quinta-feira, 25 de março de 2021

Agostinho e as Considerações a Respeito do Mal e da Constituição do Ser no livro "A Natureza do Bem".

No A Natureza do Bem1 Agostinho tem uma explicação simples para a questão do mal: o mal é a corrosão do bem, pois o bem existe em si mesmo, sendo o bem igual ao ser2; aquilo que conduz o que é ao nada, ou o que corrói a substância lhe retirando o ser, é o mal3. Agostinho entende que os entes são constituídos por três categorias: modo, beleza e ordem4. Isso é assim de tal modo que quanto mais modo, beleza e ordem, melhor uma coisa será; do mesmo modo, sendo o mal a corrupção, quanto mais é retirado de um ente o modo, a beleza e a ordem que lhe convém, mais mal tal ente será, o que implica que o ser, mesmo com o mínimo de modo, beleza e ordem ainda portará o bem, porque portará ser, mesmo que em grau ínfimo, já que se for retirado todo modo, beleza e ordem de um ente ele nada será, pois perderá todo o ser. Assim, mesmo que extremamente degradado, um ente portará o bem, pois, como afirma Agostinho, tal ente portará ser, sendo o ser conversível em bem5.

Essa é uma consideração puramente ontológica, sendo também, no fim das contas, a tese agostiniana contra a teologia dos maniqueus6.

Mas o mal propriamente dito de um ente é definido a partir da seguinte consideração: aquilo que torna possível o juízo de que tal coisa é má se dá na medida em que o ser de um ente é menor da que aquilo que deveria ser7. Assim, o juízo de que um ente tem mais perfeição do que outro ente, ou é melhor, se dá na constatação de que o melhor ente sempre será dotado de melhor e maior modo, beleza e ordem, muito embora a gradação no ser não implica que bens ínfimos sejam maus em relação aos bens maiores, mas sim que seja um bem ao seu modo, ainda que hajam bens menores e bens mais excelentes - tal como os bens espirituais são mais excelentes que os bens corpóreos8.     Contudo, dizemos que um ente padece de mal quando tem corrompido o seu modo, beleza e ordem segundo aquilo que convém à sua medida, ou seja, que tem menos modo (ou mais do que convém, segundo a consideração a respeito da imoderação, o que cabe especificamente a essa categoria9), beleza e de ordem segundo aquilo que lhe convém10. Assim é possível ver em Agostinho duas considerações ontológicas: 1) uma relativa aos graus de perfeição dos entes; 2) e outra relativa aos graus de degradação dos entes. Essa segunda consideração pode ser dividia em outras duas, uma puramente ontológica, e outra não ontológica, mas moral, a saber: 2.a) os graus de corrupção natural; 2.b) os graus de corrupção moral.

A consideração dos graus de corrupção natural se dá propriamente em relação aos entes criados, e aqui podemos considerar que Agostinho trata mais especificamente dos entes dotados de matéria (pois para os seres espirituais há uma consideração própria), já que tais entes dotados de temporalidade e matéria, como vieram do nada estão sujeitos a irem para o nada11, e nisso nada há que implique sansão moral, mas assim é porque a natureza criada, tal como veio a ser, deixa também de ser, tal como uma árvore que tem seu ciclo natural indo do vir a ser ao deixar de ser. Mas pelo homem ser tanto corpóreo quanto espiritual, há a necessidade de uma consideração que sintetize aquilo que é próprio à natureza corpórea como aquilo que é próprio à natureza espiritual, como podemos deduzir deste tratado, assim como de outros tratados agostinianos12.

Já a consideração dos graus de corrupção moral (e aqui podemos considerar mais especificamente os seres espirituais/morais) implica em considerar uma sansão moral, pois o sanção moral se dá porque tal ente moral, dotado de liberdade, voluntariamente deixa de ser o que deveria ser, o que implica necessariamente em culpa, assim como em pena devido à culpa13. E aqui podemos sistematizar a questão afirmando que tal ente moral está sujeito a duplo mal e dupla pena, sendo um a pena de mal intrínseco e outro uma pena de mal extrínseco: 1) sendo a pena de mal intrínseco o voluntariamente deixar de ser o que deveria ser, o que implica em degradação da vontade e contração de culpa14; 2) e a pena de mal extrínseco o mal de padecer a pena aplicada por outro (por Deus ou pelo homem) devida à culpa. E assim a pena de mal extrínseco pode ser de dois tipos: 1) A pena de mal extrínseco corretiva que visa a restauração da ordem do ser moral15; 2) a pena de mal extrínseco punitiva que visa retribuir o ato moral desordenado por meio de um justo juízo16. ______________________________________________________ 1] AGOSTINHO - A Natureza do Bem. Patrística 40. ed. Paulus. 2] Ibid. 1. p.21 3] Ibid. 4. p.24 4] Ibid. 3. p.23,24 5] Idem. 6] Ibid. 2. p.22 7] Ibid. 17. p.31 8] Ibid. 13 - 17. p.29-32 9] Ibid. 21. p.35 10] Aqui segue uma distinção entre a qualidade do ser e o tipo de corrupção do modo, beleza e ordem no que diz respeito aos seres de ordem inferior, e podemos aqui incluir seres como os animais não racionais, as plantas, os minerais e os puramente corpóreos em geral (Ibid. 5. p.23,24; 8. p.26, 27; 10. p.28; 17. p.31), e a qualidade do ser e o tipo de corrupção do modo, beleza e ordem típicos dos seres epirituais/morais (7. p.26; 9. p.27), muito embora convenha entender que a corrupção moral não causa um deslocamento da ordem em sentido estrito - pois não há deslocamento de espécie -, sendo a sua correção uma adequação do ente espiritual àquilo que convém à sua própria ordem.
11] Ibid. 10. p.28 12] Ibid. 7. p. 26. Entendamos que há a consideração para Agostinho de que a incorruptibilidade corpórea e espiritual no homem são interligadas, embora sejam de tipos distintos. Não obstante a isso, Agostinho não tem o entendimento comum à teologia moderna - seja ela encontrada em alas da teologia católica romana ou protestante - de que mesmo que sem pecado, o homem morreria em função de uma necessidade natural. Embora constituído também de corpo, para Agostinho a mortalidade física no homem tem uma causa única, sendo essa a pena devida ao pecado (cf. AGOSTINHO - O Castigo e o Perdão dos Pecados. Patrística 40. ed. Paulus. 2. p.80). 13] AGOSTINHO - A Natureza do Bem. Patrística 40. ed. Paulus. 7. p.26 14] Idem. 15] Ibid. 9. 27 16] Ibid. 33. p.44; 38. p.47; 40. p.49

terça-feira, 9 de março de 2021

O Direito, a Intuição e a Abstração

Uma das desvantagens que o direito tem frente à opinião pública é que o direito tende a ser contra-intuitivo, ao contrário da opinião pública, que quase sempre é fruto de uma reação fundada na percepção imediata dos fatos. Se por um lado essa reação imediata tem o seu lugar próprio em certas situações que demandam uma resposta imediata, a verdade é que não raro a opinião pública é insuficiente para lidar com assuntos mais diferenciados, cujo significado não é tão intuitivo assim, exigindo um longo processo de abstração. O direito, por ser fruto de um longo processo de reflexão, deliberação e reflexão sobre as deliberações, é um desses assuntos cujo sentido escapa à capacidade de juízo da opinião do vulgo.

E aqui oponho a ideologia intuicionista à teoria da abstração, a percepção imediata ao pensamento diferenciado. Esclarecer essa oposição é necessário em função do clima de opinião reinante nesses tempos confusos, pois esses tendem a provocar várias torções, algo ao qual não está sujeito o pensamento diferenciado no que tange a assuntos mais complexos, pois a sua verdade é somente acessível à mente cultivada. Há uma barbarização profunda no que diz respeito aos bens culturais diferenciados, incluindo aí o direito, pois o direito público está em disputa, sendo contestado por fanáticos e entusiasmados de vários matizes políticos.

A opinião publica, ou o clima de opinião, desse modo, não deveria ser concebido como o juiz supremo da verdade, nem o índice de aferição da verdade, mas sim apenas como o índice de compreensão do povo no que diz respeito a determinado assunto. Não raro o povo pode, em seu acesso de fúria, dirigir seu descontentamento a um alvo errado, principalmente quando enfeitiçado por uma espécie de narrativa que, tal como uma cenoura de burro, tende guiar o imaginário da população, ou de uma parte considerável dela. Tal enfeitiçamento é provocado, invariavelmente, por atores públicos, e na maior parte das vezes pelos intelectuais públicos - papel que nos últimos anos tem sido desempenhados por jornalistas, influenciadores digitais, artistas etc.

No mais das vezes, essa situação sugere que o intelectual público serve como um intérprete dos sentimentos que a massa desorientada nem consegue nomear muito bem. E o descontentamento sempre será uma matéria fértil e abundante para o trabalho do intelectual público. Dando certa interpretação verossímil para o descontentamento geral, o intelectual público concede ao povo ou a um grupo uma causa e um sentido pelo qual se orientar. Alguns, subindo acima das suas competências, buscam fornecer uma espécie de mito fundador pelo qual guiar a massa.

Podemos aqui seguir a mesa orientação de Aristóteles e enxergar a relação entre o intelectual público e a massa como a relação entre a potência e o ato. Nesse sentido os sentimentos imediatos, ainda confusos e sem uma orientação definida, mesmo que causados por fatos concretos - como a perda, frustração, empobrecimento e todos os males, sejam eles públicos ou privados -, seriam como que a matéria, sendo tais sentimentos conduzidos por uma forma argumentativa que molda e direciona tais sentimentos a um certo fim, dando à percepção dos males um certo sentido. O intelectual público obviamente habita o plano do pensamento diferenciado, enquanto que grande parte da população, que tem apenas que sobreviver e se ocupar de seus afazeres diários, habita a esfera da reação imediata fundada em certa intuição ou percepção imediata das coisas, não elevando muitos desses assuntos à esfera da diferenciação.

O grande problema disso está fundado na moral do intelectual público, que pode manipular a opinião segundo fins escusos, principalmente em relação àqueles assuntos que fogem à competência de muitos, e não raro dos intelectuais públicos. O caso do direito é, como dissemos antes, um desses casos, pois poucas pessoas tem em mente a importância do que seria o devido processo legal, ou qual o mecanismo de um habeas corpus, e qual a importância concreta de tais coisas na vida publica ou privada. O recente caso envolvendo a suspeição do ex juiz Sérgio Moro em relação ao caso de Lula exemplifica de forma cristalina esse caso. O que podemos dizer é que é quase impossível achar que a população no geral tenha qualquer informação substancial quanto as questões relacionadas às regras de competência, ou quão grave é um juiz desconsiderar os elementos da acusação - no caso os cinco contratos -, e mesmo assim condenar - o que nesse caso significa que, ao desconsiderar os cinco contratos como a fonte da propina, o juiz deixa de ser o juiz natural da causa.

Contudo, o caso seria mais simples de considerar se o próprio Lula, para bem ou para mal, não tivesse evidente importância e poder político. As paixões de veneração irracional ou de ódio insano gravitam em torno dele, e por carregar em si a significação de uma corrente política que se manteve por 13 anos no poder, não raro nas considerações sobre Lula paixões políticas são misturadas indevidamente com direito, o que, por fim, acaba por destruir a reta consideração do direito, que ainda que tenha sua função a cumprir dentro da comunidade política (no sentido de pólis), é indiferente a questões eleitoreiras, o que é agravado quando tais questões eleitoreiras carregam certo significado apocalíptico, algo que vem ocorrendo mais drasticamente desde 2013. A questão é que todo esse ódio e voragem insana da política é algo que dita o tom das considerações públicas, o que gera ocasião para o surgimento de certos profetas que passam a guiar o ódio das massas, criando esse cenário dantesco em que vivemos.

Mas antes que alguém diga que estou aqui para defender pessoa x ou y, e mesmo o Lula, cabe dizer que esse ódio político tem no Brasil moderno, como uma de suas causas, o próprio modo de agir político do ex presidente Lula. Também a narrativa política petista e as alianças ideológicas travadas pelo partido ao longo dos anos de governo incitou a justa indignação de muitos. Levando isso em consideração, ao direito ficou a tarefa não grata de agir confirme os seus fins. A questão é lembrar que o direito não visa "retirar" a culpa de ninguém, e que absolver alguém de uma acusação não implica que o réu seja intrinsicamente inocente; o que absolver alguém significa é que, segundo aquilo que é possível ao direito no momento, não foi possível provar a culpa - o que é diferente de dizer que alguém seja intrinsicamente sem culpa. Cabe à parte que apresenta a denúncia provar a culpa do réu dentro daquilo que é possível. Um tribunal não é o trono do juízo, e nem tem sobre si o atributo da onisciência.

Informações como essa acima é algo que escapa à cultura comum da maioria da população, e isso é assim porque a legislação, ou o direito, não são coisas intuitivas cujo conceito é de fácil acesso, como o é o conceito do calor a que chega a alguém que tem a pele abrasado pelo Sol a pino. A opinião pública é guiada tanto pelo sentimento imediato da insatisfação - e pelo juízo afetado por um ardor desordenante -, quando pela narrativa verossímil. Não raro tal narrativa será tão mais palatável quanto mais exploração houver ao ardor, à ira e às paixões baixas em geral, pois essas conferem àqueles que delas são afetados de certo sentimento de vivacidade. Ao contrários dessas coisas, o direito, mesmo que contado com certas falhas em sua realidade concreta nas legislações específicas de cada povo, é fruto do que de mais alto há no espírito humano, e essa esfera só é alcançada por um longo processo de abstração.