sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Oração de S. A. Kierkegaard

   Como se poderia falar corretamente do amor, se Tu fosses esquecido, ó Deus do Amor, de quem provém todo amor no céu e na terra; Tu, que nada poupaste, mas tudo entregaste por amor; Tú que és amor, de modo que o que ama só é aquilo que é por permanecer em Ti!
   Como se poderia falar corretamente do amor, se Tu fosses esquecido, Tu que revelaste o que é o amor; Tu, nosso salvador e reconciliador, que deste a Ti mesmo para libertar todos!
Como se poderia falar corretamente do amor, se Tu fosses esquecido, Espírito do Amor, que não reclamas nada do que é próprio Teu, mas recordas aquele sacrifício do Amor, recordas ao crente que deve amar como ele é amado, e amar o próximo como a si mesmo.
   Ó, Amor Eterno, Tú que estás presente em toda parte e nunca deixas sem testemunho quando Te invocam, não deixam sem testemunho aquilo que aqui deve ser dito sobre o amor, ou sobre as obras do amor.
   Pois decerto há poucas obras que a linguagem humana, específica e mesquinhamente, denomina obras de amor; sincera na abnegação, uma necessidade do amor, e justamente por isso sem a pretensão de ser meritória.

A Filosofia da História de Eric Voegelin

   A filosofia da história de Eric Voegelin nos cinco volumes da obra "Ordem e História" e a sua concepção do "salto no ser" ocorrido em Israel por meio da revelação e na Grécia por meio da filosofia, seguido da síntese cristã entre revelação e filosofia (no advento de Cristo e na formulação teológica através dos seus maiores teólogos - Agostinho, Tomás de Aquino, Hooker etc.), é simplesmente maravilhosa.
   Ele restaura em sua obra a percepção de que a cultura, a política e a civilização possuem um cerne espiritual, que é, ao mesmo tempo, o centro vital através do qual a ordem de uma civilização vem a ser. Qualquer cultura que perdeu o seu centro espiritual através do qual o Ser é revelado ao indivíduo e à sociedade na verdade está a beira do fracasso total.
   Essa é a compreensão que falta a um mundo corroído por um materialismo bronco e por revoltas ideológicas que fecham a alma para a presença de Deus revelada à mente (filosofia) e que fundamenta a consciência histórica da humanidade sob Deus.
   Ao se fechar para a realidade espiritual transcendente, o fundamento para a compreensão dos valores e a substância da sociedade caem em ruína, fazendo com que os homens optem por valores vulgares ou pelas paixões que se elevadas ao nível dos valores fundamentais, conduzirão a sociedade para o Xeol (mundo dos mortos). A ruína social é a perda da substância da sociedade que a mantém unida, substância manifesta nas artes, na cultura, na moralidade, no amor mútuo e no amor intelectual.
   Platão, consciente da desintegração social da Heléade por meio da invasão dos sofistas na assembleia (o que acabou por corromper a política grega), assim como por causa da inadequação perniciosa da teologia homérica, e a consciência aguda de Santo Agostinho de que os cultos aos deuses corrompiam as pessoas, levando-as à cauterização de suas consciência e à nutrição do seus desejos egoístas e frívolos com a consequente desintegração pessoal causada pela nutrição nessas paixões frívolas, estão no cerne de uma séria filosofia da história.
   A resposta de Platão para a desintegração política em sua filosofia mística baseada na contemplação amorosa do Ágaton (o Bem), e a resposta agostiniana para a desintegração do império na revelação da graça vivida através da fé, são pontos fundamentais da filosofia da história de Eric Voegelin. A isso Voegelin contrapõe o fechamento da alma no imanentismo das ideologias modernas, seja o positivismo comteano, a dialética materialista de Marx ou o nacionalismo racista do iluminismo. Para ele todas essas ideologias são formas de imanentização do Eschaton (da realidade última) e tentativas de criação do paraíso terrestre em contraposição à reconciliação transcendental do homem com o seu fundamento divino para além da história na filosofia grega e na teologia cristã.
   Sendo uma das partes mais instigantes e frutíferas da filosofia da história de Voegelin, a ideia do imanentismo ideológico, segundo ele, é algo que deita raízes profundas na história do ocidente. Nascida de heresias medievais, o imanentismo escatológico é filho do quiliasmo, doutrina herética que afirma um reinado paradisíaco de Cristo no mundo por mil anos. Franciscanos, joaquimitas, puritanos e mesmo especulações frívolas sobre a o símbolo eucarístico estão no cerne daquilo que ele chama de "imanentização do eschaton" e da ideia de "transfiguração da história". Ao secularizarem os símbolos cristãos os heréticos abriram as portas para a ideologia da transfiguração comunista da sociedade sem classes (já presente em franciscanos radicais) ou a transfiguração levada a cabo pela ciência. A ideia de transcendência, ao ser alocada para o mundo, deixa de sê-la para dar lugar a um imanentismo filosófico presente em filosofias de tipo hegeliano - a filosofia que manifestou o absoluto na mente de Hegel - que apontam o "fim da história" imanente (interior) ao mundo.
   Dessa imanentização, e da perda de vista da medida divina invisível característica de filosofias como a de Platão e Aristóteles, o homem é empurrado para uma história achatada sob as leis biológicas ou materialistas. Daí a medida da verdade é ou a régua do positivista (que coloca sob sua régua o crânio longo do criminoso, como o fez Lombroso), ou as "leis inevitáveis" da história, diante das quais só cabe sentar e ver a banda comunista passar. Ao se deixar medir por essas réguas ou leis o homem perde o cerne espiritual da sua liberdade, tornando-se um joguete nas mãos de burocratas que de agora em diante planejarão a sociedade. De quebra, a perca da transcendência nunca vem vazia, mas sempre se manifesta na substituição da fé na medida invisível pela fé na ciência ou na política.
   Essa redução antropológica e a perda do presente sob Deus, ao propor a libertação do homem, acaba por encerrá-lo sob um controle autoritário de um burocrata achatado. Se Deus é substituído pela medida ideológica então o Partido é o novo deus, deixando de ser Deus a medida invisível e transcendente cuja compreensão opaca por parte do homem é o que, ao mesmo tempo, faz com que a liberdade também seja possível, retirando a autoridade última das mãos do homem. O reino dos símbolos e da concepção não exata do ser de Deus, assim como a impossibilidade de reter a Deus em um código é uma razão fundamental para que o homem usurpe Sua autoridade na história. É essa relação no lusco-fusco com Deus que constituiu o elemento revelatório que fez com que Israel demolisse, em Moisés, as bases dos impérios cosmológicos antigos que funcionavam à base do movimento dos astros. Essa medida invisível é a crítica radical ao homem e à sociedade humana e ao mesmo tempo é a razão da liberdade no presente sob Deus.
   Mas distinto disso é o silogismo assassino da divindade chamada "Partido". E isso nos faz entender a razão pela qual se Deus é expulso da história o autoritarismo demoníaco de uma oligarquia de iluminados toma o seu lugar. Eric Voegelin nos faz entender a razão pela qual a compreensão da medida invisível é um salto no ser, e o porque de o imanentismo dos "perfecti" gnósticos, os coveiros do espírito, que acreditam ter a medida do homem em suas cabeças, é o simbolo da ordem e a razão da desordem moderna.