segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Lutero e a Depravação Total

   
   Lutero considerava a vida corrompida em sua totalidade, incluindo sua natureza e substância. Vamos considerar agora a expressão "depravação total" que tanto ouvimos. Não significa que não haja nada bom no ser humano; nenhum reformador nem neo-reformador jamais fez essa afirmação. Quer dizer, isso sim, que não há parte alguma do ser humano isenta dessa deformação existencial. Esse conceito, traduzido em termos de psicologia moderna, significa que o homem "depravado" está em conflito consigo mesmo bem no centro de sua vida pessoal. Tudo se inclui nessa deformação, e era essa a ideia de Lutero. Se a "depravação total" fosse entendida de modo absoluto, seria então impossível a sua afirmação [seria outra coisa, não depravação]. O ser humano totalmente depravado seria incapaz de dizer que era totalmente depravado. Mesmo a afirmação de que somos pecadores pressupõe em nós algo além do pecado [pois o pecado não é natureza]. O que podemos dizer é que não há no ser humano o que não seja tocado por autocontradição, tanto o intelecto como tudo mais. O mal é mal poque não cumpre o mandamento de amar a Deus. A base do pecado é essa falta de amor a Deus. Poderíamos dizer, em outras palavras, que é a falta de fé. Lutero afirmava as duas coisas.

Paul Tillich - História do Pensamento Cristão. ed. Aste. p. 243, 244

O Conhecimento de Nós Mesmos Conduz-nos a Conhecer a Deus

   A soma quase toda de nosso conhecimento, que, de fato, como verdadeiro e sólido conhecimento se deva julgar, consta de duas partes: do conhecimento de Deus e do conhecimento de nós mesmos. Como, porém, de muitos elos se entrelaçam, qual, entretanto, precedo ao outo, e ao outro origina, não é fácil de discernir.
   Em primeiro lugar, porque ninguém se pode seque a só próprio mirar sem, de pronto, o pensamento volver à contemplação de Deus, em Quem vive e se move [At 17.28], porquanto longe de obscuro é que os dotes com que somos prodigamente investidos de modo algum de nós provém. Mais até, nem é o nosso próprio existir, na verdade, outra coisa senão subsistência no Deus único.
   Em segundo lugar, porque estar mercês [graças] que do céu, gota a gota, sobre nós se destilam, somos, como por pequeninos regatos, conduzidos à fonte. Já de nossa própria carência, realmente, melhor se evidencia aquela infinidade de recursos que reside em Deus. Particularmente, esta desventurada ruína em que nos lançou a defecção do primeiro homem nos compele a alçar os olhos para o Alto, não apenas porque, jejunos [sem comer] e famintos, daí roguemos o que nos falta, mas ainda para que, despertados por temor, aprendamos a humildade.
   Ora, como no homem se depara um como que mundo de todas as misérias e, desde que fomos despojados do divino adereço [vestimentas], nossa vergonhosa nudez põe a descoberto mole imensa de torpezas, do senso da própria infelicidade deve necessariamente cada e qualquer um ser espicaçado a que venha pelo menos algum conhecimento de Deus.
   Destarte, da consciência de nossa ignorância, fatuidade, penúria, fraqueza, enfim, de nossa própria depravação e corrupção, reconhecemos que em nenhuma outra parte senão no Senhor se situam a verdadeira luz da sabedoria, a sólida virtude, a plena abundância de tudo o que é bom, a pureza da justiça, e, daí, somos de nossos próprios males instigados à consideração das excelências de Deus. Nem podemos a Ele com seriedade aspirar antes que hajamos começado a descontentar-nos de nós mesmos. Pois quem dos homens há que em si prazerosamente não descanse, que, na verdade, assim não descansa, por quanto tempo é a si mesmo desconhecido, isto é, por quanto tempo está contente com seus dotes e insciente ou esquecido de sua miséria?
   Consequentemente, pelo conhecimento de si mesmo é cada um não apenas aguilhoado a buscar a Deus, mas até como que pela mão conduzido a achá-lO.

João Calvino - Institutas da Religião Cristã. Cap. I, 1.

A Ideia Clássica de Deus por Paul Tillich

[...] A ideia medieval de Deus tem três níveis.
   1. O primeiro e fundamental nível é a ideia de Deus como 'primum esse', primeiro ser, ou primeira causa, causa primeira. A palavra "causa", neste contexto, não tem o mesmo sentido de "causa e efeito" na experiência finita. E a palavra 'prima' não quer dizer "primeira" em sentido temporal, mas no sentido [lógico] de "fundamento" de todas as causas. O termo "causa", então, é utilizado mais simbólica do que literalmente. Deus é o fundamento criador de todas as coisas, 'creatrix universalium substantia", substância criadora de tudo o que é. É a primeira afirmação a respeito de Deus. Deus é o fundamento do ser, como eu gosto de dizer, o próprio ser, ou a causa primeira; todos esses termos querem dizer a mesma coisa.
   2. Essa substância não pode ser entendida em termos de matéria inorgânica - como fogo, água segundo os antigos físicos [gregos] - nem dentro do campo biológico como o processo da vida. Deve ser entendida como intelecto. A primeira qualidade de Deus, enquanto fundamento do ser, é intelecto. Intelecto não é inteligência. Significa o momento em que Deus é para si mesmo sujeito e objeto, ao mesmo tempo [obs: tempo lógico]. Significa o conhecimento que Deus tem de si mesmo e do mundo como realidade fora de si. O fundamento do ser ou, em outras palavras, a substância criadora, é portadora de sentido. Em consequência, o mundo é significativo; pode ser entendido por meio de palavras que fazem sentido. O 'logos', a palavra, pode apreendê-lo. Para entendermos a realidade precisamos pressupor que ela é compreensível. Ela é compreensível porque o seu fundamento divino tem características de intelecto. O conhecimento é possível apenas porque o intelecto divino é o fundamento de todas as coisas.
   3. Em terceiro lugar, Deus é vontade. Essa ideia vem da tradição cristã agostiniana, enquanto a ênfase no intelecto vem da grega aristotélica. Quando se aplica a Deus e ao mundo o conceito de vontade, ele se refere ao fundamento dinâmico da realidade, e não à função psicológica observada em nós. A vontade é o poder produtor do fundamento do ser. Essa vontade tem a natureza do amor - na boa tradição agostiniana. A substância criadora do mundo tem significado e amor; é intelecto e vontade, simbolicamente falando. Assim como dizíamos que Deus se conhece a si mesmo, dizemos agora que Deus quer a si mesmo e se ama como bem absoluto e, na verdade, como o fim [telos] de todas as coisas. E ama as criaturas ao lhes dar gradualmente o bem que ele mesmo fundamenta. Por tanto, todas as criaturas esperam por ele; ele é o objeto de seu amor em todos os seres que vislumbram o bem supremo.

*Paul Tillich - História do Pensamento Cristão. p. 193, 194.

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OBS: Vocês poderão perceber que, na verdade, o que se está tratando no texto é justamente a estrutura trinitária de Deus.
Então percebemos o seguinte: em ordem se fala no item 1 de Deus Pai [Fundamento Criador], no 2 do Deus Filho [Fundamento Intelectivo], no 3 do Deus Espírito Santo [Fundamento Dinâmico, a Vontade e o Amor]. Tal estrutura - fundamento, intelecto e vontade - vocês poderão ver mais profundamente na obra "De Trinitate" (Trindade) de Santo Agostinho, onde o santo se serve da estrutura da alma humana (memória, intelecto e vontade) como analogia para explicar a realidade trinitária da substância divina.

Tomás de Aquino e a Oração

   Deve-se também considerar que, assim como a imobilidade [divina] não impõe necessidade às coisas predispostas, também não exclui a necessidade da oração. Porque a oração não é dirigida a Deus para mudar o que está disposto pela providência eterna, o que, aliás, seria impossível, mas para que a pessoa consiga de Deus o que deseja.
   Com efeito, é razoável que Deus consinta nos piedosos desejos da criatura racional, não como se os nossos desejos movessem a Deus, que é imutável [e pleno em todas a perfeições], mas porque da sua bondade procede a realização oportuna do que foi desejado. Pois, como todas as coisas naturalmente desejam o bem [...], pertence à super-eminência da bondade divina distribuir com certa ordem a todos o 'ser' e o 'bem'. A consequência disto é que Deus cumpra com sua bondade os piedosos desejos expostos na oração.
Além disso, pertence ao movente conduzir para o fim o movido, razão por que [sic] pela mesma natureza uma coisa é conduzida para o fim, o alcança e nele repousa. Ora, todo desejo é um certo movimento para um fim, o qual não pode vir para as coisas senão de Deus, Deus que é bom por essência e fonte da bondade. Com efeito, ao mover todas as coisas, move-as para algo semelhante a si. Logo, pertence a Deus, segundo a sua bondade, levar para os efeitos convenientes os desejos convenientes expostos em oração. [...]
   Além disso, é da natureza da amizade que o amante queira realizar o desejo do amado, enquanto quer o bem e a perfeição dele, razão por que é dito que é próprio dos amigos terem o mesmo querer. Ora, foi acima demonstrado que Deus ama a sua criatura, e tanto mais ama cada uma delas, quanto mais esta participa da sua bondade, que é o que Deus ama por primeiro e principalmente. Por isso, Deus quer satisfazer os desejos da criatura racional, a qual participa da bondade divina máxima e mais perfeitamente entre as demais criaturas. Ora, sua vontade dá a perfeição às coisas, por elas Deus é causa das coisas [...]. Logo, pertence à vontade divina satisfazer os desejos da criatura racional apresentados na oração.
   Além disso, o bem da criatura racional é derivado da bondade divina, segundo uma certa semelhança. Ora, verifica-se entre os homens que é sobretudo estimável o que não rejeita os pedidos aos que lhes fazem coisas justas e, por isso, são chamados de liberais, misericordiosos e pios. Por isso, pertence acima de tudo à bondade divina ouvir orações piedosas.
   Donde ser dito no Salmo: 'Faz as vontades dos que o temem, ouve-lhes as orações e os salva' (Sl 144,19); e em Mateus: 'Todo aquele que pede, recebe; o que procura, encontra; e ao que bate, abrir-se-lhe-á' (Mt 7,8).

Tomás de Aquino - Suma Contra os Gentios. p. 495,496

Ortodoxia e Escolasticismo Protestante por Paul Tillich

   Precisamos distinguir entre ortodoxia e fundamentalismo. O período ortodoxo no protestantismo tem muito pouco a ver com o que se chama de fundamentalismo nos Estados Unidos. Refere-se, antes, à época escolástica da história protestante. Houve grandes escolásticos na história do protestantismo, alguns deles tão grandes como os escolásticos medievais. Entre eles se destaca Johann Gerhard (1582-1637) que em sua obra monumental discorreu com profundidade sobre tantos problemas como os escolásticos medievais do século treze e quatorze. Obras desse fôlego nunca foram escritas pelos fundamentalistas norte-americanos. A ortodoxia protestante era construtiva. Não havia nada semelhante às bases pietistas e avivalistas do fundamentalismo americano. Os teólogos ortodoxos trabalhavam objetiva e construtivamente, procurando apresentar a doutrina pura e completa de Deus, do homem e do mundo. [...]
   A ortodoxia clássica era diferente. Por tanto, é pena que tantas vezes se confunda essa ortodoxia com o fundamentalismo. Uma das grandes conquistas da ortodoxia clássica nos fins do século dezesseis e no dezessete foi ter-se mantido em discussão com todos os séculos do pensamento cristão. Os teólogos ortodoxos não eram leigos em teologia, ignorantes do que queriam dizer os conceitos que empregavam na interpretação bíblica. Sabiam muito bem o seu significado ao longo dos quinze séculos de história da igreja já passados. Conheciam também a história da filosofia e a teologia da Reforma. O fato de permanecerem na tradição dos reformadores não os impediu de conhecer profundamente a teologia escolástica [medieval], de discuti-la, refutá-la, e até mesmo de aceitá-la quando era o caso. [...]
    A ortodoxia é a representação mais objetiva que existe da teologia protestante. [...] A ortodoxia procurava ser tão objetiva quanto possível, muito embora nem sempre tenha conseguido alcançar plenamente o intento. Não conseguia, em primeiro lugar, eliminar certos elementos subjetivos pertencentes ao protestantismo, como, por exemplo, a experiência pessoal de Lutero, ou a de Calvino, ou Zwínglio. Esses três reformadores superaram o objetivismo da Igreja Romana. E, assim, sua atitude entrou para o próprio sistema ortodoxo. Esse fato se torna mais claro quando examinamos a presença de dois elementos principais na ortodoxia: o princípio material e o princípio formal.
   O princípio material da Reforma é a doutrina da justificação pela fé, ou melhor, pela graça por meio da fé. Desculpem-me por este deslize. Nunca digam o que eu disse por engano, mas insistam sempre afirmando a justificação 'pela' graça 'por meio' da fé. O poder justificador é a graça divina; o canal por meio do qual as pessoas recebem essa graça é a fé. A fé não é jamais a causa, mas apenas o canal. No momento em que a fé fosse entendida como causa da justificação ela teria se transformado na obra humana pior do que qualquer obra do catolicismo romano. [...] Por tanto, sempre que vocês estiverem tratando de teologia protestante, abandonem para sempre essa deformação da fé - [a deformação da ] 'sola fide' em latim - que a vê como causa em vez de canal. Lutero não se cansou de repetir com clareza que fé é sempre ato receptor e nada mais; ela nada produz. Certamente [e isso é sumamente importante], não produz a boa vontade de Deus. [...]
   Temos ainda outro princípio, o "formal", sobre o qual se construiu o sistema ortodoxo. É o princípio das Escrituras que se tornou fixo e rígido. [...] A Bíblia contém o relato dos eventos que se passaram tanto no Antigo como no Novo Testamento. [...] Essa atitude [se de valer do princípio formal] é bem mais evidente em Calvino. Segundo Calvino a Bíblia não diz nada a ninguém, sejam teólogos ou leitores piedosos, sem o Espírito Divino. O Espírito Divino é o poder criador com quem se envolve o nosso espírito pessoal, transcendendo-nos. [...]
   Há ainda um outro elemento [...]. É a imagem do seu universo em dois andares. O andar de baixo chama-se "teologia natural" trabalhando com a razão, e o de cima, [a] "teologia revelada". Os teólogos sempre acharam difícil determinar o que pertencia a cada um desses andares. Naturalmente doutrinas como trindade e a encarnação cabiam melhor no andar de cima, mas não se sabia muito bem onde situar doutrinas como criação e a providência [que no sistema escolástico geralmente ficavam no andar de baixo, ou nas coisas passíveis de serem alcançadas pela razão, tal como se via nas obras de Aristóteles, por exemplo, que eram utilizados na escolástica medieval para de analisar as coisas pertencentes ao nível da razão, mas não o nível da graça]. Onde caberia, afinal? Preocupado com isso, Johan Gerhard, de quem já falamos, distinguia entre doutrinas puras e mistas (doctrinae purae et mixtae). As doutrinas puras são as dedutíveis da revelação divina. As doutrinas mistas vêm em parte da razão e em parte da revelação.
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*] Paul Tillich. Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e XX. p. 43-48.

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OBS: Suprimi alguns trechos do texto do Tillich por duas razões: 1º) O texto iria ficar longo demais; 2º) existem porções críticas de Tillich à ortodoxia que não julguei conveniente colocar aqui - já que Tillich, ainda que tivesse integrado partes desse sistema ao seu, negava alguns pontos da ortodoxia escolástica por causa do seu método teológico que criticava o supranaturalismo, supranaturalismo esse que é constitutivo da visão da realidade dividia em dois pisos: o piso "natural" e "sobrenatural" (o que, sem fazer juízos aqui, Dooyeweerd também questionava) -, o que iria prejudicar a apresentação da ortodoxia protestante, que era a minha intenção com esta publicação.

Fanatismo Juvenil e Tirania por Emil Cioran

E não é que você não tenha a nostalgia da fantasia e da desordem, mas não conheço espírito mais refratário que o seu às superstições da "democracia". Houve uma época, é verdade, em que eu também as detestava, até mias do que você: era um jovem e não podia admitir outras verdades que não as minhas, nem conceder ao adversário o direito de ter as suas, de gabar-se delas ou de impô-las. Que os partidos pudessem enfrentar-se sem aniquilar-se era algo que ultrapassava minhas possibilidades de compreensão. Vergonha da Espécie, símbolo de uma humanidade exausta, sem paixão nem convicções, inapta ao absoluto, privada de futuro, limitada em todos os sentidos, incapaz de elevar-se a essa alta sabedoria que me ensinava que o objetivo parlamentar era pulverizar o opositor: era assim que eu via o regime parlamentar. Por outro lado, os sistemas que queriam eliminá-lo para tomar seu lugar me pareciam belos sem exceção, afinados com o movimento da vida, minha divindade na época. Não sei se devo admirar ou desprezar aquele que, antes dos trinta anos, não sofreu o fascínio de todas as formas de extremismo, ou se devo considerá-lo como um santo ou um cadáver. [...] Viver verdadeiramente é recusar os outros; para aceitá-los, é necessário saber renunciar, violentar-se, agir contra a sua própria natureza, enfraquecer-se; só se concebe a liberdade para si mesmo: ao próximo só a concedemos a duras penas; daí a precariedade do liberalismo, desafio a nossos instintos, êxito breve e miraculoso, estado de exceção oposto a nossos imperativos profundos. Somos naturalmente inadequados para ele: só a deterioração de nossas forças nos dá acesso a ele. Miséria de uma raça que deve rebaixar-se por um lado para enobrecer-se pelo outro, e na qual nenhum representante, a menos que seja de uma decrepitude precoce, se dedica a princípios "humanos". Função de um ardor extinto, de um desequilíbrio, não por excessos, mas por falta de energia, a tolerância não pode seduzir os jovens. [...] Dê aos jovens a esperança ou ocasião de um massacre e eles lhe seguirão cegamente. No final da adolescência, se é fanático por definição; eu também o fui, e até o ridículo.

Emil Cioran - História e Utopia. p. 12-14.

Tomás de Aquino, a Soberania de Deus e a Eleição de Deus em Graça

   Consequentemente, visto ter sido demonstrado que a operação divina dirige alguns para o último fim mediante o auxílio da graça, e que outros, por serem desprovidos do auxílio da graça, afastam-se do último fim, e como todas as coisas feitas por Deus foram predestinadas e ordenas, desde toda eternidade, pela sabedoria divina, como acima oi demonstrado: é necessário que a acima referida distinção entre os homens tenha sido ordenada por Deus desde a eternidade. [...]

   Do exposto se depreende que a predestinação, a eleição e a reprovação são partes da providência divina, segundo a qual os homens são ordenados para o último fim pela mesma providência. [...]
Pode-se, ainda, demonstrar que a predestinação e a eleição não são causadas por alguns méritos humanos, não só porque a graça divina, que é efeito da predestinação, não é posterior aos méritos humanos, como acima foi demonstrado, mas também se pode demonstrar pelo fato que a vontade divina e a providência divina são a causa primeira das coisas que são feitas e de que nada pode ser causa da vontade da providência divinas [...]
   Diz, por fim, o Apóstolo: "Quem pois antes lhe deu algo, para ser retribuído? Porque dele, nele e por ele são todas as coisas. A ele honra e glória pelos séculos dos séculos. Amém (Rm 11,35-36).

Tomás de Aquino. Suma Contra os Gentios, Livro III, cap. CLXIII, ed. Ecclesiae p. 595, 596

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

O Testemunho de Orígenes sobre o Culto Cristão Antigo no Livro "Contra Celso"

    Em seguida ele [Celso o filósofo] declara que evitamos construir altares, estátuas e templos; pois ele acredita que é palavra de ordem combinada de nossa associação secreta e misteriosa. É ignorar que para nós o coração de cada justo forma o altar de onde sobem na verdade e em espírito, incenso agradável odor, as preces de uma consciência pura. Por isso diz João no Apocalipse: "O incenso que são as orações dos santos" (Ap 5,8), e no Salmista: "Suba minha prece como um incenso em tua presença" (Sl 140,2). 
   As estátuas, as oferendas agradáveis a Deus não são obras de artesãos vulgares, mas do Lógos de Deus que as delineia e forma em nós. São as virtudes, imitações do "Primogênito de Toda Criatura", no qual estão os modelos da justiça, da temperança, da força, da sabedoria, da piedade e das demais virtudes. Por tanto, todos os que, segundo o Divino Logos, edificaram em si mesmos a temperança, a justiça, a força, a sabedoria, a piedade, e as obras-primas das demais virtudes, trazem em si mesmos estátuas. É por meio delas, como sabemos, que convém honrar o protótipo de todas as estátuas, a "Imagem do Deus invisível" (Cl 1,15), o Deus Filho Único. Além disso, os que se despojaram do "homem velho com as suas práticas e se revestiram do novo, que se renova para o conhecimento segundo a imagem do seu Criador" (Cl 3.9,10) recuperando continuamente a imagem do criador, edificam em si mesmos estátuas dele, assim como o Deus supremo deseja*.
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*]Orígenes - Contra Celso, Paulus. p. 623

Agostinho e a Entrega do Coração como Graça e não como Obra do Livre-Arbítrio

    Pelágio prossegue e diz no livro antes citado: "Aquele que faz bom uso da liberdade, entregar-se totalmente a Deus, mortificando sua vontade de modo que pode dizer com o apóstolo: 'Eu vivo, mas já não sou eu que vivo, pois é Cristo que vive em mim' (GL 2,20); e deposita seu coração nas mãos de Deus para que ele 'o incline para qualquer parte que ele quiser' (Pr 21,1)".
   É grande ajuda da graça divina, sem dúvida, que ele incline o nosso coração para onde quiser. Mas essa grande ajuda nós a merecemos, conforme ele disse na sua loucura, quando, sem outra ajuda, que a do livre-arbítrio, corremos para o Senhor, desejamos ser dirigidos por ele, submetemos nossa vontade à dele e, aderindo-lhe constantemente, constituímos com ele um só espírito. E Ester bens tão extraordinários, segundo ele [Pelágio], nós os conseguimos somente pela liberdade do arbítrio. E assim, com estes méritos precedentes, conseguimos que ele incline nosso coração para onde quiser.
   E como pode chamar-se graça, se não é dada de graça? Como pode chamar-se graça, se é pagamento do que é devido? Como dizer que é verdade o que diz o apóstolo: 'E isso não vem de vós, é dom de Deus; não vem das obras, para que ninguém se encha de orgulho'? (Ef 2,8-9). E novamente: 'E se é por graça, não é pelas obras ; do contrário, não é mais graça'? (Rm 11,6).

Santo Agostinho. Graça (I). A Graça de Cristo e o Pecado Original. p. 237, 238

A Graça de Cristo

   Desse modo, fica bem clara a afirmação de Pelágio concernente à doação da graça de acordo com os méritos, qualquer que seja o significado que lhe dê, embora não se expresse com clareza. Pois, ao dizer que hão de ser recompensados os que fazem bom uso da liberdade e, por isso, merecem a graça do Senhor, confessa ser ela (a graça) pagamento de dívida.
   Nesse caso, onde fica o dizer do Apóstolo: 'E são justificados gratuitamente por sua graça?' (Rm 3,24). E esta outra sentença: 'Pela graça fostes salvos'? E para não se pensar (ser salvo) pelas obras, acrescentou: 'Por meio da fé'. Evitando que se pense numa atribuição da própria fé sem a graça de Deus, diz: 'E isso não vem de vós, é dom de Deus' (Ef 2,8). Assim, o que marca o início de tudo o que dissemos receber por merecimentos, recebemos (a graça) sem eles, ou seja, recebemos pela fé.
   E se alguém negar que nos é outorgada (ou que nos é dada como direito), o que significa o que foi dito: 'De acordo com a medida da fé que Deus dispensou a cada um'? (Rm 12,3). E se alguém disser que é retribuição pelos merecimentos, então não é dada. O que significa o que diz novamente: 'Pois vos foi concedida, em relação a Cristo, a graça de não só crerdes nele, mas também por ele sofrerdes'? (Fl 1,29). Testemunhou que ambas as coisas foram concedidas: o crer em Cristo e o parecer por Cristo. Os pelagianos, no entanto, atribuem a fé ao livre-arbítrio em tais termos que a fé parece ser uma graça devida, e não um dom gratuito. Assim não é graça, nem gratuita; não é graça.

Santo Agostinho - A Graça de Cristo e o Pecado Original. Ed. Paulus, p. 246,247

A Condenação, a Razão, o Arrependimento e o Amor

   A operação racional que tem por conteúdo o dogma cristão do inferno não é tarefa para incapazes. Somente uma mente imparcial capaz de refletir sobre a justiça ela mesma, e que é apta a se colocar sob o julgo desse mesmo juízo, é capaz de entender a racionalidade e a necessidade da existência do dogma.
   Não se trata, antes de tudo, de mandar o outro ou quem quer que seja para lá - coisa que nenhum cristão sério faz -, mas se trata, antes, da abertura da consciência daquele que assim reflete, diante da verdade da justiça ela mesma, para a possibilidade de que ele mesmo vá para lá. É o que o cristão individualmente DEVE fazer em TODO ato de análise da consciência, não sendo outro o fundamento próprio de TODO arrependimento verdadeiro.
   Quem nega a justiça eterna, nega também o juízo e a necessidade própria de arrependimento dos pecados, negando a própria existência de uma justiça a castigar os maus e a recompensar os bons - o que Kant mesmo dizia ser um postulado da moralidade. É isso mesmo que os liberais fazem quando, ao mesmo tempo que negam a existência do inferno, justificam toda perversidade e pecado (ainda que a discordância em relação ao pensamento deles seja um pecado imperdoável).
   Enfim, todo amor de fato é fundamentado no juízo (como diz o provérbio, não devemos ser a mula para quem não existe razão), pois tendo em vista este mesmo juízo, aqueles que amam tentam desviar os que erram do caminho da morte certa (que é o salário do pecado). É como diz o adágio: "quem avisa amigo é", e só pode avisar quem possui antevisão da desgraça que se abate sobre aqueles que estão em flagrante oposição à vontade de Deus. Aqui está a essência de TODA profecia cristã e bíblica.

terça-feira, 2 de outubro de 2018

Protestantismo e Democracia

   Uma das obsessões de gente que se acha mais iluminada do que o resto das pessoas está em buscar motivos para controlar a sua vida. Veja a quantidade de intelectuais que detesta a democracia justamente porque acha que em suas cabeças se encontra o melhor dos mundos: Marx, Trotsky, uma parcela de intelectuais católicos radicais, Iluministas, e mesmo alguns filósofos ilustres como Platão.
   Ainda que alguns estivessem certos sobre os diagnósticos que deram sobre a "doença das massas", sobre empobrecimento inevitável em que cai o pensamento quando ele se transforma em clichê público, ou quando jargões substituem a investigação racional da realidade, ou ainda quando a opinião substitui o conhecimento, ou quando dizem que determinadas estruturas sociais dificultam a aquisição do conhecimento verdadeiro, eles erram quando superestimam o próprio conhecimento da realidade, ignorando a sabedoria prática espalhada na população, que em média é infinitamente maior do que a quantidade de informação de que é capaz um só homem ou uma classe de filósofos.
   Foi nessa desconfiança da sabedoria prática espalhada entre a população que surgiram, no período do chamado "iluminismo francês", os planejadores centrais da sociedade, tanto no que diz respeito ao plano econômico, quanto no plano educacional. E dessa miséria padecemos ainda hoje em nossa estrutura de Estado.
   Ainda que todo mal se diga sobre o protestantismo, ele é o responsável pela devolução da liberdade pública, com o critério básico de que houvesse uma fé para tornar consciente a massa de sua responsabilidade moral. Não é por acaso que na era das revoluções, o metodismo de John Wesley criou uma espiritualidade de massa na Inglaterra - com influências na América - que impediu a revolta que engoliu a França com a Revolução levada a cabo por abstrações de intelectuais fanáticos.
   A desconfiança protestante - em especial nas sociedades influenciadas pela teologia calvinista - contra o poder concentrado tem uma razão: a fé no pecado e um ceticismo antropológico que abomina qualquer concentração absoluta de poder no homem que "bebe a iniquidade como a água" (Jó 15.16).
   Não é estranho que a própria constituição dos EUA - um milagre da graça comum - tenha surgido com todas as defesas possíveis contra a concentração absoluta de poder; e não é impossível compreender, apesar dos olavismos da vida, que o ambiente do próprio protestantismo tenha fomentado essa defesa contra a tirania, seja contra a igreja única, seja contra o Estado único, ou contra o empresário único.

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Deus entre a Razão e a Vontade

   O pensamento teológico ou filosófico a respeito de Deus ao longo da história da Igreja se debateu entre os polos "razão e vontade", ou "forma e dinâmica". Não foram poucos os que sacrificaram um em nome do outro. Ou a Razão prevaleceu sobre a Vontade (Aquino); Ou a Vontade prevaleceu sobre a Razão (Duns Scotus).
Aqueles que enfatizam a prevalência da razão ou da forma na natureza divina geralmente o fazem por tentarem livrar da nossa ideia de Deus o monstro da arbitrariedade: Deus age de tal forma clara e inequívoca que o faz longe de qualquer possibilidade de contradição consigo mesmo. A compatibilidade de Deus com a razão concede à razão humana a possibilidade de conhecimento da natureza de Deus de forma autônoma... Contudo Deus assim considerado tem a sua vontade sacrificada, ficando ele devedor de uma determinada natureza, possibilitando até a ideia de uma "eternidade do mundo". Aqui Deus é reduzido a uma lei.
Mas aqueles que enfatizam a Vontade em Deus buscam preservar a sua soberania: Deus não é devedor de uma natureza, e por exemplo: Deus não criou o mundo porque em si ele o considerou "o melhor dos mundos", fazendo-o a partir de uma condição lógica pretérita, antes o mundo é bom porque Deus o criou como criou. Essa ênfase da liberdade absoluta de Deus o deixa livre de qualquer natureza, destacando uma realidade dinâmica no fundamento do ser; contudo algo terrível dorme aí: Deus poderia subverter a totalidade da criação, sendo "potestas absoluta" (Autoridade Absoluta - como afirmou Ockam), o que poderia desembocar em arbitrariedade totalitária.
Foi com esse dualismo no interior do pensamento cristão que se esgotou a teologia da Idade Média, estando todos nós, ainda hoje, no interior desse dualismo. E na força da secularização tal dualismo acabou impulsionando outros dualismos , entre os quais e ênfase do "racionalismo iluminista" e do "historicismo irracionalista".
Mas não seria o pensamento cristão a afirmação da unidade entre essas hipóstases polares, ou a possibilidade de transcender esses reducionismos, afirmando tanto a razão quanto a vontade, ou a dinâmica quanto a forma, não sacrificando uma esfera de realidade sobre a outra, mas harmonizando plenamente uma e outra?