sexta-feira, 6 de junho de 2025

Agostinho e as Sete Potencialidades da Alma

    A psicologia agostiniana segue uma especulação que visivelmente remonta à cultura helênica da qual ele é herdeiro, sintetizando-a a uma visão cristã tal como ela se encontra consignada nas Escrituras, seguindo também a interpretação das Escrituras como vemos já nos pais da Igreja. No entanto, é visível que pelo gênio de Agostinho a psicologia cristã atinge o estado da arte.

Com efeito, estamos investigando a potência da alma e pode acontecer que ela leve à prática simultaneamente todos estes atos, mas parece que somente pratica o que pratica com dificuldade ou, certamente, com temor; pois ela age com muito mais atenção que nos restantes. Assim, indo de baixo para cima, o primeiro grau, por uma técnica pedagógica, é a animação; o segundo, a sensação; o terceiro, a arte; o quarto, a virtude; o quinto, a tranquilidade; o sexto, o ingresso; o sétimo, a contemplação.

Podem ser denominados também assim: sobre o corpo, pelo corpo, acerca do corpo, para si mesma, para Deus, junto de Deus.

Podem-no também deste modo: inteiramente de outro, inteiramente por outro, inteiramente acerca de outro, inteiramente para o belo, inteiramente no belo, inteiramente para a beleza, inteiramente junto à beleza.

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AGOSTINHO. Coleção Patrística/24 - A Grandeza da Alma. Ed. Paulus, São Paulo-SP, 1ª ed. 2008, 2ª Reimp. 2015. p. 348.

sexta-feira, 16 de maio de 2025

Agostinho e a Idolatria do Coração

Se tomarmos no sentido humano e sob o aspecto carnal as palavras do Evangelho [o Filho não pode de si mesmo fazer alguma coisa, se não o que vir fazer o Pai], a alma ficará cheia de fantasmas [i, e, representações], e nada mais conseguirá do que umas imagens com dois homens, o Pai e o Filho; a imagem de um que mostra e de outro que vê, de um que fala e de outro que ouve. E tudo isso são ídolos do coração.
Se os ídolos já foram expulsos dos templos, mais o devem ser dos corações dos cristãos.*
Uma coisa interessante de notar é que Agostinho chama de ídolos as, por assim dizer, reificações mentais a respeito das palavras de Jesus no Evangelho. No tratado XX, na metodologia de ascensão ao suprassensível, Agostinho diz: "Se vos derdes consideração do que é simples produto do vosso espírito sujeito a erro, falais com as vossas imagens, e não com o Verbo de Deus, e as vossas imagens vos enganam"**, e continua: "Elevai-vos acima do corpo, e saboreai as coisas do espírito. Elevai-vos acima do espírito, e saboreai o que diz respeito a Deus"***
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*AGOSTINHO - Tratados Sobre o Evangelho de João. Tratado XIX.1.
**Ibidem. XX.11.
***Ibidem.

Deus como Causa Primeira da Liberdade do Homem


Quanto a negação de que Deus concede ao homem não necessariamente o ser, mas propriamente o agir:

1) O homem e Deus são causas heterogêneas;

2) A liberdade humana, por não ser autocausada, deve ser reduzida a outra causa, pois omne quod movetur ab alio movetur;

3) Todas as coisas que são, i. e, fisicamente, na medida que são são redutíveis a Deus como a sua Primeira Causa;

4) Logo a liberdade humana, na medida que é, deve ser redutível à causalidade divina;

5) Dizer que a liberdade humana não se reduz à causalidade divina é afirmar que a liberdade humana pode causar a si mesma.

6) A dependência da causa segunda não se limita apenas ao ser, mas também ao agir, pois em tudo o agir é, no homem, perfeição do ato de ser; donde é certa a afirmação de que aquele que concede o ser deve também concede o agir, e, no caso da substância racional e livre, o agir livremente;

7) Logo o homem depende de Deus não apenas quanto ao ser, mas também quanto ao agir;

Como diz Santo Tomás;

Deve-se primeiramente saber que, sendo Deus causa de todas as coisas existentes, porque dá o ser a todas elas, é necessário que a ordem da sua providência abranja todas as coisas. Pois às coisas que dá o ser, necessariamente lhe dá a conservação e lhe confere perfeição no fim último (S.C.G. III.XCIV.6);

E também:

Ora, estando sujeitos à providência divina não só os efeitos, como também as causas e os modos de ser, como se depreende do que foi dito, não resulta que, se tudo é efetuado pela providência divina, nenhuma coisa venha de nós. Pois elas são providenciadas por Deus para que sejam livremente realizadas por nós (S.C.G. III.XCIV.10).

Aliás, do que aqui foi dito se depreende que a determinação divina é necessária ao agir, e não implica em contrariedade na potência divina o determinar, em tudo o que é, a causa segundo, antes, se não fosse a determinação divina não somente quanto ao ser, mas também quanto ao agir, o homem seria incapaz dos próprios atos livres - pois se Deus não os determinasse, tais atos sequer poderiam existir.

Atos 13.48 e a Ordenação para a Vida

    A passagem de At 13.48 expressamente afirma que "creram todos aqueles que foram ordenados para a vida". Alguns objetam que o termo "ordenados" se refere meramente a uma disposição interior, como dizendo que tais indivíduos "ordenados" estavam como que "ordenados por si mesmos", ou meramente predispostos à aceitação da pregação.

    Para uma objeção simples eu poderia recorrer ao campo da concorrência divina, dizendo que quem faz o trânsito da potência ao ato no homem é Deus, como diz Fl 3.13, onde se diz que Deus é quem opera em nós tanto o querer quanto o efetuar. Assim, se há qualquer disposição interior, ela é criada por Deus. Mas vou deixar isso de lado e me ater ao termo grego de At 13.48 que traduzimos por ordenados, que é τεταγμενοι (tetagmenoi), cujo radical é τασσω (tássō).

    O termo τεταγμενοι, segundo Strong, e mesmo Mounce, está na voz passiva, e indica uma ação sofrida, e está longe de indicar uma disposição do agente, mas uma condição do paciente. O radical τασσω para ambos, Strong e Mounce, se traduz por ordenar, moldar, determinar, decidir, designar, e está presente em versículos como: Rm 13.1; Lc 7.8; Mt 28.16; At 15.2, 18.2, 22.10 e 28.23, todos relacionados a ordens, decretos determinações etc., como passo a expor a seguir.

    Em Rm 13.1 τασσω está flexionado como τεταγμεναι (tetagmenai), que está na voz passiva também, e se refere à autoridade ( εξουσια - exousía) ordenada por Deus (του θεου τεταγμεναι). Em Lucas 7.8 τασσω está flexionado como τασσομενος (tassomenós), e se refere à passagem do centurião que diz que ele se trata de um homem colocado, ou ordenado, e isso sob autoridade (υπο εξουσιαν - upó exousían). Em Mt 28.16 o radical está flexionado como εταξατο (etaxato), que é indicativo e se traduz por ordenou, se referindo à ordenação de Cristo para que os onze discípulos fossem para a Galiléia. E quanto a Atos dos Apóstolos, pelo bem da brevidade, dadas as várias passagens, eu irei selecionar apenas At 18.2, que é a passagem que fala sobre o decreto do imperador Cláudio onde foi ordenada a expulsão dos judeus de Roma. O que traduzimos por decreto vem do termo διατεταχεναι (diatetachenai), que é flexionado de διατασσω, cujo radical é também τασσω.

    Eu poderia continuar levantando aqui outras passagens que confirma que o termo usado em At 13.48, ou τεταγμενο, que se refere àqueles ordenados [por Deus] para a vida, tem absolutamente zero a ver com uma "disposição pessoal", ou uma "condição individual". O uso majoritário tem relação com uma ordem expressa, um comando e até mesmo um decreto sob o qual alguém está sujeito por outro, e, na passagem em específico, significando algo como "e creram aqueles que estavam, de antemão, decretados para a posse da vida".

quarta-feira, 26 de março de 2025

A Trindade e o Especulativo do Cristianismo

    Na parte da obra Razão na História onde discorre sobre a realização do espírito (geist) na história, Hegel afirma: É em virtude desta trindade que a religião cristã é superior a outras religiões, e explica a razão disso: É o especulativo do Cristianismo, e aquilo pelo qual a filosofia encontra também na religião cristã a ideia da razão (Razão na História. B.a). Mas para entender a importância dessa afirmação valem algumas considerações, como a respeito da natureza do especulativo, como a razão pela qual a trindade guarda em si a Ideia da Razão. 

Começando pela natureza do especulativo, este trata-se do último desenvolvimento da ideia lógica, e mais exatamente do positivo racional precedido pela lógica do entendimento, que é o entendimento abstrato, e pelo dialético, que é o negativo racional. Tratam-se dos três momentos que desembocam no conceito posto pelo desenvolvimento da Idéia. A respeito do especulativo Hegel afirma: O especulativo ou o positivamente racional apreende a unidade das determinações em sua oposição, e: Esse racional, portanto, embora seja algo pensado - também abstrato - , é ao mesmo tempo algo concreto, porque não é unidade simples, formal, mas unidade de determinações diferentes. Por isso a filosofia em geral nada tem a ver, absolutamente, com simples abstrações ou pensamentos formais, mas somente com pensamentos concretos (Enciclopédia das Ciências Filosóficas, § 82, Tomo I, A Ciência da Lógica). 

O positivo racional, em síntese, apreende a unidade daquelas determinações opostas que colapsam (caem juntamente) em um mesmo ente. Essa é a razão do positivo racional não ser um racional abstrato, pois é próprio da abstração manter as determinações contrárias separadas, como que vitrificadas e longe umas das outras; antes o próprio do positivo racional é ele ser concreto, pois mantém unidas as determinações de pensamento umas às outras. A título de exemplo podemos tomar o conceito de mal. Para o pensamento abstrato tanto o mal quanto o bem se encontram como que absolutamente separados, enquanto para o pensamento cultivado bem e mal não são oposições absolutas no ser, nem também são a mesma coisa. O cristianismo acusou o pensamento maniqueísta de fazer do bem e do mal dois princípios universais universalmente distintos, enquanto que a boa mente teológica afirmou que o mal não pode ser separado do bem, já que depende do bem para ser o que é, como que o declínio e a contração da substância. Da mesma forma o mal no homem não é um absoluto nada, pois o ente substancial, conversível em bem, é positivamente dado no ato da transgressão, e o mal ato, fisicamente positivo, é ainda mal e mal positivo. O bem positivo e o mal positivo estão como que concretamente unidos em um mesmo ato, culminando em sua indiferenciação. Também os atos divinos de juízo - a negação da negação - pelo qual Ele conduz os homens ao conceito que lhes é adequado (é no castigo que o iníquo chega ao seu ser-aí, ou ao seu ser concreto), o ato absolutamente bom recebe o nome de mal de pena. Nesse sentido, indo além das oposições estanques do entendimento abstrato, o positivo racional visualiza a concreção das determinações e a unidade das determinações abstratas as quais para o entendimento são só meras oposições. O racional real e verdadeiro é positivo e concreto, não abstrato.

    Mas essa demonstração anterior ainda é vazia se não entendermos o dialético, que é o caminho que conduz a lógica do entendimento à lógica do especulativo. E especificando a lógica do entendimento podemos situa-la no nível lógico mais baixo, porque o mais abstrato. Ao entendimento, como já havia especificado Kant em sua primeira crítica, cabem todas as categorias do finito, da oposição estanque entre categorias etc. Não se perceberia, por exemplo, a distinção entre uma árvore infinita e uma pedra infinita, pois já que ao infinito não cabe qualquer limitação ao entendimento não seria possível captar qualquer forma de determinidade enquanto determinidade infinita, levando em conta que  toda determinação é uma negação (omnis determinatio est negatio). Para se chegar a algum lugar fixo há que se por uma limitação. É próprio do homem falto de espírito vaguear sem qualquer destino fixo e determinado. E como diria Goethe, o homem que quer ser grande deve aprender a limitar-se. Assim, para começar é necessário o entendimento e suas determinações concomitantes.

    A passagem do entendimento abstrato (que é o não-concreto) para a lógica dialética se estabelece pelo fato de que todas as categorias e determinações, neste mundo, tendem à conversão no seu contrário. A vida traz a semente da sua própria morte, como também a morte trás a própria vida; o brilho ofuscante cega e impede a visão, assim como somente no escuro certas coisas se tornam visíveis. É conhecido o ditado romano: Se queres paz, te prepare para a guerra (si vis pacem para bellum), ou, a suma justiça é o sumo agravo (summum ius, summa iniuria). Dos 4 casos apresentados na parte da dialética transcendental da Crítica da Razão Pura de Kant, Hegel dá um passo para além, concluindo que das antinomias da razão pura poderíamos concluir que, no fim, tudo está sujeito à inversão dialética. Ao estupor e à demolição causados por esse juízo só aqueles presos às determinações fixas do entendimento estão sujeitos. Ou seja, para o entendimento abstrato é impossível conceber que a guerra é o caminho da paz, como a paz seja o caminho da guerra; ou que a justiça seja agravo, como que o agravo pode manifestar e tornar presente a justiça; que da luz surja a escuridão, como que das trevas venha a luz -, ou como que o ser seja o nada, assim como o nada seja o ser. 

    Ao negar o status das determinações fixas do entendimento a lógica dialética nada mais faz que desnudar a realidade constitutiva das coisas. Na história do pensamento Heráclito é o representante maior dessa compreensão. Seu juízo ainda se faz ecoar: Não se passa duas vezes no mesmo rio, querendo destacar o constante movimento de todas as coisas, ou a instabilidade constitutiva do ser, e o seu passar ao seu ser-outro. Seu juízo contrasta com a escola eleata e o Pensamento de Parmênides para quem a única realidade era o ser imóvel, fixo e eterno. Aqui o Uno é o universal e unicamente existente, já que não se pode dar status de existência ao contingente. Para o entendimento unilateralizado não há reconciliação possível entre um pensamento e outro, e cada qual cai nas malhas das determinações fixas, tornando-se um mero abstrato. Já para a razão não há semelhante impossível. É já um alto juízo aquele que, indo para além da dogmática do empirismo, afirmar que no decurso da mudança física e psíquica do homem se mantém, assim como no Navio de Teseu, a sua identidade e seu ser. E aqui se vê que a lógica dialética não visa jogar a razão do homem no abismo, em um nevoeiro de indistinções e da identidade abstrata, na noite da razão para a qual nas trevas todos os gatos são pardos, mas antes lança uma imensa luz a respeito da profundidade e dimensão da razão. 

Continua...

Liberdade e Necessidade

    Conceitos como "liberdade" e "necessidade" estão presentes no entendimento comum, mas porque não tomados de maior precisão acabam mais confundindo o juízo do que esclarecendo as coisas. Infelizmente a confusão não costuma ficar restrito ao campo mental dos confusos, mas tende a transbordar, junto com seus monstros, à história e, mais precisamente, para o campo da política e da religião.

    No campo da política e do direito, hoje em uma configuração encabeçada pelo campo mais associado à direita, a liberdade tomada em sua forma mais abstrata (não atravessada pela reflexão) se confunde mais com o simples arbítrio do que se identifia com o conceito de liberdade - e aqui conceito significa a verdade da coisa, por exemplo quando dizemos que alguém não é um simples amigo, mas um verdadeiro amigo. Assim se toma a liberdade em seu sentido abstrato como fazer o que cai imediatamente na vontade. É assim que se toma, por exemplo, o que se entende por "liberdade de expressão", o que acaba por criar monstruosidades políticas que permite o agrupamento de pessoas que alimentam a opinião que se devem exterminar certos grupos étnicos afim de atingir certo fim político. 

    O primitivismo legal nesse tipo de pensamento ignora o conceito próprio de liberdade, pois a universalização desse ponto de vista redundaria na destruição da própria liberdade e na extinção mútua dos termos, como se alguém pudesse ser aniquilado unicamente por ser o que é, e não pelo modo pelo qual é, transpondo o juízo para a substancialidade mesma e não para a qualidade que inere a substância, o que seria destruir corromper a própria razão e o juizo facultado por ela. 

    Antes, à liberdade convém a necessidade, como ao homem convém a justiça, pois o ponto mais alto da liberdade é a unidade da liberdade com a lei, e por isso com a necessidade. Só ao "escravo por natureza", como diz Aristóteles, convém a liberdade arbitrária, pois descasa o arbítrio com a razão, produzindo atos meramente contingentes em conformidade com a irracionalidade destituída de toda forma e princípio. Também não convém à justiça e a bondade moral o seguimento do necessário como que destituído do amor, como faz o estóico que aceita as determinações do mundo sem passibilidade, ou seja, como quem as aceita [abstratamente] como coisas em si mesmas que não podem ser diferentes, mas não as coisas como para si mesmo. Mas ao cristão, ao contrário, convém o amor à lei divina como "lei da liberdade", e só a ele compete acatar os eventos do mundo como "vontade de Deus", e só ele pode atingir a liberdade em sua concreticidade última (Tg 1.25), pois o acatar livremente a lei e os mandamentos de Deus é o próprio amor a Deus (Jo 14.21-23), donde concluímos que o ladrão da cruz que aceita ser justo seu estado enquanto tal, submetido ao juízo e ao castigo que a ele competem (Lc 23-39-43), é infinitamente mais livre do que o libertino que continua desenfreadamente em sua libertinagem; assim aquele que fala insanidade sem freios é um escravo agrilhoado se comparado àquele que livremente se cala em conformidade com a razão.

E determinar mais o que foi dito:

"Donde se pode também concluir como é absurdo considerar a liberdade e a necessidade como exclusivas uma da outra, reciprocamente. Sem dúvida, a necessidade [abstrata] enquanto tal ainda não é liberdade; mas a liberdade tem como sua pressuposição a necessidade, e a contém suprassumida dentro de si. O home ético é consciente do conteúdo do seu agir como de algo necessário que é válido em si e para si, e com isso sofre tão pouco prejuízo em sua liberdade, que essa se torna antes, por essa consciência, a liberdade efetiva e rica em conteúdo; diferentemente do arbítrio, enquanto é a liberdade ainda carente de conteúdo e somente possível. Um criminoso, que é punido, pode considerar a pena que o atinge como uma coerção de sua liberdade; de fato, porém, a pena não é uma violência estranha a que está submetido, mas somente a manifestação do seu próprio agir; e, ao reconhecer isso [como justa pena], comporta-se assim como homem livre [que em liberdade consciente reconheceu a necessidade]; Em geral, essa é a mais alta autonomia do homem: saber-se como determinado pura e simplesmente pela ideia absoluta; essa consciência e atitude que Espinoza designa como 'amor intellectualis Dei'"*.


*HEGEL, G. W. F. - Enciclopédia das Ciências Filosóficas, Tomo I: A Ciência da Lógica. § 158, Adendo.

Hegel e o Princípio Protestante

Uma das diferenciações trazidas pelo protestantismo pode ser caracterizada por aquilo que Schelling chamou de retorno interno. Em certo sentido há um toque de agostinianismo nesse juízo de Shelling herdado da espiritualidade luterana. Foi Lutero quem encetou por um certo caminho que culminaria em um tipo de devoção espiritual pela qual podemos conceber o conceito de uma liberdade espiritual que destrói qualquer forma de exterioridade ou independe dela, estando junto a si mesmo, elevando-se desse mundo a um mundo do espírito onde podemos nos demorar. Tal tipo de devoção e movimento do espírito modificou a face da terra.

    Uma nota interessante para podemos captar o sentido desse retorno é a ênfase de Lutero de que Cristo só é Cristo enquanto Cristo para nós. Isso lança uma luz no fato de Lutero ter feito da doutrina da justificação o coração mesmo da teologia, pois concebia o entendimento a respeito de Cristo de maneira inseparável dos seus benefícios. Assim, ninguém poderia compreender a Cristo em sua plena qualidade e significação enquanto não o concebesse como Cristo para si mesmo, ou Cristo enquanto fruído pelo fiel justificado. Assim, um Cristo glorioso, Senhor dos céus e da Terra, um Cristo objetiva também o tinham os demônios. Mas o fiel, para além disso, tinham mais de Cristo e de Deus Pai, pois o tem como Salvador e Pai, além da fruição real do Espírito Santo. Tais qualidades só são conhecidas no centro da consciência e no fundo do coração de quem crê e verdadeiramente espera; além do mais é nessa esfera única em que Deus é verdadeiramente glorificado.

    O ponto de retorno presente no protestantismo está nessa importante determinação da fé, determinação demarcada pela compreensão de Deus como Deus para si. Assim a fé subjetiva (fides quae creditur) encontra um ponto de identidade com a fé objetiva (fides qua creditur), mas também dá uma direção o pensamento. Esse ponto é importante justamente para a filosofia de Hegel, pois aponta para um movimento da consciência importante na libertação do espírito. Ele diz na Filosofia do Direito: A Identidade Consciente de Conteúdo e Forma é a Ideia Filosófica. Uma grande obstinação, mas que dá honra ao homem, a de recusar o que quer que seja dos nossos sentidos que não esteja justificado pelo pensamento, obstinação característica dos tempos modernos. Esse é, aliás, o espírito do protestantismo. O que Lutero começara a apreender, como crença, no sentimento e no testemunho do espírito é o que o espírito, posteriormente amadurecido, se esforçou por conceber na forma de conceito para assim no presente se libertar e reencontrar (Filosofia do Direito - Prefácio).

    Sem entrar no mérito da sentença quanto à sua validade teológica (que vale uma análise à parte), o ponto a se destacar aqui é o juízo que Hegel faz quanto ao caminho que o protestantismo desenhou no espírito e como isso conduz a um modo de fazer filosofia. Para entender isso podemos ver a crítica dele à fé antiga da "Primeira Igreja", a qual ele nomeia como fé má, uma alcunha que tem o mesmo sentido de uma fé finita no sentido de ser uma fé meramente dogmática, cujo conteúdo é meramente exterior e carece de um espírito que retorna sobre si mesmo - e esse retorno a si é uma categoria importante para compreendermos o "infinito", característico da reflexão, em Hegel.

    Na Introdução à História da Filosofia Hegel diz: "A perscrutação de si mesmo é o que se chama fé. Mas não é uma má fé, simplesmente histórica, como a da primeira Igreja; nós, luteranos, temos uma fé melhor. Na fé, comportamo-nos perante o Espírito Divino como perante nós próprios. Nesta fé há apenas uma diferença de forma, mas que se ab-roga; ou antes, essa fé é sua eterna ab-rogação; no tocante ao conteúdo, não existe sequer aí diferença ou separação. Este comportamento do espírito para consigo não é, pois, a unidade originária, abstrata, a substância spinosista, o elemento substancial objetivo, mas a substância ciente, individual, a autoconsciência que se reconhece no Espírito Divino e nele se infinitiza. Eis a determinação que, no comportamento do espírito para consigo, estabelecemos como fundamento da religião (Introdução à História da Filosofia p.).

    No terceiro Tomo da Enciclopédia das Ciências Filosóficas, onde trata especificamente da Filosofia do Espírito, Hegel aprofunda o conceito a respeito das determinações da religião, em oposição ao catolicismo romano, como religião do Espírito que ab-roga o meramente exterior: Contudo, na religião católica, esse espírito é, na efetividade, contraposto rigidamente ao espírito consciente-de-si. Primeiro, na hóstia Deus é apresentado à adoração como coisa exterior (quando, ao contrário, na Igreja Luterana a hóstia como tal é consagrada e elevada a Deus presente nela, primeiro e somente na fruição, isto é, no aniquilamento da sua exterioridade, e na fé, isto é, no espírito ao mesmo tempo livre, certo de si mesmo. Dessa primeira e suprema relação de exterioridade, decorrem todas as outras relações [católicas romanas], por isso não livres [não condizentes ao espírito consciente-de-si e que repousa-em-si], não espirituais e supersticiosas; especialmente um laicato, que recebe o saber sobre a vontade divina, como também a direção da vontade e da consciência de fora, e de um outro estado [do Papado], que alcança, ele mesmo, a posse daquele saber não de maneira espiritual unicamente, mas precisa essencialmente para isso de uma consagração exterior. Além disso, a maneira de orar, que por um lado se faz só movendo os lábios para si [na consagração secreta do sacramento], por outro lado é um modo de orar falto de espírito, nisso que o sujeito renuncia de dirigir-se a Deus, e ora a outros para que orem por ele; a devoção que se dirige a imagens milagrosas, mesmo a ossos, e a espera de milagres por seu meio; em geral, a justiça por obras exteriores, um mérito que deve ser adquirido por ações, e, mesmo transferido a outros etc., tudo isso prende o espírito sob um "ser-fora-de-si" [que é o conceito de "espírito alienado" em Hegel, ou o espírito que está meramente preso a Outro] pelo qual seu conceito no mais íntimo é desconhecido e pervertido, e direito e justiça, eticidade e consciência moral, responsabilidade e dever são corrompidos em sua raiz (Enciclopédia das Ciências Filosóficas, § 552, Tomo III: A Filosofia do Espírito).

    A filosofia, para Hegel, possui o mesmo conteúdo da religião, e o assunto de ambos é apenas um, ou seja, Deus. Apenas o modo de tratar desse conteúdo é distinto. Mas ambos atuam, para ele, pelo espírito, e tem na infinitização do espírito a sua meta, ou seja, a própria liberdade, liberdade que se exterioriza no mundo, que se exterioriza nele pelas produções do espírito, ou seja, na religião, no direito, na ética e eticidade. Assim, a efetivação absoluta é a efetivação absoluta do espírito pela negação universal do meramente exterior, mas que retorna ao mundo ab-rogado como que efetivando a sua própria liberdade. Nesse sentido o princípio protestante que faz de Deus "Deus-para-si", é como que o princípio que ab-roga a alienação enquanto faz converter o conteúdo da religião ao próprio do homem que é o espírito, espírito cuja atividade suprema é o próprio pensar e o pensar na instância suprema da sua própria liberdade, ou seja, repousando infinitamente sobre si mesmo.

Mário Ferreira dos Santos, Hegel e o Princípio Matemático da Filosofia

    Alguém já havia me falado que o Mário Ferreira dos Santos seguia muito Hegel. E não deixa de ser curioso que ele denomina a sua filosofia como Filosofia Concreta, que é justamente o que Hegel dizia que deveria ser a filosofia, pois ela, a filosofia, não lidava com pensamentos abstratos, mas visava única e exclusivamente o concreto ao qual se chega pela via dialética (pela via negativa), até chegar ao positivo racional. 

    Também dizem que a maior obra do Mário Ferreira dos Santos lida justamente com aquilo que ele chamou de Decadialética, obra que usa muito desse desdobramento dialético da mônada que se auto-determina na díade, depois na tríade etc., muito semelhante ao que Hegel faz com a sua noção de autodeterminação da ideia que se desdobra em seu ser outro (na natureza), se resolvendo por meio do retorno a si da natureza como espírito, na tríade. Para Hegel essas são as três determinações do Espírito, Espírito que é, entre todos, o mais concreto, pois é a auto-efetivação livre do Absoluto.

    Só para complementar: o que o Mário Ferreira dos Santos chama de mathesis magiste tem a ver com o que Heidegger chamou de espírito matemático dos gregos. Esse espírito matemático podemos rastrear até à maiêutica socrática, pois o elemento pressuposto da maiêutica é que o espírito se auto-determina até à diferenciação da razão, ou seja, Sócrates, ao partejar as ideias de seus interlocutores, não infundia nenhuma informação nova, nenhum espírito novo, mas apenas extraía a ideia que já estava latente no indivíduo até ele perceber como resposta sua aquilo que ele já possuía dormitando em seu próprio espírito. 

    Heidegger, assim, afirmava que o máximo da diferenciação da matesis (o espírito matemático) era justamente essa auto-determinação do espírito que segue uma evolução em que todas os momentos da sua auto-determinação são ligados por um espírito lógico, e que só porque lógico é também espírito. Por assim dizer, no mundo ocidental a matesis chegou à consciência de si na Lógica de Hegel, lógica que também é teológica (víde Hegel). 

    O contra-ponto a esse espírito, à matesis, foi colocado em uma oposição conhecida contra Hegel na filosofia religiosa de Kierkegaard. No Migalhas Filosóficas Kierkegaard expõe propriamente contra a matesis grega a noção da revelação cristã. E é da maior importância essa oposição para ilustrar certa tensão no pensamento ocidental. Pois Kierkegaard colocava a ideia de que para o grego, ou para o socrático, a ideia dormia no indivíduo, enquanto que para o cristão essa ideia vinha de fora, via revelação. Nesse sentido o mestre é, para o grego, a ideia interior, seu espírito que esperava a diferenciação e descompactação. Para o cristão, o mestre é o Cristo, e a sua luz vem de fora, o que olhado à luz da Providência, e da noção de que a revelação também concede informações das quais a razão não é capaz, tem todo sentido.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Agostinho, os Anjos e o Supralapsarianismo

 Agostinho, no livro Cidade de Deus, na Parte II, Liv. XII, Cap. IX, diz o seguinte: 

Donde se segue a necessidade de crer que os santos anjos não existira nunca sem a boa vontade, quer dizer, sem o amor a Deus. E os outros, concriados com os bons, tornados maus por sua má vontade, obra não da natureza boa, mas de sua livre "defecção" do bem, pois a causa [eficiente] do mal não é o bem, mas a "defecção" do bem, ou receberam menor grau do amor divino que os que perseveraram ou, se uns e outros foram criados igualmente bons, estes caíram por sua má vontade e aqueles, mais agraciados, chegaram ao ápice da bem-aventurança, com a plena certeza de que jamais haveriam de perde-la [...]. 

Aqui Agostinho trata de uma certa infraestrutura sobre a qual é construído o argumento a respeito da distinção da qualidade da vontade dos anjos eleitos e dos anjos caídos. O pano de fundo é a discussão sobre o ser mesmo da vontade enquanto criação divina, a qual não pode ter sido criada má, mas igualmente boa entre anjos eleitos e não eleitos, os quais partilham, por tanto, igualmente uma natureza boa. O ponto fulcral, por tanto, é estabelecer a razão do aparecimento do mal na vontade dos anjos não eleitos, partindo do juízo de que a natureza deles é boa. Agostinho argumenta que a causa eficiente do mal uso da vontade, por tanto, não é o bem, já que isso implicaria em uma contradição lógica, mas sim a "defecção do bem". Tomás de Aquino diria que o mal não é uma causa, mas sim a defecção de todas as causas; não é um princípio, mas é a corrupção de todos os princípios. Resta, assim, a razão da causa do bem, que além da criação boa dos anjos, é o subsídio divino na sustentação dos anjos na linha do bem. 

Como dito acima, a razão da perseverança dos anjos no bem - que é algo que eles não alcançam a partir de si mesmos, mas sim a partir do concurso operante de Deus - foi a recepção de um maior grau de amor divino, causa da distinção desses.  Agostinho comenta: E, quando tal boa vontade os volta, não para a indigência do próprio ser [dos anjos], mas para a plenitude do ser infinito, , quando nessa união haurem nas fontes do próprio ser, da sabedoria e da beatitude, não é isso prova de que a sua boa vontade, por boa que fosse, não transporia os limites do estéril desejo, se Aquele que do nada fez a natureza capaz de conte-lo não a tivesse tornado melhor, enchendo-a de si mesmo, depois de haver incitado a impaciência do seu amor por Ele? Aqui o argumento de Agostinho é que houve um aperfeiçoamento dos anjos, e que o alcançaram apenas aqueles que d'Ele receberam uma maior medida do amor divino. Não se trata de uma concorrência para o bom ato a partir da incoação de uma graça geral, que após bem usada os anjos eleitos receberiam graças imperdíveis, trata-se antes de uma recepção de uma graça especial por parte de alguns que os tornaram capazes do ato sobrenatural de amor a Deus. É graça, pois sem essa a mera posse do desejo por Deus, como dito na última citação, não teria se convertido em ato.

Aqui se visualiza o princípio da dileção divina, causa da obtenção da graça para o ato sobrenatural que garantiu aos anjos eleitos o comporem as fileiras entre os santos e fiéis. E, no caso dos anjos, a eleição não ocorre como fundamentada em uma visão de queda, pois aos anjos é impossível a redenção. É, por ser uma eleição sem essa previsão, eleição sumamente supralapsariana (para além do conhecimento da queda).

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

O Mundo e o Conhecimento de Deus: Contra o Idealismo e o Panteísmo

    Quando se fala que o conhecimento do mundo começa com Deus seria bom, antes de tudo, pensar por qual tipo de Deus se começa a pensar o mundo nesse sistema, porque há de se levar em consideração que a ideia de Deus pela qual se começa a pensar o mundo nem é a do Deus cristão propriamente dito (ao menos, não se trata de sua ideia completa), pois alguns atributos a partir dos quais pensamos Deus também são atribuídos a doutros deuses. Aliás, pelo fato de os próprios atributos divinos serem atributos variados para a nossa razão (pois os atributos dizem respeito também aos fins distintos dos atos de Deus no mundo), até mesmo a formação da nossa noção de Deus, a princípio, demanda certa tarefa de predicação que não ocorre a não ser tendo em vista certos objetos da nossa experiência com o mundo.

    É por isso que na teologia clássica, mesmo na teologia reformada clássica, a ordem temporal é chamada de "ordem predicamental", pois o início do trabalho de predicação (pelo qual conhecemos certas qualidades dos objetos e infitizamos para atribuí-las a Deus - p. ex., quando chamamos Deus de Todo-Poderoso - porque o poder conhecemos como um fenômeno no mundo) pelo qual discursando a respeito de Deus é impossível sem o conhecimento do mundo. Assim também a ordem divina é chamada de "ordem transcendental", pois ela está acima da nossa capacidade natural, e tal ordem se reflete na ordem do mundo e se faz conhecer também pelos atos especiais de Deus no mundo. Nem podemos ir com os idealistas que falavam de um dado natural da razão pelo qual temos uma notícia complexa de Deus inata em nossa mente devido a tudo o que está acima - e nem podemos começar com a noção de que a nossa razão é um prolongamento físico ( i. e., natural) de Deus como pensam os panteístas.

    Obviamente que quando se entende que o conhecimento real do mundo só se completa com o conhecimento real de Deus, conhecimento que se dá no fim do processo do conhecimento (a ordem do ser é distinta da ordem do conhecer), entendemos que o sentido completo do mundo só pode vir à nossa mente quando entendemos que ele possui um fundamento eterno que é Deus. Mas nem por isso começamos a conhecer a Deus por si mesmo, a não ser na medida em que isso nos é possibilitado pelas informações de Deus refletidas no mundo cujo conhecimento nos é mais próximo, e, mais propriamente, na sua revelação. Ambos são conhecimentos de tipo objetivo, conhecimento que é complementado com o conhecimento subjetivo que se dá na iluminação do Espírito que precisam certos dados desses conhecimentos objetivos na nossa mente, nos auxiliando na formação de uma noção mais perfeita de Deus.

Fanatismo e Juízo

    Hoje compreendo que o fanatismo é um juízo de Deus; e dos juízo é um dos mais severos, porque cega quase ou completamente aquele que por ele é afetado - pois esse alarga a sua convicção perturbada até às raias do infinito.

    Aqueles que assim enlouquecem são gente que, como diz a escritura, será quebrantada sem que haja cura, ou perceberá sua insensatez tarde, quando se chocar violentamente contra a parede da realidade.

    Uma convicção errada, em nome de Deus, pode se prolongar indefinidamente, e todos os prejuízos reais a que isso leva, para a mente do fanático, podem ser redimidos pela ideia de que assim se sofre por causa de Deus e de sua vontade.

    Quase pouca coisa pode acordar aquele que assim pensa do seu delírio incontrolável, pois esse não é um delírio comum, mas sim um do tipo que em sua raiz encontra a sua própria justificação, encontrando aí um circuito inquebrantável.

    A graça é a única coisa que pode pode quebrar no fanático a sua cadeia mental - e essa graça é só Deus quem pode conceder.

Espírito e Discrição: Ou: A Verdade e a Condução Amorosa

    Um espírito rico jamais se permite o hábito de falar abertamente, senão com certa discrição. Cristo mesmo disse que do muito que ele tinha para falar aos seus discípulos, nada ele poderia comunicar por não ter achado entre os seus ouvidos capazes de ouvir.

    A verdade é que a comunicação aberta pode ser destrutiva, e o cuidado pastoral de Cristo esteve em conduzir pouco a pouco a consciência dos seus, coberta com várias camadas de falsos pensamentos, falsas imagens do mundo e de si mesmos, à luz - algo que não poderia ser feito sem certa cura e trato mais refinado.
    A nossa mente em geral se cobre de vários sistemas de crença falsos que servem, por vezes, de uma camada protetiva. Não é por acaso que a hipocrisia é como que a substância da moral pública e seu escudo de batalha. Muitas vezes nós mesmos não conseguimos certa paz sem empunhar certa mentira, ou sem ocultar certa verdade.
    Neste cenário, a simples franqueza se transforma em um tratamento de choque - por vezes necessário -, e como coisas assim não vem sem certo desagrado, sendo muito fácil e provável tomarmos a franqueza como ofensa e como razão do alargamento da ferida.
    A situação revela aqui um verdadeiro paradoxo: a verdade que a tudo pode salvar, porque a tudo orienta, é aquela que, dadas as atuais condições, também pode a tudo destruir: a face de Deus à luz da qual tudo vive é aquela que ninguém pode olhar e ao mesmo tempo continuar a viver.
    Como resolvemos esse paradoxo? A única resposta possível é a condução amorosa. Mesmo que não pudesse falar tudo, Cristo não deixou de dar segurança aos seus, confirmando-os como seus. A verdade por ser algo descarnado deve se revestir de um coração humano e assim vir até nós, e a verdade deve se estreitar com um beijo à misericórdia para que nossos ouvidos possam ouvi-la.
    É assim que a nós veio a verdade do nosso Deus e o Evangelho do nosso Senhor.

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Contra os Maldizentes

    O Leandro Bezerra, neste fim de semana, teve a iniciativa genial de corrigir uma tradução que apresentei de um trecho da obra De Fide et Symbolo (IV. 9.), de Agostinho, fazendo a severa acusação de que o texto que apresentei estava errado. Outros, mais empolgados e festivos disseram que eu estava fraudando o texto. Em primeiro lugar, para esclarecer as dúvidas desses que são como que integrantes do segundo coro da hierarquia celeste, a tradução não era minha, mas sim do Fabrício Girardi (ver aqui1); em segundo lugar, a tradução das demais citações - retiradas dos Tratados sobre o Evangelho de João - são do padre José Augusto Rodrigues Amado (como você pode ver aqui2). Vou colocar adiante a citação no original do texto da controvérsia e uma tradução no português e em outras línguas, e explicar algo para aplacar a fúria querubínica dessa gente zelosa que, semelhante a rainha de copas, prefere manter a difamação à suspenção do juízo diante de uma suspeita de erro.

    O texto no original latino é este: "Sed admonet potius ut intellegamus secundum Deum non eum habuisse matrem"3. Em inglês temos esta tradução: "But He rather admonishesus to understand that, in respect of His being God, there was no mother for Him"4. Em espanhol, temos esta outra: "Más bien este texto nos llama la atención para que comprendamos que Jesús, en cuanto Dios, no tiene madre"5. E em francês temos: "Nous y voyons plutôt une preuve que le Christ n'a point eu de mère en qualité de Dieu"6.

    Notem que as correspondências formais ou equivalências dinâmicas se intercalam nessas traduções - que são os dois princípios de tradução comumente utilizado pelas escolas (para ver sobre esses princípios, basta ler este texto7). Mas em resumo o princípio de correspondência formal busca verter da forma literal as palavras do texto original, não se importando com a harmonia sonora ou estética do texto (o que torna esse princípio pouco utilizado na hora da tradução de poesias, por exemplo). Já o princípio de equivalência dinâmica busca verter o texto não procurando a correspondência formal entre as palavras do original e do idioma para o qual são vertidas as palavras, mas sim a melhor expressão do sentido, focando a comunicação. Por assim dizer, ambos os princípios de tradução visam, mesmo que por vias diversas, a melhor forma de expressar o sentido original do texto, mas um foca na preservação da forma das palavras e o outro a comunicabilidade delas.
    Entendido isso eu posso colocar aqui o texto da Paulus - traduzido pelo Fabrício Gerardi - em confronto com o texto original. No texto de Gerardi temos a seguinte tradução: "Queria mostrar, acima de tudo, que Deus, que não tem mãe, [etc.]". Já no texto original temos o seguinte: "Sed admonet potius ut intellegamus secundum Deum non eum habuisse matrem". É possível ver que Girard opta por um texto em que prevalece aqui o princípio de equivalência dinâmica, mas que não chega a desvirtuar o sentido do texto. O texto em latim começa com uma adversativa, ou seja, com o "Sed" que é correspondente ao "Mas" - como se diz dos "Sed contra" [Mas em (sentido) contrário]. "Admonet" é algo como "aviso", donde o termo "admoestação", e o "potius" é "antes" (como: "antes" é melhor... etc.), e "ut intellegamus" podemos verter como "para [que] entendamos". Já "secundum Deum", é mesmo "segundo Deus", o que no francês é traduzido como "na qualidade de Deus", que em Inglês está como "em relação ao seu Ser [como] Deus". Já o "non eum habuisse matrem" é mais literalmente traduzido como "ele [que] não tinha mãe". Podemos traduzir da forma mais literal possível para o português da seguinte maneira: "Mas admoesta, ao invés, a compreendermos que ele, [que] enquanto Deus não tinha mãe, etc.". O "que" entre colchetes "[]", nesta última frase, eu coloco em razão do restante da frase que não precisa ser traduzido aqui.
    A razão pela qual optei por esse texto é que nesse terreno sensível eu posso me escudar em alguém que teve a competência de traduzir o trabalho inteiro do qual esse trecho foi tirado. Não se trata de uma tradução minha, e nem foi um trabalho de "fraudar um texto" da minha parte - coisa da qual estou sendo acusado, tendo isso um apoio do fato de o Leandro Bezerra ter dito, numa fala inconsequente, que se trata de um "erro de tradução". Mesmo ele reconheceu que se tratava de uma "tradução dinâmica" - fazendo clara referência ao princípio de equivalência dinâmica (que julgo, ao menos, que ele conheça, por ter estudado exegese bíblica) -, mas que isso "comportava riscos", ao mesmo tempo insinuando um "primarismo acadêmico" da minha parte etc.. E assim: o que o Leandro pensa ou deixa de pensar de mim é algo para o qual estou me lixando. O que me deixa inquieto é a miríade dos zelosos que gravitam em torno dele, que tem ódio ao protestantismo, e que entraram em uma toada difamatória, dizendo que eu "fraudei o texto", - mesmo que o Leandro soubesse (na pior das hipóteses), embora não tivesse se manifestado a respeito, de que não se tratava de uma fraude.
    Agora pergunto o seguinte: Qual a distinção absoluta entre "Queria mostrar, acima de tudo, que Deus, que não tem mãe, [etc.]", para: "Mas admoesta, ao invés, a compreendermos que ele, [que] enquanto Deus não tinha mãe, etc."? Eu respondo: a disposição caritativa, ou difamatória ou orgulhosa de quem os lê. Alguém querer sacar qualquer "heresia" dessas traduções é coisa simplesmente grotesca, mas se quiser sacar obviamente que assim o fará. O problema maior foi que o que eu escrevi acabou sendo colocado em meio a um controvérsia, já que o Leandro estava tentando responder ao Pedro França Gaião (que sim, tem às vezes um péssimo gosto por controvérsias), que jogou meu texto no meio das hienas, enquanto eles discutiam a respeito de Nestório.
   Mas algumas notas a respeito do meu texto, que é este8: 1) Eu não afirmo que Agostinho é nestoriano; 2) Afirmo que Agostinho cria na unidade substancial entre a natureza humana e divina na hipóstase una do Filho de Deus; 3) Eu concedo validade ao termo Teótokos (Mãe de Deus) por causa da sua referência cristológica; 4) Quanto ao que eu disse que "em sua literalidade" certas afirmações não seriam "efesianas" eu me reservei ao sentido de que olhando o todo da sua obra, e se atento a isso, Agostinho não teria alcançado Éfeso - o que não implica que em sua teologia ele seja um antagonista de Éfeso (há um abismo de diferença entre uma coisa e outra; 5) A minha tese é que a teologia de Agostinho assim é porque ele não chegou ao nível de diferenciação da discussão tal como foi travada em Éfeso; 6) Sei que Éfeso guarda a linguagem diferenciadora quando a consideração daquilo que compete a Cristo no concreto (em vista da encarnação) e no abstrato (considerando as naturezas humanas e divinas em suas especificidades próprias), pois o Concílio não nega que no abstrato Deus não tem mãe (Agostinho), e que no concreto Deus tem mãe (em razão da união, pois é próprio da humanidade o ter mãe). 7) A questão é que Agostinho não toca na consideração a respeito da linguagem que convém ao concreto (neste tema específico, ou seja, ele não chega a utilizar o termo "Mater Dei") em toda obra sua que pode ser verdadeiramente creditada a ele de forma direta9, muito embora outras afirmações dão conta de que Agostinho não é contra Éfeso.
    E aqui fica a razão pela qual eu escrevi esse texto: a razão foi conceder de forma generosa de pronto que os mais evangelicais não podem ser considerados nestorianos porque tem reservas quanto ao termo "Mãe de Deus". Eles muito bem podem considerar - como o fazem no mais das vezes - a questão analítica e abstratamente (considerando a natureza de Deus em si mesma), mas não no concreto. Mas é óbvio que em uma consideração mais global, levando em conta o concreto da encarnação e sua consequência em sentido amplo, não se pode negar que Maria é mãe de Deus, assim como não se pode negar que "Deus tem sangue", como afirma a Escritura Sagrada (At 20.28).
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[1] AGOSTINHO. A Fé e o Símbolo. IV.9. Coleção Patrística, Vol 34. Ed. Paulus, São Paulo-SP, 2018, 2ª reimp. p. 41.
[2] Idem. Comentário ao Evangelho de João e Apocalipse, Tomo I. Ed. Cultor de Livros, São Paulo-SP, 2017. p. 165-167.
[7] WEGNER. Exegese do Novo Testamento: Manual de Metodologia. Ed. SINODAL/EST. São Leopoldo-RS. 8ª Edição, 2016. p. 47-52.
[9] Os textos em que mais há uma proximidade disso que já li são dois: 1) O "Virgindade Consagrada" (Coleção Patrística, Vol. 16. Paulus, São Paulo-SP, 1ª ed. 2000. V.6. e VI.6. p. 105, 106.), onde Agostinho afirmar que Maria é mãe da Igreja, segundo o espírito, porque gerou os "membros do corpo de Cristo" do qual fazemos parte, mas sendo "mãe da divina cabeça segundo a carne"; 2) No tratado VIII.9 do Evangelho de João (conf. a nota 2. p. 166), Agostinho diz que "Antes que Deus criasse aquela de quem ele havia de nascer enquanto homem, já a conheceu como mãe", e isso em virtude da encarnação como um futurível certo segundo a ciência de visão - visualizando a encarnação que Deus considerou evento certo, antes da criação de todas as coisas.