sexta-feira, 28 de junho de 2019

O Pensamento Reformado e o Livre-Arbítrio

   A negação do livre-arbítrio nas confissões reformadas está localizada em lugares específicos, e são nessas confissões que devemos encontrar a razão dessa negação e não no nível da apologética popularesca. Além do mais Calvino fez essa negação em um nível específico, muito bem fundamentado, e que encontra respaldo em uma caudalosa tradição teológica cristã - e de modo algum isso significa que Deus tornou-se o tirano da humanidade. Isso também significa que o livre-arbítrio assim como a razão humana permanecem no nível das "causas segundas", ou seja: no nível do plano natural, abaixo do nível da graça, como tudo o mais na criação deve permanecer. Agora seria difícil um certo pessoal confessar que Tomás de Aquino identificou, literalmente, a fatalidade grega com a providência na Suma Contra os Gentios, e só por um preciosismo de nome é que ele, seguindo o conselho de Agostinho, diferenciou a Providência cristã da Fatalidade Trágica dos gregos, mantendo, não obstante, em um nível de semelhança a realidade de essência de uma coisa com outra. Mas essa "monstruosa negação do livre-arbítrio", que no pensamento reformado diz respeito ao bem sobrenatural - assim como em Tomás de Aquino e Agostinho -, e não a bem natural, foi designada como "determinismo" por gente bem pouco ilustrada e cheia de rancor contra o protestantismo. Só um tolo desprovido de estudo não sabe que essas coisas não são assim, como alguns apologetas mirins que vivem publicando por todos os lados a ignorância deles.

Schelling, Platão, o Espírito e a Realidade


 F. Schelling é quase um milagre em meio a filosofia alemã do séc. XIX. Ele cumpre funções análogas às de Platão em Atenas, pois, após a sua morte, segue-se uma era de epígonos e da degradação do pensamento. Podemos dizer que tanto em Platão como em Schelling o que vemos é a incrível história da acessão do espírito ao zênite luminoso do Absoluto seguido de uma decadência das sociedades históricas em que viviam. Platão tece a sua filosofia em meio aos estágios finais da degradação de Atenas. Schelling, vivendo no período da ascensão do império alemão, também assiste a degradação política européia e a secularização cavalar e corrosiva gerada pelo avanço dos ideais iluministas e da revolução francesa em todo seu resplendor luciferino. Ambos encontram forças de resistência na ascensão às regiões do espírito, encontrando na Ideia o ponto axial de sustentação da alma; ambos realizam o juízo da realidade sob o pano de fundo do Absoluto, já que por ele o mundo é visto sob a coação das imperfeições a que está sujeito tudo o que se encontra sob o domínio do tempo; em ambos o ideal é o ponto de juízo a partir do qual é possível determinar tudo aquilo que é real.

Especulação Dualista, Zoroastrismo, Política e Gnosticismo

   
   Falamos do grau mais elevado de racionalismo que caracteriza a especulação aquemênida pelo fato de ela ser influenciada pela religiosidade zoroástrica. O grau preciso desse racionalismo requer algum esclarecimento, especialmente porque as experiências religiosas que se manifestam na teologia dualista moldaram a história intelectual da humanidade até bem além da sua área siríaca de origem. A experiência do cosmo como uma luta entre forças do bem e do mal reaparece não só nas variedades de gnose antiga, mas também nos movimentos políticos ocidentais desde a alta Idade Média. E na política o simbolismo da Verdade e Mentira tornou-se predominante de uma forma geral, com o resultado de que os principais movimentos de credo político interpretam a si mesmos como os representantes da Verdade e aos outros como representantes da Mentira. O tipo de experiência descrito é hoje uma das grandes forças espirituais mundiais em rivalidade com o cristianismo e a tradição clássica.

Eric Voegelin - Ordem e HIstória, Vol I: Israel e a Revelação. p. 97

Immanuel Kant, a Razão Prática e a Fundamentação do Direito

   Uma das coisas que é possível entender lendo o "Metafísica dos Costumes" de Kant é o nível de asnice que se diz sobre o velhinho corcunda de Königsberg - aquele que pela regularidade de suas caminhadas servia de media para que as senhoras prussianas acertassem seus relógios.
   A primeira coisa que sempre que vejo alguém com tinos medievais, quase que munido com vestais de ferro, lançar contra o homem é a acusação de que a doutrina liberal dele é derivada. É correto afirmar isso, mas não no sentido daquela formulação que encontra habitat seguro nesse tipo de cabeça, aí se reproduzindo sem peias morais com outras ideias tão estranhas e assanhadas quanto, pois se busca aí derivar do "liberalismo kantiano" tudo aquilo que veio a ser mal no mundo moderno.
   Uma das coisas que vi recentemente, e que veio de um ser chamado Carlos Ramalhete, foi que a consideração da doutrina moral de Kant se referia apenas à execução de uma lei exterior, o que seria o mesmo de afirmar aquilo que dizemos por "cumprir a lei pela lei". Ao contrário disso Kant diz que todo o direito positivo, ou toda lei positivada na constituição de um país (lei empírica), é meramente oca como uma cabeça sem cérebro, se tal lei ou constituição não encontra anteparo ou sustentação em uma lei reconhecida a priori pela razão, cujos princípios devem ser reconhecidos independentemente de toda a recorrência à sensibilidade como móbile da ação - como o prazer e o desprazer (e essa irrecorrência é característa daquilo que se convencionou chamar de direito natural ou ius naturale).
   E é interessante notar que Kant deriva toda a doutrina do direito não do universo teórico, ou de uma "metafísica da ciência da natureza", mas sim do universo da razão prática que admite como postulado da moralidade tanto a imortalidade da alma como a existência de Deus.
   Antes de se achar a fundamentação do liberalismo kantiano como licença para a confecção de uma lei imoral e contrária à razão, Kant afirma categoricamente, e isso como fundamento da consideração de tudo o que pode ser determinado como direito, o seguinte: "É correta toda ação que permite, ou cuja máxima permite, à liberdade do arbítrio, de cada um coexistir com a liberdade de todos segundo uma lei universal"; ou: "A lei universal do direito - 'aja externamente de tal modo que o uso livre do seu arbítrio possa coexistir com a liberdade de cada um segundo uma lei universal' - é realmente, por tanto, uma lei que me impõe uma obrigação".

terça-feira, 11 de junho de 2019

O Monopólio da Virtude

    Independentemente do espectro político ao qual você pertença ou tenha simpatia, se esquerda ou direita, os fins jamais justificarão os meios. Acima do problema do espectro político, há também o aspecto dos costumes, ou, como afirmavam os clássicos, o problema moral. Muitos, hoje, se encontram engessados em um dogmatismo político em nome do qual a moral e a lógica são pisados, pois nesse campo de disputa e torcida tudo o que ocorre é enquadrado na realidade segundo as preferências e jamais segundo aquilo que é bom e justo. Nenhum lado do espectro político, seja a direita ou a esquerda, possui, por natureza, o monopólio da virtude. O problema é justamente quando a paixão política degenera em fanatismo e ganha contornos de adesão existencial, atando à paixão política o significado da vida. Isso é algo adoecedor para a personalidade, pois se os fatos provarem que algo do movimento político ao qual você deu a sua adesão está muito errado, é muito provável que o mais apaixonado politicamente irá jogar tudo no lixo, incluindo seus afetos e o seu caráter, se aferrando à sua posição - pois é comum que, a contrapelo dos fatos, aquele que depositou tudo de sua vida em uma ideia, irá defender até às raias do absurdo aquilo em que depositou sua confiança para não parecer um tolo - ainda que com isso não só a tolice, mas a estupidez se torne evidente. E entre parecer um tolo ou um louco fanático com aparência heroica, não há dúvida que as pessoas irão querer se parecer um louco fanático, já que tudo aí é mais enérgico e intempestivo - e não há dúvida que é mais condizente com a natureza humana que as aspirações mais altas tendam a desejar o reconhecimento no trágico ao invés do reconhecimento no cômico.

sexta-feira, 1 de março de 2019

Um Professor Laico e o Hino da Suíça

   Tem um professor de direito, hiper laico, que cairia de costas de soubesse desse hino da Suíça, logo a baixo. Segundo ele a palavra "Deus" na nossa constituição brasileira é um resquício arcaico.
   Hó, Céus!
   Segue parte do hino:
"Trittst im Morgenrot daher,
Seh’ich Dich im Strahlenmeer,
Dich, du Hocherhabener, Herrlicher!
Wenn der Alpenfirn sich rötet,
Betet, freie Schweizer, betet!
Eure fromme Seele ahnt,
Gott, den Herrn, im hehren Vaterland.
Kommst im Abendglühn daher,
Find’ich Dich im Sternenheer,
Dich, du Menschenfreundlicher, Liebender!"

   Tradução:
"No surgir da manhã esplendorosa,
admiro-Te nos raios calorosos,
a Ti, exaltamos, Magnificente!
Quando o alpe se avermelhar,
orai, suíços livres, orai!
Sua piedosa alma indagai,
Deus, ó Senhor, em nobre pátria.
No vir da noite fulgurosa,
cerimonio-Te no sereno estrelado,
a Ti, adoramos, Amoroso!"


   OBS: Peguei a parte do hino e a tradução do perfil do meu irmão Ermeson Steiner.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

O Homem Ante a Divina Majestade - Do Terror Numinoso

   Daqui esse terror e espanto com que, a cada passo, apregoa a Escritura haverem sido tocados e afligidos os santos, quantas vezes sentiam a presença de Deus. Quando, pois, vemos aqueles que, em Lhe não considerada a presença, seguros firmes se mostravam, mas, em manifestando Ele Sua glória, tão abalados e aterrados se quedavam, como que a prostrá-los o pavor da morte, mais até, a tragá-los, e quase aniquilados, é de construir-se daí que o homem não é jamais tangido e afetados suficientemente pelo senso de sua indignidade, senão depois que se comparou com a majestade de Deus.
   E desta consternação numerosos exemplos os temos, tanto em Juízes quanto nos Profetas. Tanto assim, que essa expressão se veio a tornar costumeira entre o povo de Deus: "Morreremos, pois que nos apareceu o Senhor". De igual modo, também a história de Jó, com o fito de quebrantar os homens pelo reconhecimento de sua estultícia, fraqueza e corruptibilidade, sempre o mais importante argumento extrai da descrição da divina sabedoria, poder e pureza [Jó 38.1-40.5]. E nem seu causa, pois vemos como Abraão melhor se reconhece terra e pó desde que mais próximo se chegou à contemplação da glória do Senhor [Gn 18.27].; como Elias Lhe não ousa de face descoberta atentar à manifestação [I Rs 19.13], tanto de terror Lhe há na presença.
   E que haja de fazer o homem, podridão [Jó 13.28] e verme que é [Jó 5.7; Sl 22.6], quando até mesmo os próprio Querubins deviam velar o rosto, movidos desse pavor? [Is 6.2 - na verdade se fala aqui de Serafins]. É isto, com efeito o que diz o profeta Isaías: "Enrubescer-se-á [se envergonhará] o sol e confundir-se-á a lua, quando o Senhor dos Exércitos vier reinar" [Is 24.23], isto é, quando revelar Seu fulgor, e mais perto o trouxer, diante dele de trevas se obscurecerá o que quer que seja que mais de esplendífero haja [Is 2.10, 19].

João Calvino - Institutas da Religião Cristã. cap. I.3

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Lutero e a Ideia de Deus

   A ideia de Deus nos escritos de Lutero é uma das mais importantes na história do pensamento humano e cristão. Não se trata de um Deus ao lado de outros; só o encontramos por meio de contrastes. O que se oculta de Deus se vê no mundo, e o que se oculta no mundo se vê em Deus.
   "Quais são as virtudes (isto é, poderes de ser) de Deus? Enfermidade, paixão, cruz e perseguição: são as armas de Deus". "O poder humano esvazia-se na cruz, mas na fraqueza da cruz o poder divino se faz presente". Sobre o estado dos seres humanos Lutero dizia: "Ser humano significa não-ser; vir a ser e ser. Significa estar em falta, em possibilidade, em ação. Significa viver sempre em pecado, em justificação e em justiça. Significa sempre ser pecador, penitente e justo". Com esse modo paradoxal de falar, Lutero expressava a sua ideia de Deus. Deus só podia ser visto por meio de contrastes.
   Negava tudo o que pudesse dar a ideia de finidade em Deus ou de que Deus fosse um ser entre outros. "Entre as coisas menores, Deus é ainda menor. Entre as maiores, maior. É indizível, acima e fora de tudo o que podemos nomear e pensar. Quem sabe o que é Deus? Situa-se além do corpo e do espírito e de tudo o que podemos dizer, ouvir e pensar". Afirmava que Deus estava mais próximo de nós do que nós mesmos. "Deus descobriu o modo de estar presente completamente em todas as criaturas, e em cada uma especialmente, com mais profundidade, mais internamente do que a própria criatura se acha presente a si mesma. Mas não está localizado em nenhum lugar e não pode ser compreendido por ninguém, de tal maneira que tudo abrange e está no âmago de todas as coisas. Deus está ao mesmo tempo totalmente em cada grão de areia e, não obstante, em todos ele, acima deles e fora de todas as criaturas". Nessas fórmulas resolve-se o antigo conflito entre as tendências teístas e panteístas a respeito de Deus; demonstram a grandeza de Deus, sua presença constante e, ao mesmo tempo, sua absoluta transcendência. Eu direi de maneira bastante dogmática que qualquer doutrina de Deus que deixe de lado um desses elementos, não fala realmente de Deus, mas de algo bem menor do que ele.
   A mesma coisa aparece na doutrina de Lutero sobre a onipotência. "Chamo de onipotência de Deus não o poder pela qual ele não faz as coisas que poderia fazer, mas o poder pelo qual, na verdade, ele potencialmente faz tudo em todas as coisas". Queria dizer que Deus não fica à margem do mundo, contemplando-o de fora, mas está sempre agindo em todas as coisas, A onipotência é isso. Lutero descarta a ideia absurda de um Deus que precisa decidir primeiramente se ele deve fazer o que poderia fazer. Deus é poder criador.
   Lutero se refere às criaturas como "mascaras de Deus"; Deus se esconde por detrás das criaturas. "Todas as criaturas são máscaras e véus de Deus para que possam agir ajudando-o a criar muitas coisas". Assim, todas as ordens e instituições naturais se plenificam com a presença de Deus, e assim, também, o processo histórico. Desse modo ele trata todos os nossos problemas acerca da interpretação da história, os Anibals, os Alexandres e os Napoleões - acrescentaria hoje os Hitlers, ou os godos, os vândalos, os turcos -acrescentando os nazistas e comunistas - são conduzidos por Deus para atacar e destruir, de tal maneira que Deus nos fala por meio deles. Eles são a palavra de Deus para nós e até mesmo para a igreja. As pessoas heróicas em particular saem fora das leis ordinárias da vida. São armadas por Deus. Deus as chama e as força, concedendo-lhes a sua hora, e eu diria, o seu 'kairos'; Fora desse 'kairos' nada podem fazer, aliás, ninguém pode fazer nada fora desse momento certo. Nessa hora certa não há quem resista aos que agem. Entretanto, apesar de Deus agir em tudo o que acontece na história, ela é a luta entre Deus e Satanás e entre seus domínios diferentes. Lutero fazia essas afirmações porque Deus agia criativamente até mesmo nas forças demônicas.
   Essas forças demônicas não teriam ser se não dependessem de Deus como fundamento de seu ser e como o poder criador do ser presente nelas em todos os momentos. Deus possibilita que Satanás seja o sedutor, mas também, ao mesmo tempo, torna possível a derrota de Satanás.

Paul Tillich - História do Pensamento Cristão; ed. Aste. p. 245-247.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

O Conhecimento de Deus Conduz-nos a Conhecer-nos A Nós Mesmos

   Por outro lado, é notório que jamais chega o homem ao puro conhecimento de si mesmo até que haja antes contemplado a face de Deus e da visão dEle desça a examinar-se a si próprio. Ora, orgulho que nos é a todos ingênito, sempre a nós mesmos nos parecemos justos, e íntegros, e sábios, e santos, a menos que, mercê de provas evidentes, convencido sejamos de nossa injustiça, indignidade, insipiência e depravação. Não somos, porém, assim convencidos, se atentamos apenas para nós mesmos e não também para o Senhor, Que é o estalão único porque é de aferir-se este juízo. Pois, uma vez que à hipocrisia somos todos propensos de natureza, por isso, qualquer vã aparência de justiça amplamente nos satisfaz em lugar da real justiça. E, porque dentro de nós ou ao nosso derredor nada se vê que não seja contaminado por crassa impureza, por todo tempo que confinamos nossa mente aos limites da depravação humana, aquilo que é um pouco menos torpe a nós nos sorri como coisa da mais refinada pureza. Exatamente como se dá com o olho diante do qual nada se põe de outras que não da cor preta: julga ser alvíssimo o que, entretanto, é de brancura um tanto esfumada, ou até mesmo tisnado de certa tonalidade fosca.
   Ademais, dos próprios sentidos do corpo possível nos é discernir ainda mais de perto quanto nos enganamos ao avaliarmos os poderes da alma. Ora, se em pleno dia ou baixarmos a vista ao solo, ou fitamos as coisas que em torno de nós se patenteiam ao olhar, parecemo-nos dotados de mui poderosa e penetrante acuidade. Quando, porém, alcançamos os olhos para com o sol e o miramos diretamente, esse poder de visão que sobre a terra ingente se fazia de pronto se oblitera e confunde com fulgor tão intenso, de sorte que sejamos forçados a confessar que esse nosso acúmen em contemplar as coisas terrenas, quando para com o sol se voltou, é mera ofuscação.
   Assim também se dá aos estimarmos nossos recursos espirituais. Pois, por tanto tempo quanto não lançamos a vista além da terra, mui blandiciosamente nos lisonjeamos a nós mesmos, de todo satisfeitos com nossa própria justiça, sabedoria, virtude e pouco menos que semideuses nos imaginamos. Mas, se uma vez que seja, para com Deus hajamos começado a elevar o pensamento e ponderar que é Ele, o quão completa a perfeição de Sua justiça, sabedoria e poder, a cujo estalão nos importa conformar-nos, aquilo que antes em nós sorria sob a aparência ilusória de justiça, logo como suma iniquidade se enxovalhará; aquilo que mirificamente se impunha sob o título de sabedoria tresandará como extremada estultícia; aquilo que se mascarava de poder arguir-se-á ser a mais deplorável fraqueza.
Por tanto, longe está de à divina pureza conformar-se o que em nós se afigura como que absolutamente perfeito.

João Calvino - Institutas da Religião Cristã. cap. I, 2

Lutero e a Depravação Total

   
   Lutero considerava a vida corrompida em sua totalidade, incluindo sua natureza e substância. Vamos considerar agora a expressão "depravação total" que tanto ouvimos. Não significa que não haja nada bom no ser humano; nenhum reformador nem neo-reformador jamais fez essa afirmação. Quer dizer, isso sim, que não há parte alguma do ser humano isenta dessa deformação existencial. Esse conceito, traduzido em termos de psicologia moderna, significa que o homem "depravado" está em conflito consigo mesmo bem no centro de sua vida pessoal. Tudo se inclui nessa deformação, e era essa a ideia de Lutero. Se a "depravação total" fosse entendida de modo absoluto, seria então impossível a sua afirmação [seria outra coisa, não depravação]. O ser humano totalmente depravado seria incapaz de dizer que era totalmente depravado. Mesmo a afirmação de que somos pecadores pressupõe em nós algo além do pecado [pois o pecado não é natureza]. O que podemos dizer é que não há no ser humano o que não seja tocado por autocontradição, tanto o intelecto como tudo mais. O mal é mal poque não cumpre o mandamento de amar a Deus. A base do pecado é essa falta de amor a Deus. Poderíamos dizer, em outras palavras, que é a falta de fé. Lutero afirmava as duas coisas.

Paul Tillich - História do Pensamento Cristão. ed. Aste. p. 243, 244

O Conhecimento de Nós Mesmos Conduz-nos a Conhecer a Deus

   A soma quase toda de nosso conhecimento, que, de fato, como verdadeiro e sólido conhecimento se deva julgar, consta de duas partes: do conhecimento de Deus e do conhecimento de nós mesmos. Como, porém, de muitos elos se entrelaçam, qual, entretanto, precedo ao outo, e ao outro origina, não é fácil de discernir.
   Em primeiro lugar, porque ninguém se pode seque a só próprio mirar sem, de pronto, o pensamento volver à contemplação de Deus, em Quem vive e se move [At 17.28], porquanto longe de obscuro é que os dotes com que somos prodigamente investidos de modo algum de nós provém. Mais até, nem é o nosso próprio existir, na verdade, outra coisa senão subsistência no Deus único.
   Em segundo lugar, porque estar mercês [graças] que do céu, gota a gota, sobre nós se destilam, somos, como por pequeninos regatos, conduzidos à fonte. Já de nossa própria carência, realmente, melhor se evidencia aquela infinidade de recursos que reside em Deus. Particularmente, esta desventurada ruína em que nos lançou a defecção do primeiro homem nos compele a alçar os olhos para o Alto, não apenas porque, jejunos [sem comer] e famintos, daí roguemos o que nos falta, mas ainda para que, despertados por temor, aprendamos a humildade.
   Ora, como no homem se depara um como que mundo de todas as misérias e, desde que fomos despojados do divino adereço [vestimentas], nossa vergonhosa nudez põe a descoberto mole imensa de torpezas, do senso da própria infelicidade deve necessariamente cada e qualquer um ser espicaçado a que venha pelo menos algum conhecimento de Deus.
   Destarte, da consciência de nossa ignorância, fatuidade, penúria, fraqueza, enfim, de nossa própria depravação e corrupção, reconhecemos que em nenhuma outra parte senão no Senhor se situam a verdadeira luz da sabedoria, a sólida virtude, a plena abundância de tudo o que é bom, a pureza da justiça, e, daí, somos de nossos próprios males instigados à consideração das excelências de Deus. Nem podemos a Ele com seriedade aspirar antes que hajamos começado a descontentar-nos de nós mesmos. Pois quem dos homens há que em si prazerosamente não descanse, que, na verdade, assim não descansa, por quanto tempo é a si mesmo desconhecido, isto é, por quanto tempo está contente com seus dotes e insciente ou esquecido de sua miséria?
   Consequentemente, pelo conhecimento de si mesmo é cada um não apenas aguilhoado a buscar a Deus, mas até como que pela mão conduzido a achá-lO.

João Calvino - Institutas da Religião Cristã. Cap. I, 1.

A Ideia Clássica de Deus por Paul Tillich

[...] A ideia medieval de Deus tem três níveis.
   1. O primeiro e fundamental nível é a ideia de Deus como 'primum esse', primeiro ser, ou primeira causa, causa primeira. A palavra "causa", neste contexto, não tem o mesmo sentido de "causa e efeito" na experiência finita. E a palavra 'prima' não quer dizer "primeira" em sentido temporal, mas no sentido [lógico] de "fundamento" de todas as causas. O termo "causa", então, é utilizado mais simbólica do que literalmente. Deus é o fundamento criador de todas as coisas, 'creatrix universalium substantia", substância criadora de tudo o que é. É a primeira afirmação a respeito de Deus. Deus é o fundamento do ser, como eu gosto de dizer, o próprio ser, ou a causa primeira; todos esses termos querem dizer a mesma coisa.
   2. Essa substância não pode ser entendida em termos de matéria inorgânica - como fogo, água segundo os antigos físicos [gregos] - nem dentro do campo biológico como o processo da vida. Deve ser entendida como intelecto. A primeira qualidade de Deus, enquanto fundamento do ser, é intelecto. Intelecto não é inteligência. Significa o momento em que Deus é para si mesmo sujeito e objeto, ao mesmo tempo [obs: tempo lógico]. Significa o conhecimento que Deus tem de si mesmo e do mundo como realidade fora de si. O fundamento do ser ou, em outras palavras, a substância criadora, é portadora de sentido. Em consequência, o mundo é significativo; pode ser entendido por meio de palavras que fazem sentido. O 'logos', a palavra, pode apreendê-lo. Para entendermos a realidade precisamos pressupor que ela é compreensível. Ela é compreensível porque o seu fundamento divino tem características de intelecto. O conhecimento é possível apenas porque o intelecto divino é o fundamento de todas as coisas.
   3. Em terceiro lugar, Deus é vontade. Essa ideia vem da tradição cristã agostiniana, enquanto a ênfase no intelecto vem da grega aristotélica. Quando se aplica a Deus e ao mundo o conceito de vontade, ele se refere ao fundamento dinâmico da realidade, e não à função psicológica observada em nós. A vontade é o poder produtor do fundamento do ser. Essa vontade tem a natureza do amor - na boa tradição agostiniana. A substância criadora do mundo tem significado e amor; é intelecto e vontade, simbolicamente falando. Assim como dizíamos que Deus se conhece a si mesmo, dizemos agora que Deus quer a si mesmo e se ama como bem absoluto e, na verdade, como o fim [telos] de todas as coisas. E ama as criaturas ao lhes dar gradualmente o bem que ele mesmo fundamenta. Por tanto, todas as criaturas esperam por ele; ele é o objeto de seu amor em todos os seres que vislumbram o bem supremo.

*Paul Tillich - História do Pensamento Cristão. p. 193, 194.

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OBS: Vocês poderão perceber que, na verdade, o que se está tratando no texto é justamente a estrutura trinitária de Deus.
Então percebemos o seguinte: em ordem se fala no item 1 de Deus Pai [Fundamento Criador], no 2 do Deus Filho [Fundamento Intelectivo], no 3 do Deus Espírito Santo [Fundamento Dinâmico, a Vontade e o Amor]. Tal estrutura - fundamento, intelecto e vontade - vocês poderão ver mais profundamente na obra "De Trinitate" (Trindade) de Santo Agostinho, onde o santo se serve da estrutura da alma humana (memória, intelecto e vontade) como analogia para explicar a realidade trinitária da substância divina.

Tomás de Aquino e a Oração

   Deve-se também considerar que, assim como a imobilidade [divina] não impõe necessidade às coisas predispostas, também não exclui a necessidade da oração. Porque a oração não é dirigida a Deus para mudar o que está disposto pela providência eterna, o que, aliás, seria impossível, mas para que a pessoa consiga de Deus o que deseja.
   Com efeito, é razoável que Deus consinta nos piedosos desejos da criatura racional, não como se os nossos desejos movessem a Deus, que é imutável [e pleno em todas a perfeições], mas porque da sua bondade procede a realização oportuna do que foi desejado. Pois, como todas as coisas naturalmente desejam o bem [...], pertence à super-eminência da bondade divina distribuir com certa ordem a todos o 'ser' e o 'bem'. A consequência disto é que Deus cumpra com sua bondade os piedosos desejos expostos na oração.
Além disso, pertence ao movente conduzir para o fim o movido, razão por que [sic] pela mesma natureza uma coisa é conduzida para o fim, o alcança e nele repousa. Ora, todo desejo é um certo movimento para um fim, o qual não pode vir para as coisas senão de Deus, Deus que é bom por essência e fonte da bondade. Com efeito, ao mover todas as coisas, move-as para algo semelhante a si. Logo, pertence a Deus, segundo a sua bondade, levar para os efeitos convenientes os desejos convenientes expostos em oração. [...]
   Além disso, é da natureza da amizade que o amante queira realizar o desejo do amado, enquanto quer o bem e a perfeição dele, razão por que é dito que é próprio dos amigos terem o mesmo querer. Ora, foi acima demonstrado que Deus ama a sua criatura, e tanto mais ama cada uma delas, quanto mais esta participa da sua bondade, que é o que Deus ama por primeiro e principalmente. Por isso, Deus quer satisfazer os desejos da criatura racional, a qual participa da bondade divina máxima e mais perfeitamente entre as demais criaturas. Ora, sua vontade dá a perfeição às coisas, por elas Deus é causa das coisas [...]. Logo, pertence à vontade divina satisfazer os desejos da criatura racional apresentados na oração.
   Além disso, o bem da criatura racional é derivado da bondade divina, segundo uma certa semelhança. Ora, verifica-se entre os homens que é sobretudo estimável o que não rejeita os pedidos aos que lhes fazem coisas justas e, por isso, são chamados de liberais, misericordiosos e pios. Por isso, pertence acima de tudo à bondade divina ouvir orações piedosas.
   Donde ser dito no Salmo: 'Faz as vontades dos que o temem, ouve-lhes as orações e os salva' (Sl 144,19); e em Mateus: 'Todo aquele que pede, recebe; o que procura, encontra; e ao que bate, abrir-se-lhe-á' (Mt 7,8).

Tomás de Aquino - Suma Contra os Gentios. p. 495,496