֣חַד יְהוָ֔ה) A soberba de Israel e a face aterradora do Senhor

Texto de Isaías 2.6-22:

6 כִּ֣י נָטַ֗שְׁתָּה עַמְּךָ֙ בֵּ֣ית יַעֲקֹ֔ב כִּ֤י מָלְאוּ֙ מִקֶּ֔דֶם וְעֹֽנְנִ֖ים כַּפְּלִשְׁתִּ֑ים וּבְיַלְדֵ֥י נָכְרִ֖ים יַשְׂפִּֽיקוּ׃
7 וַתִּמָּלֵ֤א אַרְצוֹ֙ כֶּ֣סֶף וְזָהָ֔ב וְאֵ֥ין קֵ֖צֶה לְאֹצְרֹתָ֑יו וַתִּמָּלֵ֤א אַרְצוֹ֙ סוּסִ֔ים וְאֵ֥ין קֵ֖צֶה לְמַרְכְּבֹתָֽיו׃
8 וַתִּמָּלֵ֥א אַרְצֹ֖ו אֱלִילִ֑ים לְמַעֲשֵׂ֤ה יָדָיו֙ יִֽשְׁתַּחֲו֔וּ לַאֲשֶׁ֥ר עָשׂ֖וּ אֶצְבְּעֹתָֽיו׃
9 וַיִּשַּׁ֥ח אָדָ֖ם וַיִּשְׁפַּל־אִ֑ישׁ וְאַל־תִּשָּׂ֖א לָהֶֽם׃
10 בֹּ֣וא בַצּ֔וּר וְהִטָּמֵ֖ן בֶּֽעָפָ֑ר מִפְּנֵי֙ פַּ֣חַד יְהוָ֔ה וּמֵהֲדַ֖ר גְּאֹנֹֽו׃
11 עֵינֵ֞י גַּבְה֤וּת אָדָם֙ שָׁפֵ֔ל וְשַׁ֖ח ר֣וּם אֲנָשִׁ֑ים וְנִשְׂגַּ֧ב יְהוָ֛ה לְבַדֹּ֖ו בַּיֹּ֥ום הַהֽוּא׃ ס
12 כִּ֣י יֹ֞ום לַיהוָ֧ה צְבָאֹ֛ות עַ֥ל כָּל־גֵּאֶ֖ה וָרָ֑ם וְעַ֖ל כָּל־נִשָּׂ֥א וְשָׁפֵֽל׃
13 וְעַל֙ כָּל־אַרְזֵ֣י הַלְּבָנֹ֔ון הָרָמִ֖ים וְהַנִּשָּׂאִ֑ים וְעַ֖ל כָּל־אַלּוֹנֵ֥י הַבָּשָֽׁן׃
14 וְעַ֖ל כָּל־הֶהָרִ֣ים הָרָמִ֑ים וְעַ֖ל כָּל־הַגְּבָעֹ֥ות הַנִּשָּׂאֹֽות׃
15 וְעַ֖ל כָּל־מִגְדָּ֣ל גָּבֹ֑הַ וְעַ֖ל כָּל־חוֹמָ֥ה בְצוּרָֽה׃
16 וְעַ֖ל כָּל־אֳנִיֹּ֣ות תַּרְשִׁ֑ישׁ וְעַ֖ל כָּל־שְׂכִיֹּ֥ות הַחֶמְדָּֽה׃
17 וְשַׁח֙ גַּבְה֣וּת הָאָדָ֔ם וְשָׁפֵ֖ל ר֣וּם אֲנָשִׁ֑ים וְנִשְׂגַּ֧ב יְהוָ֛ה לְבַדֹּ֖ו בַּיֹּ֥ום הַהֽוּא׃
18 וְהָאֱלִילִ֖ים כָּלִ֥יל יַחֲלֹֽף׃
19 וּבָ֨אוּ֙ בִּמְעָרֹ֣ות צֻרִ֔ים וּבִמְחִלֹּ֖ות עָפָ֑ר מִפְּנֵ֞י פַּ֤חַד יְהוָה֙ וּמֵהֲדַ֣ר גְּאוֹנֹ֔ו בְּקוּמֹ֖ו לַעֲרֹ֥ץ הָאָֽרֶץ׃
20 בַּיֹּ֤ום הַהוּא֙ יַשְׁלִ֣יךְ הָאָדָ֔ם אֵת אֱלִילֵ֣י כַסְפֹּ֔ו וְאֵ֖ת אֱלִילֵ֣י זְהָבֹ֑ו אֲשֶׁ֤ר עָֽשׂוּ־לוֹ֙ לְהִֽשְׁתַּחֲוֹ֔ת לַחְפֹּ֥ר פֵּרֹ֖ות וְלָעֲטַלֵּפִֽים׃
21 לָבוֹא֙ בְּנִקְרֹ֣ות הַצֻּרִ֔ים וּבִסְעִפֵ֖י הַסְּלָעִ֑ים מִפְּנֵ֞י פַּ֤חַד יְהוָה֙ וּמֵהֲדַ֣ר גְּאוֹנֹ֔ו בְּקוּמֹ֖ו לַעֲרֹ֥ץ הָאָֽרֶץ׃
22 חִדְל֤וּ לָכֶם֙ מִן־הָ֣אָדָ֔ם אֲשֶׁ֥ר נְשָׁמָ֖ה בְּאַפֹּ֑ו כִּֽי־בַמֶּ֥ה נֶחְשָׁ֖ב הֽוּא׃ פ

Tradução e Comentário:

6, 7, 8, 9:
כִּ֣י נָטַ֗שְׁתָּה עַמְּךָ֙ בֵּ֣ית יַעֲקֹ֔ב כִּ֤י מָלְאוּ֙ מִקֶּ֔דֶם וְעֹֽנְנִ֖ים כַּפְּלִשְׁתִּ֑ים וּבְיַלְדֵ֥י נָכְרִ֖ים יַשְׂפִּֽיקוּ׃
וַתִּמָּלֵ֤א אַרְצוֹ֙ כֶּ֣סֶף וְזָהָ֔ב וְאֵ֥ין קֵ֖צֶה לְאֹצְרֹתָ֑יו וַתִּמָּלֵ֤א אַרְצוֹ֙ סוּסִ֔ים וְאֵ֥ין קֵ֖צֶה לְמַרְכְּבֹתָֽיו׃
וַתִּמָּלֵ֥א אַרְצֹ֖ו אֱלִילִ֑ים לְמַעֲשֵׂ֤ה יָדָיו֙ יִֽשְׁתַּחֲו֔וּ לַאֲשֶׁ֥ר עָשׂ֖וּ אֶצְבְּעֹתָֽיו׃
וַיִּשַּׁ֥ח אָדָ֖ם וַיִּשְׁפַּל־אִ֑ישׁ וְאַל־תִּשָּׂ֖א לָהֶֽם׃

Porque tu, Yahweh, desamparaste o teu povo, a casa de Jacó, porque os seus se encheram de bruxos, como os filisteus, e se associam com filhos estrangeiros. E sua terra se enche de prata e ouro sem fim. E enche a terra de cavalos e suas carruagens são incontáveis. E enchem a sua casa de ídolos inúteis, se prostrando diante das obras das suas mãos. E com isso as pessoas tem que se vergar e o homem é degradado; por isso não haverá perdão.

    A profecia mira Israel, ou a casa de Jacó (בֵּ֣ית יַעֲקֹ֔ב), que é o povo de Deus, ou o seu povo (עַמְּךָ֙), o qual foi alvo do desamparo de Yahwew por certas razões, como, em primeiro lugar: 1) a prática da bruxaria e 2) a associação com os filhos dos estrangeiros. A orientação da lei (תּוֺרָה) tinha certo rigorismo quanto à associação entre as nações, já que Israel, eleito para ser o oráculo de Deus, deveria conservar certos costumes, tal como já anteriormente Yahweh esperava de Abraão (Gn 18.19). Quanto a práticas de feitiçaria, ou bruxaria podemos listar a adivinhação pelos astros, pela leitura de vísceras, pelo vôo dos pássaros etc.

    Também no texto o profeta cita condenações expressas no livro do Deuteronômio, como riqueza excessiva, excesso de armas de guerra (cavalos e carros de guerra), e a idolatria. Mas essa última listagem contém uma informação extremamente interessante, levando em conta como eles estão relacionados - o que inclui os dois motivos de reprovação dos parágrafos anteriores, assim como o que no comentário passado falou-se sobre a profecia pacifista de Isaías. Mas voltando a Deuteronômio, em particular Dt 17.16,17, ali temos algumas prescrições que poderíamos chamar de preambulares para o exercício de um bom governo: 1) não multiplicar cavalos; 2) não multiplicar mulheres; 3) não multiplicar ouro. Essas prescrições preambulares foram todas violadas pelo rei Salomão, o qual imprimiu uma forma de governar que está entre os problemas de Israel. E todas essas coisas estão relacionadas por determinados motivos, envolvendo a cobiça por poder e os males daí decorrentes.

    Então temos nesses versículos o seguinte: 1) o fato de os Israelitas, por influência estrangeira, estar praticando bruxaria; 2) a associação aos filhos de estranhos; 3) a acumulação exorbitante de ouro e prata; 4) se enchendo de cavalos e carros de guerra; 5) a queda na idolatria. Todos esse problemas, na verdade, estão ligados uns aos outros, e disso a própria profecia de Isaías é testemunho, tanto nos capítulos que vão de Is 3-5, a 7-10, nos quais estão listados vários males de Israel e Judá relacionados a esses vícios (e provavelmente a "casa de Jacó" se refira amplamente tanto ao Reino do Norte como ao Reino do Sul), como males que são juízos divinos, mal de pena ou pena corretiva. Assim, as proibições de Deuteronômio tem a sua razão de ser e explicam o estado atual da Casa de Jacó, pois no geral a idolatria e a associação aos filhos de estranhos se explicam em função das alianças políticas na história pragmática dos povos. Pois Israel nunca foi um potência militar que teria a capacidade de dobrar seus vizinhos em definitivo, o que o colocava em certo aperto quando super-potências militares emergiam. O caso de Is 7.1-8, que comentaremos mais adiante, relata a aliança entre Rezin, rei da Síria, com Peca, rei do Reino do Norte (Israel), afim de eles conquistarem o Reino do Sul (Judá), cujo rei era Acaz. Isaías busca alentar o rei Acaz (Is 7.7), dizendo que tal plano iria falhar. Mas quanto à aliança entre o Reino do Norte e outros povos, o caso não é novo: em 1Rs 16.31 o rei Acabe tomou a Jezabel por mulher, sendo esta filha dos Sidônios. Esse costume de casamentos fundados em alianças políticas militares entre nações é uma das razões pelas quais o próprio rei Salomão se casou ou entrou em concubinato com tantas mulheres. Também o fato de Salomão ter sido pervertido pelas suas mulheres à adoração de outros deuses se deu porque tai mulheres que eram dadas em casamento ou concubinato por alianças políticas, eram certamente estrangeiras (como é fato óbvio o caso da filha de Faraó), trazendo a prática da sua religião a Israel - como ocorre no caso entre Acabe e Jezabel -, o que potencialmente acabou por influenciar religiosamente de forma negativa Israel, trazendo a perversão em função dos valores abomináveis de tais deuses estrangeiros.

    Assim, fica claro que alianças políticas são feitas com interesses militares - a pretexto de proteção da nação ou de conquista -, e mesmo a riqueza abundante pode ser explicada com base em espólios de guerra ou mesmo na exploração dos necessitados. Tudo também se relaciona com a idolatria, pois as formas das alianças políticas se davam também pela introdução do culto daqueles com quem os reis se aliançavam, e isso prescindia até mesmo de casamentos arranjados entre as cortes das nações. Mas é também interessante notar que a busca pelo poder temporal também redunda na degradação do homem (וַיִּשְׁפַּל־אִ֑ישׁ), isto é: na forma degradante do culto, na confiança na riqueza e na guerra. Poderíamos estabelecer uma investigação profunda a respeito dos males da idolatria, da guerra e da avareza. Todos esses elementos deformam e aviltam o homem. A idolatria por tornar opaca a dimensão vertical e transcendente para a qual o homem foi feito, eclipsando a realidade de Deus para a sua alma, redunda em destruição da sua humanidade; a avareza por operar uma inversão absurda na consideração das coisas, triturando o reto entendimento e a humanidade do homem, que corrompe a si mesmo em busca de riquezas; e a guerra por causa do exercício brutal da força, levada a cabo pela avareza que não hesita em massacrar os homens, seus bens, famílias e história, em nome da conquista de poder temporal. Todas essas coisas destroem a orientação espiritual do homem, e são contrários aos caminhos de Yahweh, cuja orientação, uma vez acatada por todos, é a eliminação da guerra, e não a sua perpetuação sem sim (Is 2.4).

    Nesse sentido, para esse eclipse da humanidade, "não há perdão". É o que declara o profeta de Yahweh.     

10, 11 - 18:
בֹּ֣וא בַצּ֔וּר וְהִטָּמֵ֖ן בֶּֽעָפָ֑ר מִפְּנֵי֙ פַּ֣חַד יְהוָ֔ה וּמֵהֲדַ֖ר גְּאֹנֹֽו׃
עֵינֵ֞י גַּבְה֤וּת אָדָם֙ שָׁפֵ֔ל וְשַׁ֖ח ר֣וּם אֲנָשִׁ֑ים וְנִשְׂגַּ֧ב יְהוָ֛ה לְבַדֹּ֖ו בַּיֹּ֥ום הַהֽוּא׃ ס
כִּ֣י יֹ֞ום לַיהוָ֧ה צְבָאֹ֛ות עַ֥ל כָּל־גֵּאֶ֖ה וָרָ֑ם וְעַ֖ל כָּל־נִשָּׂ֥א וְשָׁפֵֽל׃
וְעַל֙ כָּל־אַרְזֵ֣י הַלְּבָנֹ֔ון הָרָמִ֖ים וְהַנִּשָּׂאִ֑ים וְעַ֖ל כָּל־אַלּוֹנֵ֥י הַבָּשָֽׁן׃
וְעַ֖ל כָּל־הֶהָרִ֣ים הָרָמִ֑ים וְעַ֖ל כָּל־הַגְּבָעֹ֥ות הַנִּשָּׂאֹֽות׃
וְעַ֖ל כָּל־מִגְדָּ֣ל גָּבֹ֑הַ וְעַ֖ל כָּל־חוֹמָ֥ה בְצוּרָֽה׃
וְעַ֖ל כָּל־אֳנִיֹּ֣ות תַּרְשִׁ֑ישׁ וְעַ֖ל כָּל־שְׂכִיֹּ֥ות הַחֶמְדָּֽה׃
וְשַׁח֙ גַּבְה֣וּת הָאָדָ֔ם וְשָׁפֵ֖ל ר֣וּם אֲנָשִׁ֑ים וְנִשְׂגַּ֧ב יְהוָ֛ה לְבַדֹּ֖ו בַּיֹּ֥ום הַהֽוּא׃
וְהָאֱלִילִ֖ים כָּלִ֥יל יַחֲלֹֽף׃

Entra na rocha e esconde-te no pó, diante do terror da face e do esplendor da sua majestade. Os olhos altivos dos homens serão rebaixados, e a arrogância dos homens terá humilhada. Só Yahweh será o único exaltado naquele dia. Porque o dia de Yahweh Tsevaot, o Senhor dos Exércitos, será contra todo altivo e contra todo aquele que se eleva, para que seja rebaixado; e contra todos os cedros do Líbano que se elevam, e contra todos os carvalhos de Basã; e contra todas as montanhas que se erguem, e contra todas as colinas que se elevam; contra toda torre alta, e contra toda muralha inultrapassável; contra todos os navios de Társis e contra todas as naus de algo desejável. E terá que se humilhar todo orgulho humano e toda altivez dos homens; e Yahweh será exaltado sozinho naquele dia. E os deuses inúteis sumirão completamente.

    A profecia aconselha a fuga. Aqui se instaura o juízo na manifestação do esplendor (מֵהֲדַ֖ר) da majestade ou altivez (גְּאֹנֹֽו) de Yahweh, pois Ele está absolutamente acima de tudo o que se pode e não se pode imaginar. Assim o conselho: Entre na rocha (בֹּ֣וא בַצּ֔וּר = bo' vatsur) e te oculta (וְהִטָּמֵ֖ן = vehitamen) no pó (בֶּֽעָפָ֑ר = be'afar) do terror da face (מִפְּנֵי֙ פַּ֣חַד = mippenê pahad) de Yahweh (יְהוָ֔ה) e do esplendor (וּמֵהֲדַ֖ר = umehadar) da majestade (גְּאֹנֹֽו = ge'ono). Assim, mippeney pahad é construído para designar uma presença no pref. 'mi' que inclui em 'p' um daguesh forte, reforçando a ideia de "presença". A construção de penê (פְּנֵי֙), cuja raiz é 'pnh' e mais especificamente 'pny' que significa face, ou mesmo o ato de se voltar para algum lado. A questão é que 'pny' está no modo constructo, indicando que o sentido de presença se refere à presença de um absoluto que é o 'pahar', ou temor, e mesmo terror. Vemos aqui, portanto, um modo específico da manifestação divina na face terrível de Deus. É assim, nessa face terrível, que o Senhor há de manifestar o esplendor da sua majestade. Então, naquele dia (vs. 11b), o aconselhável é se "esconder da face" se metendo nas cavernas ou nos buracos do chão, pois seu resplendor majestoso e altivo será contra os homens da terra.

    Aqui o profeta anuncia que o esplendor da majestade fará oposição completa contra a o olhar orgulhoso (עֵינֵ֞י גַּבְה֤וּת), e humilhando os que humilham, na manifestação de Yahweh será rebaixado (שָׁפֵ֔ל) arrogância (ר֣וּם) dos homens (אֲנָשִׁ֑ים = 'anashim: homem no sentido masculino e não no sentido de humanidade). Assim, naquele dia (בַּיֹּ֥ום הַהֽוּא) Yahweh será exaltado (וְנִשְׂגַּ֧ב יְהוָ֛ה) sozinho (לְבַדֹּ֖ו).

    O versículo 12 introduz dizendo que Yahweh Tsevaot será contra (עַ֥ל) todo altivo (גֵּאֶ֖ה). E aqui podemos explorar o sentido para implicações mais amplas, pois o adjetivo g'h (גֵּאֶ֖ה) em questão é também aplicado para falar sobre a face majestosa (גְּאֹנֹֽו = ge'ono) de Yahweh. Assim, g'h é um qualificativo neutro, que pode tanto significar altivez como também majestade, sendo o seu constitutivo formal aquilo que caracteriza uma boa ou majestade. Portanto a face terrível e majestosa do Senhor se voltará contra os majestosos, contra os grandes, exercendo a sua justiça vindicativa de forma completa contra eles, pressupondo o pecado por parte deles. Nesse dia Yahweh estará contra aquilo que se eleva (וָרָ֑ם) e contra todo o que se levanta (וְעַ֖ל כָּל־נִשָּׂ֥א) para que seja abatido (וְשָׁפֵֽל) da sua própria altura. Então o oráculo continua: contra os cedros libaneses que se elevam altíssimo, e contra todos os carvalhos de Basã; contra as montanhas elevadas e contra todas as colinas; contra todas as torres altas e contra todas muralhas intransponíveis; contra os navios de Társis, e contra todas as naus com produtos preciosos. O vs. 17 é quase uma cópia do vs. 11, retomando o tema do abatimento do orgulho e da altivez dos homens, assim como a exaltação só do Senhor naquele dia (בַּיֹּ֥ום הַהֽוּא).

    Com relação à lista das coisas a serem abatidas por Yahweh naquele dia, podemos tecer o seguinte comentário: ao se referir aos cederos do Líbano certamente o profeta não se refere aos pecados dos cedros, já que esses não são capazes disso. Mas aqui há de ser levado em conta a noção do valor que tais cedros possuem - como é possível ver ao longo das Escrituras -, indicando tanto a excelência intrínseca deles quanto o que move a consideração dos homens a respeito deles, especialmente no sentido do valor monetário. Certamente que a Ira do Senhor naquele dia será contra também um sistema de valoração dos homens, pois aquilo que eles carnalmente estimam, naquele dia, se revelará em seu real valor, sendo estimado em nada diante das coisas que realmente importam, como a majestade de Deus. Assim, a gloriosa manifestação de Deus abaterá toda consideração humana, pois na revelação da glória divina nada pode ser considerado de elevadíssimo valor senão o próprio Deus. Yahweh é mais elevado do que os altos montes; mas seguro do que as altas torres, e mais firme do que a firmeza das muralhas inultrapassáveis, as quais nada são contra o Seu poder e glória. Da mesma forma, os navios de Társis, conhecidos pela atividade mercante, nada terão de valioso ou belo à vista que sirva para se ombrear ao esplendor terrível da majestade de Yahweh. Tudo virá ao chão, vindo ao chão a soberba do homem, pois ali, para a Casa de Jacó, o Senhor revelará a si mesmo e a sua santidade diante da deformação terrível da alma do seu povo, corrompido com juízos e atos de perversidade.

    Assim considerada a questão podemos entender a conclusão do vs. 18, pois na manifestação do esplendor majestático do Senhor, na afetação das mentes e na destruição de toda esperança e confiança vãs mediante a visão, ou seja, a visão da própria Verdade na face do Senhor, todos os ídolos também ruirão, já que esses dependem do sistema de auto-engano, da mentira que já não encontrará qualquer sustentação naquele dia da manifestação do Senhor. Assim, os deuses inúteis (הָאֱלִילִ֖ים) completamente (כָּלִ֥יל) sumirão (יַחֲלֹֽף).     

19, 20, 21, 22:
                          וּבָ֨אוּ֙ בִּמְעָרֹ֣ות צֻרִ֔ים וּבִמְחִלֹּ֖ות עָפָ֑ר מִפְּנֵ֞י פַּ֤חַד יְהוָה֙ וּמֵהֲדַ֣ר גְּאוֹנֹ֔ו בְּקוּמֹ֖ו לַעֲרֹ֥ץ הָאָֽרֶץ׃ בַּיֹּ֤ום הַהוּא֙ יַשְׁלִ֣יךְ הָאָדָ֔ם אֵת אֱלִילֵ֣י כַסְפֹּ֔ו וְאֵ֖ת אֱלִילֵ֣י זְהָבֹ֑ו אֲשֶׁ֤ר עָֽשׂוּ־לוֹ֙ לְהִֽשְׁתַּחֲוֹ֔ת לַחְפֹּ֥ר פֵּרֹ֖ות וְלָעֲטַלֵּפִֽים׃
 לָבוֹא֙ בְּנִקְרֹ֣ות הַצֻּרִ֔ים וּבִסְעִפֵ֖י הַסְּלָעִ֑ים מִפְּנֵ֞י פַּ֤חַד יְהוָה֙ וּמֵהֲדַ֣ר גְּאוֹנֹ֔ו בְּקוּמֹ֖ו לַעֲרֹ֥ץ הָאָֽרֶץ׃
                   חִדְל֤וּ לָכֶם֙ מִן־הָ֣אָדָ֔ם אֲשֶׁ֥ר נְשָׁמָ֖ה בְּאַפֹּ֑ו כִּֽי־בַמֶּ֥ה נֶחְשָׁ֖ב הֽוּא׃ פ

Então se meterão nas cavernas das rochas e nos buracos da terra ante o terror da face de Yahweh e da glória da sua majestade, quando ele se levantar para aterrorizar a terra. Naquele dia os homens lançarão aos morcegos e musaranhos os seus ídolos de prata e de ouro que fizeram para se rebaixarem; e se meterão nas fendas das rochas e nas grutas dos rochedos ante o terror da face de Yahweh e o esplendor da sua majestade, quando Ele se levantar para aterrorizar a terra. Afastem-se do homem cujo fôlego está no seu nariz. Porque em quê deve ele ser estimado?

    Se no vs. 10 há um conselho, aqui no vs. 19 há uma descrição. Ambos os versículos se assemelham em conteúdo, mas possuem uma forma distinta, como assinalado, Aqui os homens se meterão nas concavidades das rochas e em buracos na terra diante do terror da face de Yahweh e do esplendor de sua majestade. O que se acrescenta de novo é que isso ocorrerá no levantar (בְּקוּמֹ֖ו) do Senhor para estremecer (לַעֲרֹ֥ץ) a terra (הָאָֽרֶץ).

    E o profeta continua no seu tom descritivo: Naquele dia (בַּיֹּ֤ום) os homens lançarão aos morcegos e aos musaranhos (camundongos do oeste asiático) seus ídolos de prata e ouro, os quais os homens, para a vergonha (לַחְפֹּ֥ר) eles fizeram para se prostrarem (לְהִֽשְׁתַּחֲוֹ֔ת). Assim, eles se meterão (לָבוֹא֙) nas fendas (בְּנִקְרֹ֣ות) das rochas (הַצֻּרִ֔ים) e nas grutas (וּבִסְעִפֵ֖י) dos rochedos (הַסְּלָעִ֑ים) diante da face terrível de Yahweh (מִפְּנֵ֞י פַּ֤חַד יְהוָה֙). Assim, aquilo que poderia ser objeto de confiança dos homens, seus ídolos inúteis, serão reduzidos a pó, e sua dignidade será semelhante à dignidade dos morcegos e "camundongos", soterrados frente à glória de Deus. Nada restará de elevado para além da sua própria medida, no dia em que Deus se levantar para estremecer a terra e expurga-la de toda a sua mentira.

    Assim, se o homem assim fará, recebendo oposição frontal daquele que é eterno, porque ainda deitaríamos a nossa confiança eterna nos homens? Nesse sentido o profeta conclama: Afastai-vos (חִדְל֤וּ לָכֶם֙), que nos hebraico também tem o sentido de parai! Assim: Afastaivos do homem (מִן־הָ֣אָדָ֔ם), ou poderíamos também considerar a seguinte tradução: Parem de confiar em homens! E esse é dotado da mortalidade, pois assim é se saca um atributo do homem: cujo (אֲשֶׁ֥ר) fôlego (נְשָׁמָ֖ה) está no nariz (בְּאַפֹּ֑ו). Assim, se Yahweh, cuja manifestação é capaz de abater tudo o que é alto e que é capaz de reduzir tudo o que o homem tem por estimado a pó, é o único exaltado naquele dia, segue-se que a reserva e ceticismo em relação aos homens e seus juízos é algo que, para além de prudente, justificado. Assim, Yahweh Tsevaot, o Senhor dos Exércitos, é Deus Plenipotente, e o homem é o transitório cujo fôlego está em seu nariz. E assim o profeta conclui: Porque em que (כִּֽי־בַמֶּ֥ה) ele (הֽוּא) é tido, considerado ou estimado (נֶחְשָׁ֖ב)?

    O texto em questão tem todo o sabor da profecia de juízo e, consequentemente, da oposição de Deus aos feitos humanos. Aqui a profecia se volta obviamente contra a casa de Israel e seus descaminhos aviltantes contra os homens. Yahweh assinala os vários pecados e a subversão do seu povo: avareza, violência e idolatria. E todas essas coisas estão devotadas à destruição de Deus.     Deus, por tanto, manifesta a sua altivez contra a altivez humana, opõe a sua grandeza àquilo que os homens consideram grandes, sua força àquilo que os homens consideram firmes, e sua verdade contra aquilo que os homens consideram objeto de confiança. Trata-se de uma oposição ao juízo perturbado da casa de Israel pelo qual eles sustentam a sua própria maldade. Assim, Deus promete a aniquilação da falsa confiança a que leva esse juízo perturbado, ou seja, promete a destruição da idolatria.

    Mas se podemos destacar algo nesse texto é o fato profundamente interessante que assinala que a gloriosa e terrível manifestação de Deus é, ao mesmo tempo, a queda de toda falsa confiança, seja na guerra, nos tesouros ou naqueles falsos deuses. Ou poderíamos colocar as coisas de forma mais clara: a manifestação gloriosa de Deus é, ao mesmo tempo, a queda de toda idolatria.  

terça-feira, 14 de setembro de 2021

A Ética Cristã e Linguagem Aristotélica

    Dias atrás eu estive conversando com colegas e estava comentando a razão pela qual a linguagem da filosofia aristotélica fornece um ferramental fundamental para a discussão a respeito de questões éticas, o que, por óbvio, inclui a ética cristã, pois nos permite distinguir atos que, por certo ângulo, materialmente possuem o mesmo constitutivo, embora por outro ângulo formalmente sejam plenamente distinguíveis. Nesse sentido, aqui temos um ferramental profundamente importante pelo qual podemos empreender uma investigação da natureza dos atos humanos e daí sacar um discernimento importante na análise dos mesmos, nos livrando de considerações truncadas a respeito do universo da ética, assim como de interpretações bíblicas fundamentalistas e obtusas, as quais ao invés de nos levar instrução nada mais provocam do que confusão.

    Um exemplo bem óbvio está na distinção formal entre matar e assassinar; pois, no abstrato, embora tais atos possam conter semelhante constituição material, que é o ser daquele que assim procede matando e o ser de que procede assassinando, ambos são absolutamente distintos segundo o seu constitutivo formal. É por isso que distinguimos a auto-defesa do assassinato premeditado, pois embora os atos do matar e assassinar possam contar com semelhante constitutivo material na mera consideração da entidade dos agentes, ambos são formalmente distinguíveis em seus atos segundo o constitutivo formal da ação, ou seja, a intenção lícita de que pratica a auto-defesa e a intenção ilícita de quem mata para obter algo de modo vil. O mesmo vale para a relação sexual adulterina, pois embora no abstrato um certo homem e uma certa mulher possam contar com o constitutivo material semelhante no ato sexual de certo homem e mulher casados, o ato adulterino é formalmente marcado pela ilicitude por uma infinidade de boas razões, diferentemente do que ocorre no ato sexual praticado licitamente no contexto do matrimônio. Assim, o ato sexual e mesmo o ato de matar considerados em si mesmos são neutros e possuem a bondade meramente consideradas em função da sua entidade atual, embora possam ser formalmente marcados pela ilicitude ou pela licitude segundo o constitutivo formal dos atos dos agentes, ou seja, segundo o tipo de intenção dos mesmos.
    Da mesma forma, dizemos que Deus concorre materialmente na sustentação dos atos pecaminosos - pois sem a criação, sustentação, preservação do ser daqueles que cometem pecados, e sem a concorrência pela qual Deus sustenta a ação pecaminosa no trânsito da potência ao ato, o ato pecaminoso é absolutamente impossível -, mas não se segue daí que Deus concorra formalmente na produção do ato mal, pois essa concorrência cabe quando Deus, incoando a graça pela qual o ato honesto se torna possível, fornece a entidade da graça ao agente que assim é habilitado a atuar formalmente na produção do ato honesto, pois o bem do ato honesto Deus realmente quer, contudo o constitutivo formal do ato desonesto, que é a maldade intencionada, Ele repugna, ainda que Ele, ou seja, Deus, possa querer os efeitos do ato mal para daí sacar um bem maior, como assim faz quando entrega à morte um mártir que glorifica seu nome, ou quando ele entrega Seu Filho ao aviltamento e à morte na cruz, trazendo ao mundo a realidade da salvação.

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Retratação

    Hoje eu escrevi um texto no qual certa palavra ofendeu algumas pessoas. Eu me retrato aqui na intenção de que a comunicação entre eu e essas pessoas não encontre ruídos desnecessários afim de que andemos em um caminho que é maior que todos nós. E esse é o primeiro ponto.

    O segundo ponto é que, até por amor a esses, eu externo aqui uma profunda e imensa tristeza por uma simples constatação: todo esse movimento ainda tomará consciência de sua imensa ilusão a qual a história ainda declarará.
    Nesse sentido, minha intenção não é criar ruído. Meu papel aqui está calcado na amizade pela qual apontamos as consequências de certos atos. Eu tenho experiência o suficiente e segurança para ver que o andar por carto caminho é algo que prejudicará.
    Sem cinismo algum invoco a Deus por minha testemunha de que de tudo o que aqui falo nada de mentira pode aqui encontrar qualquer sustentação, pois não tenho interesse especial em política e nem ando à procura da promoção de qualquer político.
    Por mim, por minha família e pelos meus amigos, eu me retrato quando a inconveniência da ofensa se alguém sentiu assim. Mas por mim, por minha família e amigos eu não posso deixar de apontar aquilo que irá nos prejudicar, pois assim não age qualquer amigo.
    Se você quer ser amigo comigo, andaremos sempre juntos, e que Deus guie a todos nós*. _________________________________________________
[*] Texto escrito em 03/09/2021 em referência a este texto.

O Golpe e a Parteira do Caos

Passou agora a pouco um carro de som aqui na rua da minha casa chamando as pessoas para um manifestação que literalmente prega golpe de Estado. Ou seja: que prega crime. Tem gente que chama isso de "liberdade de expressão", ou melhor: liberdade que prega golpe contra as instituições que legalmente garantem a liberdade.

Existe um problema da ordem da inteligência no nosso país governado por ordas de whatsapp: vivem de informações fragmentárias achando que possuem o suficiente na cabeça para construir o melhor dos mundos, enquanto, à maneira do feiticeiro, mexem com forças que não entendem, promovendo a liberação de uma onda de destruição que possivelmente os destruirá.

Os iludidos, guiados pelo ódio cego, pela vontade de destruir um suposto inimigo que eles sequer conhecem direito, cuja ideia não passa de uma sombra tosca à altura da sua compreensão, movem seus esforços em um tipo de brincadeira assassina cujas consequências eles não podem medir.

    A burrice é a parteira do caos.*
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[*] Texto Escrito em 03/09/2021


Sócrates, a Injustiça de Estado e a Posição Conservadora

    Quando Sócrates estava para ser morto por uma morte injusta perpetrada pelo Estado, ele pediu aos seus discípulos que não intervissem ou que fizessem oposição revoltosa contra tudo o que estava acontecendo. Assim ele fez não porque considerasse o Estado de Atenas justo ou seus juízes, que aplicaram a ele uma sentença injusta, o padrão da medida, mas sim porque ele não queria ser razão de revolução alguma, dando pretexto para a matança.

    Os conservadores que ao longo dos séculos se inspiraram no exemplo do filósofo para fazer oposição a qualquer movimento político radical, assim fizeram não porque eram filisteus sem espírito que gozavam de satisfação com estado de coisas presente, mas porque sabiam que o remédio radical contra a doença poderia matar o corpo que antes eles pretendiam salvar, como é o caso com a Revolução Francesa.
    Obviamente que a ideia socrática era medida pela inteligência que sabe que o bem, estando até mesmo acima da verdade (no sentido daquilo que é explicado na República de Platão, e não no sentido da justificação da mentira), está também absolutamente acima de qualquer sanha furiosa embebida pela sede de vingança, convicta de que busca unilateralmente a aplicação da justiça, não levando em consideração que nessa toada eles estarão destruindo aquilo para o qual estão tentando trazer a salvação.

O Marxismo Maoísta e o Problema dos Princípios

    Essas frases abaixo mostram que o defeito fundamental do marxismo-leninismo é um problema de princípios. A primeira citação, perturbadora por todas as consequências a que seus princípios levam, evidencia aquilo que chamamos de problemas dos "meios". Os problemas relativos aos meios é que os fins não justificam tudo, nem a busca pelo melhor dos mundos justifica todos os meios possíveis para se chegar lá, incluindo a matança.

    Estas frases perturbadoras foram escritas por Mao Tsé Tung, o ditador comunista:
1) "Todos os comunistas devem compreender a seguinte verdade: "O poder político nasce do fuzil"" (Problemas da Guerra e da Estratégia - 6 novembro de 1938)*
2) "A tarefa central e a forma suprema da revolução é a conquista do poder político pelas armas, é a solução desse problema pela guerra" [...] (Ibidem)*
3) "Do ponto de vista da teoria marxista sobre o Estado, o exército é o principal componente do poder de Estado. Todo aquele que quiser conquistar e manter o poder de Estado deve possuir um forte exército". (Ibidem)*
4) "Nós somos partidários da abolição da guerra; nós não queremos a guerra. A guerra, porém, só pode abolir-se por meio da guerra. Para acabar com as armas há que pegar em armas". (Ibidem)*
    O problema da 1ª frase é a sugestão de que a violência ou a ameaça constituem a razão da ordem política. Não é diferente você assumir que a comunidade política é formada por porcos os quais se conduzem a varadas. No caso do Mao Tsé-Tung isso não está longe da verdade em função da matança que ele perpetrou ao próprio povo. Em retórica, poderíamos classificar o discurso político do ditador como "argumentum ad baculum", ou a tentativa de persuasão com base na ameaça de paulada.
    A questão é que se o fim da ação política visa a liberdade, obviamente que o poder político não pode ter sua origem na ponta do fuzil, mas sim em uma noção compartilhada de ordem a qual nasce daquilo que em nos é o mais humano: a razão, e é a razão o fundamento da liberdade; pois mesmo quando a violência é usada para a manutenção da paz política - e isso não se ignora -, a razão se interpõe como o princípio que incoa o movimento em direção à liberdade, mesmo que para isso nos utilizemos dos vários meios disponíveis que não contrastam com a justa ordem dos meios.
    Isso vai de encontro à noção perturbada dos adoradores da guerra, independentemente do espectro político em que habitam. Pois o problema não é lado político, mas sim os princípios que encarnam. E perceber isso é importante para deitarmos abaixo os reducionismos da nossa época que enxergam o mal apenas em sentido geográfico: quem senta daquele lado é bom; quem está aqui é mal.
Se não atentarmos aos problemas dos princípios, seremos engolfados pelas deformações que caracterizam a nossa época.
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[*]Citações tiradas do "O Livro Vermelho: Citações do Comandante Mao Tsé-Tung".

A Mística, o Nada e a Justificação

     Há algo na linguagem sobre a fé que consta na tradição luterana, e que surge da influência que o misticismo alemão exerceu sobre essa tradição, que é algo maravilhoso. Assim se diz que a "fé é nada", e é por esse processo de nadificação do homem que ele pode receber sobre si a justiça de Deus, que é "iustitia aliena" (justiça de outro), não justiça própria. Assim se nega que o ato da fé seja computado meritoriamente para a salvação, mesmo que seja o maior dos atos morais entre os homens no curso da história - e mesmo nessa esteira Calvino nega algo que certos escolásticos diziam, ou seja, que a fé é uma conjectura moral (suficiente para a salvação). Por isso a fé é o nada no qual Deus faz algo, pois Deus salva o homem, fazendo-o nova criatura tal como Deus fez no ato da criação, criando o mundo ex nihilo (a partir do nada). A fé é o meio da recepção da graça, e sua presença na realização da justificação é uma presença absolutamente passiva como canal pelo qual a graça flui para o pecador. Aqui se compreende bem melhor o que seria a justificação em sua linguagem correta na ortodoxia protestante: a justificação é pela graça, mediante a fé e não apenas "pela fé". Assim nem o ato de crer é computado, pois não é a "fé" que justifica, mas apenas a graça de Deus que nos outorga a justificação, pois ao fim e ao cabo Deus nos salva apenas por amor a Cristo.

Oramos o que Cremos

    Oramos somente aquilo que nós cremos; e se oramos, é Deus quem criou essa possibilidade para nós, iniciando em nós o ato da oração quando ele mesmo nos ensinou a orar.

E assim cremos:
1) Se oramos "santificado seja o Seu Nome" é porque não está em nosso poder santificar o Seu nome.
2) Se oramos "venha a nós o Teu Reino" é porque não está em nosso poder materializar esse Reino.
3) Se oramos "seja feita a Tua vontade" é porque não temos poder para que ela seja feita, seja na terra ou nos céus.
4) Se oramos "dá-nos o pão de cada dia" é porque não garantimos a sua vinda, seja do pão terreno, seja do pão dos céus.
5) Se oramos "perdoa as nossas ofensas" é porque em última instância, estar isento de pecados é graça do Senhor.
6) Se oramos "não nos deixe cair na tentação" que destrói a fé, é porque é Deus quem pode sustenta a nossa fé até o fim.
    É Deus, e somente Deus, quem pode tornar realidade aquilo que ele nos ensinou, em Cristo, a Sua Palavra, a buscarmos em oração.

A Operação das Naturezas de Cristo e a Comunicação Idiomática

Em 1 Co 10.1-5 se diz que todos os israelitas no deserto beberam da mesma pedra espiritual que era Cristo, muito embora nem todos tivessem mesclado a esse ato a fé, daí que foram prostrados no deserto. Pois bem, se a "bebida" e a "comida espiritual" no deserto são predicadas pelo Apóstolo como sendo de Cristo, ou melhor: identificadas como o próprio Cristo, obviamente que ninguém ali bebeu ou comeu a natureza humana de Cristo, posto que nem havia havido à época qualquer encarnação, muito embora o apóstolo possa tomar a liberdade de assim dizer, já que as operações (energias) de ambas as naturezas divina e humana são atribuídas a uma pessoa só. Nesse sentido pode-se dizer que Deus deu a sua carne e seu sangue aos israelitas enquanto deu a eles a operação da salvação em uma época em que nem havia encarnação, pois se a natureza divina é onipresente, o Verbo de Deus se encontra em todos os momentos da criação. Da mesma forma, afirmamos que Deus morreu na cruz, mesmo que a morte seja impossível à natureza divina; no entanto assim falamos porque predicamos as operações da natureza humana, como o morrer, da pessoa de Cristo em quem se encontram unidas as naturezas divina e humana. Podemos, enfim, dizer que onde está a presença do Verbo eterno ali está, concretamente, a pessoa de Cristo, e podemos atribuir à pessoa as operações de ambas as naturezas, e tomar uma operação característica de uma natureza pelos atos da pessoa toda como se fosse realizada pela outra natureza; assim, se há presença espiritual de Cristo e dali fruímos de sua presença salvífica, comemos a carne e bebemos o sangue de Cristo no mesmo sentido de que falamos que "Deus nasceu" ou de que "Deus morreu na Cruz".

Os Bacantes e os Portadores das Insígnias

    Me lembro de um dito de Platão que muito me impressionou porque havia nele uma carga de percepção religiosa bem poderosa. O dito era exatamente este: "Muitos são os que portam as insígnias, mas poucos são os bacantes".

    Em sentido estrito, a ideia era a de que muitos participavam exteriormente do mistério dionisíaco, mas poucos eram os que participavam do seu sentido religioso.
    Se referindo ao Antigo Testamento Paulo dizia: "Nem todos os que são de Israel são de fato israelistas" (Rm 9.6), ou: "Porque o judeu não o é o que é exteriormente, e nem a circuncisão a que é feita exteriormente na carne" (Rm 2.28).
    Em sentido idêntico podemos dizer: "não é verdadeiro cristão aquele que porta os sinais exteriores da fé - os sacramentos -, mas aquele que os validam na fé e no coração". Pois muitos até podem portar os sinais, mas nem por isso todos portam a coisa significada.

Os Costumes dos Povos e a Fonte do Direito

    O Livro I, Título II § 9 das Institutas de Justiniano contém um princípio importante do direito que chamamos de "consagração pelo uso" cuja fonte é o "acordo tácito", constituindo as "normas não escritas". O § (parágrafo) diz o seguinte: "O direito não escrito é aquele ao qual o uso conferiu comprovação. Com efeito, os costumes (mores) diuturnos comprovados graças ao consenso dos seus praticantes têm validade igual à da lei".

    É profundamente interessante notar que o direito romano possui uma percepção importante sobre aquilo que chamamos de "fonte dos direitos", sendo este constituído tanto da reflexão dos jurisconsultos, da vontade dos magistrados como do costume geral dos povos, e particular das cidades, criando instituições e gerando obrigações.

    Logo se vê com isso que o direito não é algo frio e exato como as arestas de um cubo, mas tal como é próprio das coisas humanas, nasce da reflexão exercida no fluxo da história, em meio à tradição dos povos, no turbilhão dos embates políticos e mesmo religiosos.

    Tendo isso vista, as leis estão estreitamente ligadas ao costume das gentes, e como disse um filósofo, "a moral (não no sentido moralista, mas no sentido do costume corrente) é a substância da sociedade", e isso significa que é do espírito do povo (folkgeist) que as instituições nascem, logo, se o espírito do povo for degradado, sua constituição política também o será.

O Amor e a Santidade

    Hoje de manhã, como às vezes eu faço, tirei uma foto do meu filho e mandei para a minha mãe. E ao ver meu filho tive aquela experiência que nos é comum e que consiste em ser tocado por aquela afecção de amor, afecção que envolve também um certo sentimento de temor, temor quanto à possibilidade de que algum mal toque aquilo que amamos. Isso me conduziu a orar por ele e pedir a Deus que o guardasse.

    O que isso quer dizer propriamente? Algo bem óbvio, mas não menos importante e também fundamental: o amor santifica e nos santifica porque nos leva a buscar algo que é maior do que nós mesmos para garantir um bem do qual muitas vezes temos a certeza de que não somos tão capazes, como o de realizar perfeitamente o bem em favor daquele a quem amamos.

    E sim, a santidade é também o constitutivo fundamental do amor porque ela toca as cordas mais profundas do nosso coração, sendo, por tanto, a expressão mais profunda e visceral da nossa humanidade, na busca de algo acima de nós em favor do bem de tudo o que está ao redor de nós, envolvendo também a possibilidade do sacrifício. Ou seja: o amor nos eleva direção ao amor a Deus e daquele que nos é próximo*. ___________________________________________________

*Texto escrito em 24/08/2021