terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Valei-me Deus, Jailson Serafim.

    Esse é um artigo (que pode ser acessado aqui) de um rapaz chamado "Jailson Serafim". Tem tantos e tantos erros nesse artigo que para corrigi-los seria necessário escrever uma teologia sistemática inteira para dar conta das afirmações enviesadas, mal-refletidas e das colocações pobres desse rapaz.

    Entre as enormidades que ele diz está na afirmação de que o título "O Calvinismo Explicado" do querido "Francisco Tourinho" é um problema. O Jailson se apega à afirmação do Spurgeon que diz que "Calvinismo é evangelho", e que seria muita arrogância, por isso, explicar o "próprio evangelho". Eu vou explicar algo sem entrar no mérito da afirmação do Spurgeon de que "O Calvinismo é o Evangelho". Pelo amor de Deus, deixem isso para lá.

    A toada infantil infantil do Jailson segue texto adentro: "Pasmem, (sic) vocês. O nome do livro é "O Calvinismo Explicado". Nos chama a atenção a afirmação de Spurgeon, dizendo que "o calvinismo é o evangelho e nada mais"(Verdades Chamadas Calvinistas), e se tomarmos e levarmos em consideração esta afirmação como absolutamente verdadeira, ortodoxa e reformada, o título do livro se torna inviável, para não dizermos pretencioso, diante de Paulo que falou "do evangelho, as riquezas incompreensíveis de Cristo"(Ef 3:8 ACF), dizendo ainda: "Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis os seus caminhos!"(Rm 11:33 ACF). Nesse sentido, como podemos explicar aquilo que é 'inexcrutável' (sic),'insondável' e 'incompreensível'? Quanta pretensão do autor, não?"

    Eu vou "explicar" (sem querer ser arrogante) algo para o rapaz. A própria palavra evangelho (ευαγγελιον), além de ser formada pelo termo "ευ", é também formada pelo termo αγγελια que traz em sim o sentido de "anúncio" e "notícia". A palavra "notícia" é interessante para os nossos propósitos, pois guarda o sentido de "notitia", ou seja, informação, conhecimento, nota. Assim é constitutivo ao sentido de evangelho a noção de informação, e uma informação não teria sentido de ser para nós se ela não fosse para ser apreendida pela mente. Portanto, longe de ser uma digressão vazia o que eu faço aqui, nota-se que a questão da relação ao entre o conhecimento e o evangelho é algo fundamental para a compreensão da própria noção de evangelho, sendo isso patente tanto na escritura como respaldado pelo melhor da produção teológica. Devido a isso peço que me acompanhem aqui e me concedam a paciência de vocês para que possa esclarecer essa questão - que não é de pouca importância.

    Geralmente fazemos na teologia a distinção entre duas formas de teologia (que em sentido lato é o que chamamos de "conhecimento de Deus"). Essas duas formas tem a ver com o conhecimento do que Deus é em sua essência e aquilo que Deus é para nós (em sua revelação). O primeiro tipo de teologia é aquele conhecimento que Deus tem de si (e que lhe é exclusivo, pois em sua totalidade só Deus conhece a Deus). Essa teologia nem os anjos a possuem, e, desse modo, em sua essência mesma Deus é incognoscível (Jó 11.7). Contudo, se não temos acesso exaustivo ao conhecimento da essência divina, temos não obstante acesso a uma segunda teologia que é aquela que nos vem ao conhecimento enquanto conhecimento da vontade e dos "atributos" de Deus revelados tanto na natureza (Rm 1.19ss), quanto no evangelho (Jo 1.18). Assim temos uma teologia arquetípica, que é o conhecimento que Deus tem de si, e uma teologia ectípica, que é o conhecimento, a notícia que temos daquilo que Deus é para nós - em suas operações e atributos.

    É nesse sentido que João Calvino mesmo diz: "Entretanto, simplesmente em frívolas especulações se recreiam tantos quantos se propõem insistir nesta pergunta: Que é [Quid sit] Deus, quando nos deve antes interessas que tipo [Quali sit] [de pessoa] e quê à natureza lhe convém" (Inst. I.II.2.). Ao fazer a distinção entre o "quid sit" (o que é) e o "quali sit" (que tipo é - para nós), Calvino faz a distinção que colocamos acima. Nesse sentido, a contragosto do Jailson Serafim, Calvino segue a distinção já usada pelos escolásticos que afirmavam a insondabilidade do que Deus É, cabendo a nós conhecer certos aspectos da essência divina naquilo que ela se manifesta a nós.

    Quanto ao texto bíblico de Ef. 3.8, na tentativa do Jailson provar arrogância de "explicar o evangelho" temos um exemplo de eisegese, pois justamente nos versículos que se seguem (vs. 9, 10) Paulo fala de "manifestar" (φωτισαι = trazer à luz) a dispensação do mistério oculto em Deus, para que, pela igreja a multiforme sabedoria de Deus se torne "conhecida" (γνωριθη = seja dada a conhecer). Ou seja, as riquezas "insondáveis" e "incompreensíveis" de Cristo estavam sendo agora manifestas pela pregação, para que pela igreja esses mistérios fossem tornados conhecidos para os principados e potestades. Nada aqui se prova da "inexplicabilidade" do evangelho, mas é absolutamente o contrário, pois dizer que o evangelho é inexplicável nada mais é do que um oximoro.
    O resto do texto é um show de ilações e uma coleção de erros do mesmo tipo - como na questão a respeito da imperfectibilidade de Adão, que mais parece, com diria Calvino, uma λογομαχια, uma "briga de palavras" -, além da confusão tremenda que ele faz da relação entre a "teologia de Santo Tomás" e a "escolástica", como se ambos fossem sinônimos, não se tratando, antes, de uma relação do tipo que existe o gênero e a espécie, ou seja, nem toda teologia que se vale do método escolástico é "tomasiana". Talvez se o Jailson se preocupasse mais em entender a respeito do que escreve do que buscar detratar um discordante ele faria melhor teologia, e uma teologia para a glória de Deus.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

São o Amor e a Justiça Divinas Um Único Atributo? Afirmamos que Sim, mas Fazemos a Devida Distinção

    Uma grande questão se levanta quando nos pomos a discorrer sobre os atributos divinos. E ultimamente tem se levantado a afirmação de que não existe algo que possamos chamar de distinção entre o amor e a justiça divinas, isso porque Deus é simples, não dotado de composição; assim sendo qualquer distinção que possa se estabelecer entre os atributos divinos, como justiça e amor, desembocaria na conclusão de que Deus é composto, o que acabaria por destruir o conceito de Deus. Notem bem: é bem verdade que Deus é simples, e isso afirma a escritura quando diz que Deus não possui variação ou sombra de mudança (Tg 1.17), e que impor qualquer composição em Deus seria coloca-lo nos limites da criatura da qual Deus é radicalmente distinto. Também é verdade que o nome atributo só pode ser aplicado metafórica e impropriamente a Deus, pois são os atributos não qualidades dadas a Deus pelas quais possamos notar um acréscimo em seu Ser. Assim sendo, em um sentido bem próprio é verdade que Deus não possui atributos, mas Deus é seus atributos; Deus não possui justiça, mas Deus é a Sua justiça; também Deus não possui amor, mas ele é amor.

    Foi da lavra dos nominalistas a noção de que as distinções entre os atributos divinos só são distinções que possuem realidade em nossa mente. Assim o conceito de atributos não é fruto de uma predicação real, mas meras logias, palavras pela qual poderíamos organizar o conceito de Deus para nós. Fazendo assim os nominalistas resguardavam o conceito de simplicidade divina, mas como consequência tal noção poderia confundir os diversos fins estabelecidos por Deus para seus atos. Como afirmou de forma assertiva Berkhof, por esse caminho estamos indo em a passos largos em direção ao panteísmo1, como procurarei esclarecer mais tarde.

    Mas o que são os atributos divinos? Turretini define os atributos como: Os atributos divinos são propriedades essenciais pelas quais Deus se faz conhecido a nós, que somos fracos, e aquelas pelas quais ele se distingue das criaturas; ou são as que lhe são atribuídas em consonância com a medida de nossa concepção, a fim de explicar sua natureza2 e: indicam perfeições essenciais à natureza divina concebidas por nós como propriedades3. E como dissemos anteriormente, tais propriedades não são atribuições em sentido próprio, mas sim em sentido impróprio, sendo atribuídos a Deus metaforicamente, pois eles não podem ser distinguidos intrinsecamente da essência divina que é una e perfeitíssima. Contudo, mesmo que tais atributos não possam ser distintos realmente da essência divina, contudo nem por isso eles não podem ser virtual e eminentemente distintos tanto da essência divina como entre si, i. e., extrinsecamente quanto à terminação, ou seja, quanto aos distintos fins e efeitos exteriores propostos na essência divina.

    Partimos da noção de que os atributos não podem ser realmente distintos da essência divina. A razão disso é que tal essência, por ser imutável, é absolutamente simples, repugnando a ela qualquer forma de composição. Entendamos que a unicidade por composição só pode vir por agregação, agregação essa que não pode ter a sua razão de ser, como causa, o próprio sujeito composto. Ora, isso destruiria a independência de Deus, pois a agregação supõe uma perfeição anterior pela qual a unidade do composto pode vir a ser. Também implicaria em impor a Deus potência passiva - raiz da mutabilidade - pois na composição um ente passa de um estado a outro. Ora repugna ao ser simplicíssimo tanto a mutabilidade quanto a composição. Nesse sentido repugna qualquer distinção real intrínseca ao ser simplicíssimo. Não obstante a isso não repugna ao ser simplicíssimo a diversidade quanto à terminação, i.e., quanto à diversidade extrínseca de fins propostos pela essência divina pelas quais é constituída a base para as diversas concepções formais em relação aos atos divinos formuladas por nós. Ora, é justamente por isso que distinguimos em sentido próprio um ato de juízo realizado no ser ao qual o juízo é destinado do ato de misericórdia para quem tal ato é direcionado, pois mesmo que em sentido último tais atos visem unicamente a glória divina, elas não visam a mesma glória da mesma forma, ou segundo os mesmos efeitos.

    A partir desse ponto podemos colocar a questão de forma mais clara: a distinção formal (i. e, intelectual) entre os atos de misericórdia e juízo não é mera distinção entre os nomina, como afirmaram os nominalistas, pois a constituição formal da misericórdia e do juízo são realmente distintas qua efeitos, pois tais efeitos dessas operações divinas são diversos nos termos passivos aos quais tais atos divinos se remetem - aqui mais precisamente os homens que são alvos ou do juízo ou da misericórdia. Ninguém pode dizer que o ato do juízo é idêntico ao ato de misericórdia, pois os fins propostos em tais atos não são o mesmo, embora ambos os atos Deus vise igualmente a Sua glória. Aqui temos a base pela qual a teologia não cai na irracionalidade, pois ao percebermos a diversidade de fins podemos apreender a diversidade de operações em Deus: criar não é o mesmo que ajuizar; castigar não é o mesmo que perdoar; e salvar não é o mesmo que punir, pois mesmo que Deus salve um punindo outro, aquele a quem Deus salva e aquele a quem Deus pune não recebem necessariamente a mesma operação em sentido unívoco, mesmo que ambas as operações procedam da essência una.

    É nesse sentido que entendemos que a distinção de atributos divinos é algo proposto para a nossa compreensão a respeito daquilo que Deus mostra de Si na criação. Confundir a juízo e misericórdia é por a obra divina sob o sinal da irracionalidade, coisa que não convém às perfeições de Deus. É aqui que entendemos o que Berkhof queria dizer quando disse que a eleminação de qualquer forma de distinção em Deus conduziria ao panteísmo (ou ao panteísmo gnosiológico), pois mesmo que não haja uma distinção real entre essência e atributos divinos, e nem mesmo uma distinção real entre os atributos entre si, contudo a eliminação da distinção lógica entre eles colocaria os efeitos da operação da essência divina sob o sinal da indiferenciação. Assim, criar não seria algo distinto de condenar, e nem mesmo os efeitos da criação criados por Deus difeririam das operações divinas, mesmo que tudo promane de Deus.

    É bem verdade que os atributos divinos podem ser predicados uns dos outros quando visualizados pelo ângulo da unidade; assim dizemos que o amor pode ser predicado da justiça, assim como a intelectualidade pode ser predicada da volutariedade em Deus, pois todas essas coisas, na essência divina, são uma só. Mas isso não é verdade no que diz respeito à distinção formal, i. e. intelectual desses atributos, pois existe uma diversidade tanto em relação à nossa concepção, quanto com relação aos fins e objetos desses atributos divinos. Portanto os atributos estão sob o sinal da unidade quanto ao princípio, i.e., quanto à unidade da essência; contudo são diversos quanto aos objetos aos quais se dirigem e quanto aos diversos efeitos produzidos no ser; são um uno enquanto considerados subjetivamente, absoluta e intrinsecamente em Deus; mas são diversos quando considerados objetivamente, relativa e extrinsecamente quanto aos fins e efeitos no ser.

    A diversidade de efeitos sugere um diversidade de fins, mas não uma diversidade intrínseca em Deus, mas sim uma diversidade formal, i. e, intelectual, em nós quanto aos atributos, pois é assim que alcançamos alguma noção de Deus. Nesse sentido os atributos divinos não possuem uma distinção real, mas meramente lógica, pois Deus é uno e simples sem qualquer espécie de composição.         

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[1] BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. Ed. Cultura Cristã. São Paulo-SP, 1ª ed., 1990. p. 44, 45

[2] TURRETINI, Francis. Compêndio de Teologia Apologética. Ed. Cultura Cristã. São Paulo-SP, 1ª ed., 2011, p. 257

[3] Idem.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

A Família de Deus

    É muito difícil entendermos muito bem, com base em nossa sensibilidade religiosa atual todo o modo de ser da família de Jacó. Estamos falando de uma estrutura antiga e poligâmica de família com o adicional do o instituto do concubinato, algo inexistente nos nossos dias. Provavelmente você já se perguntou se o modelo de vida dos patriarcas é um modo de vida possível hoje; ou deve ter se perguntado se o Deus é mutável em sua moralidade para permitir antes a poligamia que a igreja hoje rejeita. Mas a resposta é “Não”, Deus não muda em seus propósitos, mas os meios para atingi-los variam em cada época. A questão é que o mundo antigo não era populoso, e contando com taxas evidentemente altas de mortalidade a poligamia se tornava uma forma de sobrevivência. Contudo isso nem é o importante da questão aqui. Ao tratarmos da questão da Família de Deus queremos falar a respeito da graça que vem para retificar um povo falível.

    Não há outro termo: a história da família de Jacó é estarrecedora, pois ela contava: com irmãs esposas lutando por um marido (Gn 30.1); a amada Raquel vendendo seu marido por um punhado de mandrágoras (30.14,15); Rúbem, o primogênito, cometendo incesto com Bila, concubina de seu pai (35.22); Raquel roubando os ídolos de seu pai, inserindo idolatria na família eleita (31.19); Simeão e Levi assassinando uma vila inteira como vingança pela violação de sua irmã Diná (34.25-31); José, o mais novo, vendido por todos os seus 10 irmãos a uma caravana de ismaelitas, o que levou os 10 a mofarem o ocorrido debaixo da mentira da sua José por anos a fio (37); Judá mostrando seu lado perverso, fraudando a lei do levirato e mantendo relações sexuais com prostitutas, além de hipocritamente buscar a morte de sua nora que supostamente havia adulterado, enquanto que ele é quem a havia possuído (38); os bisnetos de Abraão, Onã e Er, sendo mortos por Deus por se rebelarem diante dele (38.9).

    A intenção aqui não se trata de maldizer o conceito de eleição, ou blasfemar dos patriarcas, antes é mostrar a quem Deus chama, e como são aqueles a quem Deus chama. Longe de significar qualquer coisa como premiar a injustiça, a graça e a aliança divina visa tratar o homem tal como ele é em toda a sua imperfeição. Aqui podemos afastar aquela visão torcida que muitas vezes foi sinalizada por um lado demasiadamente ascético e purista que sempre povoou a Igreja que buscou expulsar dela os imperfeitos, botando mais fé em uma suposta retidão que falsamente viam do que acreditando naquela graça, que sustenta o filho de Abraão, que justamente não viam. É por isso que a família de Deus é algo que pode ser decepcionante para quem julga achar nela mais do que tem para dar a ela. É nesse povo imperfeito, e por vezes incrivelmente estarrecedor, que está em vigência aquela graça do Cristo, que a esse pequenino rebanho decidiu entregar o seu Reino.

Esmagando o Meu Servo

    Após o conselho de seus pais, fugindo também da face de Esaú, Jacó vai em direção a Padã-Arã (פַּדַּנ־אֲרָם = paddam-’arām), que significa campo alto, ou Campina da Síria, lugar que é identificado com a região de Damasco (lugar onde Paulo teve o encontro com Jesus Cristo) na Mesopotâmia, lugar onde vivia Labão, filho de Betuel e irmão de Rebeca, mãe de Jacó. Esse conselho foi dado a Jacó em consonância com o desejo de Abraão de que não fossem tomadas para seus filhos mulheres da terra de Canaã, e antes de sua partida, invocando a Deus pelo nome de El Shaday (אֵל שַׁדַּי = el shāddāy), ou Deus Todo-Poderoso, Onipotente – indicando um superlativo, pois tanto “El” como “Shaday” significam cada qual Deus Todo-Poderoso -, o despede confirmando sobre ele as bênçãos de Abraão. Assim se inicia uma jornada de penitência e conversão de Jacó, partindo de Berseba e indo em direção a Arã.

    Em sua primeira noite, chegando a determinado lugar, Jacó tomou uma pedra que fez travesseiro, e tomado pelo sono teve uma visão onde do lugar que se encontrava até os céus se estendia uma escada, transitando sobre ela anjos com YHWH no topo dizendo sobre a possessão daquela terra por parte dele e de seus descendentes, confirmando as bênçãos de seu pai Isaque, e prometendo a ele proteção. Ao acordar ele levantou um altar e chamou aquele lugar de Betel (בֵּיתְ־אֵל = bêt-’el), que significa Casa de Deus. Depois disso tomou a pedra que recostou a cabeça e fez um altar (a coluna de Betel) entornando sobre ela óleo, e invocando o SENHOR pro meteu dar dízimo de tudo se ELE o levasse e o trouxesse em segurança para a casa de seu pai. Partindo para o Oriente encontrou Rebeca, filha de Labão, irmão de Raquel. Após o encontro Jacó trabalhou para seu tio, Labão, fixando que trabalharia por sete anos por Raquel, sua filha, com o que Labão consentiu.

    Mas a história dá suas voltas, e após os sete anos Labão, ao invés de dar Raquel (רָחֵל = rāhēl = ovelha) em casamento, deu Labão sua filha Lia (לֵאָה = lē’āh = cansada, desfalecida), enganando a Jacó. O enganador foi enganado, e ficou estabelecido que por mais sete anos serviria por Raquel. Para Raquel foi dada Bilah como serva (בִּלְהָה = bilĥāh = cujo significado é casada, velha), e para Lia foi dada Zilpa (זִלְפָּה = zilpāh = cujo significado é gotejante, provavelmente no sentido de “reclamona”). Em Gn 29.31ss começamos a ver a saga familiar de Jacó – tornando-se um joguete da rivalidade das irmãs -, e ao ver o SENHOR que Jacó amava mais a Raquel fez Lia fecunda, ao passo que Raquel era estéril. A história pode ser vista ao longo de todo o cap. 30, mas em resumo Lia teve seis filhos homens e uma mulher; sua serva, Zilpa, lhe deu dois filhos. Raquel lhe deu dois filhos e Bila, sua serva, lhe deu mais dois filhos homens, totalizando um todo de 12 filhos homens e uma mulher, 12 ao longo de 7 anos.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

A Filosofia e a Perda do Objeto Absoluto

"Todo ser necessário por si mesmo é bem puro e perfeição pura; e o bem em geral é o que todas as coisas almejam e pelo qual aperfeiçoam seu ser"*. (Avicena).

Filosofia sem metafísica é o trabalho inútil de uma mente falida - de uma humanidade falida que desmancha na ausência de um objeto absoluto no qual ela pode visar e adquirir para si inúmeras e infinitas perfeições.

Essa é uma das razões pelas quais a filosofia moderna é tão feia, caótica e disforme. Essa é a razão também pela qual a ética moderna é tomada por várias deformações, pois seu fim é nada, suas metas desmancham no ar ao cerrar sua atenção nas ambições do momento que fizeram de um horizonte meramente temporal (que desvanece) seu próprio fim.

O mundo moderno perdeu seu referencial absoluto porque tem fobia da eternidade, lançando-a para fora de suas considerações julgando com isso alcançar a liberdade. E o que ganha com isso? O nada, o nada que para ser atingido deve gangrenar tudo o que existe, desfazendo tudo é. Parece que não se vê disso a consequência: ao abandonar o ser necessário, a única coisa que alcança, em direção ao nada, é a morte.

A ética e a filosofia modernas são, no fim, necrologia, culto à morte e amor pela deformação, pois destituída de um fim último permanente que poderia conceder a ela definição, forma, beleza.

O banimento de elementos metafísicos é o que encurtou a visão da filosofia, o que fez também encurtar a humanidade, tirando dela a sua grandeza; retirou a sua noção de bem pelo qual todas as coisas tem para si sua perfeição e pela qual, unicamente pela qual, podemos fazer um juízo a respeito da maldade do mundo, nos colocando a salvo dele na visualização do supremo e eterno bem.

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*AVICENA (Ibn Sīnā). A Origem e o Retorno. ed. Martins Fontes, São Paulo-SP, 1ª Edição 2005. p. 24

domingo, 13 de fevereiro de 2022

Tua Honra por um Caldo

    A primeira interação que temos entre Esaú e Jacó está logo em Gn 25.27-34, em um dos episódios mais estarrecedores de Gênesis. A perplexidade desse episódio se dá em virtude de uma inversão moral que ao mesmo tempo explica certa hierarquia de valores constitutiva de uma moral divinamente revelada, e nos coloca diante de um exemplo do quão longe pode ir o desprezo humano pelas coisas que dizem respeito a Deus e aos homens. No vs. 29 é dito que Jacó havia feito um cozido (נָזִיד) – termo que não guarda nenhuma correspondência com o termo lentilhas, como é comumente traduzido –, em um dia em que Esaú veio do campo exausto. No vs. 30 Esaú pede a Jacó um pouco do caldo vermelho (אָדֹ֤ם = ’ādōm), daí a origem do seu segundo nome, Edom (אֱדוֺם = edōm), nome que Deus origem à nação dos edomitas ou da idumeia. Dos vs. 31-33 temos a questão da venda da primogenitura, direito que Esaú dispõe, mediante juramento, à venda em troca do cozido preparado por Jacó.

    No contexto a que nos referimos o direito de primogenitura tinha referência direta à benção de Abraão, e como vemos posteriormente à venda da primogenitura se agrega essa benção, fazendo com que Esaú fosse despossuído de vários direitos. Sim, mesmo que com astúcia Jacó tivesse adquirido a benção de Abraão mediante seu pai Isaque (Gn 27.1-40), o gesto profano de Esaú só mostra que ele agia com desprezo em relação aos bens do Espírito, pois além do mais acrescentou a esse desprezo o ter tomado para si mulheres de Canaã, contrariando a vontade de sua mãe e de Abraão, seu avô (Gn 26.34), contrariando todo o projeto da aliança divina que até então havia sido estabelecido para a sua linhagem. Aqui se torna claro que Esaú não estava disposto, ou inclinado em suas virtudes, para a execução dos planos que Deus havia preparado para Abraão, pelo que a sua benção caiu em seu irmão mais novo.

    Esaú é a figura própria do velho homem. Seu nome Edom (אֱדוֺם = edōm) é formado pela mesma raiz que forma o nome de Adão (אָדָם = ’ādām), e além da proximidade fonética (dos sons das palavras), os nomes possuem também proximidade semântica (significado), não apenas no sentido geral de vermelho – pois Adão significa vermelho e humanidade –, mas no sentido teológico, ou seja, ambos se aproximam no seu afastamento deliberado das coisas divinas, o que fez com que ambos trouxessem sobre eles imensa dor. Tal catástrofe não é, portanto, gratuita: um, nosso pai ancestral, em troco da bem-aventurança furtou da árvore aquilo que lhe retirou tudo, trazendo sobre ele morte e tristeza; o outro, o pai de Edom, que em troca do dos seus bens eternos preferiu um caldo comum que lhe trouxe amargor. Ambos pensaram pequeno preferindo um bem ínfimo pela eternidade; ambos são reflexos da nossa humanidade - אָדָם = ’ādām: humanidade –, quando escolhemos levianamente o nosso pecado.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

A Quem Escolheu Deus?

    Um dos livros mais usados por Paulo é literatura de Gênesis, pois ela oferece aportes teológicos importantes para assuntos como a absoluta liberdade de Deu, justificação pela fé, pecado original (ou a Queda de Adão), a natureza da circuncisão, o batismo (tomando a analogia da circuncisão a fim de falar a respeito do batismo), assim como a predestinação. No texto de Rm 9.6-13 Paulo discorre sobre Gn 25.21-23. No texto de Gênesis é dito que Rebeca se angustiava pois seus filhos lutavam já em seu ventre. Consultando o SENHOR Rebeca recebeu a seguinte resposta: Duas nações há no seu ventre, dois povos, nascido de ti, se dividirão: um povo será mais forte do que o outro, e o mais velho servirá ao mais moço. O propósito de Paulo é afirmar a absoluta liberdade de Deus em eleger um e rejeitar a outro, mesmo antes do nascimento, não tendo praticado eles quer bem, quer mal. Uma explicação é necessária, pois desses versículos não raro surgiram acusações a respeito da injustiça de Deus.

Pois bem, sinalizamos aqui a percepção teológica de Paulo a respeito do nascimento de Esaú (עֵשָׂו = ’ēsaû), que significa peludo, e Jacó (יַּעֲקֹב = yă’akōb) que significa pegar no calcanhar, ou mesmo suplantador e defraudar. Lembrem do juízo divino sobre a descendência da serpente que iria ferir o calcanhar de Cristo (Gn 3.15). O nome de Jacó tem um sentido expressivo de perversidade, ou engano como característica do nome que o possuí. E é mais incrível que Deus tenha escolhido Jacó e preterido a Esaú. Não se trata de premiar o mal, antes se trata de assinalar a liberdade em graça de Deus para escolher um povo para si. Paulo anteriormente em Rm 3.23, antes de se deter na eleição de Jacó, afirma que todos estão destituídos da glória de Deus. Em Ef 2.1ss Paulo diz que todos nós estávamos mortos (νεκρος = nékros) quando ele nos deu vida (ζωη = zōē). Ora, assim entendemos que é Deus quem dá o primeiro passo para a salvação por nos conceder graça, pois, Ele nos amou primeiro (Jo 4.19b).

O que é importante aqui é perceber que é necessário entender que para a salvação é Deus a quem pertence o primeiro ato, pois estávamos mortos. Junto a isso devemos unir a revelação bíblica de que nenhum dos Seus planos podem ser frustrados (Jó 42.2b) e que só os desígnios do Senhor permanecem eternamente (Sl 32.11). Aqui podemos voltar a Rm 9.ss, onde Paulo afirmando a soberania divina contesta aqueles que tentam achar in justiça de Deus: Que diremos, pois? Há injustiça da parte de Deus? (Rm 9.14). E em Rm 9.15 ele cita as palavras da revelação de Moisés: Terei misericórdia de quem me aprouver ter misericórdia. Paulo tem em mente que não há quem mereça a salvação, e que é por isso que não podemos ser justificados pelas obras, mas pela graça mediante a fé (Ef 2.8). Também aqui se torna inteligível o fato de que Deus elegeu Jacó antes mesmo de fazer bem ou mal (supra), pois não tendo possibilidade de salvação só pode ser salvo por uma eleição de Deus, já que somente Ao SENHOR pertence a salvação (Jn 2.9) e não ao homem.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Milagre!

Após a morte de Sara registrada em Gn 23.1ss, Abraão incumbiu o mais antigo servo seu da busca de uma esposa ao seu filho Isaque. Feito o juramento de que seu servo não iria à busca de uma esposa para Isaque dentre as filhas de Canaã (24.2,3,9), partiu o servo com a benção de Abraão à procura de uma esposa dentre os parentes de Abraão, ou seja, a descendência de Naor, seu pai (24.4). A certa altura, o servo orou a Deus e pediu um sinal de que ele havia encontrado a esposa de Isaque: que a moça desse de beber a ele, e aos animais depois dele (Gn 24.14), o que ocorreu quando ele encontrou Rebeca (רִבְקָה = ribeka, que significa algo como cativante, ligação), filha de Betuel, filho de Milca, mulher de Naor (Gn 24.15-27). Após isso o servo foi recebido na casa do pai de Rebeca, Betuel, e expondo o caso, e a promessa que fizera a Abraão, teve o consentimento de Betuel (24.50) para levar Rebeca a Isaque, além do próprio consentimento de Rebeca (24.58).

Após tudo voltou o servo a Abraão junto com Rebeca, e de longe ao ver Isaque meditando no campo, tomou seu véu, cobriu o rosto e foi conduzida pelo servo ao encontro de Isaque que a tomou e a levou para a tenda de Sara, sua mãe (24.63-67a). Diz a escritura que Isaque amou-a (וַיֶּאֱהָבֶ֑הָ = vayyěehāvěhā) e foi consolado (וַיִּנָּחֵ֥ם = vayyināhēm) após a morte de Sara. A Escritura aqui mostra uma unidade de sentido muito importante. Na afirmação de Adão em Gn 2.24 se diz que deixa o homem seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher. Aqui vemos em um caso concreto como o casamento, e posse de Rebeca como esposa, preencheu o vazio deixado pela morte de Sara, consolando Isaque. Deixou ele sua mãe e se uniu à sua mulher, Rebeca a quem ficou atado pelo amor. Vemos aqui um paradigma para os filhos de Israel - coextensivo à humanidade toda -, já que após o primeiro casal esse é o primeiro relato de um casamento completo, e no salto de Adão e Eva para Isaque e Rebeca o padrão permanece idêntico.

Padrão também segue a sustentação divina no caso de Abraão, onde a continuidade da linhagem, segundo o desígnio divino, segue sendo possível segundo atos miraculosos. Em Gn 25.21a é dito que Rebeca era estéril, e em 25.21b diz que YHWH, o SENHOR, atendeu ao pedido de Isaque e Rebeca concebeu, dando à luz dois filhos, que eram Esaú e Jacó. Casos de concepção miraculosa são recorrentes na escritura. Lembremos da história do nascimento de Sansão (Jz 13), de Samuel (1Sm 1.9-28), ou mesmo a predição sobre o nascimento de Ezequiel que iria trazer libertação ao povo (Is 7.14-16), além da concepção miraculosa de João Batista (Lc 1.8-25) e de Jesus (Mt 1.18-25; Lc 1.26-45). Todos esses testemunhos encerram a verdade de que a ação de YHWH, o SENHOR, na história, na promoção da salvação, é ação que está encerrada na potência divina e não no conjunto de possibilidades oferecidas pelo mundo ou pelo homem. A razão disso é que ao SENHOR pertence [miraculosamente realizar] a salvação (Jn 2.9).

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Liberdade e Prudência: O Problema da Ilimitação da Liberdade de Expressão

    O argumento da liberdade de expressão ilimitada exposta pelo Monark é semelhante ao planejamento urbano que a pretexto de promover mais senso de higiene entre os cidadãos resolvesse construir vias com esgoto a céu aberto a fim de que a repulsa pelo cheiro levasse a um maior desejo por limpeza.

    Pense em um minuto nessa analogia. A grande questão é que a exposição ao horror e à loucura constantes levaria a uma degradação de certo senso de limite. O grande erro dessa versão extremada de liberalismo que o Monark representa é aquela inocência imoderada que pensa que o bom senso sempre vencerá, e que a sociedade nunca colapsará caso libere forças caóticas e homicidas para circular em pé de igualdade com o "pelotão do bom-senso" (ou do comom-sense no sentido britânico, que é aquele senso natural de alegria pela felicidade alheia, senso de comunidade, comedimento etc.).

    Abrir espaço para a radicalização irrestrita é o primeiro passo para a destruição do senso de amizade, daquele afeto mutuo que constitui o tecido que ampara a convivência civil. E Aristóteles dizia que o fim do legislador é muito mais preservar essa amizade até mesmo do que se preocupar de forma obcecada com a justiça - que o nosso país entenda isso. Nesse sentido a liberação de forças de extrema violência através da liberação da circulação de discursos enlouquecidos já geraria uma gangrena na rala verniz moral que ainda garante certa unidade civil - imagine um vilipêndio irrestrito de sulistas contra nordestinos ou coisa parecida.

    No fim, no fim, por uma previsão de cenário, o grande problema do estabelecimento da liberdade de expressão irrestrita seria garantir a formação de partidos políticos por parte de terroristas e extremistas, de maneira a possibilitar a tomada do poder, gerando ocasião para que o fanatismo ingresse na estrutura de Estado, moldando essa estrutura.

    Muitas teorias de uma ala extremada e anárquica do liberalismo (que ironicamente coincidem com teses defendidas até mesmo por comunistas) são simplesmente deletérias, e devem ser banidas daquele campo das possibilidades reais onde tais ideias poderiam vir a tomar corpo concreto na história, destruindo muitos - incrivelmente a liberação de forças extremas é um problema sério nos Estados Unidos. E contra o extremismo, como diriam os teóricos conservadores, a única oposição radical seria a prudência, sōphrosýnē (σωφροσυνη), prudência que Aristóteles definiu como a virtude política por excelência.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Entrego Meus Poços pela Paz

    O Antigo Testamento está pleno de evangelho. Quando se afirma isso partimos da distinção que ficou famosa – e até determinante – na teologia luterana. A distinção entre lei e evangelho é aquela que parte da teologia paulina (i.e. do apóstolo Paulo) em que a justificação se dá, no evangelho, pela fé em Cristo de forma independente das obras da lei. Mas também se remete às doutrinas da misericórdia que devem ser postas em práticas por todos os cristãos. Nesse sentido, o sermão da montanha em Mt 5-7 mostram uma forma de conduta de Cristo pela qual a justiça da lei – que é santa e justa – é sobrepujada pelos interesses do perdão e da misericórdia. Assim somos ensinados a ir para além da mera Lei do Talião, ou seja, a lei que instrui sobre a natureza da justiça nos famosos dizeres olho por olho e dente por dente (Lv 24.20). Essa lei não é um incentivo à vingança, mas um regramento que delimita a punição retributiva ao tamanho do agravo sofrido, não indo além para além dele.

    Mas é possível que se vá para além da justiça retributiva, e já no Antigo Testamento, especificamente em Gn 26, há uma interessante história que ilustra como esse espírito evangélico já era constitutivo da moral cultivada por Deus nos corações dos homens. Gn 26.15-25 nos fala da história das peregrinações de Isaque nas terras de Gerar, e como prosperou imensamente nos campos de Abimeleque, por inveja lhe entulharam os poços que haviam sido cavados desde os tempos de Abraão. Após isso ainda cavou mais três poços, dois dos quais lhes foram tomados em reivindicação pelos donos das terras, mas na terceira vez ninguém contendeu com ele e seus pastores pela sua posse, e assim chamou aquele poço de Reobote (רְחֹבֹ֔ות = rehōbôt), nome que significa amplo, campo aberto, espaçoso, extenso, largueza, denotando possivelmente a capacidade de Isaque crescer em paz.

    Note que antes de findar a campanha de entulhamento dos poços, Isaque não buscou reivindicar qualquer direito, e mesmo sendo poderoso, mais até do que Abimeleque (cf. vs. 16), não usou do seu poder para entrar em guerra em nome da justiça, antes cedeu espaço – e até mesmo direito - para aqueles que o atacavam. É impossível com essa história não vir à mente os vs. de Mt 5.39,40, onde diz: Eu, porém, vos digo que não resistais ao mal; mas se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra; e ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa. Esses versículos nos ensinam a abrir mão da reivindicação do que é nosso em nome de um benefício maior, a sacrificar pela paz, em última instância. Isso não significa recompensar o mal, mas recusar cai na provocação, pois o mal tem vingador, se já desprezo da misericórdia, como diz Paulo: Amados não se vinguem, mas dêem lugar à ira, como está escrito: Minha é a vingança e eu retribuirei (Rm 12.19).


O Sacrifício de Isaque

    A espiritualidade cristã está indissoluvelmente ligada ao sacrifício. É dito que o sacrifício está vinculado de forma vitalícia ao amor, pois o amor estabelece uma ordem de prioridades pela qual colocamos no topo da nossa hierarquia de valores aquilo pelo qual tudo o mais deve ser sacrificado, incluindo a nossa própria vida – ora, só sacrificamos tudo o que é nosso àquilo que mais amamos e sem o qual a nossa vida não teria qualquer sentido. E não é verdade que a mentalidade moderna dispensou de uma vez por todas a noção de sacrifício, ela só substituiu o seu objeto, pois ao destituir a Deus como a medida de todas as coisas o homem moderno fez de si essa medida, e como resultado tudo o mais serve para ser sacrificado no altar da sua vontade pessoal, dos seus desejos e apetites. A lógica do sacrifício é impossível de ser rompida uma vez que todos nós temos fins e prioridades; enfim, todos nós amamos algo pelo qual tudo o mais, ao nosso ver, deve se dobrar, pois o amor ordena todos os fins em ordem a si mesmo, pois, como diziam os escolásticos: o fim é o primeiro na ordem do causar.

    O sacrifício de Isaque ilustra de forma exata o lugar do homem diante de Deus. Em Gn 22.1ss somos informados de que Deus testou (נִסָּ֖ה = nissāh) a Abraão, pedindo a ele Isaque em sacrifício. A história pode causar certo estranhamento em nós, mas devemos lê-la em seu contexto próprio a fim de extrair dela todo o seu sentido. É importante ter em mente que sacrifícios humanos não eram coisas raras no contexto do antigo oriente próximo, como nos atesta a escritura (2Rs 3.27), onde o Rei de Moabe sacrificou seu filho, causando indignação geral contra Israel que pressionava Moabe. A despeito dos detalhes dessa história, a lei mosaica já trazia um veto rigoroso contra o sacrifício humano. Em Lv 18.21, e em Dt 18.10 o sacrifício humano é expressamente proibido. Tais vetos não teriam razão de ser se o contexto não criasse uma ocasião a esse tipo de oposição. É nesse contexto que o sacrifício de Isaque ganha seu total sentido.

    Como quero argumentar aqui, a história do sacrifício de Isaque serve a dois propósitos distintos: 1) salientar o lugar de Deus para a fé; 2) e destruir a mentalidade pagã do oriente antigo a respeito do sacrifício humano. O primeiro propósito ilustra a obediência de Abraão, de tal maneira que Isaque, seu filho da velhice, aquele que foi prometido por Deus, é requisitado exigindo que Abraão coloque a vontade divina acima do filho do seu amor. O segundo propósito se realiza quando providenciando um cordeiro, Deus extingue refuta qualquer necessidade de sacrifício humano, excluindo-o permanentemente do culto de Israel. Em um caso e em outro, o cordeiro substituto, providenciado por Deus, é sacrificado vicariamente cumprindo os propósitos divinos, realizando um bem em proveito humano. O cordeiro substituto surge aqui como a imagem de Cristo, o qual realiza em si mesmo, na preservação do homem, o resgate que nos concede a paz.

Milagre!

    A promessa divina sobre Abraão tem início logo na sua vocação em Gn 12. Lá é prometido ao patriarca que dele seria feita uma grande nação. Somente em Gn 13.14, 15 é que é feita explicitamente a promessa de uma terra. Deus ordena todas essas promessas segundo uma finalidade específica, que é demonstrada em Gn 18.19: Porque eu o escolhi para que ordene a seus filhos e a sua casa depois dele, a fim de que guarde o caminho do SENHOR e pratique justiça e juízo; para que faça vir a Abraão o que dele tem dito. Em sentido estrito, Deus escolheu Abraão a fim de criar uma raça piedosa, de maneira que partindo de Abraão um povo fosse constituído em observância estrita à Palavra do Senhor. Deus prometeu duas coisas: um povo e uma terra para o povo, e em sentido mais profundo, Deus estabeleceu a partir de Abraão a nação que acolheria em seu seio o Seu Filho, a Palavra feita carne, pelo qual a humanidade alcançaria a remissão dos seus pecados.

É significativo que em uma condição natural quase impossível Deus fez surgir a nação de Israel. Abraão, quando do nascimento de Isaque, já contava com 100 anos e Sara com 91 anos. E não só isso, Sara era estéril, incapacitada de dar à luz filhos a Abraão. Nesse estado de coisas o nascimento do projeto divino começa à luz de um milagre, como o projeto divino de redenção deve ser: um milagre. Assim, a história de Israel não deve ser visto apenas como uma coleção de fatos históricos que se deu no fluxo dos tempos, mas também como uma coleção de milagres pelos quais Deus, o Senhor, sinaliza a sua presença na história da redenção humana. Aqui Deus sinaliza diversos motivos que confluem para o estabelecimento da mensagem de que Deus, o Senhor, rompe com a mera configuração natural do mundo, movendo os olhos dos homens para além do mundo, lá onde se localiza a sua verdadeira redenção e esperança.

    Israel nasce do milagre, e Isaque (יִצְחָק), aquele é motivo de sorriso, indica a alegria gratuita daqueles que nada podendo esperar de si e de suas capacidades naturais, são alçados pela graça do Senhor, graça que confirma o amor livre de Deus que não sabemos de onde vem e nem menos para onde vai, já que não podemos detectar a sua origem precisamente e nem mesmo o seu fim, fim que nenhum olho viu e nenhum ouvido ouviu. Assim é a graça de Deus e diante dela a única coisa que podemos expressar são nossas ações de graça, nosso agradecimento sincero que surge pela irrupção imerecida de Deus na história, que intervindo na ordem natural das coisas, sem destruí-la, ao mesmo tempo que a elevando, nos fornece bens superiores em manifesto cuidado amoroso pela criatura que somos. Assim a história de Abraão é a história de todos nós que cremos na bondade de Deus contra toda esperança.  

domingo, 6 de fevereiro de 2022

O Justo do Senhor

  A história da justificação de Abraão em Gn 15.6 foi colhida por Paulo como a história paradigmática, ou modelar da justificação pela fé sem a concorrência das obras da lei. O uso que Paulo faz de Gn 15.6 está em Rm 4 e em Gl 3.6-22. Compreender o uso que Paulo faz dessa passagem de Gênesis é fundamental para a compreensão cristã a respeito da justificação. Os texto hebraico para se referir ao ato de Abraão crer em Deus é וְהֶאֱמִ֖ן בַּֽיהוָ֑ה (vehe'emin bayhwāh) ou: “e deu seu amém ao Senhor”; e o ato da imputação da justiça é צְדָקָֽה לֹּ֖ו וַיַּחְשְׁבֶ֥הָ (vayyahexevehā lô tsedākā), ou algo como: e considerou (o ato de fé de Abraão) para a justiça. Na LXX o termo para considerar ou estimar é ελογισθη αυτω εις δικαιοσυνην (elogisthē autō eis dikaiosynēn), algo como computado, considerado ou contabilizado como justiça. Tanto o termo וַיַּחְשְׁבֶ֥הָ como o termo ελογισθη comportam a noção de considerar, estimar e mesmo reputar, e foi a fé o meio pela qual Abraão alcançou a graça de ser tido como justo, não por obras ou pela lei.

É importante nos reportarmos às palavras de Paulo em Rm 7 e 8.1-11. Segundo Paulo a lei foi tornada impotente (αδυνατος) em virtude carne (σαρξ), pois nos membros do homem caído há uma outra lei (ετερον νομος) que guerreia contra a lei de Deus (νομω του θεου) com a qual o homem interior concorda. Assim, é impossível que a lei de Deus se estabeleça como o meio de salvação porque a natureza humana que nos compõe é corrupta. Assim, independentemente da lei somos em Cristo justificados pela fé, pois Deus enviou seu Filho em carne condenou o pecado na carne santa do seu Filho, de modo que o pecado (αμαρτια) perdeu seu poder para nós que andamos segundo o Espírito (περιπατουσιν κατα πνευμα). Mas atenção, o homem que anda segundo o Espírito é alguém cujo homem exterior pode se corromper, mesmo que o exterior ainda se renove dia a dia (2Co 4.16); também o andar no Espírito não parece ser a libertação das defecções em sentido absoluto, pois é imperativo continuar a mortificação constante dos membros que estão sobre a terra (Cl 3.5ss).

Ao longo da história da igreja a compreensão a respeito da justificação sempre foi alvo de disputa. Mas o que está claro é que a nossa justificação vem de Deus pela fé (Gl 5.5), e também que na justificação ainda há pontos de defecção com os quais devemos lutar; e sendo amparados pelo poder do Espírito, por sermos considerados no indicativo como estando em Cristo, se torna imperativa a luta contra o pecado que habita em nós ao modo de defecção da natureza, ou da fraqueza da carne. Continua para os justos a tarefa de se humilhar debaixo da potente mão de Deus (1Pe 5.6), lamentar as misérias e chorar (Tg 4.9), e andar pelo Espírito na fé que atua pelo amor (πιστις δι αγαπης ενεργουμενη, cf. Gl 5.5,6), mesmo sabendo que se atuamos bem, como Abraão, temos do que nos gloriar, mas não diante de Deus, já que dele tudo provém, até mesmo a nossa justificação que nada mais é do que a justiça de Cristo em nós que nos dá a vida (Rm 5.12-21).

A Cidade da Transgressão

    No capítulo de nº12 do livro de Gênesis é relatado o chamado de Abrão, e no VS. 4 é dito que Ló (לוֺט = lôt) o seguiu. Após os acontecimentos da primeira descida de Abrão ao Egito, Ló e Abrão se separaram pela incapacidade da terra de comportar o gado de ambos. Ló, a quem Abrão concedeu o direito de escolha, decidiu partir para as verdejantes campinas do Jordão, em direção a Sodoma e Gomorra (vs.10) ao Oriente, e Abrão ficou em Canaã. Após isso se levantou a guerra dos quatro reis contra cinco (cap. 14.1-11), sendo Ló levado cativo (vs. 12). Ao tomar ciência do fato Abrão partiu com 318 homens dos mais capazes de sua casa. Com a vitória sobre Quedarlaomer e os outros quatro reis, Abrão retornou com Ló e seus bens, e teve um encontro com Melquisedeque (מַלְכִּי-צֶדֶק = maleqî-tsedek) a quem entregou seu dízimo, recebendo a benção do sacerdote de Salém.

Após esses eventos o Senhor prometeu a Abraão descendência, e levando em consideração a esterilidade de Sarai, tal realização não seria um evento entre outros, mas um milagre. Em meio á impaciência, Sarai dá a Abrão Agar com quem teve Ismael (cap. 15-16). Mas reafirmando que seria de Sarai que Abraão teria um filho, YHWH mudou o nome de Abrão para Abraão (אַבְרָהָם = ‘aberāhām), ou Pai de Povos, e de Sarai para Sara (שָׂרָה = sārāh), ou Princesa. Como sinal da aliança Deus institui a circuncisão, e após isso YHWH reaparece refazendo suas promessas e anuncia a destruição de Sodoma, cidade onde Ló habitava. Neste ponto somos levados à famosa intercessão de Abraão (cap. 18.22-33) , história que nos mostra como os justos podem vir a ser causa de salvação dos injustos – o que muito nos explica o como somos salvos pela justiça de Cristo.

A narrativa a respeito de Sodoma e Gomorra é esclarecedora, e a violência que os moradores da cidade despendem aos anjos nos lembra muito o prólogo do dilúvio, onde a injustiça suprema é ilustrada na coabitação entre mulheres e anjos (Gn 6.1-3). Aqui é importante frisar, em função do reducionismo interpretativo a respeito do juízo sobre Sodoma e Gomorra, que o pecado deste povo não se limitou à imoralidade sexual ou à prática desenfreada da homossexualidade, antes, como nos informa Ezequiel (16.46), contra esse reducionismo interpretativo, seu pecado também foi: soberba, fartura de pão e abundante tranquilidade [...], e nunca estendeu a mão para o pobre e necessitado. Esse foi o cenário onde a abundância estava unida à maldade, construindo o pior dos mundos. Contra a mesquinhez e a maldade se arremete o juízo divino, destruindo um estado de coisas que em Sodoma, ou em qualquer outro lugar, era e é algo tanto corrupto como corruptor.

sábado, 5 de fevereiro de 2022

Comentário de Habacuque 1.1-17: (לָ֤מָּה תַבִּיט֙ בֹּֽוגְדִ֔ים תַּחֲרִ֕ישׁ) Por que olhas os que procedem perversamente e silencias?

Texto Hebraico de Habacuque 1.1-17:

1 הַמַּשָּׂא֙ אֲשֶׁ֣ר חָזָ֔ה חֲבַקּ֖וּק הַנָּבִֽיא׃
2 עַד־אָ֧נָה יְהוָ֛ה שִׁוַּ֖עְתִּי וְלֹ֣א תִשְׁמָ֑ע אֶזְעַ֥ק אֵלֶ֛יךָ חָמָ֖ס וְלֹ֥א תוֹשִֽׁיעַ׃
3 לָ֣מָּה תַרְאֵ֤נִי אָ֨וֶן֙ וְעָמָ֣ל תַּבִּ֔יט וְשֹׁ֥ד וְחָמָ֖ס לְנֶגְדִּ֑י וַיְהִ֧י רִ֦יב וּמָדֹ֖ון יִשָּֽׂא׃
4 עַל־כֵּן֙ תָּפ֣וּג תּוֹרָ֔ה וְלֹֽא־יֵצֵ֥א לָנֶ֖צַח מִשְׁפָּ֑ט כִּ֤י רָשָׁע֙ מַכְתִּ֣יר אֶת־הַצַּדִּ֔יק עַל־כֵּ֛ן יֵצֵ֥א מִשְׁפָּ֖ט מְעֻקָּֽל׃
5 רְא֤וּ בַגּוֹיִם֙ וְֽהַבִּ֔יטוּ וְהִֽתַּמְּה֖וּ תְּמָ֑הוּ כִּי־פֹ֨עַל֙ פֹּעֵ֣ל בִּֽימֵיכֶ֔ם לֹ֥א תַאֲמִ֖ינוּ כִּ֥י יְסֻפָּֽר׃
6 כִּֽי־הִנְנִ֤י מֵקִים֙ אֶת־הַכַּשְׂדִּ֔ים הַגֹּ֖וי הַמַּ֣ר וְהַנִּמְהָ֑ר הַֽהוֹלֵךְ֙ לְמֶרְחֲבֵי־אֶ֔רֶץ לָרֶ֖שֶׁת מִשְׁכָּנֹ֥ות לֹּא־לֹֽו׃
7 אָיֹ֥ם וְנוֹרָ֖א ה֑וּא מִמֶּ֕נּוּ מִשְׁפָּטֹ֥ו וּשְׂאֵתֹ֖ו יֵצֵֽא׃
8 וְקַלּ֨וּ מִנְּמֵרִ֜ים סוּסָ֗יו וְחַדּוּ֙ מִזְּאֵ֣בֵי עֶ֔רֶב וּפָ֖שׁוּ פָּֽרָשָׁ֑יו וּפָֽרָשָׁיו֙ מֵרָחֹ֣וק יָבֹ֔אוּ יָעֻ֕פוּ כְּנֶ֖שֶׁר חָ֥שׁ לֶאֱכֹֽול׃
9 כֻּלֹּה֙ לְחָמָ֣ס יָבֹ֔וא מְגַמַּ֥ת פְּנֵיהֶ֖ם קָדִ֑ימָה וַיֶּאֱסֹ֥ף כַּחֹ֖ול שֶֽׁבִי׃
10 וְהוּא֙ בַּמְּלָכִ֣ים יִתְקַלָּ֔ס וְרֹזְנִ֖ים מִשְׂחָ֣ק לֹ֑ו הוּא לְכָל־מִבְצָ֣ר יִשְׂחָ֔ק וַיִּצְבֹּ֥ר עָפָ֖ר וַֽיִּלְכְּדָֽהּ׃
11 אָ֣ז חָלַ֥ף ר֛וּחַ וַֽיַּעֲבֹ֖ר וְאָשֵׁ֑ם ז֥וּ כֹחֹ֖ו לֵאלֹהֹֽו׃
12 הֲלֹ֧וא אַתָּ֣ה מִקֶּ֗דֶם יְהוָ֧ה אֱלֹהַ֛י קְדֹשִׁ֖י לֹ֣א נָמ֑וּת יְהוָה֙ לְמִשְׁפָּ֣ט שַׂמְתֹּ֔ו וְצ֖וּר לְהוֹכִ֥יחַ יְסַדְתֹּֽו׃
13 טְהֹ֤ור עֵינַ֨יִם֙ מֵרְאֹ֣ות רָ֔ע וְהַבִּ֥יט אֶל־עָמָ֖ל לֹ֣א תוּכָ֑ל לָ֤מָּה תַבִּיט֙ בֹּֽוגְדִ֔ים תַּחֲרִ֕ישׁ בְּבַלַּ֥ע רָשָׁ֖ע צַדִּ֥יק מִמֶּֽנּוּ׃
14 וַתַּעֲשֶׂ֥ה אָדָ֖ם כִּדְגֵ֣י הַיָּ֑ם כְּרֶ֖מֶשׂ לֹא־מֹשֵׁ֥ל בֹּֽו׃
15 כֻּלֹּה֙ בְּחַכָּ֣ה הֵֽעֲלָ֔ה יְגֹרֵ֣הוּ בְחֶרְמֹ֔ו וְיַאַסְפֵ֖הוּ בְּמִכְמַרְתֹּ֑ו עַל־כֵּ֖ן יִשְׂמַ֥ח וְיָגִֽיל׃
16 עַל־כֵּן֙ יְזַבֵּ֣חַ לְחֶרְמֹ֔ו וִֽיקַטֵּ֖ר לְמִכְמַרְתֹּ֑ו כִּ֤י בָהֵ֨מָּה֙ שָׁמֵ֣ן חֶלְקֹ֔ו וּמַאֲכָלֹ֖ו בְּרִאָֽה׃
17 הַ֥עַל כֵּ֖ן יָרִ֣יק חֶרְמֹ֑ו וְתָמִ֛יד לַהֲרֹ֥ג גּוֹיִ֖ם לֹ֥א יַחְמֹֽול׃ ס

Tradução e Comentário:

1-4)

1 הַמַּשָּׂא֙ אֲשֶׁ֣ר חָזָ֔ה חֲבַקּ֖וּק הַנָּבִֽיא׃
2 עַד־אָ֧נָה יְהוָ֛ה שִׁוַּ֖עְתִּי וְלֹ֣א תִשְׁמָ֑ע אֶזְעַ֥ק אֵלֶ֛יךָ חָמָ֖ס וְלֹ֥א תוֹשִֽׁיעַ׃
3 לָ֣מָּה תַרְאֵ֤נִי אָ֨וֶן֙ וְעָמָ֣ל תַּבִּ֔יט וְשֹׁ֥ד וְחָמָ֖ס לְנֶגְדִּ֑י וַיְהִ֧י רִ֦יב וּמָדֹ֖ון יִשָּֽׂא׃
4 עַל־כֵּן֙ תָּפ֣וּג תּוֹרָ֔ה וְלֹֽא־יֵצֵ֥א לָנֶ֖צַח מִשְׁפָּ֑ט כִּ֤י רָשָׁע֙ מַכְתִּ֣יר אֶת־הַצַּדִּ֔יק עַל־כֵּ֛ן יֵצֵ֥א מִשְׁפָּ֖ט מְעֻקָּֽל׃

Peso que enxergou Habacuc, o profeta.
Até quando, YHWH, gritarei por socorre e não escutarás? Gritarei a ti: Violência! e não salvarás? Porque me fazer ver a injustiça e contemplar o infortúnio? A devastação e a violência ocorrem diante de mim; a discussão e a contenda se levantam. Por isso enfraquece a lei e a justiça nunca sai, porque o ímpio fica ao derredor do justo e a justiça é torcida.

    A palavra que inicia o livro de Habacuque (חֲבַקּ֖וּק) é הַמַּשָּׂא֙ (hamaxxa'), cuja tradução mais literal é o peso, uma das palavras que no contexto do gênero literário profético indica uma profecia. Em seu uso específico no gênero profético o termo מַשָּׂא indica geralmente um juízo, um peso do Senhor. Também o profeta Habacuque recebeu esse peso, essa profecia mediante uma visão, como indica a palavra חָזָ֔ה (hazah). Nem todos os profetas são visionários, mas Habacuque, como indica o texto, está dentro dessa classe específica.

    O texto que temos em vista aqui é o capítulo 1, e dos vs. 1-4 não estamos diante da profecia propriamente, mas sim diante de uma oração do profeta. E essa oração não aparece de forma isolada no livro, mas junta com outras como em 1.12-17, 2.1, e no breve salmo que constitui todo o cap. 3; e assim como 1.5-11 é uma resposta à oração de 1.1-4, também 2.2-5 é no livro uma resposta à oração feita em 2.1, muito embora em 2.1 o conteúdo da oração não apareça propriamente, mas ao que tudo indica toda resposta se refere à queixa proferida em 1.12-17.

    Nos vs. 1.2-4 a oração/queixa do profeta é muito direta na exposição da sua angústia para com Deus. Sua queixa está em que ele grita por socorro, assim como grita a Deus violência, mas sem resposta . A não resposta de Deus está em que ele é exposto à injustiça e ao infortúnio, à devastação e ao litígio, lançado em meio à prosperidade ímpio que obsta o livre curso da torá (lei). Ao anunciar o litígio e a torá (תּוֹרָ֔ה) somos informados que o profeta não está se queixando de uma agressão vinda de fora, de algum país estrangeiro etc., mas sim de dentro, desde Judá. Somos informados com isso do caos e da situação de violência cavada pelos membros na nação judaica que se agridem mutuamente, violência que o profeta diz que YHWH o obriga a ver (תַרְאֵ֤נִי). O profeta se queixa da violência entre os seus, a contenda que se levanta, assim como do assédio que o justo sofre nas mãos do ímpio. Nesse estado de coisas, nesse ambiente deletério consumido pelo litígio e pela agressão mútua a lei nunca sai, e a justiça que sai vem deformada. Esses dados serão importantes para compreendermos o que se desenrolará nos vs. 5-11.  

5-11)

5 רְא֤וּ בַגּוֹיִם֙ וְֽהַבִּ֔יטוּ וְהִֽתַּמְּה֖וּ תְּמָ֑הוּ כִּי־פֹ֨עַל֙ פֹּעֵ֣ל בִּֽימֵיכֶ֔ם לֹ֥א תַאֲמִ֖ינוּ כִּ֥י יְסֻפָּֽר׃
6 כִּֽי־הִנְנִ֤י מֵקִים֙ אֶת־הַכַּשְׂדִּ֔ים הַגֹּ֖וי הַמַּ֣ר וְהַנִּמְהָ֑ר הַֽהוֹלֵךְ֙ לְמֶרְחֲבֵי־אֶ֔רֶץ לָרֶ֖שֶׁת מִשְׁכָּנֹ֥ות לֹּא־לֹֽו׃
7 אָיֹ֥ם וְנוֹרָ֖א ה֑וּא מִמֶּ֕נּוּ מִשְׁפָּטֹ֥ו וּשְׂאֵתֹ֖ו יֵצֵֽא׃
8 וְקַלּ֨וּ מִנְּמֵרִ֜ים סוּסָ֗יו וְחַדּוּ֙ מִזְּאֵ֣בֵי עֶ֔רֶב וּפָ֖שׁוּ פָּֽרָשָׁ֑יו וּפָֽרָשָׁיו֙ מֵרָחֹ֣וק יָבֹ֔אוּ יָעֻ֕פוּ כְּנֶ֖שֶׁר חָ֥שׁ לֶאֱכֹֽול׃
9 כֻּלֹּה֙ לְחָמָ֣ס יָבֹ֔וא מְגַמַּ֥ת פְּנֵיהֶ֖ם קָדִ֑ימָה וַיֶּאֱסֹ֥ף כַּחֹ֖ול שֶֽׁבִי׃
10 וְהוּא֙ בַּמְּלָכִ֣ים יִתְקַלָּ֔ס וְרֹזְנִ֖ים מִשְׂחָ֣ק לֹ֑ו הוּא לְכָל־מִבְצָ֣ר יִשְׂחָ֔ק וַיִּצְבֹּ֥ר עָפָ֖ר וַֽיִּלְכְּדָֽהּ׃
11 אָ֣ז חָלַ֥ף ר֛וּחַ וַֽיַּעֲבֹ֖ר וְאָשֵׁ֑ם ז֥וּ כֹחֹ֖ו לֵאלֹהֹֽו׃

    Vede entre as nações e olhai; olhai com verdadeiro espanto uns para os outros, pois realizo em vossos dias uma obra entre vocês que não acreditarão quando ela for contada. Porque eis que eu levanto os caldeus, nação amarga, que apressadamente anda pela largura da terra para se apossar de casas que não são deles. Nação pavorosa e temível; eles cria seu próprio direito e dignidade. Seus cavalos são mais rápidos que os leopardos, seus cavalos mais ferozes que os lobos do entardecer; seus cavaleiros chegam de longe, voando como a águia que se apressa para abater a presa. Todos vem para provocar violência e destruição e reúnem como areia seus cativos. Escarnece de reis, zomba de seus dignitários e se ri de toda a fortificação, amontoando terra e passando sobre ela. Então passam como o vento e seguem; tornam-se culpados aqueles que fazem da sua força seu deus.

    Os vs. de 5-11 são constituídos pela resposta divina à queixa do profeta. Nela está toda a terrível resposta de Deus à situação degradante de Judá. A revelação da escritura deixa patente algo importante aqui: o Senhor não é indiferente à injustiça, ou à degradação que os homens submetem uns aos outros. Aqui por essa profecia já nos distanciamos muito daquela mentalidade deísta que concebe a Deus como um relojoeiro, o qual construiu todo universo, deu nele corda e agora o deixa funcionar sem intervir em nada, deixando as coisas se desdobrarem livres até o dia do juízo final; também o Senhor não é um deus tipo epicurista, alguém indiferente ao assuntos humanos. Ao contrário disso, Deus, YHWH, é alguém que intervém diretamente nos assuntos humanos e no fluxo dos acontecimentos que se desenrolam entre o seu povo.

    Deus anuncia ao profeta e pede: Prestem atenção, e continua: Olhem com espanto uns para os outros. YHWH promete nos versículos listados realizar uma obra inacreditável. Etiquetar a obra como inacreditável é importante para os propósitos do texto, incluindo para sinalizar um evento desse tipo diante do clima de opinião vigente na época do profeta Habacuque, profeta cujo ministério se desenrola lá pela primeira metade do séc. VI a.C. É bom lembrarmos que Habacuque atua paralelamente à segunda metade do ministério do profeta Jeremias também, e se formos avaliar os espectadores da profecia de Habacuque pelas reações violentas à profecia de Jeremias (pois os espectadores era rigorosamente os mesmos), veremos que qualificar a sua profecia como inacreditável faz todo o sentido levando em consideração a deformação moral e a insensibilidade espiritual dos ouvintes à presença divina.

    O profeta segue dizendo em 6.ss que YHWH levantará (מֵקִים֙) os caldeus. Levantar (מֵקִים֙ de קוּם qûm = levantar) é, no Antigo Testamento, quando usado para se referir ao levantamento de pessoas com poder, uma concessão ativa do poder de agir. Deus levanta reis, profetas, juízes e os põe em posição de eminência para atuar segundo aquilo que propôs em si mesmo - e não importa se o atuar seja necessariamente bom ou mal, e sim o que será colhido dessa atuação. Dessa maneira, efetivando na história o desígnio que elaborou segundo a sua providência (προνοια), Deus agirá em relação à situação, e, neste caso em específico, estabelecerá um juízo. É impossível não nos lembrarmos da profecia de Deuteronômio 28.49-58, onde uma das maldições da desobediência seria a invasão estrangeira e todos os males decorrentes dessa invasão. Aqui Deus mostra a fidelidade à sua Palavra, e a história confirmaria que a ameaça à desobediência não era vazia.

    O profeta qualifica esse povo terrível de uma forma que ilustra o abandono divino do povo de Judá a esses poderes anti-divinos. YHWH qualifica os caldeus (כַּשְׂדִּים = kaxdîm) como uma nação amarga (גֹּ֖וי הַמַּ֣ר) que vai anexando territórios (apossando casas que não são suas) apressadamente, o que indica sua violência. São um povo pavoroso (אָיֹ֥ם) e terrível (נוֹרָ֖א). Após esses qualificativos a profecia acrescenta que a partir dela (מִמֶּ֕נּוּ) o seu direito e a sua dignidade saem (יֵצֵֽא). O que a profecia quer denotar é que, por assim dizer, a matéria da qual a justiça dos caldeus é feita são os próprios caldeus. Eles elaboram seu próprio conceito de justiça a partir da sua própria visão de mundo. Aqui estão dois mundos distintos, pois a justiça e o direito proclamados na escritura tem sua origem não no próprio judeu, mas em Deus que ao povo concede a sua lei. Se Deus é a medida da justiça para o judeu, para o caldeu sua medida de justiça é a do homem mais poderoso, e é difícil não entendemos o que seria um tipo de justiça originada de um povo que pilha as nações, que cultua sua própria força (como veremos no versículo 11) e que é terrível e amargo.

    Dos vs. 8-10 é feita uma exposição de violência da pilhagem caldaica contra as nações. Seus cavalos e cavaleiros violentos são analogados a leopardos e lobos que caçam a presa como uma águia, reunindo como um monte seus cativos. Em sua violência eles escarnecem de reis e dos dignitários, tamanho o poder de destruição. Também nos informa a profecia que eles amontoam a terra (עָפָ֖ר) e captura (וַֽיִּלְכְּדָֽהּ), indicando aqui uma técnica de guerra da qual os babilônios (caldeus) foram precursores, ou seja, a técnica de amontoar terra em frente às muralhas das cidades fortificadas para permitir a passagem das tropas e o seu assalto. Em toda a sua capacidade superior de guerra existe uma deformação da consciência caldaica, ou ao menos do poder soberano que os rege. E no vs. 11 Deus diz no oráculo que: torna-se culpado (וְאָשֵׁ֑ם) aquele cujo vigor é Deus para ele (לֵאלֹהֹֽו). A noção de culpa (אשם) é importante para a boa interpretação do versículo, uma vez que dificilmente seria culpado aquele cujo vigor é "para o Deus dele", imponto a nós a interpretação de que o vigor é para ele Deus.

    Aqui vemos o vaticínio divino contra uma Judá que foi abandonado aos poderes anti-divinos, poderes cujo critério de justiça são eles mesmos, ou seja, Judá foi abandonada à arbitrariedade daqueles que unem poder à ausência do temor de Deus, e cujo critério de validade do bem e do mal é a força, não e lei divina, e esse é castigo da desobediência e revolta contra Deus daqueles que já de ante-mão decidiram por abandonar Deus.    

12-17)

12 הֲלֹ֧וא אַתָּ֣ה מִקֶּ֗דֶם יְהוָ֧ה אֱלֹהַ֛י קְדֹשִׁ֖י לֹ֣א נָמ֑וּת יְהוָה֙ לְמִשְׁפָּ֣ט שַׂמְתֹּ֔ו וְצ֖וּר לְהוֹכִ֥יחַ יְסַדְתֹּֽו׃
13 טְהֹ֤ור עֵינַ֨יִם֙ מֵרְאֹ֣ות רָ֔ע וְהַבִּ֥יט אֶל־עָמָ֖ל לֹ֣א תוּכָ֑ל לָ֤מָּה תַבִּיט֙ בֹּֽוגְדִ֔ים תַּחֲרִ֕ישׁ בְּבַלַּ֥ע רָשָׁ֖ע צַדִּ֥יק מִמֶּֽנּוּ׃
14 וַתַּעֲשֶׂ֥ה אָדָ֖ם כִּדְגֵ֣י הַיָּ֑ם כְּרֶ֖מֶשׂ לֹא־מֹשֵׁ֥ל בֹּֽו׃
15 כֻּלֹּה֙ בְּחַכָּ֣ה הֵֽעֲלָ֔ה יְגֹרֵ֣הוּ בְחֶרְמֹ֔ו וְיַאַסְפֵ֖הוּ בְּמִכְמַרְתֹּ֑ו עַל־כֵּ֖ן יִשְׂמַ֥ח וְיָגִֽיל׃
16 עַל־כֵּן֙ יְזַבֵּ֣חַ לְחֶרְמֹ֔ו וִֽיקַטֵּ֖ר לְמִכְמַרְתֹּ֑ו כִּ֤י בָהֵ֨מָּה֙ שָׁמֵ֣ן חֶלְקֹ֔ו וּמַאֲכָלֹ֖ו בְּרִאָֽה׃
17 הַ֥עַל כֵּ֖ן יָרִ֣יק חֶרְמֹ֑ו וְתָמִ֛יד לַהֲרֹ֥ג גּוֹיִ֖ם לֹ֥א יַחְמֹֽול׃ ס

    Acaso tú não és deste toda eternidade, YHWH, meu Deus, meu Santo? Não morreremos! YHWH, para julgamento puseste este povo; para repreender, óh Rocha, tú o fundaste. O Senhor é tão puro de olhos que não podes contemplar o mal e o infortúnio. Então por que olhas os que procedem perversamente e silencias, ou quando o ímpio devora aquele que é mais justo do que ele? Por que fazes do homem como os peixes do mar, como os répteis que não tem sobre si um governo? Ele puxa a presa com o anzol e a colhe com a rede, e por isso se alegra e se rejubila. Por isso ele sacrifica para a sua rede e queima incenso para a seu varredoura, porque por ela fez crescer a sua porção e cevou a sua comida. Acaso continuará esvaziando a sua rede, matando povos sem piedade?

    Após a queixa e resposta o profeta se dirige em oração novamente a Deus. A oração inicia com uma adoração a YHWH em forma de pergunta, se referindo a Deus como um (אַתָּ֣ה), um alguém, indicando a relação pessoal do profeta com Deus, qualificando-o também como o meu Deus (אֱלֹהַ֛י), como meu Santo (קְדֹשִׁ֖י), perguntando se Ele não é Aquele desde sempre (מִקֶּ֗דֶם), desde os tempos antigos, ou desde o princípio (cf. Pv 8.23).

    Após essa mescla de oração personal e doxologia o profeta ainda faz uma declaração de confiança àquele que nomeia como meu Deus (אֱלֹהַ֛י): não morreremos! (לֹ֣א נָמ֑וּת). A declaração confiante pode possuir dois níveis de sentido, um que desliza sobre a superfície da declaração e outro que subjaz oculto sob ela. No primeiro sentido o profeta pode estar declarando sua confiança em que, mesmo diante da catástrofe, Deus não permitiria a destruição daqueles que n'Ele confiam; no segundo sentido pode ser vislumbrado algo mais profundo, ou seja, que o profeta confiava que o fiéis não seriam destruídos - possivelmente no sentido da ressurreição dos mortos? De qualquer maneira a declaração cai no texto sinalizando expressa confiança do profeta na fidelidade de Deus.

    Ao tomar nota do desígnio providencial de Deus, o profeta segue com a compreensão completa do porquê Deus fará o que fará, o que ilumina toda a profecia que vai dos vs. 5-11. Habacuque reconhece que YHWH pôs os caldeus para juízo. Há evidente resposta à aflição do profeta exposta nos vs. 2-5; contudo a resposta divina não causa alívio, mas empurra o profeta para uma espiral de angústia, de maneira que ele sente certo pavor da resposta para sua oração. Na resposta, o mal desencadeado por Deus é o remédio para o mal, ambos se chocando em Judá, como que sinalizando que Deus deixou seu povo abandonado a mercê do mal que escolheu para si, ao poder que está em estágio avançado daquele tipo de degradação que Judá escolheu, e que parece ser o destino a que levianamente caminha. É por isso que o profeta reclama que Judá caiu nas mãos daqueles que são piores do que a própria Judá.

    O juízo de Deus é histórico, se dá no curso dos acontecimentos, e espanta o profeta. Há certo desconcerto da parte de Habacuque que, ao que parece, não consegue digerir a resposta divina, ainda que declare ser YHWH seu Deus e seu Santo. É interessante a fé e a confiança expressas pelo profeta, mesmo ao lado do desconforto ocasionado durante a assimilação do desígnio divino. Mas qual é sua atitude diante do estranhamento? Habacuque ora, procurar entender em Deus, subir na torre de vigia, esperando a Sua resposta, mesmo que não possua em vista alguma. O profeta supera o hiato entre seu estado de espírito e a providência divina, expressa em momentânea dúvida, pela fé. Não se trata de dúvida cética, destrutiva, alienante, mas sim da que parece resultar do contraste entre seu entendimento atual e o desígnio de Deus. Não é o estado perfeito de coisas, evidentemente, mas o fosso entre a mente de Habacuque e a divina é superado pela atitude confiante do no seu Deus e no seu Santo do qual provém o desígnio por hora ininteligível.

    A dificuldade do profeta está no modo da disposição providencial de Deus que, ao seu ver, decidiu deixar o homem como os peixes do mar (כִּדְגֵ֣י הַיָּ֑ם), como o réptil (כְּרֶ֖מֶשׂ) que não tem quem os governe entre eles (לֹא־מֹשֵׁ֥ל בֹּֽו), que não tem quem exerça o maxal (מָשַׁל), sugerindo que os homens estão jogados heideggerianamente no mundo, como se não tivessem sentido e nem propósito, sem uma liderança para governar e cuidar, e ainda a mercê do joguete de poderes imperiais contra os quais nada podem fazer. Habacuque não fala apenas da situação de Judá, sujeita àqueles que são piores do que ela própria, mas da história humana no geral. Dessa forma o homem (אָדָ֖ם), ou melhor, a humanidade, parece ser esvaziada de sentido vagando como pó na ventania, sem poder para resistir aquele que a leva. Eles são uma presa dos que fazem da força um deus, sendo tão sujeitos quanto um peixe pego em uma rede, impotente quanto um animal fisgado pelo anzol, caindo nas malhas não do bom e do justo, mas dos que oferecem sacrifício à sua força e queimam incenso ao seu instrumento de guerra com o qual conquistou poder e domínio. O questionamento de Habacuque não só gira em torno do porquê dos maus triunfarem, mas sim o porquê dos piores dentre eles alçarem domínio - fazendo com que alcancem poder sobre os que são mais justos do que eles (embora não verdadeiramente justos, como é o caso de Judá). Aqui Habacuque pergunta a YHWH: Acaso continuará esvaziando a sua rede, matando povos sem piedade?

    Toda esse questionamento se dá na ciência de que tal poderio perverso foi arremetido contra Judá como instrumento de disciplina. Mas sob ele está um questionamento ainda maior, que seria: Como um Deus puro de olhos (טְהֹ֤ור עֵינַ֨יִם֙) pode ver aqueles que procedem perfidamente e silencia? Quando Deus porá um freio à campanha dos ímpios? Acaso o mundo ficará para sempre a mercê das potências das trevas? Como veremos no próximo comentário, Deus não oferece de pronto uma resposta como buscou oferecer Leibniz com a sua Teodiceia, tentando justificar a realidade do mal em um mundo criado por um Deus bom, e Deus não ofereceu um recurso teórico para que por ele a mente de Habacuque pudesse ser apaziguada na tomada de uma ciência a respeito dos caminhos de Deus, antes ofereceu um princípio prático pelo qual o justo pude superar o conflito constituído pela presença do mal em um mundo criado por um Deus bom: Deus pediu e confiança, que são princípios pelos quais o justo viverá.