Agostinho, no livro Cidade de Deus, na Parte II, Liv. XII, Cap. IX, diz o seguinte:
Donde se segue a necessidade de crer que os santos anjos não existira nunca sem a boa vontade, quer dizer, sem o amor a Deus. E os outros, concriados com os bons, tornados maus por sua má vontade, obra não da natureza boa, mas de sua livre "defecção" do bem, pois a causa [eficiente] do mal não é o bem, mas a "defecção" do bem, ou receberam menor grau do amor divino que os que perseveraram ou, se uns e outros foram criados igualmente bons, estes caíram por sua má vontade e aqueles, mais agraciados, chegaram ao ápice da bem-aventurança, com a plena certeza de que jamais haveriam de perde-la [...].
Aqui Agostinho trata de uma certa infraestrutura sobre a qual é construído o argumento a respeito da distinção da qualidade da vontade dos anjos eleitos e dos anjos caídos. O pano de fundo é a discussão sobre o ser mesmo da vontade enquanto criação divina, a qual não pode ter sido criada má, mas igualmente boa entre anjos eleitos e não eleitos, os quais partilham, por tanto, igualmente uma natureza boa. O ponto fulcral, por tanto, é estabelecer a razão do aparecimento do mal na vontade dos anjos não eleitos, partindo do juízo de que a natureza deles é boa. Agostinho argumenta que a causa eficiente do mal uso da vontade, por tanto, não é o bem, já que isso implicaria em uma contradição lógica, mas sim a "defecção do bem". Tomás de Aquino diria que o mal não é uma causa, mas sim a defecção de todas as causas; não é um princípio, mas é a corrupção de todos os princípios. Resta, assim, a razão da causa do bem, que além da criação boa dos anjos, é o subsídio divino na sustentação dos anjos na linha do bem.
Como dito acima, a razão da perseverança dos anjos no bem - que é algo que eles não alcançam a partir de si mesmos, mas sim a partir do concurso operante de Deus - foi a recepção de um maior grau de amor divino, causa da distinção desses. Agostinho comenta: E, quando tal boa vontade os volta, não para a indigência do próprio ser [dos anjos], mas para a plenitude do ser infinito, , quando nessa união haurem nas fontes do próprio ser, da sabedoria e da beatitude, não é isso prova de que a sua boa vontade, por boa que fosse, não transporia os limites do estéril desejo, se Aquele que do nada fez a natureza capaz de conte-lo não a tivesse tornado melhor, enchendo-a de si mesmo, depois de haver incitado a impaciência do seu amor por Ele? Aqui o argumento de Agostinho é que houve um aperfeiçoamento dos anjos, e que o alcançaram apenas aqueles que d'Ele receberam uma maior medida do amor divino. Não se trata de uma concorrência para o bom ato a partir da incoação de uma graça geral, que após bem usada os anjos eleitos receberiam graças imperdíveis, trata-se antes de uma recepção de uma graça especial por parte de alguns que os tornaram capazes do ato sobrenatural de amor a Deus. É graça, pois sem essa a mera posse do desejo por Deus, como dito na última citação, não teria se convertido em ato.
Aqui se visualiza o princípio da dileção divina, causa da obtenção da graça para o ato sobrenatural que garantiu aos anjos eleitos o comporem as fileiras entre os santos e fiéis. E, no caso dos anjos, a eleição não ocorre como fundamentada em uma visão de queda, pois aos anjos é impossível a redenção. É, por ser uma eleição sem essa previsão, eleição sumamente supralapsariana (para além do conhecimento da queda).
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