segunda-feira, 18 de outubro de 2021

As Setenta Resoluções de Jonathan Edwards: 6ª Resolução

6ª Resolução: Resolvi que enquanto estiver vivo, viverei com todas as minhas forçar.

O distintivo da fé cristã está na afirmação de que a vida é um bem e, como um bem, toda vida vale a pena ser vivida. Assim, viver e existir é melhor do que não viver e não existir. Mesmo ao lado das considerações sobre a má fortuna dos homens, do pecado e dos males aí decorrentes, ainda assim o brilho da vida supera toda escuridão do inferno. Assim é porque a realidade de ser, o fato de as coisas existirem, possuem certa semelhança com Deus, já que Deus, que é a melhor coisa que há em toda realidade, existe, mesmo que sua existência seja infinitamente superior à nossa existência. Contudo, temos a nossa vida em analogia à vida de Deus, e isso já é mais do que todas as coisas. Podemos dizer que uma folha seca deitada na areia do deserto é infinitamente melhor do que o nada.

    Sob esse ponto de vista podemos entrever o valor supremo da nossa vida. Ela, tanto quanto o tempo mencionado na última resolução, são bens reais - mesmo fazendo a distinção que o tempo seja hoje, para nós, o modo de ser da nossa vida. Contudo, amar a vida é realmente amar a Deus, pois é amar aquilo que ele ama. A vida é amada por Deus simplesmente porque ele escolheu que ela existisse. Odiar a vida é odiar a Deus. Obviamente que Deus não ama o pecado - que é algo contrário à vida e destrutivo a ela. Mas ama a vida daquele que Ele elegeu, mesmo odiando nesse eleito o pecado. Pois a questão fundamental é que ao término da criação Deus disse que tudo era muito bom (Gn 1.31). Ora, podemos pensar a partir daí que como Deus só pode amar o que é bom, Deus ama a vida, e como imagens de Deus devemos também amar a vida, pois como imagem de Deus é necessário que queiramos o que Deus quer, o que inclui a nossa vida - pois se ela existe existe pela vontade de Deus.

    Amar é certamente fazer o bem, e não há maior bem do que fazer daquilo que se ama a sua versão superior. Portanto, buscar tudo o que é amável, honrado, verdadeiro e bom é amar a vida, e buscar isso para a vida é viver com todas as forças. Aquele que se negligencia, desperdiçando a vida na futilidade, buscando o que é vil e torpe, despreza a si mesmo; e todo aquele que a si mesmo se despreza despreza a criação de Deus, ofendendo a Deus. Aqui essa constatação é universal e válida para todos os homens. Aqueles que se destroem, terão sua própria destruição. Nosso corpo, e o corpo do nosso próximo, é templo do Espírito Santo, e quem destrói o Templo do Espírito, Deus o destruirá (1Co 6.19). A universalidade do preceito de amar o próximo como a si mesmo, assim, implica em preservar a nós mesmos e o próximo da destruição. Isso também é viver com todas as forçar, pois inclui procurar o máximo bem do próximo e nosso próprio bem. E como refletimos no texto sobre o tempo, remir o tempo do próximo, desviando a si mesmo da futilidade, e desviar o próximo da futilidade e do mal tanto quanto possível, é também viver, pois é viver o preceito de Deus, de onde temos a regra da boa vida.

    Consideramos também pelo fato de Jesus ser absolutamente o caminho, a verdade e a vida (Jo 14.6), que buscar a melhor versão de si mesmo e a verdadeira vida é viver em Cristo, seguindo seus passos, andando em sua direção. Viver com todas as forças é, portanto, viver a mensagem do evangelho de Cristo em toda a sua altura e em toda a sua profundidade, buscando unidade com Deus o tanto quanto possível. É também seguir a Cristo e, assim sendo: é perdoar sempre que pudermos perdoar; é ter fome de justiça o quanto podemos ter; é ser puros de coração e limpos de mãos; é ser pacificador; é ser misericordioso e compassivo para com os fracos e necessitados; ser dependente de Deus; é chorar segundo o espírito de Cristo; é ser amável e dócil como Cristo, acolhendo sem revolta a sua verdade em nosso coração (Mt 5.3-9); é orar e adorar em espírito e em verdade com toda nossa mente e com todas as nossas forças (Jo 4.23); é buscar ser perfeito como o nosso Pai celestial é perfeito (Mt 5.48).

    Não há como atingir o âmago do amor à vida sem unidade com Deus, e é em virtude disso que devemos orar por esse dom, que é o de amar e desfrutar conscientemente da vida em unidade com o Pai o Filho e o Espírito Santo, que é o Deus supremo e Criador de todas as coisas.

As Setenta Resoluções de Jonathan Edwards: 5ª Resolução

5ª Resolução: Resolvi nunca perder um momento, mas aproveitar o tempo da maneira mais vantajosa que puder.

A quinta resolução tem suporte no preceito paulino de remir o tempo, como podemos encontrar em Ef 5.16 e Cl 4.5, textos que exortam o fiel a maximizar o proveito do tempo por meio do procedimento sensato e sábio, tanto em relação a si mesmo, como em relação aos que são de fora da família da fé. A ideia está em buscar esgotar toda a potencialidade da grande dádiva de Deus, que é o tempo, no bom uso segundo aquilo que é, de toda forma, bom para todos nós. A consciência em relação ao valor tempo é algo que deve estar unida à nossa espiritualidade e à forma como nos relacionamos com Deus, conosco e com o próximo.

O procedimento sensato que um cristão deve ter em relação ao tempo é coextensivo ao procedimento sensato que devemos ter em relação a todas as coisas. Mas aqui, há certas notas distintivas que podemos considerar por certo ângulo que faz nossa percepção em relação ao tempo torna-lo ainda mais valioso. A questão é que o tempo não é algo que simplesmente passa sobre nós; não se trata de uma substância, de uma coisa externa a nós como o ar que respiramos e do qual dependemos para viver; antes o tempo é a forma como as coisas são e mudam. No texto sobre a criação, de Gn 1 a 2, não se fala que Deus criou o tempo, mas sim que criou coisas temporais. A temporalidade é o modo de ser de todas as coisas, pois todas as coisas estão sujeitas a mudanças e a alterações, tendo um início e também um fim. Dizendo assim podemos considerar que o tempo, em relação a nós, é tanto a nossa própria durabilidade quando o nosso processo de mudança, ou a forma como nós somos. E considerando a Deus, podemos entender que a nossa temporalidade é o instante a instante nos quais Deus nos sustenta e sustenta todas as coisas, garantindo tanto a nossa durabilidade quanto a nossa mudança. Assim, a sustentação de Deus é o dom que nos permite a duração da nossa existência. Deus nos dá o tempo, por assim dizer, porque permite que existamos. Assim, o tempo é um dom de Deus para todos nós, algo que deve ser amado tanto quando devemos nos amar.

Mas como tudo na vida, nossos dons, habilidades e benefícios, também o tempo pode ser desperdiçado. E, como dissemos acima, o tempo é a nossa própria vida; assim, consideradas as coisas por esse ângulo, o desperdício de tempo é exatamente a mesma coisa do que o desperdício da nossa própria vida, de sorte que remir o tempo tem exatamente o mesmo significado de remir a vida. Mas de quê remir e vida? Ora, remir a vida é não desperdiça-la, não aplica-la a coisas vãs, destrutivas empobrecedoras do significado do que somos. Assim, viver a vida maximamente bem, otimizando o bom uso do nosso tempo, é amar a nós mesmos, pois é fazer da nossa vida o melhor daquilo que podemos dela fazer. Viver bem é buscar viver a melhor versão de nós mesmos, e é imperativo para a alcançarmos esse bem dar o melhor de nossas forças, sejam essas forças a força física e a intelectual. Nossa mente deve ir diligentemente em busca desse bem absoluto, que é Deus, e buscar encarnar Sua vontade uma vez que ela seja compreendida. Certamente que nada disso será possível sem a ajuda de Deus e, por tanto, sem o auxílio da sua graça, donde se impõe a nós a sua busca, seja em sua Palavra, seja na oração, na fé ou na Ceia do Senhor.

Vivemos em um mundo de desperdícios. Hoje, as redes sociais e a internet, as quais distribuíram comunicação e informação em larga escala, também soterrou muitos debaixo de uma quantidade massiva de informação e distração. Nunca hoje se teve tanta informação e entretenimento disponível; mas também nunca se teve tanta distração e tanto potencial para a perda de foco, o que provoca a desatenção paras as coisas que realmente importam. Na Parábola do Semeador (Mt 13.1-9; Mc 4.3-9; Lc 8.4-8) se diz que a semeadura que caiu no terceiro tipo de solo, o espinheiro, até chegou a nascer, mas não avançou porque os cuidados da vida impediram o devido crescimento. Trata-se da perda da atenção na multiplicidade de estímulos que impedem a concentração e foco naquilo que Deus requer de nos. Deus quer que nos concentremos nele, que é uno, e não nos vários interesses dispersivos que são múltiplos. Assim, é necessário autodisciplina para que possamos nos aplicar às coisas de Deus, sacrificando todos os outros interesses que apontam para coisas secundárias.

Remir o tempo, portanto, é se concentrar nas coisas que realmente importam, no Deus Uno que exige nossa vida e interesse por completo; por isso, remir o tempo é ir deixando de lado as coisas secundárias como coisas secundárias, e abandonar as coisas inúteis como coisas inúteis. Mas especificamente, remir o tempo é dar a honra àquilo que para nós vem primeiro, que é Deus, Cristo e a Sua Vontade; e deixar o que vem em segundo lugar como coisas que vem em segundo lugar. Seguindo essa regra buscaremos, antes de todas as coisas, O Reino de Deus e a sua Justiça. Tudo o que é secundário, embora importante, certamente por causa do amor e graça de Deus nos serão acrescentados (Mt 6.33), mas elas não estão em primeiro lugar.

A vantagem de seguir todas essas considerações é que nisso podemos alcançar o máximo do valor das nossas vidas tanto para o nosso benefício como par ao benefício para o nosso próximo. Assim, não nos perderemos em conversações inúteis, em interesses inúteis, em atos desastrosos, desperdiçando o nosso tempo e fazendo o nosso próximo desperdiçar o seu, seja corrompendo-o, seja sendo motivo de preocupação àqueles que nos amam em função do risco que corremos por causa da nossa vida desordenada.

Ser sábio é saber ordenar todas as coisas; e o mais sábio é aquele que sabe ordenar tudo em direção a Deus, o que inclui ordenar a si mesmo, remindo o tempo.

As Setenta Resoluções de Jonatan Edwards: 4ª Resolução

4ª Resolução: Resolvi nunca fazer qualquer coisa, quer por meio da alma, quer por meio do corpo, nada mais, nada menos, que não glorifique a Deus; nem ser, nem sujeitar-me a tal coisa, se puder evita-la.

    A 4ª resolução guarda um princípio de devoção fundamental, pois ilustra uma verdade que não pode jamais ser esquecida, ou seja, que o fim da nossa humanidade é estar unida a Deus. Mas o que que somos senão nosso corpo e a nossa alma? Assim se segue que homem, considerado em sua totalidade, para viver e viver bem, deve estar, em corpo e alma, unido a Deus. Nosso corpo é templo do Espírito Santo (1Co 6.19) e, como tal, só tem vida e felicidade plena se vive seguindo aquilo que ele mesmo é. Mas quanto a isso, ou seja, em relação àquilo que o homem é, a Escritura nos oferece duas definições, ou seja, que o homem é imagem de Deus (Gn 1.26), e que é o templo do Espírito Santo.

    Essas duas definições estabelecem nossa altura, nossa vocação e nossa finalidade sobrenatural. Segundo a Escritura, podemos dizer que o templo está para o corpo assim como a imagem está para alma: O corpo como habitação do Espírito inclui certamente a totalidade do homem (mente e corpo), contudo a noção de corpo se inclina mais a sinalizar a exterioridade do homem, ou seja, a sua corporalidade. E por alma, como imagem de Deus, devemos nos remeter àquilo que em nós é estritamente espiritual, pois Deus é espírito (Jo 4.24). Ora, o espírito é, por definição, algo imaterial, invisível, intangível, tal como é a nossa mente. Assim, a imagem de Deus se refere à espiritualidade do homem, algo que o diferencia dos animais e das demais coisa criadas. E uma das propriedades da espiritualidade do homem é certamente a sua vida moral, a capacidade de fazer uma distinção moral entre o bem e o mal. É por isso que tanto a noção de mérito, como de culpa e pecado são mais cabíveis ao homem, pois por ser um ser espiritual tem responsabilidades diante de Deus e do próximo que os animais e as pedras não possuem.

    Assim, cumprir sua finalidade como templo do Espírito e como Imagem de Deus é buscar, pelo corpo e pela razão, aquilo que glorifica a Deus. Essa finalidade é, de alma e corpo, fisicamente e espiritualmente, viver em Deus e goza-lo eternamente; pois se somos imagem de Deus, aquilo que pode nos trazer o verdadeiro prazer e felicidade só pode ser aquilo que a Deus agrada e aquilo que O satisfaz, tal como andar em justiça, santidade, amando a Deus e o próximo. O homem deve discernir isso e se esforçar por cumprir com esse fim. Por isso o empenho esforçado por buscar a Deus e ao seu agrado, no corpo e na razão, só podem constituir a felicidade para o homem - algo que se encaixa perfeitamente na definição da 1ª Resolução, que fala, entre outras coisas, do empenho na busca pelo próprio bem.

    Corpo e alma se empenham nesse fim religioso - no bom sentido da ideia de religião -, e fazer da mente e do coração receptáculos da presença de Deus e o nosso corpo como um meio santificado de manifestação da glória de Deus é atingir a nossa finalidade, pois nisso está a unidade entre Deus e o homem desejada por Jesus em sua oração sacerdotal (Jo 17). Com isso em mente, é correto o juízo que afirma que estar abaixo desse propósito é algo que nomeamos negativamente por sujeição. O homem que destrói em si a finalidade de viver segundo a imagem de Deus está abaixo da sua vocação. A degradação do homem é ele destruir em si a imagem divina, depreda-la ou demoli-la por causa do pecado. Assim, o homem que desaba dentro de si por causa do pecado, ou do vício reiterado, está abaixo de si mesmo, deformado em seu espírito, destruído no templo que é seu corpo. Por isso o cuidado de si está no cuidado do nosso corpo e do nosso espírito, na vigilância em relação ao nosso corpo e em relação aos nossos pensamentos.

    Sabemos que a maldade do pecado não está na consideração moralista de que alguém faz algo errado quando peca. Antes de tudo a maldade do pecado está no fato de que realmente o homem se destrói, se degrada e se rebaixa para ser menos do que aquilo que ele é quando pratica o ato pecaminoso. O ato pecaminoso trata-se de uma violência e de um abuso que o homem comete contra si, quando usa ilicitamente de sua mente ou de seu corpo na busca de prazeres ou na busca pela obtenção de algum ganho ilícito. O homem que assim age entra em trevas na sua mente e macula o seu corpo. Quem assim age não deseja o melhor para si; quer muito pouco, para falar a verdade, e anda à busca de prazeres mesquinhos porque ainda não conseguiu se erguer da multidão dos prazeres pequenos em direção à contemplação da face gloriosa de Deus, lá onde está todo prazer e felicidade do homem.

    Assim, para a nossa felicidade, vivamos para glória de Deus.

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

As Setenta Resoluções de Jonathan Edwards: 3ª Resolução

3ª Resolução: Resolvi que se eu cair e me tornar insensível, de forma a negligenciar qualquer parte destas Resoluções, arrepender-me-ei de todas as coisas das quais puder me lembrar quando recobrar a lucidez.

    Esta terceira resolução possui tanto uma confissão de falta quanto uma confissão de esperança, coisas essas que podemos usar aqui de ocasião para traçar duas características fundamentais da vida do homem considerado no contexto da fé.

    A primeira características fundamental da vida do homem considerado à luz da fé expressa pela primeira confissão diz respeito à possibilidade da queda na insensibilidade e na negligência. Tal possibilidade espreita o horizonte de considerações que Jonathan Edwards faz sobre si mesmo. Essa possibilidade de cair é inerente à nossa natureza em função da defecção (defeito da natureza) contraída pela humanidade na Queda adâmica. Percebamos a extrema relevância dessa consideração: toda caminhada espiritual visa tanto a incondicionalidade do mandamento divino quanto o nosso empenho em estar à altura do mandamento. Quando, porém, olhamos para a incondicionalidade do mandamento, incondicionalidade que não faz concessões, e consideramos a nós mesmos pelo ângulo da nossa pecaminosidade, vemos a distância infinita que nos separa da observância total do mandamento divino. Vemos em nós certo estado atual de defecção que nos impede amar tanto a Deus como o nosso próximo com todas as nossas forças. Somos tomados pela exclamação do Apóstolo: quem poderá me livrar desse corpo de morte? (Rm 7.24).

    A sensibilidade apresentada nessa 3ª resolução a respeito da defecção que nos impede de sermos perfeitos é importante, pois demonstra a humildade do homem que conhece a si mesmo. Quando temos consciência dos limites que nos indicam tanto o que podemos quanto o que não podemos, já avançamos muito em nossa vida espiritual, pois nisto já alcançamos certa verdade. Também esse tipo de consciência nos livra da arrogância ao tratarmos os pecados e defecções do nosso próximo, indicando, sobretudo, o caminho da paciência, longanimidade e da compaixão, pois também, por causa do nosso pecado, precisamos de que tenha por nós paciência, longanimidade e compaixão.

    A segunda características fundamental da vida do homem considerado à luz da fé expressa uma razão de esperança, e esta só pode ser visualizada a partir da graça. Falamos da possibilidade da conversão e arrependimento, possibilidade cuja realidade é algo criado por Deus, não tendo origem de forma alguma na natureza humana. Entendemos: o homem em queda está destituído da glória e é carente de qualquer poder para se voltar para Deus, já que sua natureza e sua vontade são viciadas e caídas. Contudo é só a intervenção e a regeneração divina operada em nós que pode nos conceder homem arrependimento e mudança de mente, a μετανοια (metanóia = mudança de mente) pela qual recobramos a razão para nos voltarmos a Deus.

    Que o arrependimento é dom de Deus, disso testemunha a Escritura: Pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus (Ef 2.8); Justificados, pois, pela fé, temos paz com Deus, por meio do nosso Senhor Jesus Cristo, por intermédio de quem obtivemos pleno acesso pela fé a esta graça na qual agora estamos firmados, e nos gloriamos na confiança plena da glória de Deus (Rm 5.1,2); Portanto, se Deus lhes concedeu o mesmo Dom que dera igualmente a nós, ao crermos no Senhor Jesus Cristo, quem era eu, para pensar em contrariar a Deus?” Diante do que fora exposto, ninguém apresentou qualquer outra objeção e passaram a glorificar a Deus, exclamando: “Sendo assim, Deus concedeu até mesmo aos gentios o arrependimento para a vida! (At 11.17,18).

    O que podemos apreender aqui é que a tensão entre a consciência de pecado e a graça redentora que nos conduz ao arrependimento e à salvação, constituem a nossa caminhada cristã. A graça nos abre um caminho em direção ao paraíso, nos concede mesmo vislumbres de raios fulgurantes dessa eternidade, e tudo isso no contexto da consciência da nossa defecção, defecção essa contra a qual Deus nos concede poder para lutarmos contra o pecado e corrermos em direção à santidade. Assim, mesmo que nos tornemos insensíveis durante o caminho, Deus é poderoso para nos conduzir ao arrependimento, e é unicamente pelo arrependimento - graça de Deus - que temos acesso à concretização em nós da benção da salvação.

    Assim entendemos que esta resolução nada é sem a luz da graça.

    Oremos sempre para que o Senhor derrame sobre nós arrependimento, sensibilidade e graça.

As Setenta Resoluções de Jonathan Edwards: 2ª Resolução

2ª Resolução: Resolvi me esforçar continuamente para descobrir novas formas e ideias par favorecer as coisas supracitadas.

    A segunda resolução parece ser um simples reforço da 1ª Resolução, a qual vale a citação aqui: Resolvi que farei tudo o que considerar ser mais importante para a glória de Deus e para o meu bem, ganho e prazer, por todo tempo que eu viver, sem levar em conta quando, quer seja agora ou num mundo futuro muito distante. Resolvi fazer tudo que eu pensar ser o meu dever, principalmente para o bem e proveito da humanidade em geral. Resolvi fazer isso, sejam quais forem as dificuldades que eu encontre, ainda que muitas e grandes.

    Jonathan Edwars, contudo, acrescenta ao propósito o esforço criativo. É importante mencionar isso afim de evitar que as resolução pareçam aquilo que não são: regras fixas que visam apenas levar adiante certo comportamento também fixo, pois é necessário nos livrarmos de qualquer automatismo - ou seja, de comportamentos repetitivos que visam um mero ritualismo sem coração. O princípio da criatividade está aqui para imprimir às resoluções tanto uma coloração viva como também uma felicidade.

    A criatividade presente demarca também a presença de certo interesse empenhado em descobrir sempre formas agradáveis de promover a glória de Deus, o próprio bem segundo a medida de Deus e o bem do próximo naquilo que a ele for mais proveitoso. Esse é o desafio no caminho do desenvolvimento da nossa espiritualidade, pois sendo a espiritualidade devoção a Deus ela deve possuir todas aquelas notas que honram a Deus e o caminho por Ele proposto a cada um de nós.

    É necessário sempre ter em mente que a plenitude da vida, da felicidade etc. são realidades que só podem ser buscadas e alcançadas neste caminho, o que nos leva a encarar o fato de que toda e qualquer noção banalidade, tédio, mediocridade etc. devem ser excluídas da essência da nossa vida espiritual se, de fato, nos propomos a correr o caminho mais feliz que nos foi doado em Cristo o Senhor. A criatividade emprenhada, nesse sentido, é consciente de que dar toda nossa vida a serviço a Deus é pouca coisa diante dos bens de Deus; trata-se de uma honra prestada na doação total das nossas capacidades físicas e intelectuais para a maior glória do Senhor.

    Com tudo isso, o empenho criativo na busca por descobrir todas as melhores formas de servir a Deus deve ser um traço determinante do nosso modo de viver para Deus. Isso é o sinal do amor vivido pela fé pela qual tanto Deus é agradável a nós, como somos agradáveis a Deus.

O Espírito Santo e o Batismo com Fogo

    Há uma certa reserva existente contra a interpretação pentecostal da afirmação de João Batista (Mt 3.11) sobre o "batismo com Espírito Santo e com fogo". Essa reserva se deve ao fato de que a noção de "batismo de fogo" em Mt 3.11 se refere exclusivamente à condenação ao inferno, isso porque logo no vs. nº 12 João Batista diz que Jesus traz a pá na sua mão e separará o trigo da palha. Ele recolherá o trigo no seu celeiro e queimará a palha com fogo inextinguível. Neste texto, interpretar o batismo com fogo como condenação é, evidentemente, a interpretação natural.

    Contudo o texto em pauta não é exaustivo para tratar sobre a totalidade da ação do Espírito tal como nos ensina a Escritura. A teologia do Espírito na Escritura vai para além de Mt 3.11. Um dos textos que registram um modo interessante de ação do Espírito é Isaías 4.4, onde o profeta diz: "quando o Senhor lavar a podridão das filhas de Sião e limpar, desde dentro, Jerusalém do sangue, com Espírito de Juízo e com Espírito Purificador". Aqui a última designação do Espírito como "purificador" tem a ver, segundo os textos mais antigos, com fogo.
    O original hebraico (BHS), assim como a versão dos Setenta (LXX), relacionam o Espírito na sua última ação em Is 4.4 com o fogo: na bíblia hebraica o termo usado para a última designação do Espírito no vs. 4 é בָּעֵֽר (ba'er) que significa acender, queimar ou incendiar. Em específico a última expressão do versículo é וּבְר֥וּחַ בָּעֵֽר (uveruha ba'er), ou, e com espírito que queima, ou "que acende". Na versão dos Setenta a expressão é πνευματι καυσεως (pneumáti kauseõs) que significa algo como "espírito de queima". Pneumati vem de πνευμα, ou "espírito"; kauseos vem de καυσις, que é tanto queimar como causticar - donde temos a origem do adjetivo "cáustico" que usamos para designar, por exemplo, a "soda cáustica".
    Com todas essas coisas consideradas, fica claro que a ação da queima, como sugere o contexto de Isaías 4.2-6, é uma ação do Espírito que visa a purificação da cidade de Sião e também das filhas de Sião. É por isso que a Almeida Revista e Atualizada sugere, não de modo impróprio, que o Espírito aqui é Espírito Purificador. A TEB traduz essa parte do texto como sopro de incêndio, e a NVI como espírito de fogo. É certo que essa ação do Espírito abrange não só a cidade de Jerusalém, mas também as filhas de Sião, para que não sobre dúvidas quanto a consideração errônea de que uma ação de queima por parte do Espírito implica apenas o juízo destruidor contra inimigos, excluindo a noção de purificação daqueles que sofrem essa ação incendiária.
    Teologicamente, é mais do que óbvio que no Antigo e Novo Testamentos a noção de fogo relacionada à ação de Deus não sugere apenas destruição, como em 2Ts 1.7, 8 onde a vingança contra o ímpio no Segundo Advento é relacionada com a labareda de fogo, mas também a certa ação benéfica e mesmo santificadora, como no dia de Pentecostes (At 2.3) onde as línguas de fogo não destruíram os discípulos, mas os plenificaram com a presença poderosa do Senhor. E se realmente Mt 3.11 sugere que o batismo de fogo indica a queima da palha em juízo eterno, não é errado dizer que há certo batismo de fogo que seja, para nós, uma ação santificadora do Espírito em nosso favor.
    Venha e nos santifique, Espírito do Senhor!

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Comentário a Isaías 4.2-6: (בְּר֥וּחַ מִשְׁפָּ֖ט וּבְר֥וּחַ בָּעֵֽר) O Espírito de Juízo, Espírito Purificador e a Criação da Glória

Texto de Isaías 4.2-6:

2 בַּיֹּ֣ום הַה֗וּא יִֽהְיֶה֙ צֶ֣מַח יְהוָ֔ה לִצְבִ֖י וּלְכָבֹ֑וד וּפְרִ֤י הָאָ֨רֶץ֙ לְגָאֹ֣ון וּלְתִפְאֶ֔רֶת לִפְלֵיטַ֖ת יִשְׂרָאֵֽל׃
3 וְהָיָ֣ה׀ הַנִּשְׁאָ֣ר בְּצִיֹּ֗ון וְהַנּוֹתָר֙ בִּיר֣וּשָׁלִַ֔ם קָדֹ֖ושׁ יֵאָ֣מֶר לֹ֑ו כָּל־הַכָּת֥וּב לַחַיִּ֖ים בִּירוּשָׁלִָֽם׃
4 אִ֣ם׀ רָחַ֣ץ אֲדֹנָ֗י אֵת צֹאַ֣ת בְּנוֹת־צִיֹּ֔ון וְאֶת־דְּמֵ֥י יְרוּשָׁלִַ֖ם יָדִ֣יחַ מִקִּרְבָּ֑הּ בְּר֥וּחַ מִשְׁפָּ֖ט וּבְר֥וּחַ בָּעֵֽר׃
5 וּבָרָ֣א יְהוָ֡ה עַל֩ כָּל־מְכֹ֨ון הַר־צִיֹּ֜ון וְעַל־מִקְרָאֶ֗הָ עָנָ֤ן׀ יוֹמָם֙ וְעָשָׁ֔ן וְנֹ֛גַהּ אֵ֥שׁ לֶהָבָ֖ה לָ֑יְלָה כִּ֥י עַל־כָּל־כָּבֹ֖וד חֻפָּֽה׃
6 וְסֻכָּ֛ה תִּהְיֶ֥ה לְצֵל־יוֹמָ֖ם מֵחֹ֑רֶב וּלְמַחְסֶה֙ וּלְמִסְתֹּ֔ור מִזֶּ֖רֶם וּמִמָּטָֽר׃ פ

Tradução e Comentário: 

2)

בַּיֹּ֣ום הַה֗וּא יִֽהְיֶה֙ צֶ֣מַח יְהוָ֔ה לִצְבִ֖י וּלְכָבֹ֑וד וּפְרִ֤י הָאָ֨רֶץ֙ לְגָאֹ֣ון וּלְתִפְאֶ֔רֶת לִפְלֵיטַ֖ת יִשְׂרָאֵֽל׃

    Naquele dia o Renovo do Senhor será como ornato e glória; e o fruto da terra como orgulho e esplendor para aqueles em Israel que receberem o livramento.

    Essa parte não é o início de uma nova profecia. É a mesma profecia que continua desde 2.1 no geral, e especificamente é o prolongamento da perícope que vai de 3.16 a 4.6. O texto aqui se refere ao processo que sucede o terrível juízo sobre as filhas de Sião. Após o abatimento e o despojamento dessas mulheres, da humilhação extrema, um tipo de disposição radicalmente oposta àquela que é visto, contrária àquela percebidas nessas mulheres em seu auge. Toda segurança e luxo são incinerados pelo fogo dos acontecimentos, a altivez dá espaço para a petição desesperada: sete mulheres agarram um homem e pedem apenas para serem chamadas pelo nome dele. Não são mulheres no auge de sua beleza; são mulheres destituídas das vestes caras, feridas na sua pele e vestidas com roupas de penitência. Podemos traçar um paralelo soteriologico aqui: as mulheres no extremo da carestia, sem beleza para atrair qualquer atenção, são como nós, que na nossa degradação nada temos para oferecer a Deus, somos resgatados com amor gratuito pelo nosso Salvador. O paralelo é pertinente porque todo o contexto sugere uma regeneração salvadora de Israel.

    A mensagem sobre o renovo (צֶ֣מַח) não é incomum na profecia isaiânica. Renovo é aquele broto que surge de um tronco, o restante de uma árvore decepada. Esse Renovo, o restante daqueles que sobreviverem à sega do juízo, é visto como glória (כָּבוֺד); também o fruto da terra (פְרִ֤י הָאָ֨רֶץ֙) é esplendor (תִפְאֶ֔רֶת). Aqui é o fruto da terra o esplendor, não como em 3.18 onde os ornamatos das vertes e adereços eram o esplendor, esplendor esse destruído por vontade de YHWH. Aqui o Renovo, a regeneração é o verdadeiro ornamento, e aquilo que é realmente útil. Também o fruto da terra é verdadeiro orgulho, visto ser graça e criação de Deus. Não temos como não nos lembrar de 1Pe 3.3-4: O enfeite delas não seja o exterior, no frisado dos cabelos, no uso de jóias de ouro, na compostura dos vestidos. Mas a pessoa encoberta no coração; no incorruptível traje de um espírito manso e quieto, que é precioso diante de Deus. Assim seria a glória de Israel, não aquela baseada em uma glória visível e perecível, mas aquela baseada na virtude invisível e imperecível. Esse será o esplendor glorioso para aqueles que receberem o livramento da devastação.  

3, 4)

וְהָיָ֣ה׀ הַנִּשְׁאָ֣ר בְּצִיֹּ֗ון וְהַנּוֹתָר֙ בִּיר֣וּשָׁלִַ֔ם קָדֹ֖ושׁ יֵאָ֣מֶר לֹ֑ו כָּל־הַכָּת֥וּב לַחַיִּ֖ים בִּירוּשָׁלִָֽם׃
אִ֣ם׀ רָחַ֣ץ אֲדֹנָ֗י אֵת צֹאַ֣ת בְּנוֹת־צִיֹּ֔ון וְאֶת־דְּמֵ֥י יְרוּשָׁלִַ֖ם יָדִ֣יחַ מִקִּרְבָּ֑הּ בְּר֥וּחַ מִשְׁפָּ֖ט וּבְר֥וּחַ בָּעֵֽר׃

    E será que do remanescente de Sião e do restante em Jerusalém será dito: santo! Todos os que estão inscritos para a vida. Quando 'Adonay lavar o excremento das filhas de Sião e enxaguar os sangues de Jerusalém desde o interior delas com Espírito de Justiça e com Espírito purificador.

    Isaías segue falando de um contexto de purificação mediante um juízo sobre a casa de Israel. E de todo aquele que sobreviver em Jerusalém será chamado santo (קָדֹ֖ושׁ); aqueles que estão inscritos para a vida. Aqui não temos como ignorar que a sobrevivência está relacionada à inscrição para a vida (כָּל־הַכָּת֥וּב לַחַיִּ֖ים) e depende de modo absoluto dela. Temos em mente com isso a teologia da determinação absoluta por parte de Deus a respeito dos contingentes futuros; pois quem são os salvos senão aqueles designados pela vontade absoluta de Deus? A realidade da salvação é contingente quando nos referimos ao homem, pois o homem pode ser salvo e também pode não ser salvo - mas em um caso ou n'outro, ele ainda é homem. A salvação é acidental ao homem e, portanto, contingente. É na dependência da determinação de Deus que o homem pode ser salvo, já que é a Deus a quem pertence a determinação dos contingentes futuros de todas as coisas, incluindo a salvação. Dizemos que a eleição divina é a única preparação eficaz para a graça salvadora, o que inclui a graça santificadora. Assim, o remanescente, os eleitos por vontade divina, os inscritos para a vida serão chamados santos; mas além de santo será igualmente santificado.

    No dia do Renovo 'Adonay (אֲדֹנָ֗י) lavará os excrementos das filhas de Sião e também enxugará os sangues de Jerusalém (דְּמֵ֥י יְרוּשָׁלִַ֖ם) desde o interior dela com Espírito de Julgamento (בְּר֥וּחַ מִשְׁפָּ֖ט) e com Espírito Calcinador (וּבְר֥וּחַ בָּעֵֽר) ou Espírito de Purificação pelo fogo. O juízo e a purificação mediante calcinação são analogias interessantes, tanto como o lavar a imundice quanto o enxugar o sangue. No novo Testamento essas são analogias usadas para a purificação e regeneração operadas pelo Espírito Santo no interior do cristão (Mt 3.11; Tt 3.5), mas aqui se subentende também um batismo de extremo sofrimento, uma purificação mediante a aplicação de um juízo consumidor e de um fogo calcinador. Entendemos que esse é o procedimento divino na aplicação de um duro juízo (ou disciplina) que extirpará as impurezas e os crimes de sangue de Israel/Jerusalém. Esse é um maravilhoso testemunho a respeito da pneumatologia do Antigo Testamento.

5, 6)

וּבָרָ֣א יְהוָ֡ה עַל֩ כָּל־מְכֹ֨ון הַר־צִיֹּ֜ון וְעַל־מִקְרָאֶ֗הָ עָנָ֤ן׀ יוֹמָם֙ וְעָשָׁ֔ן וְנֹ֛גַהּ אֵ֥שׁ לֶהָבָ֖ה לָ֑יְלָה כִּ֥י עַל־כָּל־כָּבֹ֖וד חֻפָּֽה׃
וְסֻכָּ֛ה תִּהְיֶ֥ה לְצֵל־יוֹמָ֖ם מֵחֹ֑רֶב וּלְמַחְסֶה֙ וּלְמִסְתֹּ֔ור מִזֶּ֖רֶם וּמִמָּטָֽר׃ פ

E o Senhor criará sobre todo o lugar do Monte Sião e sobre todas as suas convocações solenes uma nuvem de dia e fumaça e brilho de fogo à noite, porque sobre tudo se estenderá um véu de glória, servindo como área coberta e como sombra de dia por causa do calor e como refúgio e esconderijo de noite contra a chuva torrencial.

    A ação regeneradora torna apta a manifestação da glória divina (כָּבֹ֖וד). Há muito o que ser explorado nessa compreensão do Antigo Testamento a respeito da presença manifesta de Deus mediante certas intervenções visíveis. A passagem obviamente guarda um paralelo com o evento paradigmático do Êxodo, o qual continua a ser para Israel um momento privilegiado onde a Eternidade de Deus toca o Tempo de uma forma singular. É importante pensar nessa predição isaiânica no contexto de um pós-juízo purificador. Por assim dizer a aflição, a penitência radical, antecedem a manifestação da glória pois tornam o homem apto para uma relação com Deus. Estamos aqui no desfecho de uma profecia que se estende desde 2.1, onde nos últimos dias a Casa do Senhor se estabelecerá no alto do monte Sião. Aqui, após a reviravolta divina, após o terrível juízo purificado aplicado aos líderes de Judá/Jerusalém, aos idólatras, à nulidade das filhas de Sião, inaugura-se o novo αιων.

    A linguagem no início do vs.5 se refere a uma ação que pertence exclusivamente a Deus. Quando o profeta afirma que o Senhor criará ele usa o verbo בָּרָא que significa criar ou criará. Não existe nenhuma ação humana no Antigo Testamento designada como בָּרָא. Essa ação é exclusivamente reservada à designação do ato criativo de Deus. Assim a criação da fumaça, da nuvem e do fogo nos remetem aos sinais da presença divina no Êxodo (Ex 13.21, 22). E sobre toda assembleia solene o sinal da presença seria criado, seja no fogo, seja na nuvem. A glória de Deus cobriria visivelmente a Israel como um véu (חֻפָּֽה), servindo de proteção contra o calor do dia e de refúgio noturno contra a tempestade. A noção de que a glória de Deus protegerá a Israel é evidente. Assim o sinal da glória é o sinal do favor e, por isso, da reconciliação com Deus ao cabo da aplicação do juízo purificador.

Essa é a profecia dos últimos dias.

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

A Autodepreciação é Pecado

    Uma das vantagens de conhecer teologia é que há certa libertação quando estudamos alguns atributos de Deus. Sim, o conhecimento de Deus não é inócuo, já que, se bem aproveitado, é possível pela teologia corrigir hábitos mentais viciosos a exemplo do vício da autodepreciação.

    A autodepreciação não é a inculpação justa do penitente que confessa seu pecado - pois quem faz isso se ama -, antes é o vício pelo qual o homem nutre ódio a si mesmo, das suas capacidades, como um dessabor amargo pela vida. Tudo isso entendemos por dedução, tendo o Ser de Deus considerado como tela de fundo, projetando a realidade de suas perfeições sobre a atitude do homem que busca a demolição de si mesmo.

    Entendamos: Deus é aquele único que é capaz por si mesmo de amar plenamente o homem. Também, sendo Deus amor, não pode amar qualquer coisa mais do que a si mesmo (pois Deus é pleno de todas as perfeições), e ama a Si mesmo absolutamente unicamente porque quer seu Ser absolutamente - nada pode querer a si mesmo mais do que Deus quer seu Ser. Portanto Deus ama, e sendo o mais pleno no amor aos outros, é também ao mesmo tempo o mais pleno no amor a si mesmo.

    Mesmo que pelo ângulo da humanidade isso não ocorra de forma idêntica, ocorre de forma semelhante: o homem só não quer seu ser atual pecaminoso porque realmente ama a si mesmo amando a Deus. Mas o amor a si mesmo é pressuposto quando o homem ama corretamente, não querendo seu pecado; se lhe é repulsivo o seu ser atual pecaminoso, em sua repulsa quer para si um bem maior, amando verdadeiramente, ou quer na sua vontade pecaminosa a própria destruição - desejando para si a redução ao nada, ou seja, o mal.

    Contudo, quando ama corretamente o homem também se ama, e só por um perfeito amor a si é que ele também é capaz de amar seu próximo, tendo como medida de perfeição de seus atos de amor a Deus. Não há quem ame seu próximo que também não ame a si mesmo, pois se ama um homem como seu igual não pode ama-lo se também não ter amor por si. Quem conscientemente odeia a Deus, odeia também todas as coisas; quem a si mesmo se odeia, odeia o homem a quem deve amar - pois todos somos os mais próximos de nós mesmos.

    Quem não ama a si não está apto também para nenhum amor.

As Setenta Resoluções de Jonathan Edwards: 1ª Resolução

    Começo uma série de 70 reflexões breves sobre as 70 firmes resoluções e Jonathan Edwards. A intenção é retirar desse patrimônio espiritual certos ensinos sobre a piedade cristã, buscando uma confrontação dessas resoluções com o texto da Escritura da Sagrada, que é o patrimônio dos patrimônios da nossa espiritualidade.

Seguem as resoluções:

1ª Resolução: Resolvi que farei tudo o que considerar ser mais importante para a glória de Deus e para o meu bem, ganho e prazer, por todo tempo que eu viver, sem levar em conta quando, quer seja agora ou num mundo futuro muito distante. Resolvi fazer tudo que eu pensar ser o meu dever, principalmente para o bem e proveito da humanidade em geral. Resolvi fazer isso, sejam quais forem as dificuldades que eu encontre, ainda que muitas e grandes.

    Edwards segue em sua reflexão a premissa de um dos famosos 5 Solas da Reforma, Sola esse acrescido pela Tradição Reformada, um pressuposto básico da reflexão teológica dessa vertente e que se constitui na seguinte ideia: a causa final de toda obra divina é a manifestação da sua própria glória. O Sola em específico é o Soli Deo Gloria. Tendo isso em vista a reta, a reta compreensão a respeito da ação visada por todo cristão é que os seus atos promovam a glória de Deus. Por assim dizer a causa final que move a ação de todo cristão, o fim último amado, é a glória de Deus e o seu agrado. Aqui está o bem do cristão, aqui é modulado o verdadeiro prazer do homem e aqui está todo o seu ganho possível.

    Aquele que glorifica a Deus é também glorificado em Deus. Diz a Escritura: Quando vier para ser glorificado nos seus santos, e para se fazer admirável naquele dia em todos os que crêem (2Ts 1.10). Esse é um desejo expresso por Deus: ser glorificado; Aqui na resolução está expresso outro desejo: glorificar a Deus. As vontades se encontram em uma unidade de propósito, e quem segue a resolução se dispõe a levar até ao fim o propósito sem levar em conta quando, quer seja agora ou num mundo futuro muito distante.

    Também na resolução se afirma: Resolvi fazer tudo que eu pensar ser o meu dever, principalmente para o bem e proveito da humanidade em geral. O propósito parece excessivo demais; contudo o que deve ser posto em mente é que o cuidado de si é de proveito para o homem, tal como a sabedoria do homem que o faz acertar em seus caminhos é de proveito geral para todos os homens. Um homem decente, bom pai ou mãe, cumpridor dos seus deveres, piedoso e temente a Deus pode fornecer um paradigma pelo qual o caminho da elevação da vida do seu próximo é indicado. Não há paradoxo algum na afirmação de que cuidar de si é também cuidar do próximo. E se levarmos em consideração o duplo preceito que é Amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo (Lc 10.27), descobrimos que o amor ao próximo passa pelo amor de si (e não é possível amar se não conhecemos em nós mesmos o amor). Deus ama perfeitamente porque ele é amor. Só o homem que cuida de si tem capacidade de cuidar do próximo - sendo aquele que assim procede alguém de proveito para a humanidade em geral.

     E a última parte da resolução: Resolvi fazer isso, sejam quais forem as dificuldades que eu encontre, ainda que muitas e grandes. Grandes são as dificuldades para amar a Deus, a si e ao próximo, já que não podemos pôr nossa defecção no olvido. Mas ainda assim a tensão da busca sincera, tensão que fica a meio caminho entre a falha e a perfeição, tensão da busca pela perfeição, tem validade. Aqui se reafirma a incondicionalidade da resolução, pois há também uma incondicionalidade de preceito: Assim sendo, sede vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai que está nos céus. (Mt 5.48). O preceito não pode ser mais, e não pode ser menos, exigindo a perfeição incondicional em todos os momentos, em todos os lugares, não importando as dificuldades. Contudo em meio a tudo olhamos para a nossa natureza quando falhamos na execução do preceito, e é por isso que em meio a tentativa, é imperioso lembrar da graça pela qual o homem é salvo, e sem a qual não há possibilidade de salvação - lembrança que carrega todos os motivos para a vida grata, confiante e que se aplica à busca da manifestação, em atos e pensamentos, do perfeito amor.

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Comentário de Isaías 3.16-4.1: (בְּנֹ֣ות צִיֹּ֔ון) O juízo sobre as filhas de Sião

Texto de Isaías 3.16-4.1:

16 וַיֹּ֣אמֶר יְהוָ֗ה יַעַן כִּ֤י גָֽבְהוּ֙ בְּנֹ֣ות צִיֹּ֔ון וַתֵּלַ֨כְנָה֙ נְטוּוֹת נְטוּיֹ֣ות גָּרֹ֔ון וּֽמְשַׂקְּרֹ֖ות עֵינָ֑יִם הָלֹ֤וךְ וְטָפֹף֙ תֵּלַ֔כְנָה וּבְרַגְלֵיהֶ֖ם תְּעַכַּֽסְנָה׃
17 וְשִׂפַּ֣ח אֲדֹנָ֔י קָדְקֹ֖ד בְּנֹ֣ות צִיֹּ֑ון וַיהוָ֖ה פָּתְהֵ֥ן יְעָרֶֽה׃ ס
18 בַּיֹּ֨ום הַה֜וּא יָסִ֣יר אֲדֹנָ֗י אֵ֣ת תִּפְאֶ֧רֶת הָעֲכָסִ֛ים וְהַשְּׁבִיסִ֖ים וְהַשַּׂהֲרֹנִֽים׃
19 הַנְּטִיפֹ֥ות וְהַשֵּׁירֹ֖ות וְהָֽרְעָלֹֽות׃
20 הַפְּאֵרִ֤ים וְהַצְּעָדוֹת֙ וְהַקִּשֻּׁרִ֔ים וּבָתֵּ֥י הַנֶּ֖פֶשׁ וְהַלְּחָשִֽׁים׃
21 הַטַּבָּעֹ֖ות וְנִזְמֵ֥י הָאָֽף׃
22 הַמַּֽחֲלָצוֹת֙ וְהַמַּ֣עֲטָפֹ֔ות וְהַמִּטְפָּחֹ֖ות וְהָחֲרִיטִֽים׃
23 וְהַגִּלְיֹנִים֙ וְהַסְּדִינִ֔ים וְהַצְּנִיפֹ֖ות וְהָרְדִידִֽים׃
24 וְהָיָה֩ תַ֨חַת בֹּ֜שֶׂם מַ֣ק יִֽהְיֶ֗ה וְתַ֨חַת חֲגוֹרָ֤ה נִקְפָּה֙ וְתַ֨חַת מַעֲשֶׂ֤ה מִקְשֶׁה֙ קָרְחָ֔ה וְתַ֥חַת פְּתִיגִ֖יל מַחֲגֹ֣רֶת שָׂ֑ק כִּי־תַ֖חַת יֹֽפִי׃
25 מְתַ֖יִךְ בַּחֶ֣רֶב יִפֹּ֑לוּ וּגְבוּרָתֵ֖ךְ בַּמִּלְחָמָֽה׃
26 וְאָנ֥וּ וְאָבְל֖וּ פְּתָחֶ֑יהָ וְנִקָּ֖תָה לָאָ֥רֶץ תֵּשֵֽׁב׃
4.1 וְהֶחֱזִיקוּ֩ שֶׁ֨בַע נָשִׁ֜ים בְּאִ֣ישׁ אֶחָ֗ד בַּיֹּ֤ום הַהוּא֙ לֵאמֹ֔ר לַחְמֵ֣נוּ נֹאכֵ֔ל וְשִׂמְלָתֵ֖נוּ נִלְבָּ֑שׁ רַ֗ק יִקָּרֵ֤א שִׁמְךָ֙ עָלֵ֔ינוּ אֱסֹ֖ף חֶרְפָּתֵֽנוּ׃ ס

Tradução e Comentário:

16, 17)

וַיֹּ֣אמֶר יְהוָ֗ה יַעַן כִּ֤י גָֽבְהוּ֙ בְּנֹ֣ות צִיֹּ֔ון וַתֵּלַ֨כְנָה֙ נְטוּוֹת נְטוּיֹ֣ות גָּרֹ֔ון וּֽמְשַׂקְּרֹ֖ות עֵינָ֑יִם הָלֹ֤וךְ וְטָפֹף֙ תֵּלַ֔כְנָה וּבְרַגְלֵיהֶ֖ם תְּעַכַּֽסְנָה׃
וְשִׂפַּ֣ח אֲדֹנָ֔י קָדְקֹ֖ד בְּנֹ֣ות צִיֹּ֑ון וַיהוָ֖ה פָּתְהֵ֥ן יְעָרֶֽה׃ ס

    E disse YHWH: Visto que são altivas as filhas de Sião são altivas e andam com o pescoço esticado, lançando um olhar sedutor, andando a passos curtos, fazendo tintilar os adereços de seus pés, o Senhor tornará em sarna a cabeça das filhas de Sião e exporá a sua nudez.

    O bloco textual em pauta forma um só texto que se estende do cap. nº2 até aqui, perfazendo todo um discurso, e há razões sobejas para pensarmos assim, como veremos mais adiante. Em 2.1-5 temos o anúncio da futura Jerusalém paradigmática cujo templo é procurado por todas as nações. De 2.6-3.15 temos tanto a descrição da corrupção do Reino do Sul quanto de Jerusalém e o juízo de 'adon - uma variante de 'adonay (אֲדֹנָ֔י) - contra o povo em geral e aos chefes do povo e anciãos em específico. Aqui, contudo, estamos diante de um juízo especificamente voltado para as mulheres, ou as filhas de Sião (בְּנֹ֣ות צִיֹּ֔ון). Esse tipo de profecia no Antigo Testamento constitui todo um gênero a parte, devendo ser considerado de forma particular - algo importante, mas que foge ao propósito deste texto.

    Nos versículos em questão o profeta apresenta os dizeres de YHWH, onde temos a descrição de duas situações: 1) A forma de vida rebelada e vazia das filhas de Sião e 2) o juízo concomitante a essa forma fútil de viver. Isaías é um tanto quanto descritivo nessa parte do texto e fala: 1) do pescoço emproado, 2) do olhar sedutor, 3) dos passos curtos, 4) e do andar cascavelante que faz tinir os adereços dos pés dessas mulheres. Obviamente a intenção do profeta é expor o modo de vida vazio das filhas de Sião, assim como o lado fescenino delas. Isaías está, desde o cap 2.6ss, às voltas com a degradação espiritual de Jerusalém e chega em uma esfera de questões que é existencialmente delicada, mas tremendamente importante. O fato de ser possível predicar esses atos das filhas de Sião, das filhas da capital do país, da nação que YHWH escolheu para ter ali seu olhos, só indica quão pouco apelo havia uma vida no espírito à época, o que explica o surgimento dessa classe de pessoas. Estamos falando de uma corrosão na vida no espírito na nação de Deus. O paradigma dos povos agora estava afogado no vazio e o sinal disso é a insolência das filhas de Sião. Mas a vocação da nação como um todo tem o seu peso e de YHWH pode se esperar a devida retaliação.

    Deus se vingará da insolência das filhas de Sião e tornará em sarna (וְשִׂפַּ֣ח) o topo da cabeça (קָדְקֹ֖ד) delas e exporá a nudez das mesmas. O fato de Isaías mencionar que tal ação será causada por אֲדֹנָ֔י indica a ligação com o textos anteriores que falam da injustiça dos anciãos e dos príncipes de Israel, quanto de um tipo de manifestação de Deus na imposição de um juízo. Estamos, digamos, no contexto um vazio espiritual que permite o livre curso sem freios da injustiça, algo que é tangível em face do comportamento vão e da importância desmensurada que se dá à futilidade. Desde o cap. 2.6ss há uma devassa geral em Israel feita pelo Senhor, e certamente com isso se visa confrontar o espírito torcido do povo que tem nas filhas de Sião um símbolo da corrosão. O juízo de אֲדֹנָ֔י não é sem um porquê, ele atinge um objeto de vaidade das mulheres que é sua beleza física, um ponto sensível no universo da feminilidade, tal como a potência e a honra são pontos sensíveis para o homem. Podemos conjecturar que a torção do espírito ocorre quando elementos supérfluos se tornam fins, guardando por trás desejos viciosos como a vontade de alimentação desproporcional da vaidade a ponto de cegar a pessoa para o que realmente importa. Todas essas predicações até caricatas que Isaías faz das filhas de Sião demonstra certa falta de grandeza por parte delas, e não uma condenação peremptória de certa vontade honesta e aceitável de beleza. O alvo da condenação, no fundo, é certa futilidade, assim como certo comportamento luxurioso nutrido em um campo que se tornou fértil para a prática da injustiça. Trata-se de um comportamento corrupto e corruptor por parte dessas mulheres, pois destrói todos os fins honestos alcançados por uma alma unida a Deus. Elas não apenas se desviam, como também desviam. Ao provocar um juízo contra a vaidade feminina atrofiada, Deus acaba por destruir um ídolo. E em relação à exposição da nudez, poderíamos indicar um juízo direto contra a sensualidade corrompida, quando Deus concede às filhas de Sião a exposição que elas, em seu coração atrevido, no fundo quiseram para si. 

18, 19 - 24)

בַּיֹּ֨ום הַה֜וּא יָסִ֣יר אֲדֹנָ֗י אֵ֣ת תִּפְאֶ֧רֶת הָעֲכָסִ֛ים וְהַשְּׁבִיסִ֖ים וְהַשַּׂהֲרֹנִֽים׃
הַנְּטִיפֹ֥ות וְהַשֵּׁירֹ֖ות וְהָֽרְעָלֹֽות׃
הַפְּאֵרִ֤ים וְהַצְּעָדוֹת֙ וְהַקִּשֻּׁרִ֔ים וּבָתֵּ֥י הַנֶּ֖פֶשׁ וְהַלְּחָשִֽׁים׃
הַטַּבָּעֹ֖ות וְנִזְמֵ֥י הָאָֽף׃
הַמַּֽחֲלָצוֹת֙ וְהַמַּ֣עֲטָפֹ֔ות וְהַמִּטְפָּחֹ֖ות וְהָחֲרִיטִֽים׃
וְהַגִּלְיֹנִים֙ וְהַסְּדִינִ֔ים וְהַצְּנִיפֹ֖ות וְהָרְדִידִֽים׃
וְהָיָה֩ תַ֨חַת בֹּ֜שֶׂם מַ֣ק יִֽהְיֶ֗ה וְתַ֨חַת חֲגוֹרָ֤ה נִקְפָּה֙ וְתַ֨חַת מַעֲשֶׂ֤ה מִקְשֶׁה֙ קָרְחָ֔ה וְתַ֥חַת פְּתִיגִ֖יל מַחֲגֹ֣רֶת שָׂ֑ק כִּי־תַ֖חַת יֹֽפִי׃

    Naquele dia Adonay removerá o esplendor dos anéis de tornozelo, as testeiras, as luetas, os brincos, os braceletes, os véus, os ornamentos, as enfeites para os tornozelos, as fitas, as caixas de perfumes, os amuletos enconchados, anéis de sinete, os pendentes de nariz, as vestes de luxo, os mantos, bolsas, vestes de papiro, roupas de linho, turbantes e mantilhas. E será que em lugar de balsamo haverá podridão; em lugar de cinto, corda; em lugar de encrespadura, calvice; em lugar de veste fina, cinta de cilício; em lugar de beleza, queimadura.

    A quebra da idolatria é visível aqui nos vs.18-4.1, pois ainda se referindo ao dia de juízo o profeta diz que naquele dia 'adonay (אֲדֹנָ֗י) removerá (יָסִ֣יר) o esplendor (תִּפְאֶ֧רֶת) tanto de adereços, brincos, roupas, mantas perfumes etc. Há várias considerações possíveis a serem feitas aqui: 1) Ao dizer que אֲדֹנָ֗י tira o esplendor dessas coisas podemos nos remeter ao cap. 2.6-22 onde se diz que naquele dia (בַּיֹּ֨ום הַה֜וּא) só YHWH seria exaltado, fazendo oposição a tudo o que se eleva. Certamente que estes adereços podem ser objeto de desejo, se tornando também certo elemento de ostentação dessas mulheres. Nada contra isso, mas do que valem diante de um coração vazio? Não se trata apenas de uma cosmética do engano; uma maquiagem para esconder o mal? Obviamente que nada disso pode escapar do fulgor da glória divina que conduz todo engano em direção ao pó. Obviamente que não há disputa entre Deus e os adereços, mas tais acessórios podem ser desviantes, ocultando a verdade e dando razão à tolice. Por um lado, no contexto da maldade, tais coisas ganham certa importância que não tem. O que fazer diante disso? Eis a resposta: Deus retirará o esplendor de todas as coisas que ganham certa consideração desmensurada, ocultando a injustiça e a maldade do coração, e estabelecerá a visão da verdadeira glória para o bem do homem, fazendo as escamas da cegueira caírem diante da tentativa de camuflagem da verdade.

    O Juízo de אֲדֹנָ֗י aqui segue o mesmo esquema do vs. 17, atacando o sustentáculo da vaidade enganosa: em lugar de balsamo haverá podridão; em lugar de cinto, corda; em lugar de encrespadura, calvice; em lugar de veste fina, cinta de cilício; em lugar de beleza, queimadura. Todo objeto usado para a camuflagem da verdade ganha uma certa subversão. O aroma agradável vira mal cheiro, os cabelos encaracolados dão lugar à calvice, a veste festiva cede seu lugar para roupas penitenciais e a beleza dá lugar à deformação. Toda superfluidade desaparece, restando uma condição de vida radical. Ao que parece, os tempos de bonança deram lugar ao tempo da guerra onde o que se contempla é a carestia, naquele tipo de dificuldade onde o homem e a mulher se encontram com a sua própria verdade, pois embora não seja uma regra absoluta é verdade que a felicidade infantiliza e o sofrimento humaniza, e a dureza do juízo só mostra que em seu zelo YHWH, mesmo não sendo injusto, pode nos conduzir ao bem, de forma radical, aqueles a quem ama - até mesmo as filhas de Sião.

É importante fazer certa consideração aqui. Quanto à questão da vaidade e de certo desejo de beleza, podemos dizer que mesmo não sendo necessários, nada aqui há de absolutamente proibitivo. Nada há no Antigo Testamento ou no Novo Testamento que sugiram uma condenação radical de perfumes, adereços etc. Mas sim, é obvio que o bom senso clama uma certa medida que impede o desequilíbrio e a morbidade. Como deve restar óbvio, um extremo está na condenação todas essas coisas, exigindo uma abstinência proibitiva que vê com desconfiança qualquer beleza, a alegria na excitação benéfica com bons cheiros, sabores etc., regozijo com a beleza das cores etc. O outro extremo, porém, está no uso desviante desse tipo de coisa, tanto no abuso que visa a sensualidade ilícita, como no exagero que mirando a beleza atinge a deformidade. No primeiro caso o constitutivo formal, a intencionalidade do uso, está viciada desde a raiz, já que o que se visa no uso é certo objeto angariado mediante fraude e engano; no segundo caso o que se consegue é a deformação da beleza conatural à pessoa através do abuso.

    Também é importante notar que uma das coisas que nos caracteriza como pessoas está em que o nosso desejo se estende para além daquilo que é meramente útil. Questões estéticas estão arraigadas em nossa natureza porque não somos simples máquinas devotadas ao cumprimento de certas funções. O prazer com os cheiros, com o paladar, cores e mesmo com o tato também constitui a nossa humanidade, e por isso considerações relativas ao gosto também importam, não podendo ser negligenciadas naquilo que nós somos sem a consequente violência contra nossa natureza. Não comemos apenas para saciar a fome, mas queremos o sabor das coisas; não queremos apenas trabalhar, mas sermos felizes no nosso trabalho; não queremos apenas respirar, mas nos sentimos felizes com o bom perfume; não queremos uma casa apenas para dormir, mas queremos habitar em um lar e embelezamos o nosso espaço para nos deleitarmos nele. Esse mais constitui a nossa humanidade, e toda a transgressão radical contra os sentidos pelos quais experimentamos essas coisas é vista como uma agressão à nossa humanidade. O desleixo, o descuido com a higiene ou a falta de asseio são vistos como coisa agressiva a todos nós; uma casa deliberadamente abandonada, descuidada e aos pedaços experimentamos como hostil; o mau-cheiro nos repugna, e a exposição constante à feiura deliberada nos diminui. Obviamente que todas essas coisas podem nos sobrevir em razão da injustiça perpetrada por outros, nos forçando à diminuição. Mas aqui a culpa não está em nós, pois não somos a razão desse estado de coisas. Também mesmo quando a arte moderna quando se desgrudou da beleza para valorizar o escatológico e a feiura, ganhou caracteres transgressores. Certamente que a alternativa à atitude das filhas de Sião não é a sujeira e nem mesmo a grosseria, mas sim um coração devotado ao bem, à justiça e às coisas que realmente importam, dando medida às coisas que, na corrupção do coração, podem vir a ser fruídas não em razão do uso, mas sim de abuso - seja na ostentação das vestes, no abuso dos cheiros e seu uso desviante etc. Como diz um ditado: o abuso não condena o uso.

25, 26, 4.1)

מְתַ֖יִךְ בַּחֶ֣רֶב יִפֹּ֑לוּ וּגְבוּרָתֵ֖ךְ בַּמִּלְחָמָֽה׃
וְאָנ֥וּ וְאָבְל֖וּ פְּתָחֶ֑יהָ וְנִקָּ֖תָה לָאָ֥רֶץ תֵּשֵֽׁב׃
וְהֶחֱזִיקוּ֩ שֶׁ֨בַע נָשִׁ֜ים בְּאִ֣ישׁ אֶחָ֗ד בַּיֹּ֤ום הַהוּא֙ לֵאמֹ֔ר לַחְמֵ֣נוּ נֹאכֵ֔ל וְשִׂמְלָתֵ֖נוּ נִלְבָּ֑שׁ רַ֗ק יִקָּרֵ֤א שִׁמְךָ֙ עָלֵ֔ינוּ אֱסֹ֖ף חֶרְפָּתֵֽנוּ׃

Teus homens cairão à espada, e teus poderosos cairão na guerra. As suas portas chorarão e se lamentarão; e, desolada, Sião se assentará na terra. E naquele dia sete mulheres agarrarão um homem, dizendo: O nosso pão comeremos, e a nossa roupa vestiremos; tão somente queremos ser chamadas pelo seu nome. Retire a nossa humilhação.

Além do amor desmensurado por coisas que são segundas, com o prejuízo das virtudes primeiras, como a piedade, a fé e o amor, o desejo de justiça, as filhas de Sião se verão desprotegidas e a mercê de um futuro incerto: Teus homens (מְתַ֖יִךְ) cairão à espada (בַּחֶ֣רֶב יִפֹּ֑לוּ) e teus poderosos (וּגְבוּרָתֵ֖ךְ) na guerra (בַּמִּלְחָמָֽה). Todo o contexto sugere que os poderosos, como os homens adultos são das mulheres em função do sufixo pronominal. Assim, esses entes em questão, por serem homens adultos e poderosos, sugere uma certa proteção que garante a vida e certa paz onde as filhas de Sião podem viver despreocupadamente. Quando esses caem à espada e na guerra uma nova situação se impõe e a insegurança e a descontinuidade passam a fazer parte do dia a dia. Assim, a condição precária dessas mulheres como que sem seus bálsamos, e o fato de serem apresentadas como sofridas de queimadura, com roupas penitenciais etc. sugere que as elas foram acometidas pela calamidade e pela matança dos homens adultos e dos poderosos - os quais pereceram em uma guerra. Também o fato de que as portas delas (פְּתָחֶ֑יהָ) se lamentarão em luto (אָנ֥וּ וְאָבְל֖וּ) assinala a aniquilação do festim supérfluo e da estabilidade, convertendo a alegria em desolação (נִקָּ֖תָה).

    No abandono e na humilhação extremada, e no contexto desesperador do desamparo, algo surpreendente ocorrerá: sete mulheres agarrarão um único homem e pedirão somente para que sejam chamadas pelo nome dele. A humilhação é terrível a ponto de nem se fazer questão do sustento de pão ou do luxo das vestes. Existe aqui uma reviravolta, pois antes confiantes na sua beleza, hoje as filhas de Sião, na desolação, só querem estar à sombra do nome de alguém. A auto confiança dá lugar aos rogos de súplica por quase nada. Confessamos ser quase impossível esse texto ser compreendido hoje, mas ele vale mais por aquilo que significa, do que aquilo que se vê em sua leitura literal. Seria ocioso discorrer, por isso, sobre a poligamia no Antigo Testamento, pois se deter sobre questões desse tipo é inútil para o entendimento do significado desta profecia. O mais importante é que em seu juízo אֲדֹנָ֗י destroçará, nessas mulheres, tudo o que se configura como vazio de espírito e vaidade mórbida; tudo o que camufla a injustiça, desviando o coração delas das coisas que realmente importam. Deus, assim, no geral, definirá diante dos olhos dos homens e mulheres o peso da sua própria glória, impedindo uns e outros de se fiarem em seu próprio mundo vão, se esquecendo que há um Deus sobre todos que quer a justiça e a beneficência acima de tudo. O juízo terrível do Senhor, por tanto, abate os exaltados e exalta os humilhados, mesmo que os exaltados a serem abatidos sejam seus próprios filhos e filhas que moram no topo do santo monte Sião.