A revelação da
verdade divina em Jesus Cristo nunca foi matéria de discussão pacífica neste
mundo. De fato, ao abrir-se para a encarnação Jesus decidiu entrar em um espaço
de perdição, onde seu destino só poderia ser o aniquilamento. Por isso, a
santidade e a pureza divinas jamais foram vistas com bons olhos quer em sua
época quer agora.
A concepção de Jesus como o bode expiatório
já não pode ser mais considerada como artigo de provérbios populares e nem de
matéria sobre discursos míticos. De fato o mecanismo do bode expiatório é um
fato empírico histórico, onde o "homem massa" (o coletivo) se
arremete violentamente de maneira unânime sobre uma vítima inocente,
transformada em símbolo de todo o mal, dissensão e miséria no mundo. Eleger uma
vítima é uma forma comum de camuflar os próprios erros individuais, retirando
da esfera pessoal a culpa dos males que nos circundam.
No entanto, no presente momento confuso de
sacralização de determinadas classes, é preciso sublinhar o caráter
essencialmente singular no caso de Jesus Cristo como alguém inculpável: ele era
a Verdade encarnada. Sua existência como promotor da dissenção está vitalmente
ligada à noção de santidade que lhe era próprio, e que lançava uma luz tão
intensa sobre o mundo a ponto de colocar as claras a monstruosidade humana
dissimulada pelo véu da falsa religiosidade, da hipocrisia e da revolta contra
Deus. Jesus era um incômodo e as massas os incomodados. Como disse Raimund
Schwager:
"Todos os Evangelhos [...] mostram que
a mensagem de Jesus - pelo amor inconcebível de Deus e por sua pretensão de ser
um com Deus - trouxe à luz o rancor subterrâneo e a vontade oculta de matar,
mesmo entre os fariseus piedosos e cultos. Na aliança contra ele desvelam-se as
forças mais sombrias do coração humano. [...] Todas as forças hostis a Deus se
ligam contra ele, e em seu corpo descarregaram seus maus desejos"
(SCHWARGER, Raymund. Brauchen Wir eine Sündenbok? - apud. GIRARD. Aquele por
Quem o Escândalo Vem. p. 78,79).
No entanto a existência singular de Jesus
não deixou de se repetir na vida dos sábios, de homens santos e dos profetas ao
longo dos tempos. De fato, a existência da própria Igreja parece, de quando em
vez, encarnar o papel de bode expiatório a contrapelo do bem que ela causou e
causa no mundo - ainda que o próprio mundo seja suficientemente ingrato para
com o serviço que ela (e só ela) prestou aos homens.
Aqui e ali as criações da Igreja (como as
universidades) parece se rebelar contra a sua geratriz, e isso não por um
movimento de crítica, mas de substituição, quando a mentalidade que busca a
verdade no mundo se converte afim de atender as exigências de ideologias que
mal disfarçam o seu ódio irracional contra tudo o que é humano, a pretexto de
defender o que é humano. Em substituição de uma verdade transcendental e
eterna, imanentizam as esperanças para este mundo, escolhem bodes expiatórios -
sejam os judeus, os Kuláks da Rússia, sejam as Elites, os intelectuais chineses
da época de Mao Tsé-Tung, Deus mesmo etc. - se opondo à realidade inescapável
de que o presente tempo não comportam as esperanças que podem ser satisfeitas
apenas no tempo eterno. O dito "ópio do povo" na verdade é a única
esperança que agora é substituída no coração do homem pelo ópio da ideologia,
que lançando falsas esperanças e falsos inimigos no mundo, encobre do coração
do homem que a sua única esperança nunca esta em si mesmo, mas no Deus que a
tudo criou.
Essa constatação é contraposta à soberba e
arrogância de quem se coloca na ingrata empreita de construção de paraísos que
o tempo tende a destruir. E os messianismos presentes sempre ocultam a
prepotência de onipotência que sempre tentou o coração do homem, e que em sua
própria dinâmica deixou um histórico de morticínios e destruições na tentativa
de fazer do mundo não o melhor dos mundos possíveis, mas a perfeição em sua
própria essência. E tal como nos ensina revolução francesa, quando materializar
o mundo perfeito se torna impossível, cabeças começam a rolar.
É neste espírito de profecia, nesta
tendência de trazer incômodo para todas as gentes, que as palavras de Cristo
sobre a condição humana trouxe a si o descarrilamento da violência que acabou
por significar o mundo, constituindo um evento de verdadeira revelação divina
sobre a condição selvagem do homem distanciado de Deus. Como disse René Girard:
"Os Sinópticos [os quatro Evangelhos] fazem dizer que Jesus traz a guerra.
João faz ver que, por onde quer que intervenha, Jesus provoca dissensões. A
irrupção da verdade destrói a harmonia social fundadas sobre as mentiras da
unanimidade violenta" (GIRARD, René. Aquele por Quem o Escândalo Vem. p.
84).
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