As influências da filosofia
do "bom selvagem" são maiores e mais graves do que podemos perceber
em um primeiro momento. E como disse no texto passado, a frase sobre o bom
selvagem e o autor - Rousseau - são os responsáveis por grande parte das tribulações
políticas e culturais que temos vivenciado, atingindo também áreas como educação, artes, geopolítica e políticas públicas. Mas a consideração que
tentarei tecer aqui reflete sobre aquele tipo de filosofia da educação absurda que vê o mal humano a partir da compreensão de que este é causado pelas estruturas sociais.
A ideia que lança a culpa da miséria
humana nas costas das estruturas sociais e culturais tem, não obstante, a sua
justificativa, mas a reflexão unilateral sobre este aspecto pode nos ocultar
outros componentes da análise sobre a miséria humana que não dependem apenas de
estruturas sociais determinadas, já que compreender as coisas assim seria o
mesmo que colocar o homem dentro de um universo no qual ele não desempenharia
nenhuma função. Também seria absurdo crer que as estruturas existem por si só,
deixando de lado a ação do próprio homem no processo de construção da máquina.
Da mesma forma toda a política de destruição da própria estrutura também não
faria nenhum sentido, pois o que mais vemos é a tentativa de grupos de
estabelecerem políticas para eliminar as estruturas, e é lógico que tal
processo teria de ser levado a capo por homens e não pela invocação de uma
força impessoal frente a qual os políticos não faria nada. Por tanto
tanto o início quanto o fim do problema é o homem, e não a estrutura em si,
que, considerada isoladamente, só é possível como abstração.
Por tanto a reflexão unilateral do mal estrutural tem
a sua validade, não obstante ela parecer querer eliminar a necessidade que os
homens possuem de estruturas para sobreviver, tal como procurei destacar no
artigo passado. Assim também a ideia de um pessimismo antropológico puro não
ajuda na medida que isso tende a retirar do homem a responsabilidade diante da
vida. Mas também não ajuda o otimismo inescrupuloso que afirma que o
"homem nasce livre", justificando a derrubada de tudo aquilo que
ameaça esta sua "liberdade". Se nos detivermos bem em uma análise da
história dos direitos no Ocidente veríamos que a possibilidade da liberdade
encontra-se circunscrita dentro de uma ordem jurídica e moral determinados,
construída na base de muitos sacrifícios, tornando a ideia do bom selvagem, no
mínimo, uma tremenda falácia.
Mas esta falácia não ficou contida apenas na reflexão
sobre os direitos - em nome dos quais o direito de liberdade nas mãos de
determinados políticos e pensadores, se buscou a destruição de toda ordem moral
e social estabelecida -, saltando para as políticas educacionais que, contra a
educação diretiva, contra a ideia de educação como um sistema bancário de
acumulação (nas palavras de Paulo Freire), e contra a ideia de uma hierarquia
do saber, se buscou libertar alunos do fardo e da opressão corruptora da
tradição e da cultura enfatizando a auto-expressão do aluno.
Podemos até objetar com a ideia de que a cultura não
é um bem perfeito, mas isso não torna verdadeira a falsa afirmação de que a
cultura é um mal corruptor e que a própria ideia de alta cultura é um
instrumento de dominação que os poderosos utilizam contra os pobres e os
necessitados afim de manter a dominação. Também não torna verdadeira outra
falsa afirmação, que, amparada na filosofia do bom selvagem, afirma que toda a
cultura é boa ao seu modo.
Não foram poucos que afirmaram que a cultura era
constituída de elementos opressivos e alienantes. Entre estes podemos citar
Karl Marx, Michel Foucaut e R. D. Laing, sendo a afirmação deste último
de que os estados psiquiátricos nada mais eram do que aquilo que se constituía
da negação da sociedade burguesa daqueles que eram considerados indesejados,
sendo enquadrados como tais por não se encaixarem, de alguma forma, às
aspirações dos mesmos burgueses. Por tanto, os estados psiquiátricos forma
transformados em combustível do arraca-rabo de classes. De lá para cá, toda a
crítica à "moral burguesa" serviu também como justificativa de todas
os comportamentos subversivos, legitimados pelos intelectuais por, de certa
maneira, contestarem a ordem. E não por acaso, todo o comportamento considerado
subversivo também foi considerado como criativo, inventivo e original, sendo
toda a crítica a esta originalidade considerada reacionária, burguesa e
retrógrada.
Voltando ao tema da educação nunca a culto à
auto-expressão, à originalidade e a novo, ancorados em um desprezo infinito à
tradição foi tão destrutivo para as classes mais pobres. A própria ideia de que
"toda a cultura é boa ao seu modo" tem a marca do dedo pesado da
filosofia do bom-selvagem, aquele ser puro em seu estado pré-contratual,
corrompido apenas pelo contato tradições e pela sociedade. De certa maneira,
ocorreu aqui o mesmo processo que sempre ocorre quando se destrói, em nome do
bem e da liberdade, as instituições que limitam a liberdade humana. O
preconceito gerado contra a alta-cultura, contra a norma culta da linguagem,
contra a acumulação de informações e contra a ideia de que existem uma
organização hierárquica na educação e no saber, estando o professor na posição
daquele que ensina e do aluno daquele que é ensinado - resultando na destruição
da autoridade dos professores por causa do método sócio sócio-construtivista,
que afirma que "ninguém educa ninguém, ninguém se educa sozinho, mas todos
se educam juntamente mediatizados pelo mundo" -, não trouxe liberdade, mas
condenou as camadas mais pobres ao confinamento no gueto cultural que poderia
ser rompido com a apresentação a eles de uma cultura superior.
Nem é preciso entrar no mérito de o quão conveniente
é este método para professores que detestam ensinar, e que não possuem nenhuma
capacidade para isso. Mas o que fica evidente hoje é que nunca a cultura vulgar
e pobre de espírito teve tanto espaço nas políticas públicas, nas teorias de
educação e nos meios de comunicação. Tal cultura tende a endossar a infame
consideração de que Shakespeare e Machado de Assis podem ser nivelados ao funk
carioca, pois se que todas as culturas e auto-expressões são boas ao seu modo,
o que é que as diferencia? Não seria a legitimação burguesa aquela que
estabeleceria a odiosa discriminação contra os pobres e oprimidos?
Não é preciso lembrar a ruína do gosto, das artes e a ruína moral
(que desejo tratar no próximo texto) que disso se seguiu, e aqui teríamos dados
o suficiente para considerar, no mínimo, criminosas as investidas que o
ministério da cultura vem praticando no âmbito da educação pública. A
pluralidade é um dado cultural, mas jamais um valor definido, já que mesmo no
gênero cultura existem hierarquias sem as quais a palavra cultura não faria
nenhum sentido, já que a cultura é a transmissão de juízos, pois sem esta
função não haveria razão nenhuma para comunicar a cultura de uma geração para
outra.
Também é necessário enfatizar o quão egoísta pode
soar a ideia de "originalidade" e da "auto-expressão"
quando consideradas bem em si mesmas. Aqui caímos novamente na armadilha do
solipsismo que tende a considerar qualquer expressão do "eu" como
algo que pode ser colocado acima do "nós", e que constitui o esforço
conjunto de homens que, ao longo dos tempos, formaram a civilização humana cujos
bens nos são evidentes por si mesmos. O nivelamento do bem universal ao
"eu" isolado do mundo, este provincianismo pseudo-filosófico e
pseudo-humanista ignorante, tende a fomentar uma cultura de ruptura com a
sociedade pretérita, e com as tradições e reflexões da "comunidade de
almas" (constituída por aqueles que existem, que existiram, em prol
daqueles que ainda existirão), fazendo com que os bens herdados e aquela ordem
duradoura sem a qual homem algum é, sejam considerados como frutos do acaso e
não bens conquistados na base de imensos sacrifícios. Por tanto o nivelamento
do universo ao eu, a cultura de gueto e o culto ao novo e à originalidade não
podem fazer, ao contrário do que afirma, o homem avançar, mas regredir a um
estado onde o isolamento na limitação das percepções e dos sentidos acabam
ganhando um status de cultura universal, de uma cultura reduzida ao mínimo de
seu poder, já que desraigada do melhor do pensamento de da cultura que a
humanidade já produziu.
Se levarmos em conta a afirmação do filósofo britânico
Roger Scruton de que a cultura é o hábito de transmitir juízos, então teremos
motivos o suficiente para amá-la e para promovê-la, ainda que tal cultura, em
sua totalidade, seja um bem não acessível a todos, não obstante devendo ser
admirada e venerada por todos. Assim também, teríamos que ter por infame e
desprezível a crítica de Paulo Freire contra a concepção "bancária"
de educação, já que, por sua própria definição, aluno e professor não podem
jamais serem vistos no mesmo nível.
A existência de uma
sociedade saudável, com isso, é totalmente dependente da existência de uma
cultura saudável cujo poder é grande o bastante para destruir a prisão de ferro
dos guetos culturais legitimados pelos promotores da "liberdade". E
tal cultura não pode considerar toda expressão artística ou cultural como que
existindo em um mesmo nível, mas se valendo de juízos e de críticas, pode e
deve separar aquilo que é daquilo que não é, o superior do inferior, o bom do
ruim, o belo do não belo, o eficaz do ineficaz, o completo do incompleto, o que
é possível somente através da apropriação de juízos aperfeiçoados ao longo
dos tempos. Assim podemos entender que toda a possibilidade de cultura reside
no poder exercido pela faculdade do juízo, faculdade esta que vem sendo
constantemente deslegitimada e destruída incessantemente pelos defensores da
filosofia do "bom selvagem".
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