quarta-feira, 26 de março de 2025

A Trindade e o Especulativo do Cristianismo

    Na parte da obra Razão na História onde discorre sobre a realização do espírito (geist) na história, Hegel afirma: É em virtude desta trindade que a religião cristã é superior a outras religiões, e explica a razão disso: É o especulativo do Cristianismo, e aquilo pelo qual a filosofia encontra também na religião cristã a ideia da razão (Razão na História. B.a). Mas para entender a importância dessa afirmação valem algumas considerações, como a respeito da natureza do especulativo, como a razão pela qual a trindade guarda em si a Ideia da Razão. 

Começando pela natureza do especulativo, este trata-se do último desenvolvimento da ideia lógica, e mais exatamente do positivo racional precedido pela lógica do entendimento, que é o entendimento abstrato, e pelo dialético, que é o negativo racional. Tratam-se dos três momentos que desembocam no conceito posto pelo desenvolvimento da Idéia. A respeito do especulativo Hegel afirma: O especulativo ou o positivamente racional apreende a unidade das determinações em sua oposição, e: Esse racional, portanto, embora seja algo pensado - também abstrato - , é ao mesmo tempo algo concreto, porque não é unidade simples, formal, mas unidade de determinações diferentes. Por isso a filosofia em geral nada tem a ver, absolutamente, com simples abstrações ou pensamentos formais, mas somente com pensamentos concretos (Enciclopédia das Ciências Filosóficas, § 82, Tomo I, A Ciência da Lógica). 

O positivo racional, em síntese, apreende a unidade daquelas determinações opostas que colapsam (caem juntamente) em um mesmo ente. Essa é a razão do positivo racional não ser um racional abstrato, pois é próprio da abstração manter as determinações contrárias separadas, como que vitrificadas e longe umas das outras; antes o próprio do positivo racional é ele ser concreto, pois mantém unidas as determinações de pensamento umas às outras. A título de exemplo podemos tomar o conceito de mal. Para o pensamento abstrato tanto o mal quanto o bem se encontram como que absolutamente separados, enquanto para o pensamento cultivado bem e mal não são oposições absolutas no ser, nem também são a mesma coisa. O cristianismo acusou o pensamento maniqueísta de fazer do bem e do mal dois princípios universais universalmente distintos, enquanto que a boa mente teológica afirmou que o mal não pode ser separado do bem, já que depende do bem para ser o que é, como que o declínio e a contração da substância. Da mesma forma o mal no homem não é um absoluto nada, pois o ente substancial, conversível em bem, é positivamente dado no ato da transgressão, e o mal ato, fisicamente positivo, é ainda mal e mal positivo. O bem positivo e o mal positivo estão como que concretamente unidos em um mesmo ato, culminando em sua indiferenciação. Também os atos divinos de juízo - a negação da negação - pelo qual Ele conduz os homens ao conceito que lhes é adequado (é no castigo que o iníquo chega ao seu ser-aí, ou ao seu ser concreto), o ato absolutamente bom recebe o nome de mal de pena. Nesse sentido, indo além das oposições estanques do entendimento abstrato, o positivo racional visualiza a concreção das determinações e a unidade das determinações abstratas as quais para o entendimento são só meras oposições. O racional real e verdadeiro é positivo e concreto, não abstrato.

    Mas essa demonstração anterior ainda é vazia se não entendermos o dialético, que é o caminho que conduz a lógica do entendimento à lógica do especulativo. E especificando a lógica do entendimento podemos situa-la no nível lógico mais baixo, porque o mais abstrato. Ao entendimento, como já havia especificado Kant em sua primeira crítica, cabem todas as categorias do finito, da oposição estanque entre categorias etc. Não se perceberia, por exemplo, a distinção entre uma árvore infinita e uma pedra infinita, pois já que ao infinito não cabe qualquer limitação ao entendimento não seria possível captar qualquer forma de determinidade enquanto determinidade infinita, levando em conta que  toda determinação é uma negação (omnis determinatio est negatio). Para se chegar a algum lugar fixo há que se por uma limitação. É próprio do homem falto de espírito vaguear sem qualquer destino fixo e determinado. E como diria Goethe, o homem que quer ser grande deve aprender a limitar-se. Assim, para começar é necessário o entendimento e suas determinações concomitantes.

    A passagem do entendimento abstrato (que é o não-concreto) para a lógica dialética se estabelece pelo fato de que todas as categorias e determinações, neste mundo, tendem à conversão no seu contrário. A vida traz a semente da sua própria morte, como também a morte trás a própria vida; o brilho ofuscante cega e impede a visão, assim como somente no escuro certas coisas se tornam visíveis. É conhecido o ditado romano: Se queres paz, te prepare para a guerra (si vis pacem para bellum), ou, a suma justiça é o sumo agravo (summum ius, summa iniuria). Dos 4 casos apresentados na parte da dialética transcendental da Crítica da Razão Pura de Kant, Hegel dá um passo para além, concluindo que das antinomias da razão pura poderíamos concluir que, no fim, tudo está sujeito à inversão dialética. Ao estupor e à demolição causados por esse juízo só aqueles presos às determinações fixas do entendimento estão sujeitos. Ou seja, para o entendimento abstrato é impossível conceber que a guerra é o caminho da paz, como a paz seja o caminho da guerra; ou que a justiça seja agravo, como que o agravo pode manifestar e tornar presente a justiça; que da luz surja a escuridão, como que das trevas venha a luz -, ou como que o ser seja o nada, assim como o nada seja o ser. 

    Ao negar o status das determinações fixas do entendimento a lógica dialética nada mais faz que desnudar a realidade constitutiva das coisas. Na história do pensamento Heráclito é o representante maior dessa compreensão. Seu juízo ainda se faz ecoar: Não se passa duas vezes no mesmo rio, querendo destacar o constante movimento de todas as coisas, ou a instabilidade constitutiva do ser, e o seu passar ao seu ser-outro. Seu juízo contrasta com a escola eleata e o Pensamento de Parmênides para quem a única realidade era o ser imóvel, fixo e eterno. Aqui o Uno é o universal e unicamente existente, já que não se pode dar status de existência ao contingente. Para o entendimento unilateralizado não há reconciliação possível entre um pensamento e outro, e cada qual cai nas malhas das determinações fixas, tornando-se um mero abstrato. Já para a razão não há semelhante impossível. É já um alto juízo aquele que, indo para além da dogmática do empirismo, afirmar que no decurso da mudança física e psíquica do homem se mantém, assim como no Navio de Teseu, a sua identidade e seu ser. E aqui se vê que a lógica dialética não visa jogar a razão do homem no abismo, em um nevoeiro de indistinções e da identidade abstrata, na noite da razão para a qual nas trevas todos os gatos são pardos, mas antes lança uma imensa luz a respeito da profundidade e dimensão da razão. 

Continua...

Liberdade e Necessidade

    Conceitos como "liberdade" e "necessidade" estão presentes no entendimento comum, mas porque não tomados de maior precisão acabam mais confundindo o juízo do que esclarecendo as coisas. Infelizmente a confusão não costuma ficar restrito ao campo mental dos confusos, mas tende a transbordar, junto com seus monstros, à história e, mais precisamente, para o campo da política e da religião.

    No campo da política e do direito, hoje em uma configuração encabeçada pelo campo mais associado à direita, a liberdade tomada em sua forma mais abstrata (não atravessada pela reflexão) se confunde mais com o simples arbítrio do que se identifia com o conceito de liberdade - e aqui conceito significa a verdade da coisa, por exemplo quando dizemos que alguém não é um simples amigo, mas um verdadeiro amigo. Assim se toma a liberdade em seu sentido abstrato como fazer o que cai imediatamente na vontade. É assim que se toma, por exemplo, o que se entende por "liberdade de expressão", o que acaba por criar monstruosidades políticas que permite o agrupamento de pessoas que alimentam a opinião que se devem exterminar certos grupos étnicos afim de atingir certo fim político. 

    O primitivismo legal nesse tipo de pensamento ignora o conceito próprio de liberdade, pois a universalização desse ponto de vista redundaria na destruição da própria liberdade e na extinção mútua dos termos, como se alguém pudesse ser aniquilado unicamente por ser o que é, e não pelo modo pelo qual é, transpondo o juízo para a substancialidade mesma e não para a qualidade que inere a substância, o que seria destruir corromper a própria razão e o juizo facultado por ela. 

    Antes, à liberdade convém a necessidade, como ao homem convém a justiça, pois o ponto mais alto da liberdade é a unidade da liberdade com a lei, e por isso com a necessidade. Só ao "escravo por natureza", como diz Aristóteles, convém a liberdade arbitrária, pois descasa o arbítrio com a razão, produzindo atos meramente contingentes em conformidade com a irracionalidade destituída de toda forma e princípio. Também não convém à justiça e a bondade moral o seguimento do necessário como que destituído do amor, como faz o estóico que aceita as determinações do mundo sem passibilidade, ou seja, como quem as aceita [abstratamente] como coisas em si mesmas que não podem ser diferentes, mas não as coisas como para si mesmo. Mas ao cristão, ao contrário, convém o amor à lei divina como "lei da liberdade", e só a ele compete acatar os eventos do mundo como "vontade de Deus", e só ele pode atingir a liberdade em sua concreticidade última (Tg 1.25), pois o acatar livremente a lei e os mandamentos de Deus é o próprio amor a Deus (Jo 14.21-23), donde concluímos que o ladrão da cruz que aceita ser justo seu estado enquanto tal, submetido ao juízo e ao castigo que a ele competem (Lc 23-39-43), é infinitamente mais livre do que o libertino que continua desenfreadamente em sua libertinagem; assim aquele que fala insanidade sem freios é um escravo agrilhoado se comparado àquele que livremente se cala em conformidade com a razão.

E determinar mais o que foi dito:

"Donde se pode também concluir como é absurdo considerar a liberdade e a necessidade como exclusivas uma da outra, reciprocamente. Sem dúvida, a necessidade [abstrata] enquanto tal ainda não é liberdade; mas a liberdade tem como sua pressuposição a necessidade, e a contém suprassumida dentro de si. O home ético é consciente do conteúdo do seu agir como de algo necessário que é válido em si e para si, e com isso sofre tão pouco prejuízo em sua liberdade, que essa se torna antes, por essa consciência, a liberdade efetiva e rica em conteúdo; diferentemente do arbítrio, enquanto é a liberdade ainda carente de conteúdo e somente possível. Um criminoso, que é punido, pode considerar a pena que o atinge como uma coerção de sua liberdade; de fato, porém, a pena não é uma violência estranha a que está submetido, mas somente a manifestação do seu próprio agir; e, ao reconhecer isso [como justa pena], comporta-se assim como homem livre [que em liberdade consciente reconheceu a necessidade]; Em geral, essa é a mais alta autonomia do homem: saber-se como determinado pura e simplesmente pela ideia absoluta; essa consciência e atitude que Espinoza designa como 'amor intellectualis Dei'"*.


*HEGEL, G. W. F. - Enciclopédia das Ciências Filosóficas, Tomo I: A Ciência da Lógica. § 158, Adendo.

Hegel e o Princípio Protestante

Uma das diferenciações trazidas pelo protestantismo pode ser caracterizada por aquilo que Schelling chamou de retorno interno. Em certo sentido há um toque de agostinianismo nesse juízo de Shelling herdado da espiritualidade luterana. Foi Lutero quem encetou por um certo caminho que culminaria em um tipo de devoção espiritual pela qual podemos conceber o conceito de uma liberdade espiritual que destrói qualquer forma de exterioridade ou independe dela, estando junto a si mesmo, elevando-se desse mundo a um mundo do espírito onde podemos nos demorar. Tal tipo de devoção e movimento do espírito modificou a face da terra.

    Uma nota interessante para podemos captar o sentido desse retorno é a ênfase de Lutero de que Cristo só é Cristo enquanto Cristo para nós. Isso lança uma luz no fato de Lutero ter feito da doutrina da justificação o coração mesmo da teologia, pois concebia o entendimento a respeito de Cristo de maneira inseparável dos seus benefícios. Assim, ninguém poderia compreender a Cristo em sua plena qualidade e significação enquanto não o concebesse como Cristo para si mesmo, ou Cristo enquanto fruído pelo fiel justificado. Assim, um Cristo glorioso, Senhor dos céus e da Terra, um Cristo objetiva também o tinham os demônios. Mas o fiel, para além disso, tinham mais de Cristo e de Deus Pai, pois o tem como Salvador e Pai, além da fruição real do Espírito Santo. Tais qualidades só são conhecidas no centro da consciência e no fundo do coração de quem crê e verdadeiramente espera; além do mais é nessa esfera única em que Deus é verdadeiramente glorificado.

    O ponto de retorno presente no protestantismo está nessa importante determinação da fé, determinação demarcada pela compreensão de Deus como Deus para si. Assim a fé subjetiva (fides quae creditur) encontra um ponto de identidade com a fé objetiva (fides qua creditur), mas também dá uma direção o pensamento. Esse ponto é importante justamente para a filosofia de Hegel, pois aponta para um movimento da consciência importante na libertação do espírito. Ele diz na Filosofia do Direito: A Identidade Consciente de Conteúdo e Forma é a Ideia Filosófica. Uma grande obstinação, mas que dá honra ao homem, a de recusar o que quer que seja dos nossos sentidos que não esteja justificado pelo pensamento, obstinação característica dos tempos modernos. Esse é, aliás, o espírito do protestantismo. O que Lutero começara a apreender, como crença, no sentimento e no testemunho do espírito é o que o espírito, posteriormente amadurecido, se esforçou por conceber na forma de conceito para assim no presente se libertar e reencontrar (Filosofia do Direito - Prefácio).

    Sem entrar no mérito da sentença quanto à sua validade teológica (que vale uma análise à parte), o ponto a se destacar aqui é o juízo que Hegel faz quanto ao caminho que o protestantismo desenhou no espírito e como isso conduz a um modo de fazer filosofia. Para entender isso podemos ver a crítica dele à fé antiga da "Primeira Igreja", a qual ele nomeia como fé má, uma alcunha que tem o mesmo sentido de uma fé finita no sentido de ser uma fé meramente dogmática, cujo conteúdo é meramente exterior e carece de um espírito que retorna sobre si mesmo - e esse retorno a si é uma categoria importante para compreendermos o "infinito", característico da reflexão, em Hegel.

    Na Introdução à História da Filosofia Hegel diz: "A perscrutação de si mesmo é o que se chama fé. Mas não é uma má fé, simplesmente histórica, como a da primeira Igreja; nós, luteranos, temos uma fé melhor. Na fé, comportamo-nos perante o Espírito Divino como perante nós próprios. Nesta fé há apenas uma diferença de forma, mas que se ab-roga; ou antes, essa fé é sua eterna ab-rogação; no tocante ao conteúdo, não existe sequer aí diferença ou separação. Este comportamento do espírito para consigo não é, pois, a unidade originária, abstrata, a substância spinosista, o elemento substancial objetivo, mas a substância ciente, individual, a autoconsciência que se reconhece no Espírito Divino e nele se infinitiza. Eis a determinação que, no comportamento do espírito para consigo, estabelecemos como fundamento da religião (Introdução à História da Filosofia p.).

    No terceiro Tomo da Enciclopédia das Ciências Filosóficas, onde trata especificamente da Filosofia do Espírito, Hegel aprofunda o conceito a respeito das determinações da religião, em oposição ao catolicismo romano, como religião do Espírito que ab-roga o meramente exterior: Contudo, na religião católica, esse espírito é, na efetividade, contraposto rigidamente ao espírito consciente-de-si. Primeiro, na hóstia Deus é apresentado à adoração como coisa exterior (quando, ao contrário, na Igreja Luterana a hóstia como tal é consagrada e elevada a Deus presente nela, primeiro e somente na fruição, isto é, no aniquilamento da sua exterioridade, e na fé, isto é, no espírito ao mesmo tempo livre, certo de si mesmo. Dessa primeira e suprema relação de exterioridade, decorrem todas as outras relações [católicas romanas], por isso não livres [não condizentes ao espírito consciente-de-si e que repousa-em-si], não espirituais e supersticiosas; especialmente um laicato, que recebe o saber sobre a vontade divina, como também a direção da vontade e da consciência de fora, e de um outro estado [do Papado], que alcança, ele mesmo, a posse daquele saber não de maneira espiritual unicamente, mas precisa essencialmente para isso de uma consagração exterior. Além disso, a maneira de orar, que por um lado se faz só movendo os lábios para si [na consagração secreta do sacramento], por outro lado é um modo de orar falto de espírito, nisso que o sujeito renuncia de dirigir-se a Deus, e ora a outros para que orem por ele; a devoção que se dirige a imagens milagrosas, mesmo a ossos, e a espera de milagres por seu meio; em geral, a justiça por obras exteriores, um mérito que deve ser adquirido por ações, e, mesmo transferido a outros etc., tudo isso prende o espírito sob um "ser-fora-de-si" [que é o conceito de "espírito alienado" em Hegel, ou o espírito que está meramente preso a Outro] pelo qual seu conceito no mais íntimo é desconhecido e pervertido, e direito e justiça, eticidade e consciência moral, responsabilidade e dever são corrompidos em sua raiz (Enciclopédia das Ciências Filosóficas, § 552, Tomo III: A Filosofia do Espírito).

    A filosofia, para Hegel, possui o mesmo conteúdo da religião, e o assunto de ambos é apenas um, ou seja, Deus. Apenas o modo de tratar desse conteúdo é distinto. Mas ambos atuam, para ele, pelo espírito, e tem na infinitização do espírito a sua meta, ou seja, a própria liberdade, liberdade que se exterioriza no mundo, que se exterioriza nele pelas produções do espírito, ou seja, na religião, no direito, na ética e eticidade. Assim, a efetivação absoluta é a efetivação absoluta do espírito pela negação universal do meramente exterior, mas que retorna ao mundo ab-rogado como que efetivando a sua própria liberdade. Nesse sentido o princípio protestante que faz de Deus "Deus-para-si", é como que o princípio que ab-roga a alienação enquanto faz converter o conteúdo da religião ao próprio do homem que é o espírito, espírito cuja atividade suprema é o próprio pensar e o pensar na instância suprema da sua própria liberdade, ou seja, repousando infinitamente sobre si mesmo.

Mário Ferreira dos Santos, Hegel e o Princípio Matemático da Filosofia

    Alguém já havia me falado que o Mário Ferreira dos Santos seguia muito Hegel. E não deixa de ser curioso que ele denomina a sua filosofia como Filosofia Concreta, que é justamente o que Hegel dizia que deveria ser a filosofia, pois ela, a filosofia, não lidava com pensamentos abstratos, mas visava única e exclusivamente o concreto ao qual se chega pela via dialética (pela via negativa), até chegar ao positivo racional. 

    Também dizem que a maior obra do Mário Ferreira dos Santos lida justamente com aquilo que ele chamou de Decadialética, obra que usa muito desse desdobramento dialético da mônada que se auto-determina na díade, depois na tríade etc., muito semelhante ao que Hegel faz com a sua noção de autodeterminação da ideia que se desdobra em seu ser outro (na natureza), se resolvendo por meio do retorno a si da natureza como espírito, na tríade. Para Hegel essas são as três determinações do Espírito, Espírito que é, entre todos, o mais concreto, pois é a auto-efetivação livre do Absoluto.

    Só para complementar: o que o Mário Ferreira dos Santos chama de mathesis magiste tem a ver com o que Heidegger chamou de espírito matemático dos gregos. Esse espírito matemático podemos rastrear até à maiêutica socrática, pois o elemento pressuposto da maiêutica é que o espírito se auto-determina até à diferenciação da razão, ou seja, Sócrates, ao partejar as ideias de seus interlocutores, não infundia nenhuma informação nova, nenhum espírito novo, mas apenas extraía a ideia que já estava latente no indivíduo até ele perceber como resposta sua aquilo que ele já possuía dormitando em seu próprio espírito. 

    Heidegger, assim, afirmava que o máximo da diferenciação da matesis (o espírito matemático) era justamente essa auto-determinação do espírito que segue uma evolução em que todas os momentos da sua auto-determinação são ligados por um espírito lógico, e que só porque lógico é também espírito. Por assim dizer, no mundo ocidental a matesis chegou à consciência de si na Lógica de Hegel, lógica que também é teológica (víde Hegel). 

    O contra-ponto a esse espírito, à matesis, foi colocado em uma oposição conhecida contra Hegel na filosofia religiosa de Kierkegaard. No Migalhas Filosóficas Kierkegaard expõe propriamente contra a matesis grega a noção da revelação cristã. E é da maior importância essa oposição para ilustrar certa tensão no pensamento ocidental. Pois Kierkegaard colocava a ideia de que para o grego, ou para o socrático, a ideia dormia no indivíduo, enquanto que para o cristão essa ideia vinha de fora, via revelação. Nesse sentido o mestre é, para o grego, a ideia interior, seu espírito que esperava a diferenciação e descompactação. Para o cristão, o mestre é o Cristo, e a sua luz vem de fora, o que olhado à luz da Providência, e da noção de que a revelação também concede informações das quais a razão não é capaz, tem todo sentido.