Uma das diferenciações trazidas pelo protestantismo pode ser caracterizada por aquilo que Schelling chamou de retorno interno. Em certo sentido há um toque de agostinianismo nesse juízo de Shelling herdado da espiritualidade luterana. Foi Lutero quem encetou por um certo caminho que culminaria em um tipo de devoção espiritual pela qual podemos conceber o conceito de uma liberdade espiritual que destrói qualquer forma de exterioridade ou independe dela, estando junto a si mesmo, elevando-se desse mundo a um mundo do espírito onde podemos nos demorar. Tal tipo de devoção e movimento do espírito modificou a face da terra.
Uma nota interessante para podemos captar o sentido desse retorno é a ênfase de Lutero de que Cristo só é Cristo enquanto Cristo para nós. Isso lança uma luz no fato de Lutero ter feito da doutrina da justificação o coração mesmo da teologia, pois concebia o entendimento a respeito de Cristo de maneira inseparável dos seus benefícios. Assim, ninguém poderia compreender a Cristo em sua plena qualidade e significação enquanto não o concebesse como Cristo para si mesmo, ou Cristo enquanto fruído pelo fiel justificado. Assim, um Cristo glorioso, Senhor dos céus e da Terra, um Cristo objetiva também o tinham os demônios. Mas o fiel, para além disso, tinham mais de Cristo e de Deus Pai, pois o tem como Salvador e Pai, além da fruição real do Espírito Santo. Tais qualidades só são conhecidas no centro da consciência e no fundo do coração de quem crê e verdadeiramente espera; além do mais é nessa esfera única em que Deus é verdadeiramente glorificado.
O ponto de retorno presente no protestantismo está nessa importante determinação da fé, determinação demarcada pela compreensão de Deus como Deus para si. Assim a fé subjetiva (fides quae creditur) encontra um ponto de identidade com a fé objetiva (fides qua creditur), mas também dá uma direção o pensamento. Esse ponto é importante justamente para a filosofia de Hegel, pois aponta para um movimento da consciência importante na libertação do espírito. Ele diz na Filosofia do Direito: A Identidade Consciente de Conteúdo e Forma é a Ideia Filosófica. Uma grande obstinação, mas que dá honra ao homem, a de recusar o que quer que seja dos nossos sentidos que não esteja justificado pelo pensamento, obstinação característica dos tempos modernos. Esse é, aliás, o espírito do protestantismo. O que Lutero começara a apreender, como crença, no sentimento e no testemunho do espírito é o que o espírito, posteriormente amadurecido, se esforçou por conceber na forma de conceito para assim no presente se libertar e reencontrar (Filosofia do Direito - Prefácio).
Sem entrar no mérito da sentença quanto à sua validade teológica (que vale uma análise à parte), o ponto a se destacar aqui é o juízo que Hegel faz quanto ao caminho que o protestantismo desenhou no espírito e como isso conduz a um modo de fazer filosofia. Para entender isso podemos ver a crítica dele à fé antiga da "Primeira Igreja", a qual ele nomeia como fé má, uma alcunha que tem o mesmo sentido de uma fé finita no sentido de ser uma fé meramente dogmática, cujo conteúdo é meramente exterior e carece de um espírito que retorna sobre si mesmo - e esse retorno a si é uma categoria importante para compreendermos o "infinito", característico da reflexão, em Hegel.
Na Introdução à História da Filosofia Hegel diz: "A perscrutação de si mesmo é o que se chama fé. Mas não é uma má fé, simplesmente histórica, como a da primeira Igreja; nós, luteranos, temos uma fé melhor. Na fé, comportamo-nos perante o Espírito Divino como perante nós próprios. Nesta fé há apenas uma diferença de forma, mas que se ab-roga; ou antes, essa fé é sua eterna ab-rogação; no tocante ao conteúdo, não existe sequer aí diferença ou separação. Este comportamento do espírito para consigo não é, pois, a unidade originária, abstrata, a substância spinosista, o elemento substancial objetivo, mas a substância ciente, individual, a autoconsciência que se reconhece no Espírito Divino e nele se infinitiza. Eis a determinação que, no comportamento do espírito para consigo, estabelecemos como fundamento da religião (Introdução à História da Filosofia p.).
No terceiro Tomo da Enciclopédia das Ciências Filosóficas, onde trata especificamente da Filosofia do Espírito, Hegel aprofunda o conceito a respeito das determinações da religião, em oposição ao catolicismo romano, como religião do Espírito que ab-roga o meramente exterior: Contudo, na religião católica, esse espírito é, na efetividade, contraposto rigidamente ao espírito consciente-de-si. Primeiro, na hóstia Deus é apresentado à adoração como coisa exterior (quando, ao contrário, na Igreja Luterana a hóstia como tal é consagrada e elevada a Deus presente nela, primeiro e somente na fruição, isto é, no aniquilamento da sua exterioridade, e na fé, isto é, no espírito ao mesmo tempo livre, certo de si mesmo. Dessa primeira e suprema relação de exterioridade, decorrem todas as outras relações [católicas romanas], por isso não livres [não condizentes ao espírito consciente-de-si e que repousa-em-si], não espirituais e supersticiosas; especialmente um laicato, que recebe o saber sobre a vontade divina, como também a direção da vontade e da consciência de fora, e de um outro estado [do Papado], que alcança, ele mesmo, a posse daquele saber não de maneira espiritual unicamente, mas precisa essencialmente para isso de uma consagração exterior. Além disso, a maneira de orar, que por um lado se faz só movendo os lábios para si [na consagração secreta do sacramento], por outro lado é um modo de orar falto de espírito, nisso que o sujeito renuncia de dirigir-se a Deus, e ora a outros para que orem por ele; a devoção que se dirige a imagens milagrosas, mesmo a ossos, e a espera de milagres por seu meio; em geral, a justiça por obras exteriores, um mérito que deve ser adquirido por ações, e, mesmo transferido a outros etc., tudo isso prende o espírito sob um "ser-fora-de-si" [que é o conceito de "espírito alienado" em Hegel, ou o espírito que está meramente preso a Outro] pelo qual seu conceito no mais íntimo é desconhecido e pervertido, e direito e justiça, eticidade e consciência moral, responsabilidade e dever são corrompidos em sua raiz (Enciclopédia das Ciências Filosóficas, § 552, Tomo III: A Filosofia do Espírito).
A filosofia, para Hegel, possui o mesmo conteúdo da religião, e o assunto de ambos é apenas um, ou seja, Deus. Apenas o modo de tratar desse conteúdo é distinto. Mas ambos atuam, para ele, pelo espírito, e tem na infinitização do espírito a sua meta, ou seja, a própria liberdade, liberdade que se exterioriza no mundo, que se exterioriza nele pelas produções do espírito, ou seja, na religião, no direito, na ética e eticidade. Assim, a efetivação absoluta é a efetivação absoluta do espírito pela negação universal do meramente exterior, mas que retorna ao mundo ab-rogado como que efetivando a sua própria liberdade. Nesse sentido o princípio protestante que faz de Deus "Deus-para-si", é como que o princípio que ab-roga a alienação enquanto faz converter o conteúdo da religião ao próprio do homem que é o espírito, espírito cuja atividade suprema é o próprio pensar e o pensar na instância suprema da sua própria liberdade, ou seja, repousando infinitamente sobre si mesmo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário