quinta-feira, 28 de julho de 2016

Docetismo Gnóstico: O Princípio da Destruição do Corpo e o Princípio da Destruição do Mundo


   O Cristianismo, indo para além de uma relação subjetiva com Deus implica a imersão do sujeito na estrutura da realidade. A revelação de Cristo, por esse prisma, é a própria revelação do sentido pleno da história, assim como a revelação do sentido do homem nela. Há na revelação um sentido inesgotável que lança luz sobre a história da humanidade em todos os níveis, desde o inconsciente individual e das estruturas mais profundas do indivíduo humano até a existência humana como um todo, abrangendo as pessoas que existiram, que existem e das que ainda haverão de existir. A revelação em Jesus de Nazaré é o pomo amadurecido na história. 

   A elaboração teológica sempre ocorreu à luz de dilemas existentes no contexto histórico onde as doutrinas foram elaboradas. Com o passar do tempo se percebeu que, para além de um querela teológica entre os primeiros padres da igreja e os heréticos, a disputa para alcançar a verdade da revelação cristã estava intimamente relacionada com a questão da salvação. Mas como percebeu o filósofo germano-americano Eric Voegelin, vários movimentos revolucionários da era moderna, incluindo a estrutura da política moderna, e que tiveram um papel central na desintegração da razão e no enlouquecimento genocida do século XX, estão assentados sobre as bases mesmas das heresia combatidas pelo cristianismo.  

   Aqui não é lugar para uma dissecação completa das relação entre as heresias combatidas ao longo da história do cristianismo e o descarrilamento revolucionário dos vários movimentos políticos da modernidade. Contudo desejo refletir aqui brevemente sobre o docetismo.

   O docetismo foi um movimento gnóstico influenciado pelas religiões de mistério gregas (carregadas de orientalismo) e pelo próprio resíduo da filosofia helênica, e que se pôs a interpretar o cristianismo e o ministério terreno de Jesus. A palavra docetismo vem do grego"dokeo" (δοκέω) e que significa "parecer". Esta heresia afirmava plenamente que o Lógos divino (ou o Verbo Divino, como está escrito no primeiro capítulo do Evangelho de João) não havia encarnado definitivamente em Jesus de Nazaré, mas estava presente em Jesus apenas em aparência. Por tanto o Logos não havia sido crucificado na Cruz, e Deus não havia sido crucificado, como afirmavam os primeiros cristãos. Mas isso suscitou alguns questionamentos para os primeiros cristãos, pois: (1) se o Lógos não encarnou em Jesus, isso quer dizer que Deus não assumiu a natureza humana; (2) E se Deus não assumiu a natureza humana então o sacrifício na Cruz não foi um sacrifício de Deus em favor dos homens; (3) e se Deus não se sacrificou pelos homens então não fomos salvos e permanecemos em nossos pecados pois só Deus pode salvar. Aqui, pela negação dos docetas sobre a encarnação, duas bases teológicas essenciais para o cristianismo estavam ameaçadas: (1) a unidade amorosa de Deus com os homens manifesta na pessoa de Jesus (por ser ele totalmente Deus e totalmente homem); (2) a eficácia salvífica do sacrifício de Jesus para trazer ao homem a salvação eterna.

   Alguns esclarecimentos são necessários para termos bem claro as relações entre o descarrilamento revolucionário moderno e o docetismo, a começar pela impossibilidade da junção entre o humano e o divino na heresia docetista. Um elemento fundamental estava na questão relacionada à natureza humana e divina de Jesus. O docetismo afirmava taxativamente a impossibilidade da união singular de Deus no homem Jesus de Nazaré. Nesse sentido devemos lembrar a questão do destino da ressurreição. Será que para eles Jesus ressuscitou corporalmente? A resposta é negativa. Eles não aceitariam Deus sofrendo na Cruz (algo já presente em Atos dos Apóstolos 17:16-32), mas também negariam por sequência lógica o matrimônio entre Deus e a Igreja, aquela unidade desejada por Jesus e o seu desejo pela salvação do corpo humano. Nesse sentido há uma clara cisão entre o corpo e o espírito e a elevação desmensurada de um sobre o outro. As consequência lógicas do docetismo são três: (1) o pecado é algo que pode ser deliberadamente praticado que não afetaria o espírito; (2) o ódio radical e deliberado ao mundo segue a ideia de que o mundo é substancialmente mau, elevando o mal ao grau de substância. (3) ao elevar o corpo à condição de substância má, a meta final da fé é o da libertação do corpo por meio da liberação final do espírito. Não é estranha a identidade destes pensamentos e o preconceito de classes marxista, ou o ódio racista dos judeus pelos nazistas e a teologia gnóstica: os burgueses são maus em si mesmos, ou o judeu é mau em si mesmo. Do lado invertido, o docetismo também produziu a sacralização do cosmos por meio da heresia monofisita, que afirmava que a natureza humana havia sido absorvida pela natureza divina de Jesus. Desta forma, a sacralização de classes em Marx, onde os proletários são o povo messiânico que trazem em seu bojo o futuro, mesmo quando queimam vivos os kuláks, ou a raça ariana dos nazistas, que sendo sagrada em si mesma, pode criar campos de concentração e envenenarem judeus apenas por serem o que são, toca na questão da imanentização da eternidade no tempo, fechando a humanidade em si mesma e realizando a sacralização do cosmos que o Cristianismo tanto lutou por desfazer. O caráter de transcendência de Deus aqui é plenamente destruído em favor da imanência - o que mais tarde resultaria na morte de Deus e na elevação das ciências naturais ao grau de verdade divina abarcadora da totalidade da realidade. 

   A presente heresia gnóstica gerou dois movimentos aparentemente distintos, mas que se atentadamente observados, revelam uma identidade fundamental. Sendo que o primeiro ramo do gnosticismo gerou aquilo que podemos chamar de um "gnosticismo de direita". O movimento de direita no interior do gnosticismo é caracterizado pela austeridade absoluta e pelo distanciamento radical de tudo aquilo que toca a existencialidade da vida. É aquela busca pelo purismo exacerbado que regulamenta alimentos - e até proíbe-os -, que acha errado comer carne de animais, arrancar árvores, flores, folhas e sementes, e que exige jejuns extensivos, proibindo também todos os prazeres e até o casamento (I Timóteo 4:1-5 mostra expressamente Paulo possuía a consciência que alguns movimentos gnósticos estavam em plena floração no fim de sua vida). Tal movimento foi visto entre, por exemplo, os albigenses, onde há relatos de morte por inanição (morte por falta de nutrientes derivado pela abstenção de comida) de vido a jejuns extensos. O outro ramo foi o "gnosticismo de esquerda", que também partindo da premissa da malignidade do mundo e da matéria, se entregavam a toda sorte de erros tal como sexo grupal com intuito de praticar ritos sexuais, e até crimes - não importava a desordem generalizada que também poderia ser uma forma de libertação das estruturas malignas deste mundo. Um exemplo moderno bem claro deste gnosticismo de esquerda é o revolucionário Mikhail Bakúnin. A revolta de Bakúnin não parte de um utopismo como o de Marx, mas é mais altamente niilista do que o pensamento dele. Para Bakúnin a tarefa dos revolucionários era o de apenas destruir e não de construir nada, já que, segundo ele, eram profundamente corruptos para uma tarefa como a de construir algo paro mundo. Essa "corrupção total", essa insuficiência é algo como que uma outra natureza. E quem buscar uma identidade entre isso e as as ideias defeituosas dos reformadores Lutero e Clavino sobre a "corrupção total", não buscará em vão - apesar de eles tentarem a todo custo refrear as consequências destas ideias em vida. É como constatou com felicidade o teólogo reformado Karl Barth no fim de sua vida: o pecado não pode criar uma natureza ao lado da natureza de Deus. O Pecado, definitivamente, não cria.       

    Cá em nosso século, várias formas de "sexo livre" e a compreensão da incontaminação moral do sexo livre possui o mesmo amoralismo gnóstico que se apregoava nos séculos iniciais do cristianismo. Da mesma maneira a tendência revolucionária de considerar qualquer autoridade algo maligno em si mesmo é, por sua vez, uma reminiscência do gnosticismo, ou melhor, a sua melhor expressão. A disjunção da natureza humana e a separação entre consciência e verdade é, da mesma forma, uma variação da impossibilidade da encarnação da verdade na história. Não por acaso que muito do irracionalismo iniciado pela filosofia nominalista, que visava preservar a autoridade da revelação cristã do ácido das especulações racionalistas, guarda uma identidade emergente com os totalitarismos autoritários a que o Ocidente se viu imergido durante o século XX e que tão de perto nos ameaça hoje. A egofania vista em movimentos totalitários que apregoavam a total destruição das amarras da tradição são hoje as mesmas vistas em indivíduos que desejando a plena liberdade das amarras dos compromissos com a comunidade e com a família, e acabam por gerar um solipsismo tipicamente Ocidental que geram indivíduos cada vez mais atomizados, solitários e sujeitos às garras de um poder superior como o Estado. O trabalho longo e doloroso de conhecimento, assimilação e superação foi suplantado pela iluminação gnóstica individual, e hoje temos tantas verdades como cabeças no mundo. Mas até mesmo como Bakunín previu: um poder organizado tenderá a absorver os átomos soltos. 

   Mas o gnosticismo não acaba por aí, disjunção do equilíbrio entre espírito e matéria, alcançado na Idade Média, acabou por gerar na modernidade a destruição do Rosto do Mundo. Como bem observou o filósofo Roger Scruton, a destruição da arquitetura tem todo esse caráter egofânico. A cisão entre o belo e o verdadeiro - união característica da tradição filosófica cristã medieval - arruinou os gostos. As pichações, os lixos nas ruas e a destruição das pequenas comunidades em nome dos grandes empreendimentos tem todo esse caráter revolucionário e desrespeitoso para com a boa criação de Deus que só um gnóstico consegue ao considerar toda a criação má. A deformação do corpo por meio de plásticas, as pichações corporais adquirem o caráter da profanação que tanto ofendem os olhos e o bom senso daqueles que foram chamados a cuidarem dos jardim de Deus, compreendendo o contexto das palavras divinas, segundo as quais tudo aquilo que Deus criou é bom. A disjunção entre essência e aparência, nesse sentido, caracteriza também a negação das possibilidades de o Verbo se tornar carne, e que destruir o mundo e o corpo é destruir o objeto de amor de Deus. 

   Diante destas considerações, quais são as implicações das narrativas da encarnação de Jesus Cristo no Mundo, o Cristo que partiu o seu corpo por nós? A evidência clara de que gnosticismo é destruição e radicalismo doentio deve ser acompanhada com a clara compreensão de que a modernidade, ao invés de ser a história crescente da racionalidade, é claramente a história do crescimento do gnosticismo. A compreensão da estrutura do "mito" da encarnação que pode oferecer uma base de razão que se vê num contexto de uma humanidade ameaçada por não compreender a si própria em sua unidade da relação divino-humana, devendo reagir a isso, ou seja: o mito formador cristão (no sentido de Schelling), sendo a base de unidade de sentido no Ocidente, é a única fonte de sentido na humanidade que pode curar esse processo destrutivo na alma do pensador místico. Sendo assim é dever individual não tomar parte na cultura da destruição, mas superá-la em si mesmo mantendo a integridade da consciência ameaçada de desintegração frente a irracionalidade destrutiva da presente modernidade.       

   

Nenhum comentário:

Postar um comentário