A ação humana é algo que não prescinde - lógico - do ser humano. Sendo assim, é impossível que tal ação não seja, de alto a baixo, algo integral, envolvendo a totalidade do indivíduo. As ações diferenciam-se em qualidade, intensidade, localidade e autoria, mas, acima de tudo, trata-se de uma ação humana no mundo.
Começo o texto com esta breve
explicação para seguir discorrendo sobre um assunto um tanto cinzento, informe,
mas que é de fundamental importância - principalmente nos dias de hoje. Esse
assunto é a relação entre religião e política.
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A religião - e isto comprova a
história - foi, e ainda é, a principal matriz civilizacional. Isso ocorre
porque uma sociedade, por princípio, tem a necessidade de ordem e
valores. Ela, por tanto, demanda metafísica: princípios estruturais
universais e permanentes que asseguram uma razão e sentido para todas as
coisas. Tais princípios devem fundamentar o sentido da existência e as relações
sociais; a vida individual e coletiva. A metafísica, por tanto, retira o homem
do estado de animalidade; é a possibilidade do triunfo da razão e do sentido
sobre o caos; nos retira da agonizante ideia da vitória do bem sobre o mal; faz
a vida andar.
A religião existe por causa
do mundo metafísico - o mundo do espírito -, pois crê ela que é no mundo do
espírito que se encontra a verdade. O primeiro grande mandamento ensinado por
Jesus Cristo exige um amor total por Deus - aquele que, segundo ele, é espírito
(Jo 4:24). Se lermos na bíblia algo sobre a razão do triunfo humano, ela,
totalmente, estará ligada a Deus. Ele, vemos, é o grande vitorioso sobre o
Caos, sobre a Morte e sobre os demônios. Ele constitui o sentido da superação;
a razão da vida e da continuidade dela; ele é o grande sentido que permite o
homem não definhar em meio à hostilidade do mundo. Mas, também, Deus é aquele
que pode ser a razão da hostilidade do mundo. Ali, no contexto da hostilidade,
Deus ainda ordena marchar e viver. Que diga Jó.
A busca pela compreensão das
coisas - essa infatigável "pulsão" que condena o homem a tentar
compreender tudo -, só pode ter sentido se de fato há sentido - se há espírito.
Nisso se sobressaem as religiões justamente porque, por exemplo, não há uma
matriz para a construção de sentidos no mundo e de moral mais potente. O mito
fundador do cristianismo (que, sob hipótese alguma, pode ser compreendido como
mentira) - a bíblia -, traz em si elementos tão potentes para a construção do
caráter do indivíduo, orientando-o para a vida, que a veracidade de sua
"metafísica" é evidente quando olhamos, no mundo ocidental, por
exemplo, a instituição do casamento monogâmico, sem contar o nome de cidades e,
como observou Nietzsche no seu livro "Além do Bem e do Mal", o rigor
científico e filosófico que, em seus primórdios, era uma demanda fundamentada
na veracidade de Deus (no caso da filosofia), e, por causa desta veracidade,
por ele ser o Criador do Mundo (não poderia, por isso, criar uma mentira, nem
algo inteligível ou ilógico): a "maldição" da teologia está
inalienavelmente fixa em nosso tecido cultural.
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Com base nisso, podemos
continuar compreendendo a unidade da ação humana no mundo - por tanto, quando
existe e age, o homem somente pode fazer estas coisas como um todo, e não em
parte.
A criação da divisão entre o
Estado e a Igreja foi algo defendido ferozmente por Lutero, que se sentia
escandalizado com o fato de que o Papa gozasse de tanto poder temporal, se
servindo de exércitos, ordenando campanhas militares, ao invés de atuar no
campo apenas espiritual (cultural, como compreendo).
No entanto, esta interpenetração
entre política e religião nunca deixou de existir com o próprio Lutero, pois o
seu poder de ação se estendia diretamente aos negócios do Eleitor Frederico III. Tanto
era assim, que se lermos nos prefácio dos seus escritos, veremos que geralmente
eles são dedicados ao príncipe. Também a sua influência foi determinante na
batalha contra a revolta dos camponeses quiliastas, o que nos leva a
compreender que esta cisão absoluta, não fora ideia de Lutero. O que Lutero
desejava, no entanto, é que os sacerdotes, incluindo o Papa, se desse mais ao
pastoreio das almas, do que o envolvimento direto com as guerras como generais
e capitães, por exemplo, ou como monarcas (no caso do Papa) - mas vemos que no
caso da guerra, isso foi algo impossível com o próprio Lutero.
Seguindo no contexto da
Reforma, um dos movimentos oriundos daí que por motivos de existência mais
lutou contra a ingerência do estado na vida individual, e que tanto aclamou a
separação entre Igreja e Estado por causa daquilo que entendemos por "liberdade
de consciência", foi o movimento conhecido como anabatista.
A razão - novamente
teológica, vejam! - de existência deste movimento estava ancorada na tentativa
de formar uma Igreja realmente composta por indivíduos convertidos e cientes de
sua fé em Jesus Cristo. Na Inglaterra, que viu os primeiros frutos mais
abundantes deste movimento, mesclado a princípios calvinistas, eles seriam
conhecidos como os "Puritanos". A ideia dos puritanos estava embasada
em um repúdio à qualquer Igreja estatal. Segundo eles, a Igreja não deveria ser
obrigada a conviver com indivíduos não convertidos que estariam ligados a ela
somente por motivos de nascimento ou nacionalidade. É daí que surge, também, um
dos motivos para a rejeição integral do batismo infantil: um recém nascido não
poderia fazer uma profissão de fé fundada na consciência pessoal. Vemos nesta
teologia, também, a razão da rejeição radical ao catolicismo, ao
presbiterianismo e ao luteranismo.
Se seria possível esta Igreja
"pura", aí é que o meu ceticismo pesa. Mas filosofias a parte, no
momento é importante compreender - justamente por que o grosso do movimento
evangélico no Brasil tem uma profunda raiz neste movimento puritano -, que o
motivo fundamental para a existência desta ideia de separação entre Igreja e
Estado está, aqui, ancorada no desejo de desligamento da igreja estatal da
Inglaterra: a Igreja Episcopal Anglicana. Também por isso, esta evidenciado o desejo de liberdade de consciência com o intuito de tornar mais claro o
engajamento na fé. No entanto, como podemos perceber, tal movimento que
desejava despolitizar a Igreja, foi um movimento político que repercutiu
poderosamente na cultura, colocando a liberdade individual acima de muita coisa
- mas não vamos tratar disso agora.
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Contudo - voltando para a
filosofia -, seria possível compreender esta "despolitização" como
algo apolítico? Materialmente este negócio é impossível, pois a política é tudo
aquilo que é relacionado à pólis (cidade), segundo Aristóteles, e, por tanto,
para as relações humanas; e, nesse sentido, se uma ação humana é por princípio uma ação histórica que se
relaciona ao homem, a fé individual, assim como qualquer outra coisa neste
mundo, não pode ser tão isolada e apolítica assim. Mesmo a privacidade é um
assunto público, se, de fato, devemos respeitá-la. Nada há que não seja
absolutamente apolítico - mas é sério quando tudo vira política, no sentido de
começar por ela e não pelas pessoas. Compreendamos, por tanto, que a política é um produto final, e
que se inicia no plano do espírito humano.
Com isso, nos encontramos com o ser humano histórico, com a sua consciência individual e seu universo de valores a orientá-lo no mundo. Nos encontramos com o indivíduo cristão que, com toda a sua desmundanização, ainda continua a ser histórico, ainda que viva a sua vida ascética no deserto ou em um mosteiro. Temos também os ascéticos intra-mundanos (como dizia Max Weber com respeito aos protestantes), com toda a sua ideia de desvinculação entre Igreja e Estado. Tudo bem! Mas convenhamos: culturalmente, tal pensamento aistoricista (um neologismo) é simplesmente um sonho. Por mais irrelevante que seja, o indivíduo religioso é um germe no universo, traz em sua consciência uma visão de mundo e passa a outros. Se orienta por essa visão - assim se espera, pelo menos. E sabemos que qualquer visão de mundo deseja, a princípio, ser universal. Deseja reproduzir, convencer, transformar. Pois bem, temos diante dos cristãos o texto bíblico, aquele que afirmamos mais acima que é o portador de um potente mito fundador. Ele - e isso é evidente -, traz um germe civilizacional ímpar, grave, pesado mesmo. Como seria o mundo e nós mesmos indiferentes a isso?
Por tanto, podemos concluir que o religioso e o religioso cristão com sua existência são coisas determinantemente políticas, e assim seria mesmo se eles não quisessem. Isso - é óbvio! -, para o cristão, traz à luz a sua responsabilidade no mundo, pois seu compromisso com Deus, por Cristo, assim é um compromisso encarnado, histórico, impassível à indiferença. Tal vez, no lado cristão, esse desejo de separação entre a vida religiosa e a vida pública tenha o cheiro do docetismo, da negação da encarnação, da negação das responsabilidades históricas. Claro, não iremos transfigurar o mundo, não impediremos ninguém do usufruto de sua liberdade - por mais que as decisões com base nesta liberdade sejam desastrosas, para nós -, mas não precisamos, também, desse cúmulo de humildade. A nossa consciência - ou alma - é a divisa do mundo, é ali que nossa vida acontece. É ali que, para nós, tudo começa. É ali que opera, primeiro, a nossa fé; e como sabemos, a fé abala radicalmente o mundo.
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