terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Os מִשְׁלֵי; Ou: Meditações em Provérbios: 1ª Meditação em Pv 1.1-7: A Instrução, a Sabedoria e o Princípio do Saber

Texto hebraico (Pv 1.1-07):                                                                                                                 
                                                                                               מִשְׁלֵי שְׁלֹמֹ֣ה בֶן־דָּוִ֑ד מֶ֗לֶךְ יִשְׂרָאֵֽל׃ 
                                                                                                     לָדַ֣עַת חָכְמָ֣ה וּמוּסָ֑ר לְהָבִ֗ין אִמְרֵ֥י בִינָֽה׃
                                                                                                לָקַחַת מוּסַ֣ר הַשְׂכֵּ֑ל צֶ֥דֶק וּמִשְׁפָּ֗ט וּמֵישָׁרִֽים׃
                                                                                         לָתֵ֣ת לִפְתָאיִ֣ם עָרְמָ֑ה לְנַ֗עַר דַּ֣עַת וּמְזִמָּֽה׃
                                                                                    יִשְׁמַ֣ע חָכָם וְיֹ֣וסֶף לֶ֑קַח וְנָבֹ֗ון תַּחְבֻּלֹ֥ות יִקְנֶֽה׃
                                                                                      לְהָבִ֣ין מָשָׁל וּמְלִיצָ֑ה דִּבְרֵ֥י חֲכָמִ֗ים וְחִידֹתָֽם׃
                                                                           יִרְאַ֣ת יְהוָה רֵאשִׁ֣ית דָּ֑עַת חָכְמָ֥ה וּמוּסָ֗ר אֱוִילִ֥ים בָּֽזוּ׃ פ


Exposição:

1) מִשְׁלֵי שְׁלֹמֹ֣ה בֶן־דָּוִ֑ד מֶ֗לֶךְ יִשְׂרָאֵֽל׃: "Os provérbios de Salomão, filho de Davi, rei de Israel".

    Não é controverso o fato de que o que chamamos de provérbios de Salomão não se trata realmente de uma obra salomônica pura. Mesmo o livro, em suas partes finais, assinala que a obra como um todo não se trata da realização de uma mão só. No cap. 30 de Provérbios nos é indicado que de o que ali vai são palavras de Agur (דִּבְרֵ֤י אָג֥וּר), e no cap. 31 se diz que o que vai escrito são palavras do rei Lemuel (דִּבְרֵי לְמוּאֵ֣ל מֶ֑לֶךְ). Há também, segundo o estudo da crítica das fontes1, quem afirme que os provérbios de 22.17-23.22 se trata de uma cópia de textos de Amenenope2, os quais surgiram na época do próprio Salomão, e é provável que sua forma final, ao menos, possa datar do século VIII ou VII a.C., no reinado do rei Ezequias (Pv 25.1).

    Não obstante a tudo isso, o livro de Provérbios é um patrimônio da cultura hebraica antiga, refletindo o ponto de vista não apenas particular de uma cultura de um pequeno país do Oriente Médio, pois veio a ser um verdadeiro patrimônio humano. Além do mais, há se de prestar atenção a este livro todo aquele que tem sobre si o nome de cristão, já que sendo um livro canônico, é, por isso mesmo, para nós, uma das formas da fala do Espírito. Portanto, meditando nesse livro em espírito de adoração e oração, o que buscamos é extrais das fontes da Escritura sabedoria para a vida, o que certamente encontramos e, e em espírito aberto e coração atento, certamente fruiremos.

    Mas comecemos pelo nome do livro que, no caso de vários livros da Bíblia Hebraica, leva o nome da primeira palavra do livro que é מִשְׁלֵי, palavra cuja raiz é משׁל (mxl), ou mais comumente מָשָׁל (maxal), que significa provérbio, sentença, parábola, epigrama, sátira, uma sentença dos sábios etc. Também essa raiz pode ser substantivada em מֹשֵׁל (moxel) tornando-se uma palavra que significa governador, chefe, dono, senhor, soberano, tirano ou déspota. Mas especificamente aqui se trata de provérbios, que para fins de fixação de autoridade são apresentadas como pertencendo a Salomão, filho de Davi, rei de Israel (שְׁלֹמֹ֣ה בֶן־דָּוִ֑ד מֶ֗לֶךְ יִשְׂרָאֵֽל).

    2) לָדַ֣עַת חָכְמָ֣ה וּמוּסָ֑ר לְהָבִ֗ין אִמְרֵ֥י בִינָֽה׃: "Para conhecer a sabedoria e a disciplina; para entender as palavras de conhecimento.".

    Está aqui posta a finalidade dos מִשְׁלֵי, já que eles são para conhecer (לָדַ֣עַת) tanto a sabedoria, ou habilidade, ou a destreza (חָכְמָ֣ה), assim como a disciplina, e instrução (מוּסָר), ou mesmo para tornar possível compreender (הָבִ֗ין) os ditos ou palavras (אִמְרָה) de prudência, discernimento, conselho, sensatez, instrução (בִינָֽה).

    O ritmo do texto nos leva à compreensão de que discernir os mixley (provérbios) são uma porta de entrada para uma gama de coisas. O livro tem, portanto, caráter de iniciação à sabedoria, já  que visa a instrução que possibilita a entrada ao mundo do juízo e da prudência. Evidentemente o  livro expressa todo o seu teor quando, nas primeiras linhas, em Pv 1.8, chama a atenção do filho à escuta (שְׁמַ֣ע בְּנִי) e à disciplina do pai e à instrução da mãe contra os perigos típicos da adolescência ou juventude, que são as más companhias (Pv 1.8-19), os conselhos dos perversos (4.14) e a lascívia (5ss); além disso contamos com ensinamentos contra a dívida (6.1-5), a preguiça (6.6-11) etc. No vs. 5 é expresso explicitamente que os mixley visam dar para o jovem לְנַ֗עַרconhecimento (דַּ֣עַת), assim como visa também conceder aos simplórios, ingênuos ou inexperientes (פְתָאיִ֣ם), cautela, sagacidade ou prudência (עָרְמָ֑ה). 

        Podemos tomar aqui o livro como que dividido nas seguintes partes, segundo a KJA3: 

    I. Prefácio, autor propósito e tema (1.1-7)
    
    II. Dois conjuntos de sete princípios de sabedoria (1.8-9.18)
        A) Primeiro conjunto de princípios do saber: 
        1. O poder da riqueza conquistado por meios imorais e violentos (1.8-33)
        2. A graça e a riqueza da sabedoria e do discernimento que vêm de Deus (2.1-22)
        3. Deus sempre abençoará o esforço daqueles que nele confiam (3.1-10)
        4. Descobrir o valor da disciplina é encontrar valioso tesouro (3.11-35)
        5. Um único caminho é certo, e o amor ao próximo passa por ele (3.21-35)
        6. A sabedoria da palavra é o meio tesouro de uma família (4.1-9)
        7. A sabedoria do Senhor nos ajuda a tomar o caminho certo (4.10-19)

        B) Segundo conjunto de princípios do saber: 
        1. O filho de Deus precisa mostrar justiça e bom senso ao mundo (4.20-27)
        2. O cuidado para não se deixar levar pelos ardis da carne e do maligno (6.1-6)
        3. O amor verdadeiro é absolutamente oposto à concupiscência (5.7-23)
        4. Cuidados com a fiança, a preguiça e os enganos malignos (6.1-19)
        5. A imoralidade e o adultério são loucuras (6.20-35)
        6. Quem busca viver em santidade contará com as bênçãos de Deus (7.1-27)
        7. A personificação da Sabedoria em busca do coração humano (8.1-9.18).

    III. Provérbios escritos por Salomão e as palavras dos sábios (10.1-29.27)
        1. A extraordinária sabedoria divina e inteligência de Salomão (10.1-22.16)
        2. A primeira parte dos ditados dos Sábios (22.17-24.22)
        3. A segunda parte dos ditados dos Sábios (24.23-34)
        4. Os pensamentos de Salomão pelos sábios do rei Ezequias (25.1-29.27)

    IV. Os oráculos do sábio Agur (30.1-33)
        1. A verdade e a mentira - o meio termo ou a difamação (30.1-10)
        2. Caluniadores e enganadores - os desobedientes (30.11-17)
        3. Os quatro caminhos misteriosos, e a queda no adultério (30.18-20)
        4. Os quatro eventos que surpreendem o mundo (30.21-33)

    V. Oráculos do rei Lemuel e da rainha-mãe (31.1-9)

    VI. Acróstico da mulher virtuosa (31.10-31)

  3לָקַחַת מוּסַ֣ר הַשְׂכֵּ֑ל צֶ֥דֶק וּמִשְׁפָּ֗ט וּמֵישָׁרִֽים׃: "Para obter a instrução do agir esclarecido, a justiça, juízo e a retidão".

    O texto continua na explanação dos seu propósitos, ou melhor, na inculcação didática que é comum na literatura bíblica tanto do Novo como do Antigo Testamento. Sendo assim, o livro é composto para fazer aquele que o lê ganhar instrução (לָקַחַת מוּסַ֣ר), pois מוּסַ֣ר (musar) visa justamente uma disciplina cujo objetivo é o ensino formativo, e nesse sentido, um ensino formativo que visa um agir esclarecido (שְׂכֵּ֑ל), diferente daqueles que desprezam o bom a gir. Além do mais o livro tem a intenção de fornecer princípios de discernimento e apreensão da justiça (צֶ֥דֶק), do direito ou juízo (מִשְׁפָּ֗ט), das ações justas (מֵישָׁרִֽים).

    Prestem atenção que a obra tem em alta conta o agir com o saber. Se levarmos em conta a figura de Salomão como o produtor da obra, torna-se translúcida a função paradigmática de Salomão (o sábio de Israel) aqui, cuja posição simbólica no livro ilumina a totalidade do seu conteúdo. Aqui estão aglutinadas várias virtudes que se supõe que a posse irá fazer do homem alguém moldado segundo a forma paradigmática do sábio (חָכָם). O livro dos provérbios, por tanto, é o livro que exige a presença tanto da virtude da mente sagaz quanto a desperta. E a sagacidade aqui é necessariamente a virtude do sábio que ouve a instrução, e que toma a disciplina para agir de forma esclarecida, afim de praticar a justiça, conhecer o direito. É sempre proveitoso lembrar que a tradição sapiencial é a forma das várias outras tradições bíblicas no Antigo Testamento, como a tradição profética. Sempre que se ouve palavras como entendimento, direito, justiça etc., contrapostas à desobediência do estulto que nega a instrução (vs. 7), o eco da voz dos profetas se faz ouvir em Os 6.4: o meu povo pereceu - ou perecerá - por falta de conhecimento4 - Faltou דַּ֣עַת (da'at). Também o Senhor implora para que o povo guarde a justiça e o direito em Isaías 56.1a: Assim diz o Senhor: Guardai o juízo [direito](מִשְׁפָּ֖ט), fazei justiça(מִשְׁפָּ֖ט)i5.

    4) לָתֵ֣ת לִפְתָאיִ֣ם עָרְמָ֑ה לְנַ֗עַר דַּ֣עַת וּמְזִמָּֽה׃: "Pra dar aos inexperientes sagacidade, e ao jovem poder de reflexão".

    Qual jovem não é também um inexperiente por definição? Aqui a beleza do paralelismo hebraico se revela de forma inconfundível. O texto certamente não se refere a dois grupos distintos, mas sim a um só: aos inexpertos e inexperientes (פְתָאיִ֣ם), e aos jovens (נַעַר). Esse estilo também mostra a beleza e o cuidado poético de um texto que, por ser um texto sapiencial, não descuida do aspecto estético da apresentação da sabedoria, que não é algo meramente útil para a vida, mas também bela para ela. Esse versículo 4 mostra a harmonia sonora das palavras escolhidas, que transliteradas soam também dessa forma: Latat lphtaim 'atamah, lena'ar da'at umezimah. 

    5) יִשְׁמַ֣ע חָכָם וְיֹ֣וסֶף לֶ֑קַח וְנָבֹ֗ון תַּחְבֻּלֹ֥ות יִקְנֶֽה׃: "Que ouça o sábio e cresça em ensino, e o instruído adquira habilidades".

    E aqui uma convocação: Que ouça o sábio! E o tônus do versículo nos faz vislumbrar a noção de que a sabedoria é sempre um círculo crescente, já que aqui o sábio (חָכָם) pode adquirir conhecimento ou crescer em sua doutrina (לֶ֑קַח). Da mesma forma o instruído, ou judicioso (נָבוֺן) pode aqui neste livro adquirir conduções hábeis (תַּחְבֻּלֹ֥ות). Assim o livro dos provérbios afirma o seu proveito universal, tanto para instruídos como para não instruídos, afinal se trata da voz da sabedoria a falar. 

    6) לְהָבִ֣ין מָשָׁל וּמְלִיצָ֑ה דִּבְרֵ֥י חֲכָמִ֗ים וְחִידֹתָֽם׃: "Para compreender provérbios e enigmas, e as palavras e parábolas dos sábios".

    Reafirmando o seu poder de iniciação à sabedoria, o escritor diz que o livro confere ao leitor capacidades de compreensão dos provérbios (מָשָׁל) e enigmas (מְלִיצָ֑), as palavras (דָּבָר) dos sábios (חֲכָמִ֗ים), assim como as parábolas deles (חִידֹתָֽם). 

    A impressão óbvia é que o texto guarda algum poder de destravamento que a instrução confere. Seria muito precipitado julgar esses ditos segundo uma percepção humanista, francamente secularizante, de que a educação liberta por si mesma, até espiritualmente, e liberta a qualquer um. Obviamente não se discute todos os efeitos positivos para aqueles que realmente apreendem o ensino, já que aqui, nesse sentido, há realmente um proveito evidente para aqueles aproveitam o que vai escrito. A questão é que, de caráter sapiencial, o livro eleva enormemente o valor da sabedoria, assim como evidencia fartamente a necessidade da instrução daqueles imaturos. Mas também há um limite para os recusantes, contra os quais nada há o que fazer. Pois: Ainda que pises o insensato com mão de gral entre os grãos pilados de cevada, não se vai dele a sua estultícia (Pv 27.22). O fato de que nem todos estão aptos para a sabedoria é conhecimento de posse comum dos experientes, e por isso essa informação não está ausente em um livro de sabedoria. 

    7) רְאַ֣ת יְהוָה רֵאשִׁ֣ית דָּ֑עַת חָכְמָ֥ה וּמוּסָ֗ר אֱוִילִ֥ים בָּֽזוּ׃ פ: "O temor do Senhor é o princípio do conhecimento; mas a sabedoria e a disciplina os tolos desprezam".

    Assim como no princípio (רֵאשִׁ֣ית) criou Deus o os céus e a terra (Gn 1.1a), assim também como princípio princípio do conhecimento (דָּ֑עַת) está o temor (רְאַ֣ת) do Senhor (יְהוָה). Qualquer apreensão de um conhecimento sensato e puro passa pela antecâmara do temor, pois não falamos em princípios aqui no sentido de axis, ou valor, mas sim de onde o verdadeiro saber começa, que é o campo do devido temor, reverência e mesmo no campo da adoração a Deus. E por tudo o que será explanado adiante, esta disposição de temor reverente é o selo da vida de alguém que entende que a verdadeira sabedoria é escutar e guardar (שׁמע) as palavras de Deus. O sábio é quem se santifica para Deus em atos, se curvando a Deus e indo em direção diametralmente oposta ao mal. Todos os preceitos à frente estão fundados em uma conjunção de inteligência e moral - pois a inteligência de fato é moral e a moral é inteligente; e ambas, inteligência e moral, só subsistem e se estabelecem diante de Deus. Os tolos (אֱוִילִ֥ים), aqueles que desprezam (בָּֽזוּ) a sabedoria, a inteligência (כְמָ֥ה) e a instrução (מוּסָ֗ר), são aqueles que andam por caminhos destrutivos, aqueles cujos pés correm em direção à fossa do inferno (Pv 5.5). Não há o hábito do sábio habitando o tolo. Este se afunda em si mesmo. 

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1] A Crítica das Fontes é a ciência literária que investiga, no caso das ciências bíblicas, a origem de determinados textos. Um famoso estudo de crítica das fontes é a hipótese documentária de Wellhausen que busca estabelecer certas fontes de origem do AT, que seriam as fontes Javista (J), Eloísta (E), Sacerdotal (P) e Deuteronomista (D). Há na crítica das fontes do Novo Testamento a conhecida hipótese documentária chamada de Fonte Q (quelle), que explicaria a fonte comum de uso das logia de Jesus entre outras, buscando explicar a origem do material comum a Mateus, Lucas em relação ao  o Sermão da Montanha, a certos milagres comuns aos dois evangelhos, discursos de João Batista etc. 
2] SCHWANTES, Milton - Sentenças e Provérbios: Sugestões para a Interpretação da Sabedoria. Ed. Oikos, 2009. p. 13.
3] KJA - King James Atualizada. Ed SBIA & ABBA. 2016. p. 1.176, 1.177.
4] Os 4.6 hb: נִדְמ֥וּ עַמִּ֖י מִבְּלִ֣י הדָּ֑עַת
5] Is 56.1a hb: כֹּה אָמַ֣ר יְהוָ֔ה שִׁמְר֥וּ מִשְׁפָּ֖ט וַעֲשׂ֣וּ צְדָקָ֑ה
7] Pv 27.22 hb: אִ֥ם תִּכְתֹּֽושׁ־אֶת־הָאֱוִ֨יל׀ בַּֽמַּכְתֵּ֡שׁ בְּתֹ֣וךְ הָרִיפוֹת בַּֽעֱלִ֑י לֹא־תָס֥וּר מֵעָלָ֗יו אִוַּלְתֹּֽו׃ פ

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