sexta-feira, 16 de maio de 2025

Agostinho e a Idolatria do Coração

Se tomarmos no sentido humano e sob o aspecto carnal as palavras do Evangelho [o Filho não pode de si mesmo fazer alguma coisa, se não o que vir fazer o Pai], a alma ficará cheia de fantasmas [i, e, representações], e nada mais conseguirá do que umas imagens com dois homens, o Pai e o Filho; a imagem de um que mostra e de outro que vê, de um que fala e de outro que ouve. E tudo isso são ídolos do coração.
Se os ídolos já foram expulsos dos templos, mais o devem ser dos corações dos cristãos.*
Uma coisa interessante de notar é que Agostinho chama de ídolos as, por assim dizer, reificações mentais a respeito das palavras de Jesus no Evangelho. No tratado XX, na metodologia de ascensão ao suprassensível, Agostinho diz: "Se vos derdes consideração do que é simples produto do vosso espírito sujeito a erro, falais com as vossas imagens, e não com o Verbo de Deus, e as vossas imagens vos enganam"**, e continua: "Elevai-vos acima do corpo, e saboreai as coisas do espírito. Elevai-vos acima do espírito, e saboreai o que diz respeito a Deus"***
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*AGOSTINHO - Tratados Sobre o Evangelho de João. Tratado XIX.1.
**Ibidem. XX.11.
***Ibidem.

Deus como Causa Primeira da Liberdade do Homem


Quanto a negação de que Deus concede ao homem não necessariamente o ser, mas propriamente o agir:

1) O homem e Deus são causas heterogêneas;

2) A liberdade humana, por não ser autocausada, deve ser reduzida a outra causa, pois omne quod movetur ab alio movetur;

3) Todas as coisas que são, i. e, fisicamente, na medida que são são redutíveis a Deus como a sua Primeira Causa;

4) Logo a liberdade humana, na medida que é, deve ser redutível à causalidade divina;

5) Dizer que a liberdade humana não se reduz à causalidade divina é afirmar que a liberdade humana pode causar a si mesma.

6) A dependência da causa segunda não se limita apenas ao ser, mas também ao agir, pois em tudo o agir é, no homem, perfeição do ato de ser; donde é certa a afirmação de que aquele que concede o ser deve também concede o agir, e, no caso da substância racional e livre, o agir livremente;

7) Logo o homem depende de Deus não apenas quanto ao ser, mas também quanto ao agir;

Como diz Santo Tomás;

Deve-se primeiramente saber que, sendo Deus causa de todas as coisas existentes, porque dá o ser a todas elas, é necessário que a ordem da sua providência abranja todas as coisas. Pois às coisas que dá o ser, necessariamente lhe dá a conservação e lhe confere perfeição no fim último (S.C.G. III.XCIV.6);

E também:

Ora, estando sujeitos à providência divina não só os efeitos, como também as causas e os modos de ser, como se depreende do que foi dito, não resulta que, se tudo é efetuado pela providência divina, nenhuma coisa venha de nós. Pois elas são providenciadas por Deus para que sejam livremente realizadas por nós (S.C.G. III.XCIV.10).

Aliás, do que aqui foi dito se depreende que a determinação divina é necessária ao agir, e não implica em contrariedade na potência divina o determinar, em tudo o que é, a causa segundo, antes, se não fosse a determinação divina não somente quanto ao ser, mas também quanto ao agir, o homem seria incapaz dos próprios atos livres - pois se Deus não os determinasse, tais atos sequer poderiam existir.

Atos 13.48 e a Ordenação para a Vida

    A passagem de At 13.48 expressamente afirma que "creram todos aqueles que foram ordenados para a vida". Alguns objetam que o termo "ordenados" se refere meramente a uma disposição interior, como dizendo que tais indivíduos "ordenados" estavam como que "ordenados por si mesmos", ou meramente predispostos à aceitação da pregação.

    Para uma objeção simples eu poderia recorrer ao campo da concorrência divina, dizendo que quem faz o trânsito da potência ao ato no homem é Deus, como diz Fl 3.13, onde se diz que Deus é quem opera em nós tanto o querer quanto o efetuar. Assim, se há qualquer disposição interior, ela é criada por Deus. Mas vou deixar isso de lado e me ater ao termo grego de At 13.48 que traduzimos por ordenados, que é τεταγμενοι (tetagmenoi), cujo radical é τασσω (tássō).

    O termo τεταγμενοι, segundo Strong, e mesmo Mounce, está na voz passiva, e indica uma ação sofrida, e está longe de indicar uma disposição do agente, mas uma condição do paciente. O radical τασσω para ambos, Strong e Mounce, se traduz por ordenar, moldar, determinar, decidir, designar, e está presente em versículos como: Rm 13.1; Lc 7.8; Mt 28.16; At 15.2, 18.2, 22.10 e 28.23, todos relacionados a ordens, decretos determinações etc., como passo a expor a seguir.

    Em Rm 13.1 τασσω está flexionado como τεταγμεναι (tetagmenai), que está na voz passiva também, e se refere à autoridade ( εξουσια - exousía) ordenada por Deus (του θεου τεταγμεναι). Em Lucas 7.8 τασσω está flexionado como τασσομενος (tassomenós), e se refere à passagem do centurião que diz que ele se trata de um homem colocado, ou ordenado, e isso sob autoridade (υπο εξουσιαν - upó exousían). Em Mt 28.16 o radical está flexionado como εταξατο (etaxato), que é indicativo e se traduz por ordenou, se referindo à ordenação de Cristo para que os onze discípulos fossem para a Galiléia. E quanto a Atos dos Apóstolos, pelo bem da brevidade, dadas as várias passagens, eu irei selecionar apenas At 18.2, que é a passagem que fala sobre o decreto do imperador Cláudio onde foi ordenada a expulsão dos judeus de Roma. O que traduzimos por decreto vem do termo διατεταχεναι (diatetachenai), que é flexionado de διατασσω, cujo radical é também τασσω.

    Eu poderia continuar levantando aqui outras passagens que confirma que o termo usado em At 13.48, ou τεταγμενο, que se refere àqueles ordenados [por Deus] para a vida, tem absolutamente zero a ver com uma "disposição pessoal", ou uma "condição individual". O uso majoritário tem relação com uma ordem expressa, um comando e até mesmo um decreto sob o qual alguém está sujeito por outro, e, na passagem em específico, significando algo como "e creram aqueles que estavam, de antemão, decretados para a posse da vida".