quarta-feira, 30 de junho de 2021

O Escrúpulo Escandaloso dos Ilustrados Metafísicos; Ou: A Teologia da Expiação de Lutero e o Erro do Pe. Reginald Garrigou-Lagrange

Entre as várias acusações que pesam contra a teologia da expiação característica dos reformadores está aquela que imputa à referida teoria a devoção absoluta do ódio pessoal do Pai contra o Filho. Essa é uma boa oportunidade de desfazer certos equívocos que cobrem desde a aplicação dos méritos de Cristo à pessoa do justificado, como o modo pelo qual Cristo sofre a pena devida ao pecado, assim como a relação entre o Pai e o Filho no contexto mesmo do evento da paixão. Eu mesmo já escrevi muito a esse respeito, e esses textos podem ser encontrados aqui neste blog, mas condensar os argumentos aqui pode ser mais proveitoso, ainda mais se tratando de um comentário à oposição de pessoas representativas, como é o caso do tomista bañeziano Reginald Garrigou-Lagrange. Na obra O Salvador e o Seu Amor por Nós1 Lagrange afirma que: "Os primeiros protestantes, Lutero, Calvino e seus discípulos, falsearam o mistério da Redenção dizendo: Cristo tomou sobre si nossos pecados até o ponto de se fazer odioso ao seu Pai, e sobre a Cruz ou ao descer aos infernos, sofreu o tormento dos condenados. Desde então, adicionam, já não nos resta nada a fazer e nem sofrer pela nossa salvação, senão tão somente crer nos méritos de Cristo"2.

    Esse trecho acima é significativo e mostra como se fazem as oposições, geralmente incrustadas da razia e má-vontade característica das querelas, contra a teologia da substituição penal. No entanto, o grande tomista não é uma exceção, pois até mesmo a Comissão Teológica Internacional afirma, em especial, sobre a teologia da expiação reformada: "Calvino apresenta uma compreensão imputável da pecaminosidade de Cristo. Diz ele que Cristo estava coberto pela sujeira do pecado mediante a "imputação transferida". A culpa que nos tornava passíveis de punição foi transferida para a cabeça do Filho de Deus. Acima de tudo, devemos lembrar essa substituição a fim de sermos libertados da ansiedade. Jesus não só morreu como malfeitor; ele também foi para o inferno e sofreu as dores dos condenados"3. O texto assim exposto, sem as devidas distinções, pode conduzir o juízo daqueles não familiarizados com a teologia reformada ao erro.

    Mas vamos por partes, iniciando um comentário sobre a teologia de Lutero, em especial aquela presente no seu famoso comentário aos Gálatas 3.13 e 5.6(4), e, logo após, em outro texto, faremos certas considerações a respeito da teologia de Calvino presente tanto nas Institutas5, como em outros comentários que ele teceu sobre a Escritura. No mais estaremos nos servindo de comparações e comentários dos pais da Igreja, mais alguma análise a respeito da Teoria da Satisfação, tal como apresentada por Tomás de Aquino na Suma Contra os Gentios6 e na Suma Teológica7.

1) O Comentário de Lutero a Gálatas 3.13

    Lutero em seu típico estilo paradoxal expõe seu entendimento a respeito da passagem de Gálatas 3.13, passagem em que muitos teólogos da reforma se apegaram para confirmar seu ponto de vista a respeito da teologia da redenção. Eis a passagem de Gálatas, tal como se encontra no manuscrito grego: Χριστὸς ἡµᾶς ἐξηγόρασεν ἐκ τῆς κατάρας τοῦ νόµου γενόµενος ὑπὲρ ἡµῶν κατάρα, ὅτι γέγραπται, Ἐπικατάρατος πᾶς ὁ κρεµάµενος ἐπὶ ξύλου (Cristo nos regatou da maldição da lei tornando-se maldição por nós, pois está escrito: maldito todo aquele que é suspenso sobre o madeiro). E para compreendermos o teor desta maldição, a qual foi sofrida por Jesus na Cruz, podemos nos remeter às passagens Hb 6.9, Tg 3.10, 2 Pe 2.14, as quais usam a palavra κατάρα8 para se referir à maldição; assim como podemos nos referir aos textos que usam a palavra κατάραοµαι9, que significa amaldiçoar em Mt 24.41, Mc 11.21, Lc 6.28, Rm 12.14, Tg 3.9.

    Mas isso posto, vamos à análise de certas partes do comentário de Lutero a Gálatas 3.13, comentário que certamente é um dos maiores feitos à carta na história da igreja, tanto em função da sua extensão (são mais de 500 páginas de comentários), como em função da sua importância histórica. Lutero inicia o comentário a Gl 3.13 nos seguintes termos: "Aqui, mais uma vez, Jerônimo e os sofistas que o seguiram estão em dificuldade e, de uma maneira muito desagradável, dilaceram essa passagem tão cheia de consolo. Agem ansiosamente, com um certo zelo piedoso, como pensam, para não permitir que essa afronta de ser chamado de maldição ou execração seja feita a Cristo"10. Ora, Lutero cita certo escrúpulo não raro na interpretação dos pais da igreja em relação a certas passagens da Escritura. Um exemplo disso pode ser visto no comentário de João Crisóstomo à própria Carta aos Gálatas (2.11,12), onde, segundo Crisóstomo, Paulo não teria verdadeiramente repreendido a Pedro, mas sim simulado com ele para dissuadir aqueles resistentes quanto à liberdade dos gentios que não guardavam a lei11. E em relação a Jerônimo, provavelmente Lutero se refere ao seguinte comentário em Gálatas 3.13b: Compilei todos esses dados devido a um problema notório. Os judeus, com a intenção de trazer desonra sobre nossa religião, [gostam de alegar] que nosso Senhor e Salvador estava sob a maldição de Deus. Em primeiro lugar, devemos compreender que nem todo mundo que se pendura em um árvore é amaldiçoada diante de Deus12. Na sequência do comentário Jerônimo faz um arrazoado do porquê Paulo não citou literalmente as palavras que constavam tanto na LXX, quanto nas escrituras hebraicas, onde em Dt 21.23 se tem "maldito de Deus", só destacando o "maldito", como lemos em Gl 3.13. Jerônimo leva em consideração que o que está em jogo é uma querela com os judeus que fazem o possível para descredibilizar a religião13. A tese de Jerônimo é que os judeus , após Cristo ser crucificado na cruz, adulteraram as palavras das escrituras hebraicas, como da LXX14 e acrescentaram o "maldito de Deus" onde só se encontrava o "maldito". Lutero nega o arrazoado de Jerônimo, pois segundo ele isso nos privaria de vislumbrar o verdadeiro mistério da paixão.

    Após isso Lutero discute que Paulo escolheu conscientemente as palavras afim de destacar que a razão pela qual Cristo foi feito maldição não decorre do fato de ele ter feito isso por causa de si mesmo. Assim acrescenta Lutero: Paulo preparou bem as suas palavras e falou claramente. E aqui, novamente, deve ser feita uma distinção. As palavras de Paulo o indicam suficientemente. Pois ele não diz que Cristo foi feito maldição para si mesmo, mas "em nosso lugar"15, continuando: A ênfase, portanto, está na expressão "em nosso lugar". Com efeito, Cristo é inocente no que diz respeito a sua pessoa. Não deveria ser, portanto, pendurado em madeiro16. Mas, tendo feito essa distinção, Lutero explica a razão pela qual Cristo deveria ser crucificado: Mas, porque, segundo a lei de Moisés, todo o ladrão deveria ser pendurado, o próprio Cristo, portanto, também deveria ser pendurado, segundo a lei de Moisés, porque assumiu a pessoa de um pecador e ladrão e não, apenas, de um só, mas de todos os pecadores e ladrões17. O destaque feito à última citação é importante porque a afirmação da assunção da pessoa do pecador viria a ser importante no contexto da teologia da Reforma e principalmente porque o termo pessoa tem caráter jurídico, caráter esse fundamental tanto para a compreensão da justificação quando da expiação. Sendo a perspectiva da assunção da pessoa do pecador também assumida por Calvino, desponta a estranheza do texto ambíguo da Comissão Teológica Internacional (cf. nota 2) onde se fala que: Calvino apresenta uma compreensão imputável da pecaminosidade de Cristo. Diz ele que Cristo estava coberto pela sujeira do pecado mediante a "imputação transferida"; ora a pecaminosidade não é, ipso facto, 'de' Cristo, mas do pecador, pecaminosidade que só passa a ser de Cristo de iuris, o que não obsta em nada em relação à sua santidade. E mesmo que a comissão afirme a "imputação transferida" o texto não deixa de ser ambíguo (não só nessa parte, como veremos mais adiante) em função da afirmação de que, para Calvino, "Cristo estava coberto pela sujeira do pecado". Mas Lutero continua: Cristo, porém, não, apenas, foi encontrado entre os pecadores, mas ele mesmo, por sua espontânea vontade e pela vontade do Pai quis ser companheiro dos pecadores, assumindo a carne e o sangue daqueles que são pecadores, ladrões e [estão] imersos em toda a espécie de pecados. Por isso, como a lei o encontrasse entre os ladrões, condenou-o e o matou como ladrão18.

    Já se torna suficientemente claro onde Lutero deseja chegar com essas declarações. É fato que a noção de substituição encontra forte significado nesta interpretação teológica de Lutero. Assim Lutero continua a esclarecer a sua compreensão do texto paulino: Desse conhecimento de Cristo e dessa consolação tão agradável de que Cristo foi feito maldição em nosso lugar para nos resgatar da maldição, privam-nos os sofistas, quando separam Cristo dos pecados e dos pecadores e o apresentam apenas como exemplo que deve ser imitado por nós19. Assim, Cristo nos resgata da maldição assumindo a nossa maldição: E todos os profetas viram que Cristo haveria de tornar-se o maior salteador de todos. homicida, adúltero, ladrão, profanador, blasfemador, etc., sendo que jamais existiria no mundo algum salteador maior do que ele. Agora, já não se trata mais de sua pessoa. Já não é o filho nascido da virgem Maria, mas um pecador que tem e carrega o pecado de Paulo, que foi um blasfemador, perseguidor e homem violento. Ele carrega o pecado de Pedro, que negou a Cristo; de Davi, que foi adúltero, homicida e fez com que os gentios blasfemassem o nome do Senhor. Em suma, ele tem e carrega todos os pecados de todos os homens em seu corpo. Não que ele os tivesse cometido, mas ele tomou os pecados, por nós cometidos, sobre seu corpo e os satisfez com o seu próprio sangue 20.

    Um dos detalhes que poucos atentam na teologia da substituição é que Lutero tem certa referência no livro dos Salmos, entendendo que o próprio Jesus disse que estes testemunhavam dele, já que eles foram escritos tendo referência nele (Lc 22.44). Assim, sendo os Salmos orações e palavras de Cristo, entende-los como tal se constitui, para o cristão, regra de interpretação dos próprios Salmos. Lutero diz: Que Cristo tinha pecado, atesta também o Espírito Santo nos Salmos. Assim, no Sl 39 [sc. 40.12]: As minhas iniqüidades me alcançaram". E Sl 40 [sc. 41.4]: "Disse eu: compadece-te de mim, Senhor; sara a minha alma, porque pequei contra ti". Igualmente, Sl 68 [sc. 69.51: "Tu, ó Deus, bem conheces a minha estultice, e as minhas culpas não te são ocultas". Nesses Salmos, o Espírito Santo fala na pessoa de Cristo e, com palavras claras, atesta que ele pecou ou que tem pecado. Esses testemunhos dos Salmos não são, na verdade, as palavras de um inocente, mas do Cristo sofredor que se dispôs a tomar sobre si o papel de todos os pecadores e, assim, tornou-se culpado dos pecados de todo o mundo (sic)21. Então Lutero conclui: Por isso, Cristo não, apenas, foi crucificado e morreu, mas, também, por amor divino, foi posto sobre ele o pecado. Depois que o pecado fora posto sobre ele, veio a lei e disse: "Todo pecador deve morrer". Consequentemente, se queres, ó Cristo, assumir a fiança, ser o culpado e suportar o castigo, deves carregar também o pecado e a maldição. Paulo, portanto, aplica corretamente a lei geral de Moisés a Cristo: "Maldito todo a durado em madeiro". Cristo esteve pendurado num madeiro. Logo, Cristo é uma maldição de Deus22.

    Dessa compreensão se seguem certas consequências, e no entendimento de Lutero essa compreensão de coisas culmina na incompatibilidade entre isso e a justificação pelas obras, as quais os fanáticos querem nos impor: E este é o nosso supremo consolo de revestir-nos de Cristo e envolvê-lo em meus, em teus e nos pecados de todo o mundo, vendo-o carregar todos os nossos pecados. Se é visto desse modo, ele, facilmente, remove as opiniões fanáticas dos adversários a respeito da justificação por obras23. Aqui tocamos na posição do Pe. Lagrange, o qual disse (cf. nota 2) que: Desde então, adicionam, já não nos resta nada a fazer e nem sofrer pela nossa salvação, senão tão somente crer nos méritos de Cristo. Aqui cabe a passagem em que inequivocamente Lutero sinaliza sua posição diante do entendimento a respeito da justificação com base no fazer e sofrer pela nossa salvação: Pois, se é verdade que abolimos o pecado pelas obras da lei e pelo amor, então, não é Cristo que os tira, mas nós. Mas, se ele é, verdadeiramente, o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo, foi feito maldição em nosso lugar e foi envolvido em nossos pecados, então, necessariamente, conclui-se que não podemos ser justificados e tirar os pecados pelo amor, pois Deus não colocou os pecados sobre nós, mas sobre Cristo, seu Filho. Se eles são tirados por ele, não podem ser tirados por nós24. Alguns podem supor maldosamente que Lutero é tanto contrário às obras, como é contrário ao amor. Não se poderia estar mais longe da verdade quem afirmasse isso. O que Lutero tem em mente é que são as obras de Cristo que trazem para nós a justificação, e em especial a sua paixão na cruz, não sendo portanto uma infusão física de graça que nos eleva à altura da justiça divina, anulando assim o nosso pecado pecado, mas sim o fato de Cristo os ter levado como castigo em seu corpo. Os papistas insistem em que na justificação inicial ganhamos um hábito infuso trazido pela fé, e que é nesse hábito de santidade incoada pela graça que ganhamos a "graça santificante" na qual perseveramos e a qual aumentamos mediante boas obras. Lutero posiciona o nosso pensamento para vermos que nesse tipo de consideração - que traduz o que o Pe. Lagrange quer dizer por fazer e sofrer pela nossa salvação - não é Cristo que leva sobre si os nossos pecados, mas que é uma fé informada pelo amor (fides caritate formata) que eleva a nossa natureza à altura da santidade pela qual somos transformados naquele justo o qual Deus ama. Seguindo esse modo de pensamento, a cruz de Cristo, segundo Lutero, não justifica, porque assim Cristo não assumiu a nossa pessoa pecadora, tornando obsoleto dizer que ele levou nossos pecados no madeiro - e pensando dessa forma, dizer que os Salmos testemunham de Cristo, e que Cristo se fez maldição e pecado, não faz nenhum sentido.

     Também a acusação de que o amor não é a base da justificação na teologia da Reforma é algo que não faz nenhum sentido, pois não é só o amor que é a base da nossa justificação, mas o maior deles (o que não anula a validade da hierarquia de 1 Co 13 para o protestantismo), pois: Essa é a mais agradável de todas as doutrinas e a mais plena de consolo, que ensina que temos essa inefável e inestimável misericórdia e esse amor de Deus. Quando o Pai misericordioso viu que estávamos sendo oprimidos pela lei e sujeitos à maldição e nada nos poderia libertar dessa situação, ele enviou, por esse motivo, seu Filho ao mundo, sobre o qual lançou todos os pecados de todos os homens e disse a ele: "Tu és Pedro, que te negou; tu és Paulo, o perseguidor, blasfemador e homem violento; tu és Davi, o adúltero; tu és o pecador que comeu o fruto no paraíso; tu és o ladrão na cruz. Numa palavra, tu és a pessoa de todos os homens que cometeu os pecados de todos os homens. Pensa, pois, como os pagarás e farás satisfação por eles"25. Assim, o tema da assunção da pessoa do pecador se torna incrivelmente claro. Também Cristo assumido o nosso lugar, e decidindo fazer isso, vem a resposta do como do resgate: Nesse momento vem a lei e diz: "Considero esse homem um pecador que assumiu sobre si os pecados de todos os homens e, além disso, não vejo nenhum pecado, a não ser os que estão sobre ele. Que morra, portanto, na cruz! E, assim, ela [a lei] o ataca e mata."26. Os efeitos dessa decisão ecoam: Por esse feito, todo o mundo é purificado e remido de todos os pecados e, portanto, também Libertado da morte e de todos os males. Uma vez abolidos o pecado e a morte, por esse homem singular, Deus não gostaria de ver nada mais, em todo o mundo, sobretudo se cresse, a não ser mera purificação e justiça. E, se permanecessem alguns restos de pecado, Deus não os consideraria por causa desse sol, que é Cristo27. Portanto, não há justificação ociosa, e por determinado ângulo não há ócio ou nada o que fazer ou sofrer, pois da justificação flui a santificação pela qual nos conformamos a Cristo, ao seu amor e à sua justiça - mas isso pela justificação e não para ela.

    Mas essa efetividade da absorção da condenação pela lei em sua pessoa não seria real se o próprio Cristo não fosse de fato santo e justo, e assim Lutero expõe o paradoxo em que duas coisas extremamente contrárias se concentram nessa pessoa28, ou seja: No entanto, porque nessa mesma pessoa, que é o supremo. máximo e único pecador, existe, também, a eterna e invencível justiça, essas duas coisas se combatem: o supremo, máximo e único pecado e a suprema, máxima e única justiça29. Dessa forma não somente o cristão justificado é simul justus et peccator, mas também Cristo, o nosso modelo, foi simul justus et peccator. Assim, aqui temos o que Lutero chamou de duellum mirabile, pois dessa concentração de dois opostos em sua pessoa um deve vencer: Aqui, uma deve recuar e ser vencida, visto que se encontram e colidem com o mais forte ímpeto. Assim, o pecado de todo o mundo ataca com o mais violento ímpeto e furor a justiça. Que acontece? A justiça é eterna, imortal e invencível30. Mas Lutero continua: O pecado, também, é muito poderoso e um tirano muito cruel, dominando e reinando em todo o orbe terrestre, fazendo cativos e submetendo todos os homens à servidão. Em suma, o pecado é um deus muito grande e muito poderoso que acaba com todo o gênero humano, com todos os instruídos, santos, poderosos, sábios, ignorantes, etc.31; no entanto a vida é eternamente vencedora: Mas, visto que a vida era imortal, ela, que tinha sido vencida, acabou por tomar-se vencedora, vencendo e matando a morte32. Contudo, não é só a morte que polariza com a vida em Cristo, também o é a maldição (a ira divina que pousou sobre Cristo) que polariza com a benção nele: Assim, a maldição, que é a ira divina contra todo o mundo, tem o mesmo conflito com a bênção, isto é, com a eterna graça e misericórdia de Deus em Cristo. A maldição, portanto, peleja contra a bênção e quer condená-la e reduzi-la completamente a nada, mas não o consegue. A bênção, com efeito, é divina e eterna. Por essa razão, importa que a maldição lhe ceda. Pois, se a bênção em Cristo pudesse ser vencida, então, o próprio Deus seria vencido. Mas isso é impossível33. Nesse sentido há Christus Victor, pois a misericórdia triunfa sobre o juízo em Cristo. Assim Lutero esclarece: Cristo, portanto, que é o poder divino, a justiça, a bênção, a graça e a vida, vence e destrói esses monstros: o pecado, a morte e a maldição, sem armas e sem combate, em seu corpo e em si esmo, como Paulo costuma falar com prazer. "Despojou", diz ele, "os principados e as potestades e triunfou deles em si mesmo" [C1 2.15], a fim de que não mais pudessem prejudicar os crentes, etc34.

    Lutero quer a fé como senhora da justificação, e quer a justificação com base nas obras de Cristo. No entanto, se olhamos para nós nos percebemos falidos e perdidos nos nossos pecados; assim, para apreendermos essa grande verdade é necessário a nossa fé, já que tal benefício não é alcançado pela nossa vontade, ou pela perfeição do nosso amor. Nesse sentido Lutero considera a teologia metafísica/escolástica como opositora da fé pela qual se vence a maldição e o pecado. Assim ele explica: Pois a teologia dos sofistas não pode considerar o pecado de outra maneira a não ser metafisicamente, por exemplo, desse modo: "Uma qualidade adere a uma substância ou a um objeto assim como a cor à parede. Assim, o pecado adere ao mundo, à carne ou à consciência. Deve, por isso, ser purificado por movimentos contrários, a saber, pelo amor"35. Nunca é demais lembrar que Lutero não milita contra o amor, mas segundo a noção de que mesmo após a regeneração, há ainda resquícios do pecado (que os escolásticos chamam de pecado material), ou a fonte do pecado, fonte que permanece a vida toda. Assim, é levando essa consequência até o fim, Lutero afirma que uma purificação operada pela ação levada adiante pela vontade que é contrária ao pecado (o que ele chama de amor), não se trata de uma possibilidade dada a continuidade da defecção no corpo e na alma. Mesmo os escolásticos afirmam a continuidade da fomes, mas que, segundo eles afirmam, essa não pode receber a atribuição formal do pecado, pois não se trata de uma agressão à consciência que provoca uma ruptura com a graça tal como uma pequena ofensa não pode desfazer a amizade. Aqui, implicitamente (ou explicitamente), Lutero faz oposição à separação entre pecados mortais e veniais, tais como vigoram entre a teologia romanista. E mesmo a Escritura não parece fazer tal distinção, quando mesmo o olhar para uma mulher recebe a atribuição formal de adultério (Mt 5.27,28). Assim, alguns podem fazer oposição dizendo que o que Jesus diz está relacionado com um tipo de olhar onde se formula a intenção consciente do adultério, intenção consciente essa à qual é atribuível formalmente a culpa, culpa que não incide contra um devaneio inconsciente. A questão é que as palavras do evangelho de Mateus 5.28 são claras a esse respeito, pois a palavra usada para intenção impura é ἐπιθυµῆσαι, a qual traduzimos por concupiscência, a qual Paulo em Cl 3.5 diz para mortificarmos. Também é sabido que por ἐπιθυµια os escolásticos entendem o "pecado material" ao qual não pode ser atribuído formalmente culpa, e sendo simples fomes ou matéria do pecado não destrói o vínculo com a graça santificante e a amizade, sendo infenso a Deus no tocante à condenação ao inferno, já que para a satisfação são suficientes as penas do purgatório. Mas isso seria corromper o sentido do texto, pois o sermão da Montanha em Mateus tem justamente a intenção de desfazer erros comuns à época onde vários pecados eram atenuados pelos teólogos como no caso da concupiscência dos olhos (cf. 1 Jo 2.16). Tanto é assim que se atribui formalmente culpa à ira sem motivos contra um irmão, e se atribui razão para as penas infernais um simples chamar de "tolo" (cf. Mt 5.21,22). Então Lutero diz: No entanto, a verdadeira Filosofia ensina que não existe mais nenhum pecado no mundo, porque, segundo Is cap.[ítulo] 53[.6], Cristo, sobre quem o Pai fez cair o pecado de todo o mundo, venceu, destruiu-o e o matou em seu corpo. Ele morreu uma vez para o pecado, mas ressuscitou dos mortos e já não morre mais''. Onde quer, pois, que haja fé em Cristo, ali, verdadeiramente, o pecado foi abolido, morto e sepultado. Mas onde não há fé em Cristo, ali o pecado permanece. Ainda que haja restos de pecado nos santos, porque não crêem de modo perfeito, etc., esses restos, contudo, estão mortos, porque não são imputados por causa da fé em Cristo"36. Assim a justificação forense ganha todo seu sentido, não que ela contraste com a santidade, ou que a considere impossível, mas que a presença física dela no crente não é, assim considerada, a base mesma da justificação.

    Também aqui se esclarece a razão pela qual é necessário a confiança nos méritos de Cristo, e não nas obras pessoais. Aqui está a razão da distinção entre Lei e Evangelho tão fortemente enfatizada pela teologia luterana. Mas contra isso a teologia papista, tal como podemos constatar na frase do Pe. Lagrange, faz oposição. Também Lutero explica que quem não faz de Cristo seu, incluindo seus méritos, estão sob a maldição: No entanto, assim como Cristo é verdadeiramente diferente da lei e das obras da lei, assim, também, a redenção de Cristo é algo muito diferente de meu mérito, baseado sobre as obras da lei, pois era necessário que o próprio Cristo nos redimisse da maldição da lei. Permanecem, pois, sob a maldição todos aqueles que não se apropriam de Cristo pela fé37. E nesse sentido, Lutero faz oposição à teologia penitencial papista, fazendo a devida distinção entre Cristo e as obras - opondo a ideia de as obras não são Cristo, que é Deus e Homem, o qual é o único que pode nos conceder a redenção. Não se trata de simples oposição às obras, mas a reta consideração de que o valor dessas se encontram deslocados no sistema teológico romano, e que, fora de uma reta consideração, as obras, que são importantes, podem vir a ser razão de condenação (maldição) quando nelas se fia o desejo de salvação, pois elevadas ao nível de Cristo, que é o único redentor que levou sobre si os nossos pecados. Daí a afirmação: Nenhum papista, por mais insensato que seja, ousará dizer que a esmola que dá a um necessitado ou a obediência que presta um monge seja Cristo. Cristo, na verdade, é Deus e homem, concebido pelo Espírito Santo, nascido da virgem Maria, etc. A respeito dele, Paulo diz que foi feito maldição por nós para nos redimir da maldição da lei. A lei, portanto, as obras, o amor, os votos, etc., não redimem, mas nos envolvem ainda mais na maldição e a agravam. Por isso, quanto mais obras tenhamos praticado, tanto menos capacidade teremos para conhecer a Cristo e nos apropriar dele38. Então, considerada a relação entre o homem e Deus, só a fé justifica e é ela a porta de entrada para a graça. Lutero põe em perspectiva assim a relação entre Deus e o homem, o que implica também colocar sob a reta razão a consideração a vita contemplativa do homo theoreticus, o que obviamente também se constitui em uma perspectivação da vida monacal que julga estar mais perto de Deus (leia-se: mais justificado em função das suas obras) do que o homo communis e sua vita activa. Obviamente que Lutero diz o que diz tendo em mente a justificação, não a vida monacal como tal e o seu valor evangélico. Lutero, por tanto, explica o que é a contemplação com base na razão iluminada pelo Espírito Santo: Mas Cristo é apreendido não pela lei, não por obras, mas pela razão ou pelo intelecto iluminado pela fé. E esta apreensão de Cristo pela fé é, propriamente, a vida especulativa (da qual os sofistas dizem muitas tolices, mas não sabem o que dizem). Essa especulação pela qual Cristo é apreendido não é aquela imaginação tola dos sofistas e monges a respeito de coisas maravilhosas acima do entendimento deles, mas é uma especulação teológica, a fiel e divina ação de olhar para a serpente suspensa numa haste, isto é, Cristo pendurado na cruz por meus e por teus pecados e pelos pecados de todo o mundo. E evidente, portanto, que somente a fé justifica39 - assim o terminus ad quo da justificação é realmente Cristo levando sobre si nossos pecados, (como de resto afirma a Escritura) e o terminus ad quem é o homem aceitando integralmente essa justificação completa criada em Cristo.

    Levantado esse contraste entre vita activa e vita comtemplativa Lutero as distingue como lei e evangelho, obras de amor e justificação pela fé. E é aqui que a teologia de Lutero faz imenso sentido, rechaçando também a ideia da inutilidade das obras, já que essas fluem da justificação, mas não a causam. Assim Lutero explica o lugar próprio das obras na vida cristã: Mas, uma vez justificados pela fé, saímos para a vida ativa. Desse modo, os sofistas poderiam ter distinguido corretamente a vida contemplativa da ativa, se tivessem chamado aquela de Evangelho e esta de lei, isto é, se tivessem ensinado que a vida especulativa deve ser incluída na Palavra de Deus e dirigida por ela e que nela não se deve olhar para absolutamente mais nada do que para a palavra do Evangelho, mas que a vida ativa deve ser procurada na lei, que não apreende a Cristo [para a justificação], mas se exercita em obras de amor para com o próximo40.

2) O Comentário de Lutero a Gálatas 5.6

    Mas algo importante a se destacar é que não escapa à percepção dos opositores da justificação somente pela fé (sola fide) que na mesma carta aos Gálatas, cap. 5.6, Paulo afirma que a fé opera pelo amor. Assim, dizem eles que a fé informe recebida inicialmente é informada pelo amor (fides caritate formata), e é nessa informação, ou nessa atualização da fé pelo amor que o amor se constitui como a forma da fé que justifica. Nesse sentido, a fé justifica pelas obras, porque a fé opera pelo amor e não fora do amor (obras). O versículo grego de Gálatas 5.6 é o seguinte: ἐν γὰρ Χριστῷ Ἰησοῦ οὔτε περιτοµή τι ἰσχύει οὔτε ἀκροβυστία, ἀλλὰ πίστις διí ἀγάπης ἐνεργουµένη (Pois em Cristo Jesus, nem a circuncisão pode alguma coisa e nem a incircuncisão, mas a fé mediante a operação do amor). Aqui, como representa o pensamento católico romano o Pe. Lagrange, poderia se opor a ideia de que deve-se fazer algo ou sofrer pela salvação, além de crer nos méritos de Cristo, já que ao crer deve-se acrescer o fazer para que a fé seja informada pelo amor, garantindo-se assim a justificação. Ao contrário disso, o pensamento de Lutero afirma uma justificação que é trazida instrumentalmente ao homem pela fé. Assim, a fé é o único meio da justificação, justificação essa que traz em si as demais graças incluindo a santificação e o crescimento no amor, pois é Cristo quem retira os pecados e que santifica o homem pela sua graça, não uma incoação de uma graça que ao transformar o homem concede a ele a forma do justo - pois assim não seria Cristo que tira o pecado de nós, mas é a nossa transformação que assim o faz. Essa não é uma falsa dicotomia, pois não faz sentido uma mera satisfação exterior realizada na cruz que exige uma mutação do homem para ser justificado (ser justificado não é ser tornado justo, mas sim justificado), já que uma coisa anula a outra - e isso é ininteligível ainda que se diga que a incoação da graça é conquistada pelos méritos de Cristo, os quais garantem a força infinita pela qual a graça infusa eleva o homem para a eterna justiça. No fim, essa é uma adaptação da teologia abelardiana da influência moral pela qual a satisfação é interpretada de forma estrita como conversão, anulando a sentença de Gn 2.17, e anulando a regra de interpretação que faz dos Salmos orações de Cristo - onde Cristo ora na nossa pessoal pecadora, como pecador. Assim, Cristo não leva em si os nossos pecados, nem é feito maldição em nosso lugar (Gl 3.13), não assume a nossa pessoa diante da Lei, não é muito menos abandonado por Deus (Mt 27.46; Mc 15.34), não recebe sobre si o castigo que nos traz a paz (Is 53.5b) e nem mesmo é moído por Deus (Is 53.10a) por ser descarregado sobre ele a iniquidade de todos nós (Is 53.6b). É cero que Tomás de Aquino afirma que a justiça exige satisfação41; mas também é certo que a justificação também é entendida pela conversão completa que dispensa o castigo42; nesse sentido a justificação é plenamente retificação, pois diz o aquinate: Ora, o amor de Deus é suficiente para que a mente humana se firme no bem, sobretudo se ele for veemente, e o desprezo da culpa passada, se for intenso, traz grande sofrimento. Por isso, pela veemência do amor de Deus e ódio ao pecado passado é dispensada a necessidade de pena satisfatória ou purgatória e, se não for tão intensa que exclua totalmente a pena, quanto mais veemente for, tanto menor será a pena exigida43. Tudo o que vemos aqui é que a retirada do pecado é a retificação da natureza, é pois remédio penitencial e se realiza pelo mérito congruente (mérito que informa a fé). Em sentido contrário, a sentença do pecado exige a morte (Gn 2.17), é pela contemplação do Cristo que colheu a sentença para si, ou pela razão iluminada pela fé no conhecimento do Justo que somos justificados (Is 53.11b), pois o conhecimento do justo provocado pelo Espírito Santo é justificador, visto ser Cristo o único santíssimo e potentíssimo para retirar de sobre nós nossos pecados, fazendo satisfação plena a Deus de tal modo que nada de nós mais seja requerido senão somente a fé pela qual conhecemos e confiamos no Justo.

    Mas voltando propriamente ao nosso assunto, a questão da fé informada pelo amor parece contrastar com outras passagens da teologia paulina. Em Ef 2.8,9 temos: τῇ γὰρ χάριτί ἐστε σεσῳσµένοι διὰ πίστεως· καὶ τοῦτο οὐκ ἐξ ὑµῶν, θεοῦ τὸ δῶρον· οὐκ ἐξ ἔργων, ἵνα µή τις καυχήσηται (Pois pela graça vocês são salvos, por meio da fé; e isso não vem de vocês; é dom de Deus; não [vem] de obras para que ninguém se glorie). Aqui há a exclusão propriamente dita da origem da salvação por obras (οὐκ ἐξ ἔργων - não vem das obras), mas sim pela graça (τῇ χάριτί) mediante a fé (διὰ πίστεως). Portanto, temos que confrontar as alternativas, pois se o amor comunica energia (ἐνεργω) à fé, não se segue que possamos concluir em Paulo que é o amor que justifica, pois em Gl 5.6 não se afirma que é assim que aquele que crê é justificado, mas sim que a fé opera pelo amor, ou seja, Paulo não trata aqui da justificação, mas sim do modo de operações do justificado. É só assim que o texto de Efésio faz sentido, visto que o texto de Efésios continua no vs. 10: αὐτοῦ γάρ ἐσµεν ποίηµα, κτισθέντες ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ ἐπὶ ἔργοις ἀγαθοῖς οἷς προητοίµασεν ὁ θεὸς ἵνα ἐν αὐτοῖς περιπατήσωµεν (Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para as boas obras as quais Deus previamente preparou para que andássemos nelas). Nesse sentido, fomos salvos e forjados por Deus para as boas obras, e não por elas, ou por uma cominação entre uma fé que vai sendo informada e obras Assim, a comunicação da uma energia que torna o fiel operoso na fé flui da justificação, mas não a causa. Mas para ilustrar essa questão, podemos nos remeter ao paradoxo da virtude, pois se diz que o homem virtuoso o é por hábito, mas como tal hábito de ser construído sem atos virtuosos, assim a aquisição da virtude depende, paradoxalmente, inteiramente da sua posse; da mesma forma, agir justamente exige ser justo, mas ocorre que, como tais, somos injustos e inaptos para a justiça divina, já que feridos pelo pecado (Rm 7.24). Assim, a fé é o meio da graça pela qual adquirimos a justificação para que possamos andar em boas obras, pois os atos justos fluem inteiramente da justificação, sinalizando a justificação adquirida e não a conquistando simplesmente, assim a justificação precede as boas obras, causando-as - o que dificilmente casa com a noção de que justificação seja simplesmente ratificação mediante infusão de justiça, pois então não seríamos criados para as boas obras, e a justificação derivaria não da fé, anulando a afirmação paulina de que a graça da justificação é adquirida mediante a fé junto com todas as demais graças salvadoras. Aqui é necessário interpor oposição à ideia de uma fé informe que poderia conviver juntamente com o pecado mortal ou com a ausência do temor a Deus44, como se a fé justificadora concedida ao crente como dom do Espírito Santo fosse o mesmo - como diz Lutero - que uma fé histórica, ou então o simples assentimento (assensus) a respeito da informação adquirida pelo conhecimento do evangelho (notitia) desacompanhada de confiança (fiducia). Aqueles que se apoiam em 1 Co 13.2 para defender a fé informe não sabem o que falam, dado que é impossível que ali se refira à fé justificadora, visto ser esse tipo de fé informe comum até mesmo aos demônios (Tg 2.19), os quais não possuem o Espírito, muito embora possua o ato disforme dado por Deus in sensu diviso, mas não in sensu composito. Assim também, há várias acepções de fé (e os demônios que crêem não podem ser justificados), sendo que em 1 Co 13.2 a fé é associada ao poder de mover montes, o que exclui evidentemente aquela fé pela qual nos apropriamos da justiça de Cristo para a nossa justificação.

    E tornando a Lutero, ele reflete sobre a fé de que fala Gl 5.6: Esta passagem, os sofistas aplicam à sua interpretação na qual ensinam que somos justificados pelo amor ou pelas obras. Pois dizem que a fé, embora seja divinamente infusa (não falo da fé adquirida), não justifica, a não ser que seja formada pelo amor. Eles chamam de amor a graça que toma alguém aceitável, isto é, que justifica (para usar nosso termo ou, antes, o de Paulo). Em seguida, dizem que o amor é adquirido por nosso mérito côngruo, etc. Além disso, afirmam que a fé infusa pode, até, coexistir com um pecado 35 mortal. Removem, até esse ponto, totalmente a justificação da fé e a atribuem, por intermédio dessa argumentação, somente ao amor. E isso pretendem ver demonstrado, nesta passagem, por São Paulo: "A fé que atua pelo amor" como se Paulo quisesse dizer: "Eis, que a fé não justifica, sim, ela nada é a não ser que o amor operante se junte a ela para dar-lhe a forma"45. E Lutero prossegue: Mas, todas essas coisas são monstruosidades inventadas por homens ociosos. Pois quem suportaria o ensino de que a fé, um dom de Deus, infundido pelo Espírito Santo nos corações, pudesse coexistir com um pecado mortal? Se falassem de uma fé adquirida ou histórica e de uma opinião natural concebida da história. poderiam ser tolerados. Na verdade, falariam corretamente a respeito de uma fé histórica46. Aqui Lutero afirma aquilo que dissemos acima sobre a fé como assensus a uma notitia destituída de fiducia. A questão levantada por Lutero é como o Espírito, que é dom de Deus na vida do crente, pode não ser ligado à confiança pela qual nos seguramos pela fé às promessas de Deus? Assim, a fé que é dom de Deus, a fé que justifica, só pode ser ligada à confiança. Dito isso, como já havíamos dito antes, Lutero esclarece a passagem nesses termos: Ele propõe que as obras são praticadas à base da fé pelo amor e não que o homem é justificado pelo amor. Mas quem é um gramático tão inculto que não entenda pela força das palavras que uma coisa é ser justificado, outra, praticar obras? Pois são claras e inteligíveis as palavras de Paulo: "A fé que ATUA pelo amor". Por isso, o ardil é evidente quando eles, depois de terem suprimido o verdadeiro e. genuíno sentido de Paulo, interpretam "praticar obras" por "ser justificado" e "obras". por "justiça", ainda que na Filosofia Moral sejam obrigados a admitir que obras não são justiça, mas pela justiça são feitas obras47. Assim Lutero identifica o amor como um instrumento pelo qual a fé atua; assim a fé tem o ato mediante o amor, tal como o lenhador atua mediante o machado; é como se o fim desejado pela fé (que é origem do ato) fosse alçado mediante o amor que tem na fé seu energizador, pois o médium é o amor que como graça é trazido ou atraído pela fé, tal como o homem traz a si seu instrumento para realizar seu ato. Assim a fé traz consigo o amor pelo qual age e todas as outras graças. Assim, a fé atua pelo amor no mesmo sentido de que Deus atua pelos seus profetas e a alma atua pelo corpo; ora, seria subverter a ordem se dissermos que o profeta informa a Deus assim como o corpo forma da alma. Também é um absurdo a realidade de uma fé informe, dado que se a forma é quem traz algo à existência, uma fé informe não tem possibilidade de existir. Lutero afirma o seguinte sobre a fé informe: Ademais, Paulo não faz da fé uma coisa informe ou bruta como um caos, à qual nada compete, nem o ser nem o agir. No entanto, atribui a própria ação à fé e não ao amor. Ele não supõe que a fé seja alguma qualidade rude e informe, mas afirma que é uma virtude essencial, eficaz e ativa, uma espécie de substância ou (como a chamam) uma forma substancial. Pois ele não diz: "O amor é eficaz", mas: "A fé é eficaz"48. Nesse sentido a fé, sendo eficaz e atuante, termina o amor que tem na fé seu terminus ad quo, sendo da fé o amor como terminus ad quem - assim a fé verdadeira se manifesta em amor, ou, como diz Calvino, é impossível à fé não estar jungida ao afeto49 - e assim se refuta qualquer fé informe como dom do Espírito de Deus. Assim, ao contrário do que o Pe. Lagrange diz, a fé no protestantismo não termina sem nada fazer ou sofrer, já que o modo da manifestação da fé justificadora que confia só nos méritos de Cristo é o amor. Assim Lutero explica a questão: Quem quer ser um verdadeiro cristão ou pertencer ao Reino de Cristo precisa crer verdadeiramente. Mas não se crê verdadeiramente se as obras do amor não seguem à fé50.

Conclusão Parcial

    Não comporta mais a esse texto fazer um comentário total às alegações do Pe. Gerinald Garrigou-Lagrange, ainda mais levando em consideração a extensão do texto. No que diz mais propriamente a Calvino, haverá outro texto resposta. Por hora, para a questão, já basta o que se tem dito até aqui.

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[1] LAGRANGE, Pe. Reginald Garrigou-. El Salvador Y Su Amor por Nossotros. ed. Rialp S. A, Madrid, 1977. Disponível em: www.obrascatolicas.com/livros/Espiritualidade e Religiao/El Salvador y su amor por nosotros.pdf . Acesso às 11h07, 29/06/2021.

[2] Ibidem, p. 299, 300.

[3] COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL. Algumas Questões Sobre a Teologia da Redenção. III.b.20.

[4] LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas Vol. 10. Comentário à Epístola aos Gálatas. Gálatas 3.13. Ed. Sinodal. 2008.

[5] CALVINO, João. Institutas da Religião Cristã; ed. Casa Editora Presbiteriana. 1985. Livro II.

[6] AQUINO, Santo Tomás de. Suma Contra os Gentios. ed. Ecclesiae, Campinas-SP, 2º ed. CEDET 2017.

[7] Idem. Suma Teológica. Disponível em: https://sumateologica.files.wordpress.com/2017/04/suma-teolc3b3gica.pdf , acesso às 12h54, dia 29/06/2021.

[8] No léxico de Gingrich e Danker o termo κατάρα tem o sentido de maldição e imprecação (GINGRICH, F. Wilbur & DANKER, Frederick W. Léxico do Novo Testamento. ed. Vida Nova, São Paulo-SP, 1ª edição 1987, 10ª reimpressão 2008. p. 112); no léxico analítico de Mounce o termo tem o sentido de maldição, execração, imprecação, e cuja origem vem do termo hebraico que significa condenação e julgamento (MOUNCE, William D. Léxico Analítico do Novo Testamento Grego. ed. Vida Nova, São Paulo-SP, 1ª edição 2012. p. 347). A referência ao termo hebraico está, como resta óbvio, relacionada a Dt 21.23, onde maldito é traduzido do termo hebraico קִלְלַ֥ת, o qual está no modo constructo, sendo o termo mais compreensível com o absoluto do qual é constructo, que é o substantivo אֱלֹהִ֖ים (Deus), ou seja, a expressão completa é קִלְלַ֥ת אֱלֹהִ֖ים e significa maldito de Deus (ver em: KIRSHT, Nelson, SCHWANTES, Milton et. all. Dicionário Hebraico-Português & Aramaico-Português. ed Sinodal/Vozes, São Leopoldo-RS e Petrópolis-RJ, 8ª edição, 1997. p. 215).

[9] No léxico de Gingrich e Danker o termo κατάραοµαι tem o sentido de amaldiçoar (GINGRICH, F. Wilbur & DANKER, Frederick W. Léxico do Novo Testamento. ed. Vida Nova, São Paulo-SP, 1ª edição 1987, 10ª reimpressão 2008. p. 112); no léxico analítico de Mounce o termo tem o sentido de amaldiçoar, desejar o mal a, rogar praga sobre (cf. Mc 11.21; Lc 6.28; Rm 12.14) e no NT, na voz passiva, tem o sentido de ser condenado (cf. Mt 25.41; Tg 3.9) (ver em: MOUNCE, William D. Léxico Analítico do Novo Testamento Grego. ed. Vida Nova, São Paulo-SP, 1ª edição 2012. p. 347).

[10] LUTERO, Martinho. 3.13 2008. p. 266.

[11] As palavras de Crisóstomo são: Muitos que leem pouco atentamente esta passagem da epístola, julgam que Paulo acusou a Pedro de hipocrisia, mas não foi assim, de forma alguma. Descobrimos aqui disfarçada muita prudência tanto da parte de Pedro quanto de Paulo, visando ao bem dos ouvintes. [...] Enquanto o mestre [Pedro] cala ao ser censurado, mais facilmente os discípulos mudariam de parecer [quanto à obrigatoriedade da lei]. Pois se Paulo, ao qual nada disso acontecia, advertisse, nada de importante teria feito, mas agora, uma vez que teve de criticar asperamente, incutiu maior temor nos discípulos de Pedro. [...] Reflete com que cuidado suaviza a palavra, sugerindo aos prudentes que as palavras não constituem discórdia, mas realizam o plano divino. [...] A expressão: “Enfrentei” é figurada. Com efeito, se na realidade tivesse havido entre eles disputa, de forma alguma haveriam se censurado mutuamente na presença dos discípulos, porque teriam causado grande escândalo. Ver em: CRISÓSTOMO, São João. Comentário às Cartas de Paulo, Vol. I. Coleção Patrística nº 27/1. ed. Paulus, São Paulo-SP, 1ª edição 2010, 1ª reimpressão 2017. p. 582-584

[12] JERÔNIMO, São. The Fathers of the Church, Vol. 121. St. Jerome. Commentary on Galatians (3.13b-14). Ed. The Catholic University of American Press, Washington D.C. 2010. p. 141. Tradução minha.

[13] Ibidem. 142, 143.

[14] LUTERO, Martinho, 2008. p. 266.

[15] Ibidem.

[16] Ibidem.

[17] Ibidem. 266, 267.

[18] Ibidem. 267.

[19] Ibidem.

[20] Ibidem.

[21] Ibidem, 268.

[22] Ibidem, 268, 269.

[23] Ibidem, 269.

[24] Ibidem.

[25] Ibidem.

[26] Ibidem.

[27] Ibidem.

[28] Ibidem, 270.

[29] Ibidem.

[30] Ibidem.

[31] Ibidem.

[32] Ibidem.

[33] Ibidem, 271

[34] Ibidem.

[35] Ibidem, 275

[36] Ibidem.

[37] Ibidem.

[38] Ibidem.

[39] Ibidem, 275, 276.

[40] Ibidem, 276.

[41] AQUINO, Santo Tomás de, 2017. Lib. III.CLVIII.4 p. 591.

[42] Ibidem, 6. p. 591.

[43] Ibidem, 6. p. 591, 592.

[44] AQUINO, Santo Tomás de. Suma Teológica. I.S.S. Q.6, Art.2

[45] LUTERO, Martinho, 2008. Gl 5.6, p. 453, 454.

[46] Ibidem, 454.

[47] Ibidem.

[48] Ibidem.

[49] CALVINO, João. Institutas da Religião Cristã, Vol. III.II.8. edição clássica. p. 32.

[50] LUTERO, Martinho, 2008. Gl 5.6, p. 455.

terça-feira, 29 de junho de 2021

A Mentira de Santo Afonso Maria de Ligório; Ou: Calvino Contra o Desespero de Salvação

    Tomei nota hoje de mais uma para a conta das muitas calúnias que certos teólogos fazem à Teologia Reformada, e em especial a Teologia da Substituição Penal. Hoje foi a vez do Santo Afonso Maria de Ligório, que em um texto sobre a Paixão do Nosso Senhor Jesus Cristo disse literalmente o que vai a seguir:

"Calvino, no seu comentário sobre S. João, disse uma blasfêmia, afirmando que Jesus Cristo, para reconciliar o Pai com os homens, devia experimentar todo o ódio que Deus tem contra o pecado e sentir todas as penas dos condenados e em especial a do desespero. Blasfêmia! Como poderia satisfazer pelos nossos pecados com um pecado ainda maior, qual o do desespero?"1

    A calúnia, que já existia quando Calvino ainda era vivo, ainda faz fama e enche os ânimos daqueles já são indispostos contra a teologia da expiação reformada, sem ao menos colherem dos textos do próprio reformador respostas que ele mesmo Deus a respeito da questão. Mas há alguns erros que eu quero lidar nessa questão, e responderei a partir da própria teologia de Calvino, como da própria tradição calvinista.


1) O Comentário de S. João

    Sem referência concreta, o santo apenas afirma que com base no comentário ao Evangelho de São João, que Calvino assevera a enormidade já citada. Como não há referências concretas, eu só posso presumir que ele se refere ao comentário de Jo 12.27, onde encontramos: "Agora, a minha alma está perturbada, e que direi eu? Pai, salva-me desta hora; mas para isso vim a esta hora".

    Calvino afirma a partir do versículo citado certa turbação em Cristo, e que isso "era muitíssimo útil necessário para a nossa salvação"2, considerando que ele fez isso para expiar nossos pecados, e para isso ele recorreu ao expediente de "assumir sobre si nossa culpa"3. Assim, ao fazer isso ele assumiu terrível horror, pois deveria sentir em sua própria experiência o juízo de Deus4.

    O uso dessas palavras por Calvino - que não raras vezes já gerou várias consternações em função do peso que exerce em no sentimento religioso devotado - é logo explicado no seguinte sentido: 1) As emoções, ainda que padecendo de certa subtração de auxílio5, sofreu o terror, mas não de forma desordenada, já que Cristo a isso se submeteu voluntariamente; 2) Todas as suas emoções eram reguladas pela justiça divina6; 3) Calvino ressalta tanto o realismo dos sofrimentos, como afirma a humanidade deles, de modo a nos inspirar a atravessa-los com a nossa humanidade7.


2) A Negação do Desespero que é Contrário à Fé

    A enormidade das acusações do santo não se detém a deduzir aquilo que não é explícito na fala do reformador, já que as mesmas acusações são tratadas no tomo II.XVI.12 das Institutas8. A clareza não deixa qualquer espaço para dúvida quanto ao que Calvino entendia tanto pelos sofrimentos na alma, quanto pelos "terrores", ou "agonias" de Cristo, que embora reais não contrastaram com veracidade da fé e das virtudes de Cristo totalmente subordinadas à justiça de Deus.

    Então assim, logo no início do cap. XVI.12 temos: "Em seguida, mais acerbamente, agitam a cavilação de que atribuo ao Filho de Deus desespero que é contrário à fé"9. As palavras de Calvino possuem peso que beiram ao desconcerto. A dificuldade, por vezes, pode brotar da ideia de ele atribuir "agonias a Cristo", e mesmo "agonias espirituais" a Cristo. Mas não se deve entender aqui essa afirmação em sentido absoluto, mas a partir de uma visão geral do argumento, pois o que Calvino afirma é o realismo dos sofrimentos de Cristo, presentes tanto no corpo quando na alma que, não obstante, não são contrárias à virtude da fé e ao seu poder.

    Assim, Calvino se esforça por mostrar tal realismo dos sofrimentos humanos de Cristo, não obstante privados de qualquer vício, já que a alma de Cristo, como já vimos, era tida por Calvino como subordinada à justiça de Deus em sentido absoluto. Mas nem por isso lhe é subtraída a realidade das dores. Assim continua a argumentação: "Confiantemente, portanto, como corretamente ensina Ambrósio, a não ser que nos envergonhemos da cruz, importa-nos confessar a consternação de Cristo"10.

    Esse agravo não foi mero agravo corporal, ou seja, não somente externo, mas também interno. Calvino se remete a Jo 13.21 que diz: Ἰησοῦς ἐταράχθη τῷ πνεύµατι (Jesus se comoveu em espírito); ou em Jo 12.27: Νῦν ἡ ψυχή µου τετάρακται (Agora está agitada a minha alma), para continuar: Πάτερ, σῶσόν µε ἐκ τῆς ὥρας ταύτης; (Pai me salve desta hora?), como que se referindo à angústia causada pela 'hora' (ὥρας) da paixão magna (passio magna).

    Mas Calvino destaca também um evento do qual podemos deduzir grande agonia em Cristo, e que está em Lc 22.43 onde Jesus, em sua plena humanidade ora: Πάτερ, εἰ βούλει παρένεγκε τοῦτο τὸ ποτήριον ἀπí ἐµοῦ· (Pai, se queres, afasta de mim esse cálice;), para se levantar em sua divindade: πλὴν µὴ τὸ θέληµά µου ἀλλὰ τὸ σὸν γινέσθω. (contudo, não faça a minha, mas a sua vontade). Ora, o que se intenciona dizer, é que a aversão interior de Cristo em seu sofrimento, e a sua realidade não são contrárias à fé, assim como os sofrimentos não são apenas externos e corporais, mas também internos e espirituais.

    De fato, certos teólogos afirmam que se tratou de certa simulação, e não de sofrimentos reais. Calvino diz: "Se dizem que foi [simples] simulação, é essa uma evasiva assas nauseabunda"11. Mas levando em consideração o pavor de Cristo em Lc 22.44: καὶ γενόμενος ἐν ἀγωνίᾳ ἐκτενέστερον προσηύχετο· (E estando em agonia orava mais intensamente), pavor que é contrário à plena fruição da felicidade, o que é provado pelo que se segue: καὶ ἐγένετο ὁ ἱδρὼς αὐτοῦ ὡσεὶ θρόμβοι αἵματος καταβαίνοντες ἐπὶ τὴν γῆν. (E aconteceu que o seu suor se tornou como gotas de sangue caindo sobre a terra). Calvino argumenta que Cristo sofreu o peso da ira divina quando em nosso lugar sofreu o peso do eterno juízo12, e até mesmo os terríveis tormentos de um homem condenado e perdido13. Obviamente que toda essa argumentação não deve se entendido como condenação em sentido absoluto, tal como a sofre os condenados na absoluta separação de Deus, entendendo-se tudo isso relativamente, pois há distinções a serem feitas, dado as informações queo próprio Calvino apresenta nas Institutas.

    Como já dizemos (cf. nota 9), ele nega a realidade do desespero que é contrário a fé. Também Calvino afirma que "Tudo quanto, porém, de livre vontade, sofreu por nós nada lhe detrai o poder"14. Assim também, ao mesmo tempo que afirma o poder de Cristo, também lhe atribui certa "fraqueza" pura e isenta de mácula relativa à humanidade assumida15, não quanto à impureza (akatharasia), mas quando à constituição intrínseca que convém à humanidade. Assim, Jesus possui "moderação que coíbe o excesso", assim "De onde nos pôde ser semelhante no medo e no temor, contudo, assim que diferisse neste particular"16 - cf. Salmo 6.4 (se levarmos em consideração os salmos como orações de Cristo).

    Também se nota que tais efeitos do pavor de Cristo não são simples temores dos mártires, os quais corriam alegres em direção ao fogo e às feras; obviamente que Jesus é maior do que todos esses. Depreende-se daí que seu pavor não foi apenas quanto aos tormentos corporais, mas também daquele terrível abandono do favor divino, estando como que diante de Deus padecendo como réu em nosso lugar. Aqui se afirmar as agonias espirituais, naquele ocultamento do favor divino. Mas Calvino continua a afirmar: "Mas, se bem que [nEle] o divino poder do Espírito Se ocultou por um momento, de sorte que desse lugar à fraqueza da carne, deve-se, não obstante, reconhecer que a tentação [procedente] da sensação de dor e de medo foi tal que não conflitasse com a fé17.


3) A Opinião dos Dogmáticos da Escola Reformada

    A exposição de Calvino ainda comporta mais coisas, mas as exporemos na medida em que também fizermos referência a dois teólogos representativos da tradição reformada, que são Francis Turretini e Herman Bavink.

    Rechaçando o desespero que é contrário à fé, Francis Turretini afirma explicando os sofrimentos na parte superior da alma: "A punição do abandono, sofrido por Cristo (do qual ele se queixa, Mt 27.46) não foi um sofrimento físico, mas espiritual e interno. Proveio não de qualquer tormento (por mais medonho que fosse) que pudesse sentir em seu corpo (pois muitos dos mártires puderam ter tal experiência, os quais, não obstante, não se queixaram deste abandono), mas de um senso em extremo opressivo da ira de Deus que pesava sobre ele em virtude de nossos pecados"18.

   No entanto, para a compreensão completa dessa afirmação é necessário toma-la em certo sentindo, levando em consideração a pessoa perfeita de Cristo. Assim Turretini distingue: Ora, este abandono não deve ser concebido como absoluto, total e eterno (tal como é sentido somente pelos demônios e pelos réprobos), mas temporal e relativo"19. Assim Bavink também sustenta: "Autoacusação, pesar, remorso e confissão pessoal de pecados não podem ocorrer no caso de Cristo e ele tampouco estava sujeito à morte espiritual, à inabilidade de fazer algum bem e à inclinação ao mal. Precisamente para ser capaz de levar os pecados de outros e fazer satisfação por eles, ele não podia ser um pecador"20.

    Em consonância com o que foi afirmado, Turretini rechaça a implicação de nestorianismo, tão alegada hoje contra a Substituição Penal: "não com respeito à união da natureza (a qual o Filho de Deus uma vez assumiu, e a qual ele nunca desfez)21"; e também rechaça a destruição das virtudes no evento da paixão de Cristo: "ou da união de graça e santidade, porque ele foi sempre inculpável (akakos) e puro (amiantos), dotado de imaculada santidade"22; e impugna aquilo que ele chama de abandono absoluto nos seguintes termos: "ou de comunhão e proteção, porque Deus estava sempre à sua direita (SI 110.5), nem nunca ficou sozinho (Jo 16.32)"23.

Assim, exposto esses posicionamentos a respeito do que a teologia da substituição penal não é, Turretini passa a explicar o que ela, mais especificamente, é nesse abandono divino: "Mas, no tocante à participação de alegria e felicidade, Deus, suspendendo por algum tempo a presença favorável da graça e o influxo de consolação e felicidade para que ele pudesse sofrer toda a punição a nós devida"24. Assim, Turretini conceitualiza o que Calvino já anunciou antes no Comentário ao Evangelho de João (cf. nota 5) e nas Institutas (cf. nota 17). Mas assim ele aprofunda a questão do influxo da graça: "no tocante à subtração da visão, não no tocante à dissolução da união; no tocante à ausência do senso do amor divino, interceptado pelo senso da ira divina e vingança que repousa sobre ele, não no tocante à privação ou extinção real desse amor"25.

    E aqui tocamos em certos pontos polêmicos que podem ser levantados, como a questão da "subtração da visão". Pois pode-se perguntar se a visão perfaz a justiça e a impecabilidade de Cristo, ou se se trata de uma graça causada pelo influxo divino, a qual pode ser suspendida sem o prejuízo da justiça, pureza e inocência de Cristo. Ora, segundo a potência absoluta, isso não é impossível; e se não é impossível, por se tratar de pura graça, logo a suspensão da afeição de vantagem e do senso do amor - não da sua realidade -, também não são impossíveis, e isso em nada prejudica a união hipostática, como nada obsta a união a catástrofe da morte corporal.

Turretini também fala da indestrutibilidade das virtudes pessoais de Cristo que está implicada no evento da paixão, pois: "E, como dizem os escolásticos, no tocante à [subtração da] “afeição da vantagem” para que fosse destituído da inefável consolação e alegria que provêm do senso do amor paternal de Deus e da visão beatífica de seu semblante (SI 16)"26; e: "porém não no tocante à “afeição da justiça”, porque ele não sentia em si nada desordenado que tendesse ao desespero, impaciência ou blasfêmia contra Deus"27. Assim, vemos que não há "desespero" o qual é, segundo Calvino, "contrário à fé"; assim, não havendo desespero e nem morte espiritual, não pode haver, como acusa falsamente o santo, o sofrimento que é próprio dos condenados (cf. notas 19 e 20), e, por tanto, aquele terrível descrédito da bondade de Deus e a aceitação da derrota ao tormento eterno que é característico dos réprobos e dos demônios.

    Assim terminamos com esta citação: "Além do mais, tampouco se poderia dizer que ele entrou no lugar dos condenados ou foi condenado. De fato ele pôde suportar os castigos dos que merecem ser condenados, porém não dos condenados, ao ponto de adentrar os lugares infernais preparados para eles (de onde ninguém pode regressar), ou que ele foi devotado ao castigo eterno, visto que a eternidade dos castigos que merecemos foi compensada ricamente em Cristo por seu peso e por seu valor extremo"28.

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[1] LIGÓRIO, Santo Afonso Maria de. A Paixão do Nosso Senhor Jesus Cristo. IV.5, disponível em: file:///C:/Users/IB%20Cohapar/Downloads/Sto-Afonso-Ma-de-Ligorio_A-Paixao-de-NSJC-Vol-2.pdf .

[2] CALVINO, João. Comentário ao Evangelho de João. João 12.27-33. p. 33.

[3] Ibidem.

[4] Ibidem.

[5] Ibidem. Turretini explica melhor essa questão, como veremos logo mais adiante.

[6] Ibidem.

[7] Ibidem, p. 34.

[8] Idem. Institutas da Religião Cristã; ed. Casa Editora Presbiteriana. 1985. Livro II. Cap. XVI.12. p. 282-285.

[9] Ibidem, p. 282.

[10] Ibidem, p. 283.

[11] Ibidem, p. 283.

[12] Ibidem, XVI.10. p. 280.

[13] Ibidem, p. 281.

[14] Ibidem, XVI.12. p. 283.

[15] Ibidem, par.4.

[16] Ibidem.

[17] Ibidem, 284.

[18] TURRETINI, Francis. Compêndio de Teologia Apologética Vol. II. ed. Cultura Cristã 1ª edição, 2011, São Paulo-SP. p. 428, 429.

[19] Ibidem, p. 429.

[20] BAVINK, Herman. Dogmática Reformada. Vol. III. ed. Cultura Cristã, 1ª edição, 2012, São Paulo-SP. p. 405.

[21] TURRETINI, 2011. p. 429.

[22] Ibidem.

[23] Ibidem.

[24] Ibidem.

[25] Ibidem.

[26] Ibidem.

[27] Ibidem.

[28] Ibidem, p. 430.