terça-feira, 30 de novembro de 2021

As Vestes do Pecado e o Flagelo que Assumiu por Nós: Comentário de Jerônimo a Mt 27

    Jesus foi entregue, então, aos soldados para que fosse açoitado, e os açoites retalharam aquele sacratíssimo corpo e aquele peito capaz de Deus. Fez-se isso, pois, para que, como está escrito: "Muitos são os flagelos dos pecadores", sendo ele açoitado, nós fôssemos libertados dos golpes conforme o dizer da Escritura ao varão justo: "Nenhum flagelo chegará à tua tenda".

    "Os soldados do governador conduziram Jesus para o pretório e rodearam-no com todo o pelotão. Arrancaram-lhe as vestes e colocaram-lhe um manto escarlate..." [...] No manto escarlate, Jesus carrega as sangrentas obras dos pagãos [...].

    "Depois de escarnecerem dele, tiram-lhe o manto e entregam-lhe as vestes. Em seguida, levaram-no para o crucificar" - Quando Jesus é flagelado, cuspido e escarnecido, não leva a própria veste, mas aquela que por nossos pecados assumira; quando, porém, vai ser crucificado, tendo passado toda aquela encenação de deboche e de escárnio, recebe então as vestes originais, assume o próprio ornamento, e, ao instante, os elementos se perturbam e a criação presta seu testemunho ao Criador"1.

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[1] JERÔNIMO. Comentário ao Evangelho de Mateus 27.26-29,31. Ed. Paulus, São Paulo-SP, 2020. p. 365-367.

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Platão e a Modernidade Política

    Na penúltima publicação afirmei que Platão cavou um sulco indelével na mente do mundo. Em todo mundo ocidental isso é conhecido. E para parafrasear Goethe: "tudo o que é muito conhecido é por isso mesmo, paradoxalmente, não tão bem conhecido".

    A questão é que Montesquieu, que foi quem forneceu a moldura das instituições públicas modernas na tripartição de poder e as formas de eleições da magistratura, foi ricamente influenciado pelas "Leis" de Platão. Platão, assim, não delineou de forma duradoura o itinerário, principalmente, do pensamento do mundo ocidental, mas ainda exerce de forma marcante influência sobre o desenho de suas instituições.

    De fato, Platão afirmou há mais de dois milênios atrás que uma constituição deveria resultar da união das formas de governo democrática, aristocrática e monárquica, coisa presente nas instituições modernas, sendo a forma mais democrática de governo constando nas câmaras "baixas" (parlamento federal p.ex), a forma aristocrática no senado, e a forma monárquica no executivo (governo, presidência, primeiro ministro etc.).

    Até muito da definição das idades distintas para cada cargo está presente nas "Leis", e até recentemente o tempo limite de um magistrado da suprema corte no Brasil era de 70 anos, idade limite para os juízes, segundo Platão, os quais deveriam exercer a função por no máximo 20 anos

A Dupla Via de Acesso a Deus; Ou: Teófilo, Orígenes e Agostinho e a Questão das Virtudes Éticas e Dianoéticas

    Um dos aspectos mais interessantes do pensamento dos antigos teólogos cristãos é que o conhecimento de Deus exige precondições que podemos chamar, segundo o que se convencionou na filosofia, de precondições éticas, assim como precondições dianoéticas, ou seja, precondições morais e intelectuais. A compreensão desse tipo de pensamento é importante em virtude da percepção que essas disciplinas nos dão a respeito das disciplinas espirituais tal como compreendidas pelos teólogos cristãos antigos, algo que é de imensa validade para nós.

    Agostinho nesse sentido afirma:

Esta disciplina é a própria lei de Deus que, permanecendo sempre fixa e inabalável nele, quase se inscreve nas almas sábias para que tanto melhor saibam viver e tanto mais sublime e mais perfeitamente a contemplem com sua inteligência e com maior empenho a guardem em sua vida. Esta disciplina impõe aos que desejam conhecê-la uma dupla ordem, da qual uma parte se refere à vida, outra à erudição1.

    Em outras palavras, Agostinho exorta aqui que se cultive certas virtudes que podemos chamar de "éticas", ou virtudes morais, e as virtudes "dianoéticas", que seriam as virtudes da mente, afim de alcançarmos uma unidade com Deus.

    Mas Agostinho não está isolado nessas considerações, pois essas podem ser rastreadas desde os primeiros apologistas. No II século d.C., Teófilo de Antioquia discorreu sobre as condições morais e intelectuais para a apreensão de Deus nestes termos:

De fato, Deus é experimentado por aqueles que podem vê-lo, desde que os olhos de sua alma estejam abertos. Todos têm olhos, mas alguns os têm obscurecidos e não percebem a luz do sol; e não é porque os cegos não vêem que a luz do sol deixa de brilhar, mas os cegos devem buscar a causa em si mesmos e em seus olhos. Do mesmo modo, ó homem, tu tens os olhos de tua alma obscurecidos por tuas faltas e tuas más ações2.

    Das consideradas "virtudes dianoéticas" para a visão de Deus, Teófilo parte da consideração de que há uma possibilidade de se conhecer Deus partindo de uma comparação entre as ações de Deus no mundo e o próprio Deus e as relações entre a alma e o corpo, ou partindo de uma reflexão sobre a estrutura da própria criação ou sobre as relações humanas, ou seja, partindo da "analogia entis":

Do mesmo modo como a alma não pode ser vista no homem, pois ela é invisível para os homens, mas pode ser imaginada por causa dos movimentos do corpo, assim também acontece com Deus: ele não pode ser visto pelos olhos humanos, mas pode ser visto e imaginado pela sua providência e pelas suas obras [...] Assim como o grão da romã, do interior de seu habitáculo, não pode ver o que está fora da casca, pois está lá dentro, também o homem, que é envolvido com toda a criação pela mão de Deus, não pode contemplar a Deus. Além disso, crê-se que um soberano terrestre existe, embora ninguém o veja: suas leis, seus editos, seus funcionários, suas autoridades, suas estátuas o tornam conhecido. E tu não queres reconhecer Deus pelas suas obras e manifestações de seu poder?3 (Ibidem 5).

    Orígenes que também enxerga a visão de Deus como o "fim" (τελος) do homem, afirma que há precondições morais para essa visão de Deus:

Além disso, segundo o que afirmamos, Deus, não sendo um corpo, é invisível. Mas através daquele que se entrega à contemplação, ele pode ser contemplado com o coração, quer dizer, com o espírito, e não com qualquer coração, mas com o coração puro. Pois não é permitido que o coração manchado veja a Deus, mas é preciso a pureza para se poder dignamente contemplar aquele que é puro4.

    Da mesma forma, partindo da relação entre o sensível e o inteligível, Orígenes afirma a possibilidade de conhecimento de Deus mediante o conhecimento do mundo, o que constitui o método mesmo da analogia entis:

E não é em obras pouco acessíveis, lidas somente por pequeno número de eruditos, mas sim mais populares, que está escrito: “Sua realidade invisível — seu eterno poder e sua divindade — tornou-se inteligível, desde a criação do mundo, através das criaturas” (Rm 1,20). Decorre daí esta conclusão: embora os homens nesta vida devam partir dos sentidos e do sensível quando querem se elevar até a natureza do inteligível, de modo algum devem se prender ao sensível. Tampouco diremos que é impossível sem o uso dos sentidos conhecer o inteligível, ainda que se proponha a questão nestes termos: quem pode conhecer sem o uso dos sentidos? Provaremos que Celso não teve razão em afirmar que isso não tem a ver nem com o homem nem com a alma, mas com a carne5.

    De forma mais ampliada e sistematizada, Agostinho especifica o que seriam tanto as condições morais como intelectuais para a apreensão da verdade divina. E começando por discorrer sobre os pré-requisitos morais para a compreensão da verdade ou do Logos divino, Agostinho prescreve disciplinas morais como segue:

Portanto, os jovens que se dedicam ao estudo dessa disciplina devem viver de tal modo que se abstenham de assuntos eróticos; dos prazeres da glutonaria; do desregrado cuidado e adorno do corpo; das fúteis ocupações com espetáculos; da indolência de tanto dormir e da preguiça; da rivalidade; da difamação e da inveja; das ambições de honras e poderes; do imoderado desejo do próprio louvor. Saibam que o apego ao dinheiro é um veneno certíssimo para toda a sua esperança. Não façam nada com fraqueza, nada temerariamente. Nas faltas de seus familiares reprimam a ira ou a refreiem de tal modo que ela pareça vencida. Não odeiem a ninguém. Não queiram curar todos os males. Observem muito ao punir para que não seja demasiado, e não seja pouco quando o castigo é reconhecido. Não deem castigo se não servir para melhorar e não perdoem se isto for ocasião para piorar. Julguem amigos seus todos aqueles sobre os quais vocês tenham recebido poder. Procurem servir-lhes de tal modo que vocês tenham vergonha de ter poder sobre eles; tenham poder sobre eles de tal modo que tenham prazer em servir-lhes. Nos pecados dos outros não se incomodem se eles não recebem a correção de boa vontade. Evitem com toda precaução as inimizades, suportem-nas com toda equanimidade, acabem com as inimizades o quanto antes possível. Em toda conversação e convivência com os homens basta observar este provérbio popular: Não façam a ninguém o que não queiram que lhes façam. Não aspirem a administrar a coisa pública se não forem perfeitos. E cuidem para se aperfeiçoar antes de chegar à idade para ocupar um cargo de senador ou, melhor, já na juventude. Mas, se alguém se converte em idade avançada a estas coisas, não pense que não lhe diz nenhum respeito este preceito: pois certamente guardará estas coisas com mais facilidade pela sua idade. Em todo tipo de vida, em qualquer lugar e ocasião procurem ter ou fazer amigos. Mostrem condescendência com as pessoas dignas, mesmo que elas não esperem isso. Não se perturbem por causa dos soberbos e de modo algum sejam como eles. Vivam de maneira apropriada e conveniente. Venerem a Deus, pensem nele, busquem-no apoiados na fé, esperança e caridade. Desejem a tranquilidade e um currículo seguro para seus estudos e para todos os seus colegas. Almejem uma mente boa e uma vida pacata para si mesmos e para todos aqueles para os quais vocês possam desejar6.

    Esse suíte imenso de prescrições exemplifica o itinerário moral para a visão de Deus, coisa já presente entre outros filósofos além dos filósofos cristãos. Mas esse esforço moral não é unilateral, pois é seguido também em paralelo com certas disciplinas que visam a elevação da mente para essa empreita. Nesse sentido Agostinho afirma:

    A seguir, exporei como devem instruir-se os estudiosos que já orientaram sua vida segundo o que foi dito acima. Necessariamente somos levados a aprender de dupla maneira: pela autoridade e pela razão. Em função do tempo, a autoridade tem prioridade, mas em função da própria coisa a prioridade está com a razão. Uma coisa é aquilo para o qual se dá prioridade ao agir e outra o que se tem em maior apreço na intenção. Por isso, embora à multidão ignorante pareça mais saudável a autoridade dos homens bons, a razão se adapta mais aos instruídos7.

    Avaliada a "dupla via de conhecimento", ou seja, pela autoridade e pela razão, Agostinho descreve o que seria propriamente a razão, e sua utilidade para o conhecimento divino:

A razão é o movimento da mente capaz de discernir e estabelecer conexão entre as coisas que se conhecem. Utilizar-se dela como guia para entender a Deus ou a própria alma que está em nós ou em toda a parte, é próprio de pouquíssimos no gênero humano, não por outro motivo senão porque para aquele que está disperso nos assuntos dos sentidos é difícil voltar-se a si mesmo8.

    Aqui o hiponense segue a tradição filosófica que moldou muito o seu pensamento, ou seja, o platonismo, que também afirma ser a posse da razão privilégio de poucos, além de fazer estabelecer o paralelo entre o múltiplo e o mundo sensível caracterizado pela da dispersão da atenção (na sensualidade e demais prazeres e objetos de cobiça), e o uno à razão. Indo adiante, Agostinho expõe o como que as disciplinas liberais podem ser vias de acesso à verdade, isto é, como elas podem ser vias de ascese mental pelas quais afiamos a nossa razão, tornando-a um instrumento capaz de captação da verdade naquilo que lhe é possível. Assim ele destaca as disciplinas da gramática, dialética, retórica, a, aritmética, música, a geometria e a astronomia, ou seja, as sete disciplinas das artes liberais, senso estas matérias propedêuticas (que perfazem o ensino básico, ou introdutório) à compreensão da realidade, realidade que envolve a realidade do mal, da ordem do mundo, da distinção entre sensível e inteligível e da natureza da alma, assim como natureza de Deus.

    Após discorrer sobre os pré-requisitos morais, assim como os requisitos intelectuais para a contemplação de Deus, Agostinho afirma sobre o fim dessa praeparatio:

Estas e muitas outras coisas a alma bem instruída fala consigo mesma e desenvolve dentro de si. Mas não quero prosseguir nessas reflexões para que, uma vez que desejo ensinar-lhes sobre a ordem, não venha eu a ultrapassar o modus (comedimento), que é o pai da ordem. Pois a alma se eleva gradativamente à perfeição de costumes e de vida não apenas só pela fé, mas também com certa razão [...]

Mas quando a alma se adorna e se ordena e se torna harmoniosa e bela, ousará ver a Deus e a mesma fonte de onde mana toda a verdade e ao próprio Pai da Verdade. Grande Deus, como serão aqueles olhos! Como serão puros e formosos, vigorosos e firmes, serenos e felizes! E que é aquilo que eles veem? O que, digam-me. O que podemos julgar que seja, o que avaliar, o que falar? Diariamente ocorrem-nos palavras, mas que são todas elas manchadas de coisas muito vis. Nada mais direi senão que nos é prometida a visão da beleza, por cujo reflexo são belas as demais coisas e se tornam feias se comparadas com ela.10.

    Obviamente que Agostinho não nega que os não instruídos nessas artes não possam vir a conhecer a Deus, muito embora ele tenha a tendência a não considerar os indoutos como felizes neste mundo, como segue:

Mas aqueles que, satisfeitos apenas com a autoridade, se aplicam com constância a uma vida de bons costumes e desejos justos, porque ou desprezam a aprendizagem ou não têm força de vontade suficiente para instruir-se nas boas disciplinas liberais, não sei como poderia chamá-los de felizes nesta vida, mas creio firmemente que, logo que saírem deste corpo, terão maior facilidade ou maior dificuldade em liberar-se conforme tenham vivido mais ou menos retamente11.

    Contudo não se deve desprezar que esse livro, mesmo que evidentemente profundo, foi no início carreira teológica de Agostinho. Assim, nas Retratações, texto escrito no cume de sua maturidade teológica, Agostinho faz certos reparos críticos à sua obra A Ordem, como se segue:

Na mesma época, escrevi também dois livros sobre A Ordem, no intervalo dos escritos sobre os acadêmicos. É importante a questão de que neles se trata, ou seja, se a ordem da divina Providência abrange todas as coisas boas e más. Ao perceber que o assunto era difícil de ser compreendido, e muito mais difícil para a percepção daqueles com os quais dele tratava, preferi deixar de discutir e preferi falar da ordem no aprender, com a qual se pode progredir do que é corporal para o não corporal.

Mas, nestes livros, desagrada-me também ter intercalado muitas vezes o termo "fortuna". E por não ter acrescentado "do corpo", ao mencionar o sentidos corporais. E por ter dado muita importância às disciplinas liberais, ignoradas por muitas pessoas santas, e alguns, que as conhecem, não são santos12.

    É certo que todos esses arrazoados expostos acima indicam disciplinas a serem executadas por nós afim de se garantir o conhecimento de Deus, como que sugerindo uma via de acesso que parte de baixo para cima. Mas se analisarmos bem a questão esse tipo de compreensão não pode ter lugar mesmo entre os autores que proferiram essas palavras. Não há, em absoluto, potência no homem para "achar a Deus". Todas essas disciplinas são como são, ou seja, praeparatio, ou preparações que não garantem em absoluto que o objeto a que se visa será dado. Agostinho, o grande pai do monergismo no cristianismo antigo, evidentemente entende que achar a Deus é graça e que essa ou vem de Deus ou não vem de lugar algum.

    Agostinho comenta essa questão relativa à necessidade da graça a fim de encontrarmos a Deus:

Pelágio prossegue e diz no livro antes citado: "Aquele que faz bom uso da liberdade, entregar-se totalmente a Deus, mortificando sua vontade de modo que pode dizer com o apóstolo: 'Eu vivo, mas já não sou eu que vivo, pois é Cristo que vive em mim' (GL 2,20); e deposita seu coração nas mãos de Deus para que ele 'o incline para qualquer parte que ele quiser' (Pr 21,1)".

É grande ajuda da graça divina, sem dúvida, que ele incline o nosso coração para onde quiser. Mas essa grande ajuda nós a merecemos, conforme ele disse na sua loucura, quando, sem outra ajuda, que a do livre-arbítrio, corremos para o Senhor, desejamos ser dirigidos por ele, submetemos nossa vontade à dele e, aderindo-lhe constantemente, constituímos com ele um só espírito. E Ester bens tão extraordinários, segundo ele [Pelágio], nós os conseguimos somente pela liberdade do arbítrio. E assim, com estes méritos precedentes, conseguimos que ele incline nosso coração para onde quiser.

E como pode chamar-se graça, se não é dada de graça? Como pode chamar-se graça, se é pagamento do que é devido? Como dizer que é verdade o que diz o apóstolo: 'E isso não vem de vós, é dom de Deus; não vem das obras, para que ninguém se encha de orgulho'? (Ef 2,8-9). E novamente: 'E se é por graça, não é pelas obras ; do contrário, não é mais graça'? (Rm 11,6)13.

    Nesse ponto se torna óbvia a afirmação de que inclinar-se a Deus é algo possível unicamente pela graça, assim como encontra-lo. Também Orígenes, teólogo cujas afirmações polêmicas no faz julga-lo como alguém que cria ser a graça de Deus recompensa de méritos pessoais, afirma no Contra Celso nada menos de que a graça divina é aquilo que nos proporciona o que não podemos obter pela nossa natureza, como se segue:

Platão pode dizer: “Descobrir o autor e pai deste universo é muito árduo”: ele dá a entender que não é impossível para a natureza humana descobrir a Deus como ele merece ou, se não como ele merece, pelo menos mais e melhor do que a multidão. Se isto fosse verdade e Deus fosse realmente descoberto por Platão ou por algum dos gregos, eles não teriam venerado, chamado a deus, adorado nenhuma outra coisa, quer abandonando-o, quer associando nele coisas incompatíveis com sua majestade. Nós, porém, sustentamos que a natureza humana não é capaz, em si mesma, de modo algum, de procurar a Deus e descobri-lo com pureza, a não ser que seja ajudada por Aquele que procuramos14.

    A questão das disciplinas espirituais deve ser bem localizada afim de evitarmos equívocos. E como podemos perceber elas não são garantias de acesso a Deus em sentido absoluto, e isso porque, em 1º lugar somos feridos pelo pecado, e em 2º porque tal acesso é realidade absolutamente aberta a nós pela graça. Mas não podemos ignorar que é unicamente no estado da natureza intacta que podemos ter unidade com Deus, ou seja, quando amamos verdadeiramente (condição moral), e assim podemos ver a Deus verdadeiramente (uso pleno da faculdade intelectual ou noética).

    Olhando pelo ângulo do fim último, ou considerando a questão escatologicamente, não podemos ignorar que a realidade dessas disciplinas e seus fins se apresentam para nós como um padrão absoluto que deve ser amado e sempre buscado, pois tal padrão é, como diz Agostinho, uma lei eterna para nós, e mesmo no estado de imperfeição devemos buscar realizar em tudo o que somos a medida absoluta de Deus, a qual é, no fim, Amar a Deus de toda nossa alma, força e entendimento, e amar o nosso próximo como a nós mesmos.  

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[1] AGOSTINHO. A Ordem. II.VIII.25

[2] TEÓFILO. A Autólico I.2

[3] Ibid. 5

[4] ORÍGENES. Contra Celso. VI.69

[5] Ibid. VII.37

[6] AGOSTINHO. A Ordem II.VIII.25

[7] Ibid. IX.26

[8] Ibid. XI.30

[10] Ibid. XIX.50,51

[11] Ibid. IX.26

[12] Idem. Retratações. I.3

[13] Idem. A Graça de Cristo e o Pecado Original. I.31

[14] ORÍGENES. Contra Celso.VII.42

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Platão, o Demonismo e a Filosofia

     Platão é certamente um dos homens com um dos mais potentes intelectos da história humana, e mesmo que a filosofia pudesse ter adquirido o corpo que ganhou sem ele é indiscutível que sua passagem na história marcou o mundo passado e presente de forma profunda - e certamente marcará ainda de forma duradoura. E é evidente seu virtuosismo em ter feito da própria filosofia certa forma do seu pensamento. 

     No entanto, mesmo não ignorando seu poder intelectual imenso posto a serviço da humanidade, é possível vislumbrar nele certos rompantes diabólicos, tais como vemos em Hegel, a exemplo da sua persistente postulação (que vamos encontrar na República e mesmo nas Leis) de que a abolição do casamento seria um elemento necessário para o estabelecimento da cidade (pólis) ideal; também sua noção de que seria necessário estabelecer um controle de natalidade (até mediante a administração estatal de anticoncepcionais) e a deportação de "filhos em excesso", já que a cidade ideal contaria com algo em torno de 5.004 pessoas, não deixa de ser perturbadora. 

     Mesmo assim, a sua postulação a favor do Rei filósofo teria realmente mais sentido em cidades pequenas, que é o que ele defende. Sua persistente repulsa contra o gigantismo nacional atrofiado é louvável, e isso porque Platão é se sível que tal grandeza não pode ser conquistado sem o aliançamento com vários vícios. Também sua sensibilidade ao significado dos mitos cosmogônicos como uma linguagem expressiva da estrutura da realidade parte de uma sensibilidade e argúcio magistral; sua "descoberta" da alma e a sua percepção da constituição da virtude também são louváveis.  Mas Platão não era um santo e nem precisamos trata-lo como tal.

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Platão e a Relação entre a Geografia e as Virtude

    Platão é aquele filósofo que vai te oferecer uma explicação genética (de origem) dos costumes (ethos) dos povos, e de sua constituição política, tendo como pano de fundo a relação entre esse povo e sua posição geográfica - proximidade ou distância do mar, estabelecimento em lugares planos ou montanhosos, desertos ou lugares férteis etc. Esse é um discernimento comum dos povos antigos e que na modernidade ganhou uma atenção renovada em Jean Bodin (em sua filosofia política), em Kant e também em Hegel no seu livro "A Razão na História".

    Na minha infância era muito comum eu ouvir que o Brasil era um país que tinha tudo para dar certo pela ausência de situações naturais adversas, ou seja, sem terremotos, furacões ou climas extremos, contando ainda com terras extremamente férteis. Platão diria que, em certo sentido, essa ausência de adversidades é algo péssimo para o exercício da virtude, pois certa adversidade oferece a ocasião para o fortalecimento do caráter, enquanto que a ausência de adversidades cria ocasião para a frouxidão moral, gerando a degradação dos povos.

    Mas uma dúvida pode ter surgido diante da descrição da realidade do Brasil como um país sem situação natural adversa, pois: o Brasil não é um país onde há abundante sofrimento? Temos que discernir algumas coisas aqui:

    1) A realidade do Brasil sem maiores situações adversas diz respeito à sua geografia e condição climática na grande parte do seu território, e não à sua situação cultural degradada. A própria realidade de uma condição geográfica, em seu sentido mais lato, não adversa pode criar situações de cupidez, avareza, melancolia e desencorajar a amizade política, quando em uma situação difícil toda a população se une em um propósito comum.

    2) A condição natural adversa cria a ocasião para a produção de algo que é fundamental como categoria das ciências políticas em Platão, que é a "amizade", a "solidariedade", o que resulta naquele elemento fundamental da unidade política que Aristóteles chamou de "homonoia" (pensamento comum). A homonoia evidentemente pode ser criada sem tais situações adversas. Platão não é um determinista, muito embora sua reflexão não deva cair no ouvido. Hegel e Kant já refletiram amplamente sobre a relação entre geografia e virtude, e esse tipo de reflexão é interessante tomarmos nota, muito embora - verdade seja dita - ela possa cair em certo tipo de rigidez negativista que, em certo sentido, é uma face muito abjeta do senso comum europeu.

    3) A debacle cultural a que o Brasil está sujeito é o resultado natural de certo caráter que Platão chamaria de "tirânico" das maiores potências entre nós (a nossa elite), as quais não possuem senso de missão, e que visando apenas interesses particulares criam uma situação de dificuldades imensas (econômicas e culturais). E tal sofrimento gerado por esse tipo de tirania gera ódio, ausência de amor à pátria e portanto destrói a possibilidade do surgimento da amizade política. Incrivelmente para Platão a situação de pobreza vil (até a riqueza extrema) e o sofrimento crônico geram uma ocasião adversa contra o surgimento da própria virtude política (princípio que podemos sacar em Provérbios 30.8b-9).

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

As Setenta Resoluções de Jonathan Edwards: 17ª Resolução.

17ª Resolução: Resolvi que viverei de modo como desejaria ter vivido se estivesse no meu leito de morte.    

    A moral e espiritualidade cristãs em seu exercício tendem a nos levar à prática daquilo que chamamos de exercícios de imaginação moral. Mas o que seria isso? Como vários outros termos que nomeiam elementos da nossa prática de fé, o termo imaginação moral se refere à a prática que até mesmo sem perceber exercitamos no nosso dia a dia, e se constitui basicamente no ato de nos imaginarmos em uma determinada situação específica que exigiria uma determinada resposta nossa, ou mesmo a prática de nos imaginarmos no lugar da outra pessoa em suas alegrias e sofrimentos. A própria compaixão implica nessa prática de nos colocarmos no lugar do outro, pois a compaixão significa sofrer com ou sofrer junto ao(s) que sofre(m). O apóstolo Paulo em Rm 12.15 nos incentiva: Alegrai-vos com os que se alegram, chorai com os que choram. Também em Hb 13.3 esse exercício de imaginação compassiva é incentivado: Lembrai-vos dos presos como se vocês estivessem presos com eles, e dos maltratados como se vocês mesmos fossem maltratados no corpo. E podemos perceber que mesmo na leitura da Escritura nós mesmos somos içados pela imaginação a vivermos como se estivéssemos ao lado, ou mesmo como se nós mesmos fôssemos Abraão em suas peregrinações e em suas orações; como se fôssemos Davi em suas lutas e nas suas composições dos Salmos; como se fôssemos os profetas quando estes estavam proferindo suas profecias; ou como se fôssemos Moisés em seus encontros com Deus e em sua oração no Sinai etc. Na caminhada da fé a imaginação está ao nosso lado o tempo inteiro, e a proposta do pastor Jonathan Edwards envolve um importante exercício de imaginação, pois nesta resolução ele visa nos coloca diante das coisas mais importantes ou últimas da nossa vida.

    A resolução do pastor depende de um processo de meditação e por isso de imaginação. A resolução implica em viver como desejaríamos ter vivido no leito de morte. Essa experiência drástica da morte não é realmente comum a nenhum de nós, mas a essa experiência podemos nos aproximar mediante um ato imaginativo. Obviamente que esse tipo de experiência não é de modo algum desejável para nenhum de nós, contudo ela não é evitável, e quando voltamos nossos olhos para a Escritura podemos ver que ela nos incentiva a esse tipo de ato imaginativo, como é claro no fim do livro de Eclesiastes 12.1-8, onde está escrito: Lembra-te também do teu Criador nos dias da tua mocidade, antes que venham os maus dias, e cheguem os anos dos quais venhas a dizer: Não tenho neles contentamento; Antes que se escureçam o sol, e a luz, e a lua, e as estrelas, e tornem a vir as nuvens depois da chuva; No dia em que tremerem os guardas da casa, e se encurvarem os homens fortes, e cessarem os moedores, por já serem poucos, e se escurecerem os que olham pelas janelas; E as portas da rua se fecharem por causa do baixo ruído da moedura, e se levantar à voz das aves, e todas as filhas da música se abaterem. Como também quando temerem o que é alto, e houver espantos no caminho, e florescer a amendoeira, e o gafanhoto for um peso, e perecer o apetite; porque o homem se vai à sua casa eterna, e os pranteadores andarão rodeando pela praça; Antes que se rompa o cordão de prata, e se quebre o copo de ouro, e se despedace o cântaro junto à fonte, e se quebre a roda junto ao poço; E o pó volte à terra, como o era, e o espírito volte a Deus, que o deu. Vaidade de vaidades, tudo é vaidade.

    Nos versículos acima o Pregador do livro de Eclesiastes conclui propondo um temor a Deus antes que cheguem os maus dias, ou os dias em que o pó volte à terra, como o era, e o espírito volte a Deus, que o deu, ou seja, nos dias que precedem o fim da vida no mundo. Propondo essa reflexão imaginativa sobre a vida atual através da tela de fundo formada pelos maus dias o pastor visa uma coisa só: imaginar como seria viver a vida da forma mais virtuosa possível, de maneira que, nos últimos instantes da nossa vida, não olhemos para trás com vergonha de nós mesmos ou com arrependimento em função da nossa história mal construída através de decisões mal tomadas. A questão é que é sempre possível viver bem se olharmos para a nossa vida com um dom que deve ser sempre bem aproveitado. Viver intensamente hoje, servir intensamente com o maior amor a Deus agora, buscando verdadeiramente a sua glória e seu proveito através dos nossos atos, aproveitando cada momento que Deus no dá como se cada um desses momentos fosse o mais valioso. Em Provérbios 5.1,2 o sábio instrui: Filho meu, atende à minha sabedoria; à minha inteligência inclina o teu ouvido; Para que guardes os meus conselhos e os teus lábios observem o conhecimento, e tudo isso para que evitemos o amargo fim dos imprudentes, que lamentarão nesses termos: E no fim venhas a gemer, no consumir-se da tua carne e do teu corpo. E então digas: Como odiei a correção! e o meu coração desprezou a repreensão! E não escutei a voz dos que me ensinavam, nem aos meus mestres inclinei o meu ouvido! (Pv 5.11-13).

    Enfim, o sábio nos instrui a viver bem, algo que só pode ser feito à luz da lembrança do nosso Criador, assim como com fidelidade a Deus, fidelidade praticada à luz da sabedoria e da Sua Palavra. É como ocorreu com Abraão, sobre quem Deus proferiu essas palavras: Tu, porém, gozarás de uma velhice abençoada, morrerás em paz, serás sepultado e irás reunir-te com os teus pais no mundo dos mortos (Gn 15,15). Além da vida abençoada, em nosso fim poderemos tranquilizar a nossa mente, porque andando em paz e fidelidade com Deus teremos o prêmio da bem-aventurança eterna, como diz o Apóstolo Paulo: Combati o bom combate, terminei a corrida, guardei a fé. Agora me está reservada a coroa da justiça, que o Senhor, justo Juiz, me dará naquele dia; e não somente a mim, mas também a todos os que amam a sua vinda.(2Tm 4.7-8).

    Que o Senhor, nosso Deus, por Cristo Jesus no dê sabedoria para viver afim de que tenhamos em tudo paz, até mesmo no morrer!

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

As Setenta Resoluções de Jonathan Edwards: 16ª Resolução

16ª Resolução: Resolvi jamais falar mal de qualquer pessoa, em qualquer grau de intensidade, ou em qualquer caso, de forma que haja a possibilidade de trazer-lhe desonra, a não ser que isso seja feito para bem real.    

    O falar mal é um assunto controverso e de difícil compreensão em função das várias lateralidades que a matéria possui. Quando falamos de lateralidade queremos dizer as nuances que um assunto comporta - ou os vários lados e ângulos pelos quais um assunto pode ser visto -, e principalmente quando observamos como a nossa própria mente funciona, pois é impossível passarmos a vida inteira sem que, ao menos mentalmente, façamos um juízo negativo ou depreciativo de alguém, e falo isso porque se falar mal de alguém é algo mal, a sua raiz, que é pensar mal, também será algo ruim. Mas será que as coisas são assim mesmo? Ou será que na Palavra de Deus há uma proibição absoluta sobre emitir qualquer juízo negativo sobre quem quer que seja? A resposta é não, e a razão disso tentarei expor no que segue.

    Um texto emblemático para essa discussão é o texto do Sermão da Montanha, tal como registrado em Mt 7.1-5: Não julguem, para que vocês não sejam julgados. Pois da mesma forma que julgarem, vocês serão julgados; e a medida que usarem, também será usada para medir vocês. Por que você repara no cisco que está no olho do seu irmão e não se dá conta da viga que está em seu próprio olho? Como você pode dizer ao seu irmão: 'Deixe-me tirar o cisco do seu olho', quando há uma viga no seu? Hipócrita, tire primeiro a viga do seu olho, e então você verá claramente para tirar o cisco do olho do seu irmão. Aqui existe aquilo que chamamos de conselho de prudência, que é muito diferente de uma proibição absoluta. A razão desse nosso juízo é que essa parte do sermão Jesus nos confronta com o fato de que a apreciação negativa que podemos fazer de alguém - ou o juízo negativo - é algo que também deve nos enquadrar para ser verdadeiro - o que condenamos em outra pessoa deve ser condenado em nós, se esse erro se fizer presente em nós mesmos. Jesus poderia apontar o pecado alheio sem que esse juízo recaísse sobre si, mas nós dificilmente podemos contar com essa vantagem, pois pecamos e somos pecadores. Bem interpretado o texto nos leva à consideração de que devemos ser cautelosos em nossas condenações em relação aos outros pois, como diz Jesus aqui no versículo citado: a medida que usarem, também será usada para medir vocês.

    Algo bem diferente de tudo o que foi dito é que devemos silenciar o nosso juízo quanto à consideração sobre a verdade das pessoas e o valor dos seus atos. Se numa ponta extrema existe o hipócrita que condena acaloradamente o pecado alheio enquanto que ele deliberadamente oculta todos os pecados que são seus, vindo a ser uma pessoa injusta por causa disso, numa outra extremidade está o comportamento de, a pretexto de bondade, ignorar tudo o que é nocivo em uma pessoa. Se de um lado temos o comportamento hipócrita e sem misericórdia, numa outra ponta temos o comportamento leniente e até mesmo covarde em evitar qualquer consideração sobre o mal de quem quer que seja. Em todos os casos temos um terreno fértil para a propagação de abusos e de injustiças. Não é assim que a Escritura nos orienta viver e pensar, e se prestarmos atenção nas palavras dos Apóstolos e dos Profetas é impossível que seus ensinos e profecias sejam como são se tirarmos deles os juízos negativos reais sobre pessoas específicas e mesmo sobre nações inteiras. Em 3Jo 1.9-10 o autor da epístola descreve o mal-proceder de Diótrefes. Não se trata de uma calúnia, mas sim de uma descrição de um fato. Nesse sentido estamos no mesmo espírito do 9º Mandamento, que em Êx 20.16 diz: Não darás falso testemunho contra o teu próximo. Falar a verdade, não é falar mal.

    Contudo, nem sempre é conveniente falar tudo sobre todas as coisas, nem mesmo sobre os pecados alheios - quem nisso se deleita está doente de espírito. O bom senso nos ensina que devemos ser moderados em nossas palavras, modulando-as com o amor devido. E aqui podemos entender o uso das nossas palavras, visto pelo ângulo vocação da Igreja, na exata proporção da vocação de Cristo, como em Lc 9.51-55: Aproximando-se o tempo em que seria elevado ao céu, Jesus partiu resolutamente em direção a Jerusalém. E enviou mensageiros à sua frente. Indo estes, entraram num povoado samaritano para lhe fazer os preparativos; mas o povo dali não o recebeu porque se notava em seu semblante que ele ia para Jerusalém. Ao verem isso, os discípulos Tiago e João perguntaram: "Senhor, queres que façamos cair fogo do céu para destruí-los?". Mas Jesus, voltando-se, os repreendeu, dizendo: "Vocês não sabem de que espécie de espírito são, pois o Filho do homem não veio para destruir a vida dos homens, mas para salvá-los". Assim, se a vocação de Cristo é salvar e não destruir, da mesma maneira as nossas palavras a respeito de que assunto for devem ter a finalidade de salvar e instruir e não de destruir. Também, a menção do pecado alheio, mesmo que venha carregada do peso da reprovação, deve antes de tudo nos alertar sobre os nossos próprios pecados, estando excluída qualquer forma de maledicência torpe.

    A partir de tudo isso podemos entender a resolução do pastor como evitar trazer infâmia para quem quer que seja, atribuindo ao outro aquilo que não lhe é devido. Quem assim procede destrói a imagem do próximo; tropeça e ainda faz tropeçar. Quem traz desonra gratuitamente sobre quem quer que seja está já sob juízo, pois aborrece sem necessidade o seu próximo, se portando como o mentiroso que por definição está excluído do Reino de Deus (Ap 22.15). Mas a descrição de um fato sobre alguém que em seu pecado se destrói e faz destruir não pode ser pecado, pois ilustra uma verdade que bem aproveitada pode salvar a todos nós, mesmo aquele de quem se fala, ou seja, aquele que comete o pecado.     

    Ajude-nos a ser sábios e a guiar as nossas palavras para o bem, Senhor!

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

As Setenta Resoluções de Jonathan Edwards: 15ª Resolução

15ª Resolução: Resolvi jamais experimentar qualquer das menores manifestações de ira em relação aos seres irracionais.

    O trato relativo aos seres irracionais se insere na cadeia dos hábitos visados por aquele que busca uma certa relação com Deus, como também é um traço que mediante observação podemos perceber a saúde ou a degradação do coração do homem ou da mulher. A noção de que Deus, ao criar o homem, o colocou como jardineiro do mundo, ou para lavrar e cuidar do Éden (Gn 2.15) nos orienta quanto à relação do homem com a criação visada por Deus. E no que diz respeito à relação mais específica do homem com os animais, a primeira manifestação do assunto aparece em Gn 2.19, onde o Senhor conduziu todos os animais dos céus e da terra para ver como o homem os chamaria. A passagem parece não falar muita coisa, mas quando tomamos nota do significado de dar nomes, ela implicitamente traz a noção de domínio de uma coisa sobre outra. O fato de o homem nomear os animais, por assim dizer, traz a noção de uma autoridade que o homem exerceria sobre os animais - e certamente toda autoridade, porque querida por Deus, é para trazer bem aos animais e aos homens, ou seja, à Criação.

    Outra menção da Escritura a respeito da relação entre o homem e os animais se dá quando o Senhor orienta Noé a introduzir os animais na Arca (Gn 6.19-7.16). Noé é, por assim dizer, uma espécie de Novo Adão, aquele que inauguraria um Novo Mundo. E a sua relação com os animais é importante nesse contexto justamente porque em Noé o Senhor iria como que restaurar o Éden e, com isso, a reta relação do homem com o Mundo e consigo mesmo (Deus). A devastação do mundo pelas águas do Dilúvio iria trazer fim ao antigo mundo, e Deus para a reconstrução do Novo Mundo orientou Noé a trazer exemplares de cada um dos animais. É importante notar a comunhão não hostil de Noé com os animais - e dos animais entre si -, nota da restauração das relações entre Deus e o homem, como até mesmo anunciaram os profetas, em específico em Is 11.6-8: O lobo conviverá com o cordeiro e o leopardo repousará junto ao cabrito. O bezerro, o leão e o novilho gordo se alimentarão juntos pelo campo; e uma criança os guiará. A vaca e o urso pastarão juntos, seus filhotes dormirão lado a lado e o leão comerá palha como o boi. Os bebês brincarão tranquilos próximos ao esconderijo da cobra, a criança colocará a mão no ninho da víbora.

    É segundo esse modelo que também devemos entender a convivência de Jesus com as feras durante o período em que passou 40 dias no deserto (Mc 1.13). Por esse ângulo, a convivência de Jesus com as feras não deve ser entendida como algo e agressivo a si, como o é o fato de ele ser tentado por todo esse período por Satanás; antes, deve demarcar conosco que, tal como Jesus ali mesmo tinha uma relação de amizade com os anjos que o serviam, Jesus, como Segundo Adão, é em quem a criação está reconciliada - algo que foi vislumbrado em Noé -, sendo essa reconciliação visível na relação amigável entre ele e os animais do deserto.

    O que estou querendo dizer é que toda relação agressiva entre os homens e os animais deve ser visualizada pelo ângulo da Queda, e por isso pelo ângulo da deformação da alma provocada pelo pecado. Para clarear o que estou querendo dizer, tomemos o texto de Provérbios 12.10, onde temos: O justo olha pela vida dos seus animais, mas as misericórdias dos ímpios são cruéis. Em uma tradução mais literal o que vai escrito é que o justo (צַדִּיק) conhece seus animais, mas que as vísceras (רַחֲמִי), ou seja, os afetos do ímpio são cruéis. O termo vísceras no Antigo Testamento tem relação com o centro dos sentimentos, como nós usamos para designar a mesma coisa a palavra coração. Assim os ímpios possuem afetos deformados em relação aos seus animais, sejam esses afetos tanto um afeto de descaso, como também um afeto de violência. E aqui podemos entender a resolução do pastor em não experimentar nenhum sentimento de ira com relação às criaturas irracionais, ou aquelas criaturas que não podem dispor da razão completamente, pois elas não podem ser tratadas como aqueles dos quais podemos exigir certa postura que convém aos que são racionalmente capazes - o que seria crueldade da nossa parte. Essa resolução, no entanto, em tudo, é um apelo à disposição benigna e misericordiosa.

     Que o Senhor conduza nossos corações para uma relação mais afetuosa com os homens e com o Mundo. Amém!

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

As Setenta Resoluções de Jonathan Edwards: 14ª Resolução

14ª Resolução: Resolvi jamais fazer coisa alguma motivado por vingança.

   A resolução em pauta tem como base um controle absoluto do espírito para que ela, a resolução, possa vir a ser algo concreto em nossa vida. A virtude requerida para que a resolução seja algo concreto em nós é algo próprio mesmo da mensagem do Evangelho, e a reflexão sobre a matéria pode jogar luz sobre a verdadeira natureza dos atos e dos hábitos honestos cuja presença se exigem na vida de um cristão. Mas é sabido que a matéria não é de fácil discernimento porque muita confusão há sobre a natureza da vingança, se ela é lícita ou é ilícita, se justa é justa ou injusta.

    Antes de mais nada devemos entender a natureza daquilo que chamamos de justiça, e como isso é significado no Evangelho. Para o esclarecimento dessa questão, as palavras de Jesus no Sermão da Montanha podem vir em nosso auxílio. Assim Jesus diz em Mt 5.38-41: Ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém, vos digo que não resistais ao mau; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra; E, ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa; E, se qualquer te obrigar a caminhar uma milha, vai com ele duas. Esses versículos devem ser analisados à luz da submissão de Israel a Roma, uma potência estrangeira - o que, em tudo, se constituía como uma humilhação extrema ao povo de Israel. Como posto avançado do império Romano, Israel era, à época de Jesus, também povoada de autoridades romanas. O dito de Jesus aqui antagonizava também contra certa resistência nacionalista formada por uma facção de resistência chamada de Zelotes. O zelitismo era uma ideologia religiosa que apregoava a resistência armada em nome de YHWH (o Senhor). Mas tal resistência teria que se confrontar com o exército mais poderoso do mundo, que era o Romano. Assim, uma resistência armada era quase uma aposta no suicídio. Incrivelmente aqui Jesus, no mesmo espírito da profecia de Jeremias (Jr 27), aconselha sujeição e a não resistência à potência romana. Certamente podemos extrapolar o sentido do conselho de Jesus para vários âmbitos da nossa vida. Mas tanto em um caso como em outro algo é requerido: a submissão da nossa ira e da disposição reativa diante das injustiças.

    Mas outro texto pode iluminar o que estamos querendo refletir aqui: Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo, e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem; para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus; porque faz que o seu sol se levante sobre maus e bons, e a chuva desça sobre justos e injustos. Pois, se amardes os que vos amam, que galardão tereis? Não fazem os publicanos também o mesmo? E, se saudardes unicamente os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os publicanos também assim? (Mt 5.43-47). Aqui Jesus nos incita a orar pelos que nos perseguem, e a fazer bem aos que nos odeiam. Tal orientação de Jesus deve ser bem compreendida pois tem múltipla relevância, já que nos oferece um norte em relação ao modo de procedermos em várias situações que se apresentam em nossas vidas.

    E para ampliarmos a nossa compreensão a respeito dessa matéria, lancemos mão de certas passagens, como Cl 3.8a: agora, despojai-vos também de todas as coisas, ira, indignação, maldade... O versículo em questão é precedido por um preceito de Paulo, que é: Façam morrer os vossos membros [que estão] sobre a terra (Cl 3.5a); aqui Paulo identifica como membros sobre a terra a disposição irada e mesmo a disposição indignada. Em uma tradição mais conhecida, essas coisas são conhecidas como obras da carne (cf. Gl 5.16-21), Em específico as palavras ira e indignação são traduções das palavras οργην e θυμον, a primeira indicando uma excitação violenta que conduz a atos reativos de violência característicos do homem irado. A palavra θυμον tem sentido semelhante, com a especificação de que essa palavra também pode ser permutada por coração, indicando uma violenta comoção que desestabiliza a pessoa desde a fonte das emoções. Assim podemos aqui discorrer sobre a expressão importante da nossa 14ª Resolução, onde o pastor se propõe a nada fazer motivado por desejos de vingança. Por motivo entendemos algo que impulsiona, tanto que a palavra motivo tem relação com a palavra motor, ou seja, com aquilo que concede força e movimento. Assim, a vingança, que é um ato que pressupõe a presença da ira, da indignação, ou os desejos de vingança, não podendo, portanto, oferecer o princípio de movimento adequado de uma ação, já que esse parte, no mais das vezes, de uma mente desestabilizada pelo ódio. Reações motivadas por vingança tendem a ser desproporcionais, fugindo da medida da razão e, por isso, da medida da justiça que caracteriza os filhos de Deus.

    No mais, sempre devemos tem em mente que afastar essa ira e refrear a desestabilidade da nossa natureza - quando ela é incendiada pelo ódio -, é algo que nos permite ver as coisas mais claramente, pois o ódio tende a turvar o nosso juízo, e geralmente pessoas viciadas em ações reativas tendem, geralmente, à prática de atos injustos e desmedidos. O desejo de vingança, o ódio, não são bons conselheiros, pois esses não costumam nos oferecem uma medida justa para a nossa ação. Assim, a orientação de Jesus mais acima, quando nos aconselha prudência, também tem a sua importância para nós no fato de que em função da fraqueza do nosso juízo não visualizamos sempre a medida justa das coisas. Assim, não agir e não revidar é melhor do que agir e exceder a medida, promovendo agravo e injustiça.

    Mas outra questão importante é que o não agir motivados por vingança não é a única parte da ação aconselhada por Jesus. Junto a esse preceito negativo de não agir vem também um preceito positivo de orar pelo bem, pelo arrependimento e também conceder perdão. Para nós isso significa, ao contrário de agir motivado pela vingança, agir motivado pela medida do bem. Mas qual a razão disso? A razão é que o padrão de medida da nossa ação é o próprio Deus. Citando alguns versículos que já citamos, mas acrescentando outros, temos o padrão de ação de Jesus dado aos discípulos em Mt 5.45-48: Porque faz que o seu sol se levante sobre maus e bons, e a chuva desça sobre justos e injustos. Pois, se amardes os que vos amam, que galardão tereis? Não fazem os publicanos também o mesmo? E, se saudardes unicamente os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os publicanos também assim? Sede vós pois perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus. Assim, se Deus nos perdoou em Cristo, também devemos oferecer o perdão; se Deus nos deu um bem enquanto retribuíamos ele o mal, devemos nós mesmos oferecer um padrão justo, enquanto outros agem contra nós segundo um padrão injusto. Assim, devemos ser motivados em nossas ações tendo em vista o bem que Deus nos fez mais do que o agravo que os homens nos fazem. Mesmo quando agimos exigindo justiça e reparação - dentro da medida divina -, também devemos nos lembrar da misericórdia. Devemos ser motivados pelo bem de Deus e não pelo mal dos homens, pois assim nos tornaríamos os monstros que nos destroem.

    A resolução aqui não implica que devamos ser tolos, fingindo ser amigos de quem só nos quer o mal. Não se trata disso; Deus não nos deu um preceito pelo qual sejamos obrigados a nutrir sentimentos de amizade por quem nos destrói - esse seria o extremo oposto de agir motivado por vingança. O preceito apenas visa refrearmos o ódio vingativo para que jamais percamos de vista o padrão divino da nossa humanidade, o que impedirá de sermos deformados pelo ódio causado pela injustiça alheia. Deus, assim, deseja que não nos percamos em meio à provocação do mal, mas deseja nos preservar da tentação do ódio que travestido pelo desejo de justiça, torna aquele que dele se alimenta igual ou talvez pior do que o seu inimigo. Assim Paulo nos ensina: Não vos vingueis a vós mesmos, amados, mas dai lugar à ira, porque está escrito: Minha é a vingança; eu recompensarei, diz o Senhor. (Rm 12.19), o que é um motivo para a oração, deixando certas coisas a juízo do Senhor. E ao lado disso Paulo nos indica um caminho para sermos melhores do que aqueles que nos destroem: Portanto, se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber; porque, fazendo isto, amontoarás brasas de fogo sobre a sua cabeça. Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem. (Rm 12.20,21)

Enfim, que o Senhor nos ajude a eliminarmos o ódio das nossas ações e que elas tenham por padrão as perfeições de Deus, sua generosidade e seu bem e não a injustiça dos homens e o seu mal. Amém!

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

As Setenta Resoluções de Jonathan Edwards: 13ª Resolução

13ª Resolução: Resolvi esforçar-me por descobrir objetos apropriados de caridade e liberalidade.  

    Já vai longe a reflexão sobre o lugar adequado das obras na vida cristã. Duas vertentes aqui se separam em seu conteúdo, mas se unem nos extremos do erro: A primeira vertente afirma que as obras são causa mesma de salvação, afirmando no homem uma potência para realizar a própria salvação mediante uma obediência estrita à lei de Deus. A segunda vertente afirma que obras são completamente opcionais ou absolutamente dispensáveis na vida daquele em ao qual a graça da salvação é administrada. Ambos os pensamentos são heréticos, constituindo elementos desviantes na verdadeira compreensão da vida cristã. E contra essas duas formas de consideração podemos invocar aqui Ef 2.8-10, onde temos: Pela graça vocês são salvos, e isso não vem de vós, é dom de Deus. Não vem das obras para que ninguém se orgulhe, pois somos criaturas suas, criadas em Jesus Cristo para as boas obras que de antemão Deus preparou para que andássemos nelas, ou seja, Deus é a causa única da salvação; contudo, esta salvação em nós não é inócua, mas nos conduz às boas obras as quais Deus preparou de antemão para que nela andássemos.

    Assim, se espera naturalmente a visualização de certos efeitos salvíficos na vida daqueles que creem. Um desses efeitos aqui podem ser vistos no desejo pela busca de objetos adequados de caridade e liberalidade. A caridade é um termo que remonta à palavra grega χαρις (cháris), cujo significado é graça, de onde também vem o termo ευχαριστια (eucharístia), que tem o sentido de agradecimento que parte de um coração consciente e feliz pelos benefícios recebidos (cf. 1Co 14.16). Assim a caridade é um ato de graça, ou um ato gratuito de bondade que visa beneficiar outro, podendo também ser um ato de gratidão a Deus através de atos de gratuidade para com quem necessita etc. A noção de liberalidade tem relação com a disposição generosa em doar liberalmente sem reter com avareza, ou mesmo a disposição alegre em doar, o que contrasta com a disposição que doa com tristeza ou com mão remissa.

    Paulo nos dá várias e importantes orientações sobre os objetos adequados de caridade e liberalidade, quando na 2ª Carta aos Coríntios explana sobre seu plano de assistência aos cristãos pobres da região da judeia. É interessante que no início de seu ministério ele tenha recebido uma instrução importante do Colégio Apostólico de Jerusalém a se lembrar dos pobres (Gl 2.10). Já em 2Co 9 Paulo é aqui visto organizando um a ação coordenada com várias Igrejas para trazer mantimentos aos cristãos pobres da Judeia. Mas o importante aqui é nos lembrarmos das palavras de Paulo: Lembrem-se: aquele que semeia pouco, também colherá pouco, e aquele que semeia com fartura, também colherá fartamente (2Co 9.6), e: Cada um dê conforme determinou em seu coração, não com pesar ou por obrigação, pois Deus ama quem dá com alegria (9.7). Aqui há certo incentivo, segundo a lei da colheita, assim como também um princípio de liberalidade segundo o qual se afirma que Deus ama aquele que dá com alegria, como repugna que faz o bem por mera obrigação.

    Mas em 2Co 9.8-10 temos uma informação importante que esclarece a base pela qual os atos de liberalidade são considerados: E Deus é poderoso para fazer que lhes seja acrescentada toda a graça, para que em todas as coisas, em todo o tempo, tendo tudo o que é necessário, vocês transbordem em toda boa obra. Como está escrito: "Distribuiu, deu os seus bens aos necessitados; a sua justiça dura para sempre". Aquele que supre a semente ao que semeia e o pão ao que come, também lhes suprirá e aumentará a semente e fará crescer os frutos da sua justiça. Aqui Deus é quem concede bens para que possamos abençoar, afim de que possamos abundar em boas obras e, nesse sentido, em atos de justiça. Atos de graça são convertidos assim em atos de justiça, e é importante considerarmos a liberalidade à luz da categoria da justiça porque essa é a visão bíblica de justiça segundo o conceito hebraico de direito ou juízo (מִשְׁפָּט = mishpath). Assim, quem é iliberal é um injusto e é justamente por isso que o avarento é inapto para o Reino de Deus.

    Assim, a consideração sobre a liberalidade e seus objetos apropriados - principalmente aqueles que mais precisam - também inclui a liberalidade no campo da promoção do que é bom. Nesse sentido, aqueles que com atos de gratuidade louvam a Deus através do ato de contribuir para obras de missão, para a casa de Deus, ou mesmo hospitais, colégios (como é comum em países como os EUA), irmãos necessitados, creches, asilos etc. também louvam a Deus de coração, em atos liberais com ação de graças. Todos esses objetos listados são objetos adequados de liberalidade, pois os inadequados são aqueles que difundem erros e coisas que obstruem a justiça e o livre amor de Deus.

terça-feira, 2 de novembro de 2021

As Setenta Resoluções de Jonathan Edwards: 12º Resolução

12ª Resolução: Resolvi que se eu sentir nisso deleite, como gratificação para o orgulho, para a vaidade ou algo parecido, de imediato o eliminarei.

    Essa resolução tem imediata relação com a resolução anterior e nela fundamenta seu significado. Então vale a citação da 11ª Resolução: Resolvi que ao pensar em qualquer problema teológico que precise ser esclarecido, farei imediatamente o que puder para esclarece-lo, caso as circunstâncias não me impeça de fazê-lo. O pastor então se refere ao orgulho do conhecimento teológico, ou do conhecimento bíblico que pode envenenar aquele que o possui, se tal conhecimento não vier acompanhado com uma disposição de espírito adequada. Por extensão podemos aplicar essa advertência contra a vaidade do conhecimento bíblico ou teológico a todos os tipos de habilidades e conhecimentos que possuímos ou venhamos a possuir, já que tal vaidade pode nos cegar para o que verdadeiramente importa, como veremos mais abaixo.

    Fazendo referência ao que já foi dito no comentário passado, podemos aqui nos lembrar da Igreja de Corinto que se sentia inchada por causa de certa presunção de possuir conhecimento, não dando conta, porém, da miséria que a arrasava. As misérias nos são conhecidas, mas vale cita-las aqui: a imoralidade sexual (1Co 5.1,2), o partidarismo dissencioso (1Co 3.4), o desprezo para com os pobres na mesa do Senhor (1Co 11.20-22), e mesmo invejas, iras, porfias, detrações, intrigas, orgulhos, tumultos etc. (2Co 12.20,21). A pergunta a ser feita é como é possível a boa convivência entre pecados tão terríveis ao lado de tão alta consideração de si mesmo pela posse de certos conhecimentos ou ao lado do orgulho espiritual? A resposta pode estar em Paulo mesmo, como em uma citação que também fizemos no comentário anterior: Quem pensa que sabe alguma coisa, ainda não sabe como convém saber (1Co 8.2).

     O orgulho intelectual é algo que tanto cega como corrompe, pois transforma algo naquilo que ele não é, ou seja, engana e desvia do caminho. Entendamos: o conhecimento meramente informativo não é o mesmo que grandeza moral, e nem mesmo é sinal de um favor absoluto por parte de Deus. Entendemos que o conhecimento é uma benção e ninguém deve despreza-lo, mesmo que ele venha da pessoa mais vil, pois verdade é sempre verdade. Mesmo Jesus disse, em Mt 23.2,3 dos fariseus: Os escribas e os fariseus se assentam na cadeira de Moisés. Fazei e obedecei, portanto, a tudo quanto eles vos disserem. Mas adverte nestes termos: Contudo, não façais o que eles fazem, porquanto não praticam o que ensinam. A questão aqui é que o mero conhecimento exterior da lei apreende o que da lei é verdade, mas tal conhecimento informativo não necessariamente significa uma excelência moral ou uma excelência no espírito. As duas coisas aqui devem ser discernidas.

    Assim temos o verdadeiro perigo do conhecimento, ou seja, que ele, isolado das demais virtudes, não sinaliza a presença daquela graça e bondade naquele que o detém, e pode até mesmo cegar os orgulhosos que pensam que o conhecimento, sem atos de bondade, é suficiente de algum modo. E assim entendemos os dizeres do Apóstolo: E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria (1Co 13.2), ou seja, o conhecimento para aquele que o detém, separado do amor, não tem nenhum poder salvador.

    Nos salve da vaidade que nos destrói, Senhor!