A questão que se impõe em nosso século sobre a objetividade e subjetividade, sobre a capacidade humana de apreensão da realidade ainda faz muito barulho, porque é justamente esta questão que significa a nossa cultura como ela é.
É comum ouvirmos nos centros mais “esclarecidos” e em cursos de ciências humanas que a verdade é subjetiva, e que as considerações sobre certo e de errado variam de pessoa para pessoa e de cultura para cultura. Um olhar superficial ou um estudo de religião e cultura comparadas poderá até sugerir que a verdade, de fato, é algo relativo e subjetivo – ironicamente tal vez até a única verdade absoluta admitida pelos relativistas. Mas este é apenas um aspecto do olhar sobre a questão, pois o que basicamente une as culturas é muito maior do que aquilo que as separa. Já Freud apontou que o tabu do incesto e estruturas de parentesco eram regras universais e que fora disso as relações humanas seriam impossíveis. O mesmo vale para as regras de não matar, não roubar, cuja compreensão das razões destas estruturas pode ser obtida por uma criança de cinco anos, fora outros fatores ignorados pela nossa camada “bem pensante”.
Ideias tem consequências, e muito do pluralismo de um lado só servem hoje para motivos políticos bem fundados, sendo acatados para legitimar abortos, casamentos dos mais diversos tipos, liberação das drogas, destruição das religiões tradicionais, avanço contra o código penal etc. A ideia de fazer um nivelamento por baixo de todas as culturas, como se cada qual fosse boa a seu modo, esconde, na verdade, um niilismo autodestrutivo que desemboca na relativização de todos os valores, fazendo guerra à razão.
Mas contra o quê
guerreiam quando se avança contra a razão? Quais as consequências de
deslegitimar a capacidade humana de captação da realidade de maneira objetiva?
O que perde a humanidade quando se descredencia a ideia de verdade, tornando
todos os dados do conhecimento apenas o resultado de uma atividade hermenêutica
que fica restrita a confabulações internas sem nenhum valor objetivo?
Foi pensado
justamente nessas questões que o escritor, teólogo, apologista cristão e
filósofo C. S. Lewis, o famoso escritor das “Crônicas de Nárnia”, pensou quando
escreveu seu livro “Abolição do Homem”. Neste livro que ele analisou algumas
consequências de considerar as experiências humanas como que destituídas de
valor objetivo. A incapacidade de fazer juízos de valor, dizia ele, a abolição
da consciência e a produção de uma cultura hedonista cuja felicidade se daria
na conquista de mais prazeres e menos dores, retiraria o componente humano
fundamental do ser humano, que era a razão.
Logo no início do
livro Lewis analisa o pressuposto básico de um livro de educação distribuído
para as últimas séries, que afirmava que os julgamentos objetivos da realidade
nada mais são do que sentimentos individuais sobre a realidade. Mas pensemos
bem sobre as implicações desta afirmação tomando como exemplo a segunda Guerra
Mundial: por acaso quando reconhecemos como brutais, anti-humanos ou
monstruosos os fatos ocorridos e Aschwitz, fazemos isso com base em juízos de
valor objetivos, podendo reconhecer aí uma divisa clara sobre o bem e o mal, ou
fazemos apenas com base em julgamentos meramente sentimentais e subjetivos,
condicionados pela nossa cultura ou visão de mundo e valores que nos foram
inculcados pelos nossos pais? É preciso ter uma visão clara de que ideias tem
consequências, e consequências tais que muito de nossa cultura pode ser
considerada ou um mero acúmulo de material que pode ser jogado na lata do lixo
na próxima esquina, por não possuir uma raiz que, atravessando a redoma da
subjetividade, finca o pé na mais pura realidade, ou se, como dizia o filósofo
alemão Friedrich W. J. von Schelling, contém estruturas que manifestam em si o
Absoluto.
A própria nomeação
da aplicação natural da razão é chamada de especulação, que nada mais é do que
a consideração de que a mente é apenas um espelho da realidade, pois REFLETE
sobre a mesma, não criando verdades sobre o que quer que for. A razão natural
age na compreensão sobre a proporcionalidade entre os fatos e os juízos, e uma
vez abolido isso o homem não tem base para ação alguma, pois, nisso, toda a
ação perde a legitimidade. É próprio do senso-comum considerar ações
desproporcionais ou descoladas da realidade de maneira brutal como irracionais.
Não se trata apenas de mero critério subjetivo. E há até mesmo um jurista
brasileiro por nome de Amilton Bueno, leitor de Nietzsche, que considera o
tribunal penal desumano, por conceber o juízo algo impossível ao homem. Como
remédio para a situação ele simplesmente pede a abolição do código penal – mas,
para ele, apenas esse juízo é correto.
Não é demais
constatar que o século XX foi o século da irracionalidade política. Mas para
esse tipo de pensamento, não poderíamos fazer juízos de valor entre a
democracia inglesa e a ditadura nazista, ou entre a democracia americana e a
ditadura norte-coreana – pois, afinal, todos são bons ao seu modo. É um
descalabro que na esteira de todo o pensamento relativista venha não a
libertação do homem, mas a sua supressão. O que seria de um homem que sofrendo
debaixo das botas de um ditador, faz um juízo de que o que sofre é algo
anti-humano, contranatural, sentido que a situação na qual vive não é justa
para com a natureza humana? Poderíamos considerar um escravo que sofre debaixo
de varadas como alguém que faz juízos de valor cuja jurisdição não ultrapassa a
sua subjetividade, tendo o verdugo, na mesma situação, a sua própria verdade,
sem um terceiro que faça juízo entre uma coisa e outra? O que seria de um mundo
sem a instância da realidade objetiva a mediar as relações humanas? Um
terceiro. Uma metafísica, por assim dizer?
O passo seguinte à
abolição de todo o juízo é o estabelecimento final de toda animalidade e
brutalidade possíveis, onde nem o poder da argumentação, nem os juízos de
valor, nem o eloquente clamor de um oprimido debaixo do sofrimento possuem
valor algum. Nos veríamos imersos em uma configuração social bárbara, a mão de
todos contra todos, a bestialidade desenfreada, impossível de ser refreada pela
instância da razão, já que, desimpedida pela consideração acerca do certo e do
errado, nada mais pode ser errado.
Onde podemos chegar
com o culto do relativismo e da irracionalidade? Pelo que se sabe, a guerra
contra a razão não é meramente uma guerra contra a razão, e nem mesmo a guerra
em favor da libertação do homem e dos costumes que o prendem, mas basicamente
uma luta contra o homem; uma busca por poder que esteja livre de todos os
constrangimentos e de toda a coerção externa assim como interna. Enfim,
veríamos estabelecia e legitimada a luta que, em nome da libertação do homem,
só pode chegar à abolição do homem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário