quinta-feira, 21 de maio de 2020

Brevíssima Introdução ao Pensamento de Karl Barth

   Um amigo, o Gabriel Ferreira Albino, me pediu para escrever algo sobre Barth, mesmo que algo simples a título de introdução. Eis dois problemas: escrever sobre Barth e ser simples em um pequeno texto introdutório à obra dele. Como disse um pastor da Alemanha, amigo meu, Barth chegou a ser uma.espécie de papa na Europa em função da sua influência teológica que não atingiu apenas o protestantismo, mas também o catolicismo romano. Alguns julgam que a Constituição Dogmática Dei Verbum tem a tonalidade de uma homenagem à sua teologia - ainda que não tenhamos a necessidade de ir tão longe assim, e nem de considerar um absoluto equívoco essas considerações.
   Mas aos fatos.
   A obra barthiana é profunda, extensa e marcada por diversas fases - alguns dividem o desenvolvimento do pensamento de Barth em quatro fases -, mas é nas três últimas que se destaca uma forte ênfase em um tipo de teologia fundamentalmente bíblica. São as seguintes fases: 1) Fase Liberal; 2) A Fase Dialética (Existencial); 3) Analogia Fidei; 4) A Humanidade de Deus.
   A primeira fase, a fase da Teologia Liberal, foi propriamente uma fase acadêmica, grandemente influenciada por Wilhelm Herman - de quem Barth sempre nutriu grande afeto -, um dos grandes nomes da teologia liberal que, como disse Barth, teve sua teologia adaptada à linha reformada desse último, já que Herman era Luterano - como os grandes nomes da Teologia Liberal, como Harnack e Troelsch.
   O rompimento com a teologia liberal foi desencadeada pela frustração pastoral de Barth - que serviu como ministro da Igreja Reformada da Suíça em Genebra e na pequenina Safenwil -, dizendo que de pouco ajudava as pessoas a árida discussão liberal sobre a ciência teológica que, segundo Barth, engrandecia demasiadamente o homem às custas de Deus, e que não estava voltada para a Igreja e para o anseio último dos cristãos sedentos pela Palavra de Deus na manhã de domingo - algo que pode ser visto em seu artigo "A Palavra de Deus como Encargo da Teologia". Essa foi uma fase de descoberta, ou a descoberta daquilo que ele chamou de "O Novo Mundo da Bíblia", e a descoberta do Mundo de Deus que confronta o mundo dos homens. Alguns outros fatores contribuíram, como o retiro dos Blumhardt, do qual voltou renovado por um experiência espiritual, e a leitura das obras de Kierkegaard, que foi recebido a doses cavalares na teologia de Barth.
   A segunda fase de sua teologia é marcada pela publicação da segunda edição revisada da sua "Carta aos Romanos" onde Barth inaugura a chamada "Teologia da Crise", ou "Teologia Dialética" ou mesmo "Teologia Existencial". Fortemente influenciado por Kierkegaard - descoberto nas universidades alemãs na primeira década do século XX, mais de meio século depois da sua morte -, Barth chama Cristo de o "Incógnito", assim como considera o encontro espiritual como "a-histórico" , já que o encontro da Palavra de Deus com a história é propriamente "Meta-História", sendo até mesmo, segundo uma consideração dramática, o fim da história. Mas não deve ser desconsiderada a influência de Rudolf Otto, que com o seu livro "O Sagrado" forneceu categorias como "O Numinoso", "O Tremendo" ou o "Fascinante", categorias essas com as quais ele articulou e adaptou a visão de Lutero do "Não" e do "Sim" divino com o qual Deus na sua auto-revelação se encontra com o homem em juízo e graça. Quem lê o comentário da "Carta aos Romanos" de Barth se encontra com os seus poderosos paradoxos que muito lembram Kierkegaard e a própria Teologia da Cruz de Lutero.
   Além dessas influências, há também a influência clara tanto de Platão como de Kant (que alguns acham algo impossível na mesma obra), que Barth declara no prefácio à segunda edição de 22. Com Kant Barth acusa os limites do pensamento humano contra o otimismo epistemológico de quem achava poder conseguir alçar Deus pelas forças naturais - mesclando aqui a teologia do pecado dos reformadores -, e com Platão Barth reforçava a estrutura do piso sobrenatural, contrapondo tempo e eternidade (ainda que esse "Platão" tenha um tom kierkegaardiano, assim como se encontre adaptado à ideia de revelação cristã).
   Mas a essa segunda fase segue-se a fase da Analogia Fidei inaugurada por um estudo chamado Fides Quaerens Intelectum e que versa sobre o argumento ontológico de Anselmo, ou mais específicamente o método teológico anselmiano (ainda que Barth não abrace totalmente o método anselmiano, se interessando pelo "Deus dado à fé" de que fala Anselmo no "Proslógio" - estando aqui o marco altamente sobrenaturalista da teologia de Barth). Assim fez Barth contra aquilo que podemos chamar de "retorno antropológico" daqules que anteriormente seguiram a linha da Teologia Dialética no seu início, como Bultmann, Brunner e Gogarten. Emblemático foi o artigo com o título "Nein" onde Barth acusa Brunner de retornar à ênfase entropológica da Teologia Liberal por afirmar uma determinada "Anknüpfungspunkt", o ponto de contato antropológico entre Deus e o homem, colocação que aproxima Brunner da analogia entis fortemente combatida - às vezes injustamente - por Barth.
   Podemos dizer que a fase da "Analogia Fidei" contém a obra madura de Barth e nessa o seu novo método método teológico no qual Barth parte não da filosofia ou do conhecimento natural, se fixando no dado da revelação, elaborando a partir da fé da Igreja e do Deus dado à fé todo o seu edifício dogmático, reconhecendo o a Escritura como fonte teológica primária e sua expressão fiel o Credo Apostólico. Sendo assim Barth realiza uma teologia altamente eclesiástica e fundamentalmente bíblica. Mas ao contrário do que possa supor alguns, Barth não nega in limine a teologia natural, mas a relega para um segundo plano no atual estado histórico da Igreja. A força colossal do trabalho barthiano produziu a "Kirchliche Dogmatik", obra inacabada de 13 volumes (volumes com cerca de 8.000 páginas) em que tenta realizar um teologia bíblica e fortemente cristocêntrica - e alguns diriam até mesmo forçadamente cristomonista.
   Já a quarta fase do seu amadurecimento teológico é marcada por alquilo que podemos chamar de a fase da "Humanidade de Deus", cujos contornos estão dados no artigo que leva o mesmo nome publicado no fim da sua vida. Ali vemos o tom antropológico voltando às discussões públicas de Barth. Famoso é um livreto seu com um estudo sobre Mozarth no qual ele afirma que Bach certamente é ouvido pelos anjos, e, alegremente, Mozarth também é ouvido no céu nas horas de lazer, se comprazendo com os anjos na escuta o próprio Senhor.
   Fica patente nessa fase o aceno positivo à teologia natural - ênfase característica da teologia reformada que remonta a Calvino -, ressaltando Barth que as "pequenas luzes" da razão, mesmo da razão caída, assim como a produção cultural, também refletem a glória de Cristo, não obstante Cristo ser o único positivo de Deus, ou aquele que traz absolutamente Deus em seu rosto.
   A fase da Humanidade de Deus destaca a ênfase da encarnação de Cristo onde Deus se faz homem. Agindo assim Barth diz, em tom pastoral, que Deus decide aqui não estar estritamente acima ou longe do homem, mas ao lado dele. O Deus com face humana é aquele cujo Sim em favor do homem é maior do que o Não, sendo percebido um abrandamento, como Barth mesmo diz, da sua forte ênfase transcendentalista da segunda fase onde Deus era o Totaliter Aliter (O Totalmente Outro), Aquele que verticalmente descia do alto em sinal de juízo, contrapondo o Seu Mundo com o mundo do homem. Desta fase é que Barth traz à tona a polêmica possibilidade da "apokatástasis", ou da salvação universal, já que todo o "Sim" de Deus em Cristo supera o "Não" do pecado e da morte de forma absoluta - algo que foi duramente criticado por E. Brunner na sua Dogmática.
   Barth evidentemente é um gigante desconhecido no Brasil - mais mal falado por seus pares reformados do que pelos seus irmãos fora do seu círculo confessional (católicos e luteranos) -, além de ter sido uma figura de destaque na luta da Igreja contra o Nazismo, tendo sido a principal cabeça da confecção da Declaração Teológica de Barmen que repudiava a nazificação da igreja alemã. Mas enfim, uma pequena correção a esse estado de coisas pode vir da leitura de sua própria obra - que conta com tradução para o português, pelo menos das obras básicas. E uma boa introdução ao seu pensamento é uma obra do próprio Barth chamada "Introdução à Teologia Evangélica". Quanto às fases do seu pensamento, uma coletânea de artigos do próprio Barth foi organizada e leva o nome de "Dádiva e Louvor". Também dispomos de uma tradução e edição magistral do "Comentário à Carta aos Romanos" feita pela editora Sinodal que, além desta, traduziu as duas outras obras listadas acima.
   Comprem esses livros de Barth e boa leitura.

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Vocação ao Auto-Abandono na Cruz

   A vocação cristã só pode ser exercida quando andamos no Espírito, pois é andando no Espírito de Deus que travamos a luta contra o nosso egoísmo e a degradação egoísta do mundo - o inferno é o mundo onde o homem decidiu ser Deus para si mesmo.
   Andar no Espírito é, necessariamente, descobrir que o centro da nossa vida não está em nós mesmos, mas naquele que é o Criador de todas as coisas.
   Em virtude disso, andar no Espírito é andar na virtude do Cristo, o qual exige de nós amor ao próximo e a santidade pelas quais podemos executar uma vida testemunhante neste mundo, nem que para isso tenhamos que abandonar a nós mesmos.
   Não há vida cristã que não seja vocacionada ao amor e à santidade e, em tudo, ao amor pela justiça e pela misericórdia nos quais encontramos o centro de sentido do amor de Deus pelo mundo demonstrado a nós quando Cristo se entregou a si mesmo no alto da Cruz.

Hegel e a Supremacia da Ciência do Espírito

   Lendo o Fenomenologia do Espírito de Hegel você percebe como ele concebe de forma altamente elevada o próprio conceito de espírito, destacando com isso o quão grosseiro é tomar as ciências naturais como a ciência suprema e diretriz da humanidade - já que ela é, para Hegel, segundo o pano de fundo do espírito, carente-de-conteúdo .
   A razão dessas considerações é simples: as ciências naturais lidam, no máximo, com a observação de elementos orgânicos e inorgânicos, sendo que a redução da consciência humana a esses dois gêneros de coisas é algo abaixo da própria humanidade. É justamente por isso que Hegel considera a filosofia a ciência suprema, pois por poder abarcar os níveis orgânicos (animais, plantas) e inorgânicos (pedras, a terra etc.), ainda abarca o universo do espírito humano ou da consciência, e é nesse nível apenas que captamos o conceito universal de humanidade - pois no homem abarcamos todos os níveis do ser.
   Seria ridículo, por exemplo, uma ciência política baseada na pura biologia, assim como seria o ofensivo para a humanidade do homem ser objeto exclusivo das ciências biológicas ou da física, pois tais ciências são incapazes de captar o que é próprio do homem, que, além da sua realidade física imediata, é caracterizado pela razão, pelo espírito e pela liberdade.

Racionalismo Diabólico e o Olavo de Carvalho

   Olavo de Carvalho tem uma tendência racionalista muito evidente e, devido a isso, pouco estômago para a noção de contingência. O que isso quer dizer?
   É simples: em sua postura altamente racionalista o Olavo tende a considerar a história política como racionalmente dirigida: sempre há planos, projetos e intrigas ocultas por trás de todos os eventos políticos, levando tudo, como um deus lebniziniano invertido, para o pior dos mundos possíveis.
   Parece que aqui há pouco espaço para a aleatoriedade e para a contingência na equação política olaviana - o que agiganta os poderes humanos desmensuradamente -, ou seja, pouco espaço sobra aqui para a interferência de eventos não racionalmente dirigidos que simplesmente ocorrem - como eventos naturais -, sem que haja o dedo humano a controlar os processos históricos.
   Nem Hegel chegou a tanto, pois ainda que afirmasse uma "astúcia da razão" na efetivação histórica do Espírito Absoluto, essa efetivação se dava também mediante realidades contingentes, não racionais, independente de coação humana, atuando assim como atua a Providência Divina, a qual usa para os Seu fins até as fortes paixões humanas, prescindindo do dirigismo racional absoluto do homem.
   Há pouquíssimo disso em Olavo de Carvalho, e o que mais há é o dirigismo do raciocínio diabólico no qual, ao que parece, o demônio sempre vence, escapando dessa vitória aqueles imunizados mediante a participação paga do seus curso de filosofia.

domingo, 10 de maio de 2020

Nada de Novo Sob o Sol

   A afirmação de que "Deus não está no controle" feita por Victor Azevedo nada mais é do que a reedição da velha e triste noção epicurista dos "deuses indiferentes".
   A circulação dessa ideia nos meios neoevangélicos é o que poderíamos chamar de a ressurreição dos derrotados, que depois de um tombo na história só se levanta para cair novamente.
   O problema é que essa ideia sobre a qual já foi tocado o réquiem ainda procria, e mesmo que tenha renascido para morrer de novo, ela atormenta com seus zumbis passageiros, atordoando um pouco o caminho da Igreja em direção àquilo que realmente importa.

Parmênides, a Degradação da Especulação Sofista e a Reação Platônica


   O livro Parmênides de Platão só pode ser entendido em sua totalidade junto com o livro Sofista. A razão disso é que a alta especulação sobre o uno em Parmênides ganhou uma versão degradada nas mãos dos retóricos sofistas, e Platão tinha em mente que as distinções decisivas em torno dessa especulação é que marcavam a diferenciação entre sofistas e filósofos.
   No livro Parmênides, que é um livro dificílimo, vemos termos como o "ser do não-ser", ou o "ser do uno" e a especulação do "uno para além do ser", do "ser do ser", ou o "não-ser do ser" etc., e em mãos menos nobres esse tipo de especulação levou pessoas de espírito degradado na época de Platão a afirmações atordoantes como "a verdade e a mentira são o mesmo", ou "nada existe porque tudo existe", fazendo a argumentação descarrilar em um relativismo que atingiu níveis insuportáveis, gerando consequências funestas.
   A reação platônica contra os sofistas - algo imensamente destacado em sua obra - se deu porque esse tipo de especulação atingiu a espera pública quando retoricos sofistas começaram a tutelar jovens destinados à política. A questão crucial aqui é que na posse desse tipo de interpretação sobre a especulação parmenídia a respeito do uno (que na verdade foi atingido por este mediante uma iluminação divina), oradores políticos não teriam comprometimento algum com os fatos, já que não havia distinção entre fato e não fato, mentira e verdade, o que por razões óbvias legitimaria o uso da retórica como instrumento de conquista de poder.
   Platão via nesse acontecimento a catástrofe da política ateniense que chegou, para ele, ao nível apocalíptico da loucura quando essa forma de ver a retórica se instalou nos tribunais - o processo público que culminou na condenação de Sócrates foi movido por um sofista -, coisa que, em sua visão, desembocaria na mais terrível tirania se a toada sofista lograsse êxito completo - o livro A República demonstra de forma cabal que quando a verdade falta, ou quando se é indiferente a ela, o instrumento último de persuasão é a violência. Toda a alta especulação Platônica, a exemplo da especulação sobre a Forma, ou Ideia do Bem, visava estabelecer uma âncora firme na alma dos seus pupilos para que eles sobrevivesse à voragem da insânia sofista, onde a persuasão visava não o bem, mas a conquista de poder.
   No entanto Platão não buscava a verdade como uma simples proposição, mas como o eixo inefável e estruturante de toda a realidade. Platão sabia que o verdadeiro conhecimento é uma participação espiritual no fundamento absoluto da realidade. Nesse sentido, no fim do livro 'Sofista', depois da execução da especulação sobre o ser, Platão caracteriza a atitude espiritual do sofista e do filósofo nestes termos:

    "Uma é a dificuldade de compreensão do sofista, outra é aquela do filósofo.
Àquele [o sofista], fugindo para a escuridão do não-ente e habituado por um longo convívio, é difícil conhecer [o ser], por causa da escuridão do lugar.
    O filósofo, porém, que através da observação racional da ideia se aproxima constantemente do ente (ou ser), [coisa que] não é, de modo algum, fácil de ver, por causa da claridade da região. Pois a maioria das almas são incapazes de manter os olhos fixos no divino".

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Anotações Sobre a Disputa Acerca do Pecado Original

   Hoje em dia incrivelmente na questão da culpa congênita os psicanalistas conseguem ser mais ortodoxos do que os negacionistas da herança da culpa como algo que constitui a realidade do pecado original. Andrés Torres Queiruga, o padre universalista, recentemente trouxe a tona a pergunta que desde os socinianos embebe os racionalistas: "Como posso ser culpado por algo que não cometi?".
P.S: Desde os socinianos essa questão no Ocidente vem sendo tratada com afinco; daí passando para os racionalistas como Espinoza, e entrando na Teologia liberal de Kant, Schleiermacher, Ritsch, a questão não cansa de sofrer atualizações.
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   É bom pontuar que não estou afirmando aqui de forma alguma uma simetria entre psicanálise a doutrina cristã do pecado original - porque essa simetria não existe. Estou dizendo que a noção de uma percepção de culpa congênita é mais certa do que o absurdo de afirmar uma simples geração que conta com uma defecção - que deve ser apenas física, ou da parte inferior da alma - sem culpa.
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   Não existe participação no pecado original sem ato - pois não existe humanidade apenas do prisma da potência (humanidade que nasce sem potência para o bem sobrenatural). Em primeiro lugar, poderíamos começar por ser guiados pelo nome próprio do primeiro homem que é apresentado na Bíblia. O significado do nome hebraico Adão é "Humanidade", tanto é que o termo "filhas dos homens" que vai aparecer em Gn 6 é 'banotha'adam". Sempre foi compreendido que o ato de Adão, como para Agostinho, era um ato da humanidade, do velho homem como um todo. Podemos até considerar a primeira parte de Gn apenas pelo prisma da linguagem mitológica, mas a questão é que Agostinho diz que Jesus foi pregado na "árvore" para devolver o que não tinha roubado, pagando pelo delito do Adão que tinha assaltado a árvore, trazendo a redenção e o perdão dos pecados de todos os homens - tanto do pecado original como dos pecados atuais. Hoje essa questão agostiniana está sendo questionada, mas o fato é que alguns estão colocando os efeitos do pecado de Adão sobre as pessoas, como a morte, sem que elas tenham culpa alguma, podendo ser condenadas por isso.
   Mas pare efeitos de uma explicação, o pecado original também implica na corrupção moral, justamente por causa da corrupção da vontade. Ora, se há corrupção da vontade é impossível que não haja culpa congênita, pois alguém que não pode realizar tal bem não pode ser moralmente bom e já não é bom. A negação da depravação total é a razão pela qual o cristianismo ortodoxo não consegue explicar porque um simples vício de natureza pode tornar alguém condenável, se, por exemplo, a regeneração batismal não implica em regeneração física, mas moral e espiritual. Quem deve provar o ônus é quem afirma o contrário.
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   Muitos ignoram o fato de que a finalidade sobrenatural do homem continua sobre ele no estado de corrupção, sem que ele a possa atingir. Diferentemente do primeiro homem que já estava no gozo desse fim. A questão do pecado não pode ser esgotado apenas pelo prisma jurídico aqui, mas envolve uma discussão de uma escala ontológica de onde se segue uma conclusão axiológica (valorativa). O homem deve existir em ato, mas nunca cumpre a finalidade sobrenatural para a qual está posto, sem a potência sobrenatural correspondente da vontade para realizar tal finalidade - o que implica em um vício moral e, por tanto, em culpa. O homem não pode realizar o seu próprio fim, e isso envolve culpa. O homem não possui poder de auto-determinação em direção à santidade, o que faz um escravo do pecado e submisso a ele. É interessante notar que na descrição da psicologia infantil de Agostinho no "Confissões" ele já ache nas crianças materialidade do pecado, e é impossível que, do prisma da vontade humana, que a ação valorativa, por mínima que seja, em quem quer que seja e de que idade for. O homem não regenerado não pode se capaz do bem e isso induz à noção já de uma culpa congênita, porque já nasce sendo o que é, inclinado para o mal e, por tanto, pecaminoso.
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   A confusão desastrosa entre a redução da potência ao ato de coisas meramente físicas e morais resulta em uma transposição indevida da noção do ser para a noção do ser devido.
   O fato de um ferimento de um tronco de árvore obstar a produção dos frutos não implica em uma falha moral. Da mesma forma, um homem que não possui as pernas estar diante de um incêndio e não poder atualizar o ato de salvar um bebê em perigo não implica em ausência do ser devido, pois se a sua vontade estivesse intacta, nada obstaria a realização desse bem se ele não fosse impedido disso por uma mera privação física (ausência de ser). Privação física (de ser) não é o mesmo que privação moral (de ser devido).
   O pecado de Adão gera os dois males, a ausência de ser e a ausência do ser devido, e a falha moral que reside na ausência do ser devido é basicamente uma falha da vontade de o homem não querer o bem retamente segundo a sua finalidade sobrenatural, ainda que ele realize um bem exterior semelhante ao bem requerido pelo ser devido, não atingindo o ser devido.
   A questão aqui é que o homem não pode querer o bem sobrenatural, não tem potência para isso, ainda que possua as faculdades para isso, e ainda é manchado pela inclinação ao mal, que é o mal, e nisso consiste o seu estado de culpa.
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   No entanto, as noções apresentadas acima explicam a razão da condenabilidade do homem em função do pecado de Adão, que acaba privando a posteridade do ser devido, assim como trazendo defecção do ser, mas não explicam a imputação da culpa de Adão sobre a humanidade, ainda que se explique a culpa congênita.
   A resposta à questão da imputação podem ser duas:
   1) A imputação se dá como se dá nos crimes de lesa-majestade, onde o pecado o crime de um representante é imputado sobre a sua família. E considerando a dignidade de Deus, não é inconcebível que o pecado de Adão acarrete não só em mal no ser, mas na imputação da culpa de tal crime aos descendentes deste, e que deve exigir reparação à altura.
   2) Adão como o cabeça da humanidade é também aquele de quem descende o homem. Ora, em todos há a marca da mortalidade desde que nascem, sendo a sujeição à mortalidade a pena do pecado. Ora, não onde há mortalidade há pena e onde há pena há necessariamente culpa. Mesmo em crianças há penalidade transmitida e, por tanto, culpa, não culpa devido aos pecados atuais, já que crianças não estão de completa posse do livre-arbítrio, embora haja imputação de culpa por causa da marca da pena transmitida em virtude da transmissão do pecado original.
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   Não há uma natureza neutra, que nem é boa e nem má, pois toda ontologia é axiológica, e no caso do homem, a sua corrupção, e a mancha da morte o faz naturalmente portador de uma pena, pena em um ser moral, e não há pena em um ser moral, no que toca a mancha do pecado, onde não há culpa.
   Da natureza da pena pode ser considerada como que dividida por duas classes: 1) a pena enquanto pena física, donde provém toda imperfeição não só do homem, mas do mundo (Gn 3:18); 2) e a pena enquanto pena espiritual, que é possível ver da defecção tanto da vontade quando do intelecto (parte superior da alma).
   O pecado original é a fonte de todas as defecções e, por consequência, tais defecções são mal de pena, já que é privatio boni com o qual o homem já nasce por um justo juízo, carecendo tanto de justiça quanto santidade pelos quais se faz aprazível a Deus. Carecendo de tais dons o homem jamais atinge o fim espiritual para o qual foi criado; e se não atinge está sob juízo, necessitando de salvação.
   O estado de natureza viciado é destituído do bem sobrenatural pelo qual o homem se torna agradável a Deus. E tendo recebido uma natureza corrompida, e privado do dom sobrenatural, lhe é impossível a salvação, estando por privação do bem, marcado pela mortalidade que é pena sobre o pecado; e, no que toca a mancha do pecado, não há pena onde não há culpa.
***
   Quanto à questão de que o homem é apenas sujeito à possibilidade do pecado porque efetivamente sujeito à morte, e que por isso possui potência para o mal, é necessário algumas considerações:
   Primeiro: é tecnicamente incorreto dizer que alguém tem potência para o mal. O correto seria dizer que é impotente para o bem para o qual ele está ordenado - e isso já determina muita coisa, incluindo a culpabilidade.
   Segundo: Ter em si a pena da morte em um ser que é moral, privado do dom sobrenatural da justiça, é ter em si pena - e é impossível uma pena sem uma culpa correspondente, justamente porque o homem é o que é: impotente para o bem e corrompido portanto, estando abaixo do que deveria ser, privado da justiça original e do ser devido.
   Terceiro: O homem não é condenável apenas pelos pecados atuais - gerados ação moralmente má - , caso contrário bebês não seriam carentes de redenção.
   Quarto: Não existe uma relação necessária entre a sujeição à morte física e o ato do pecado, caso contrário a morte de Cristo carregaria infalivelmente junto a si o pecado de Cristo, o que é absurdo. O estar "sujeito à morte", no caso de Cristo, deve ser entendido paralelamente com a sua potência absoluta para o bem. Nesse sentido ele é impecável.
   Quinto: Mas a impecabilidade não pode se dar no caso do homem comum, pois o pecado seria absolutamente resistível caso ele fosse sujeito apenas às defecções físicas da morte, mas tivesse infensa a faculdade da vontade. Não há exemplos de resistência ao mal apenas por pressão da defecção da morte, já que além do mal no ser o homem carrega a defecção da vontade, o que o priva também do ser devido. São as penas naturais e espirituais que estão presentes no homem, e onde há pena, há culpa, tendo o homem aqui a necessidade de salvação.
   Sexto: Se negarmos que o homem está infenso na faculdade da vontade, teremos que abraçar necessariamente o pelagianismo e tornar não absolutamente necessária a necessidade do dom da graça na regeneração da vontade.


O Evangélico e a noção Distorcida de Poder

   Essa mania infantil que muitos evangélicos tem de se regozijar com alegria quase beatífica em ver algum dos seus num lugar de grande poder é algo horrendo, e evidencia uma ruína da compreensão de conceitos cristãos fundamentais a respeito de determinados princípios que realmente importam.
   Esse amor desmesurado por poder é aquilo que está levando grandes setores da igreja em direção ao terreno perigoso da paixão política. Quando a igreja do ostracismo é substituída pela igreja da presença pública, esse evento é sentido por alguns quase que como uma virada escatológica do velho mundo do sofrimento para o novo mundo da imortalidade e glória eternas.
   Apontar esse problema não é afirmar que, ao contrário, deveríamos nos entristecer até à morte e bater no peito em lamentos por algum cristão evangélico/protestante ter chegado ao poder, pois o problema real que deve ser apontado é a manifestação em alguns de uma mentalidade mágica de que a só a posse de algum poder e autoridade é em si mesma um bem. Se assim fosse, reis manifestamente ímpios não teriam recebido poder de governar, como relata a Bíblia. A Besta não teria poder sobre o mundo, se o poder independentemente da justiça fosse por si só um bem. Na verdade a conquista do poder por alguns pode ser até mesmo indicativo de juízo - mesmo se essa pessoa se declarar evangélica/protestante. A posse do nome não indica a posse daquilo que significa o nome, caso contrário Judas, que significa louvor a Deus, não seria o homem da perdição, o traidor de Cristo - e seguindo esse pensamento podemos dizer que não é porque um cristão, que se diz cristão, chega a um lugar de poder que logo isso redundará automaticamente em um bem.
   Na verdade, o fato de evangélicos/protestantes chegarem ao poder (e isso não é novo no Brasil, diga-se de passagem) deveria nos despertar para a responsabilidade, pois todo poder possui essencialmente uma finalidade orientada para o bem que deve ser reconhecido. Ora, todo fim é mais do que os meios conducentes ao fim. Em outras palavras, o poder é um meio de realizar um bem, e, enquanto meio, não é ele próprio o fim, podendo até ser corrompido e auxiliar no afastamento de tal fim ou bem. A corrupção política demonstra isso, pois a finalidade verdadeira da política é realização do o bem comum, recebendo os políticos poder para isso, poder que pode ser desviado da função que lhe é própria.
   Alguém pode me acusar de usar um tom condescendente aqui, mas é evidente que o nosso povo evangélico deve ser educado urgentemente quanto à finalidade do poder, pois estão demasiadamente intoxicados com a ideia de que o poder é um fim em si mesmo, a começar pela concepção deturpada que muitos líderes e liderados em igrejas tem do próprio poder eclesiástico, onde uma palavra de um pastor/bispo tem validade em si mesma porque palavra de pastor/bispo.
   O princípio da Reforma onde a Escritura dá a regulamentação necessária quanto aos limites de autoridade parece ainda não ter chegado em muitos setores do evangelicalismo brasileiro, e daí a cena horrenda e mesmo grotesca de gente que não sabe a real distinção entre o bem e o mal querendo gozar de poder, demonstrando a incapacidade de limitar o próprio poder em nome um bem que dá a forma à ação justa de um cristão no mundo.

Teologia da Expiação e a Falsa Oposição Entre Substituição e Participação

   Quem opõe o conceito de substituição ao conceito de participação na teologia da expiação geralmente não sabe ou deliberadamente ignora onde a expiação começa e também onde termina.
   O erro dos participacionistas são esses três:
   1) Parece que eles não levam a sério o fato de que Cristo substitutivamente fez o que não poderíamos, pois na cruz ele consuma a sentença de morte em si para aboli-la - não há simetria entre a nossa morte em Cristo e morte de Cristo;
   2) A nossa participação na cruz, que traz em si a promessa da participação na glória de Cristo, não é a causa graça, antes é o efeito da graça, pois não é possível participarmos dos sofrimentos de Cristo se antes não formos agraciados pelos efeitos desse sofrimento de Cristo (Fl 1:29);
   3) A razão dos nossos sofrimentos fazem parte da nossa união com Cristo, pois, como diz Agostinho, aquilo que ocorre à cabeça também ocorre com o corpo (Agostinho diz isso tanto a respeito da ira de Deus como a respeito das perseguições demononíacas - cf. Comentário ao Sl 87.15), ainda que isso se dê em um corpo justificado. As "iras" são corretivas, enquanto que as perseguições resultado das guerras contra Cristo. Não obstante a isso, Cristo e a obra divina abrem, inimitavelmente, as portas da graça da participação a todos nós.
   Enfim, não há simetria entre a obra de Cristo e a nossa obra, e é por isso que num primeiro plano a obra de Cristo é substitutiva e só depois então pode ser participada (mas a nossa participação não é expiatória). Se participamos da cruz de Cristo é por obra da graça; mas se Cristo carrega a cruz é para abrir para nós as portas da graça, sendo ela, por tanto, causa da graça para nós.