sexta-feira, 29 de julho de 2016

O Culto a Dionísio: A Espiritualidade da Desintegração Social


   No período em que governou a Heléade - conjunto de cidades helênicas - o governador Psístatro (561-527 a.C.) difundiu o culto a Dionísio, com a clara intenção de destruir a coesão de famílias tradicionais e, desta forma, eliminar a influência delas sobre a sociedade helênica. É o que lemos no início do livro "História das Ideias Políticas Vol. I" de Eric Voegelin, editado e distribuído no Brasil pela Editora É Realizações.
   A informação surpreendente deve ser captada a partir da estrutura do culto de Dionísio de maneira a compreendermos o seu logos (sentido), afim de encontrarmos uma identidade deste fato histórico na história política das religiões, assim como nas correntes formas modernas de ideologias cujo dionisíaco mantem-se presente.
   Mas antes de mais nada devemos entender o que vem a ser o culto a Dionísio. Dionísio era o Deus da vitalidade, da loucura e do vinho. Uma das características do seu culto era que a sua divindade era infundida na vida dos seus adoradores por meio do vinho. Era, por tanto, um Deus orgiástico e que conduzia seus adoradores ao extravasamento extremo, assim como à loucura do êxtase - aquele tipo de espiritualidade que desintegra a personalidade de quem a ela se entrega. Na maior parte eram mulheres que oficiavam um culto, cuja mensagem envolvia a morte e o renascimento. É bem conhecida a estrutura de cultos orgiásticos assim, onde a morte do deus que espalha o caos entre os adoradores restabelece a ordem e, após ressuscitado, torna-se objeto de adoração. Este "ambiguidade divina" é característica de deuses pagãos.
   É bem conhecida de nós o antagonismo que Nietzsche, o filósofo alemão, propõe entre o apolínio e o dionisíaco em seu livro "O Nascimento da Tragédia" (Die Geburt der Tragödie)Propondo uma interpretação da música de Richard Wagner, Nietzsche vê neste fenômeno musical uma representação daquilo que ele compreendia como dionisíaco, que para ele tratava-se de um espírito revolucionário que marchava contra toda espécie de cultura apolínia, da qual a Alemanha se encontrava, em sua época, saturada. O apolínio então era a emersão da cultura da racionalidade, do cristianismo, da moralidade, das crenças em sistemas, do metafísico e do "espiritual descarnado", que, para ele, se opunha a toda espécie daquilo que ele definia como "vida". Portanto a emersão do irracional, da vontade de potência, do extático, da revolução espiritual, do extático trágico que apesar de cair no abismo cai dançando, seria o navio quebra-gelo que libertaria uma cultura situado em um niilismo não confessado por pessoas que haviam matado Deus, e que tinham medo de encarar as consequências disso. Para Nietzsche o apolínio era a farsa da cultura ocidental que operou por mais de dois mil anos desde Platão, na esteira da racionalização espiritual de um tipo de vida fundada em um Deus que a própria cultura ocidental, por causa de seu desenvolvimento cultural, havia aniquilado. Nietzsche acreditava que toda a metafísica era uma farsa a ser destruída por homens de coragem - os novos filósofos - que aceitavam o fato do niilismo não gemendo, mas com coragem, determinação, força e indiferença aristocráticas e com o extravasamento, êxtase e loucura dionisíacos.
   Não é preciso dizer que a explosão espiritual dionisíaca, aquela espécie de espiritualidade antiespiritual da qual falou Eric Voegelin, é a marca de vários movimentos revolucionários e ideologias. A explosão milenarista durante a Reforma, os movimentos dos sans culottes e os jacobinos na França revolucionária, facções do movimento puritano inglês, os movimentos de sex-lib na época da revolução russa e na revolução de 1968 marcam um ponto alto dos movimentos de explosão espiritual antiespiritual e de desintegração social que tanto conhecemos. Não há nada de estranho notarmos que muitos movimentos de extrato autoritário se sirvam de movimentos de apelo orgiástico entre os ativistas, promovendo, com isso, certa corrupção moral e a destruição social, enfraquecimento do poder das famílias e aniquilação do sentimento religioso. Todo essa desordem, uma vez instalada, é perfeita para o estabelecimento permanente daquele corpo social que escapa conscientemente ileso de tal dissolução para governar, como  Psístatro, sem oposições, já que a massa nesses movimentos afunda na loucura como afundou Nietzsche, o profeta de Dionísio.

   Recentemente a americana Camille Paglier foi entrevistada no programa Roda Viva e discorreu sobre a sua oposição à ideologia de gênero e os movimentos feministas. Um dos fatos interessantes de sua entrevista é que em certa altura ela disse que toda a grande confusão sobre a identidade sexual e os antagonismos recorrentes disso marcam todos os declínios civilizacionais por causa do colapso da unidade cultural e de sentido. Nisso ela não está sozinha, pois Santo Agostinho, no século V, já denunciava a razão do declínio romano: a extrema imoralidade e loucura gerada pelos cultos de mistérios adotados por Roma da já decaída Grécia (a pólis helênica) - mas ele não foi o primeiro, antes dele está Platão e antes de Platão estão os profetas do Antigo Testamento. O cristianismo veio como um remédio que restaurou a Europa da insânia em que havia caído desde o colapso do Império Romano, entregando-a salva à era moderna em que vivemos. E onde é que esta nossa grande confusão dionisíaca irá parar se não for refreada, todos sabemos. A questão de urgência é saber o quão apta esta está a nossa sociedade para perceber este grande mal que está a degenerar e embriagar o seu próprio corpo.

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