sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

O Evangelho, os Pastores e os Proscritos

  Em Lc 2.8-20 temos um relato que pode ser bem compreendido se o lermos à luz do pano de fundo cultural do Israel do século I d.C. O texto fala da visitação de anjos, ou de uma multidão da milícia celestial a simples pastores que guardavam um rebanho nas proximidades da cidade de Belém. Juntando esse relato com o relato de Mateus sobre a visita dos magos podemos formar uma imagem a respeito da, digamos, moral da revelação divina.

Segundo Joaquim Jeremias (in JEREMIAS, J. Teologia do Novo Testamento. Hagnos, 2011, p. 177), erudito importante do Novo Testamento, o termo pecador, frequentemente na boca dos adversários de Jesus (in Mt 11.19 par Lc 7.34), não indica apenas transgressores públicos, mas também aqueles detentores de certas profissões ou atividades tidas como proscritas e que, segundo se pensava, poderiam arrastar para a desonestidade. Assim, jogadores de dados, usurários, coletores de impostos, publicanos e pastores, cuja atividade era considerada como proscrita, era também atividade de pecadores.

O fato de pastores de rebanho terem recebido uma revelação divina a respeito do nascimento de Jesus mediante anjos mostra muito sobre o significado histórico do ministério de Jesus. Assim, essa revelação tem teor semelhante à acusação frequente que se fazia a Jesus de ser amigo de publicanos e prostitutas (Mt 21.31), e mesmo lança uma luz claríssima sobre a afirmação de Jesus de que publicanos e prostitutas antecedem na entrada do Reino de Deus os sumos sacerdotes e anciãos do povo (Mt 21.31b) – e isso porque pelo fato de serem proscritos tenham maior consciência de sua necessidade de redenção.

Os Magos e a Adoração dos Gentios

    Em Mt 2.1-12 temos a passagem enigmática que fala a respeito da visita de alguns magos do Oriente. A passagem é, assim, enigmática porque ela discorre sobre figuras que nunca tiveram relevância positiva segundo a fé do Antigo Testamento. Ao contrário disso, a começar pela corte de Faraó (Êx 7.10-12ss), passando pela corte da Babilônia (Dn 2.27), a opinião geral do Antigo Testamento é negativa sobre a classe. Além do mais, ao que tudo indica esses magos eram estudiosos dos astros, o que era muito comum no mundo pagão antigo.

Mas que relevância isso tem para nós? Muita, a começar pelo fato de que se tratam de gentios e não de israelitas, e assim são estes, simbolizando toda a gentilidade (os não israelitas), aqueles que primeiro adoram a Jesus. Assim, segundo o texto bíblico, uma estrela errante (uma estrela não fixa, o que é muito significativo pois a cosmologia pagã indicava que os astros eternos, como deuses, eram as estrelas fixas) os guiou até Belém. Assim esses pagãos não representam bem o paganismo, já que se tinha entre eles que cometas eram sinais de eventos incertos, e movidos por uma estrela movente eles acham o próprio Deus. Dessa forma esses manifestam certa fé.

Não sabemos quem são esses magos, se três como indica a tradição antiga da igreja ou mais, e provavelmente nunca saberemos disso. Mas importa perceber que mesmo no Evangelho mais judaico de todos, a salvação está para além dos judeus, e já começa a distribuir seus dons a começar pelos gentios, que são os primeiros a presentear Jesus com ouro (realeza), incenso (divindade) e mirra (salvação) (Lc 2.11), reconhecendo a sua glória, sendo também orientados por Deus a dar execução ao plano salvífico quando foram advertidos a não avisar Herodes sobre a localização do Senhor (Lc 2.12).

A Epifania do Senhor

    O dia 6 de Janeiro era tipo pela igreja antiga como o dia em que se comemorava a manifestação pública (Epifania) do Senhor, relacionando a essa manifestação pública o seu batismo pelas mãos de João Batista. E para esclarecermos a questão basta lembrar que por epifania se entende uma manifestação atribuída a poderes divinos. Toda epifania, a exemplo da Sarça Ardente (Êx 3.1-4.17), do fogo no cume do Sinai (Êx 19), a queima do holocausto provocado pelo fogo divino pela oração de Salomão (2Cr 7) e de Elias (1Rs 18.36-38) são manifestações públicas da glória divina.

Mas o batismo de Jesus tem certas peculiaridades como uma epifania, pois Jesus é certamente o nosso Deus Unigênito (Jo 1.18) e Bendito (Rm 9.4). Mas a própria presença de Jesus não é o que caracteriza unilateralmente o batismo de Jesus. Como afirma a Escritura uma voz do céu anunciou a Jesus como Filho (Mt 3.17; Mc 1.11; Lc 3.22b); além disso também foi visto o Espírito (Mt 3.16), talvez visto apenas por João Batista (cf. Mc 1.10 – já que ειδεν é singular e aponta para um ver realizado por uma pessoa, e assim também parece concordar o testemunho da escola joanina em Jo 1.32-34, onde João testemunha pessoalmente do que viu).

Essa Epifania é um dos maiores testemunhos a respeito do conteúdo da fé cristã que confessa ser Deus trino, pois ali estão Pai, Filho e Espírito em um mesmo ato. Além disso esse evento nos remete à crença antiga a respeito do batismo de Cristo como configurando o sentido de todo batismo cristão, pois ao ser batizado Cristo batiza o próprio batismo, conferindo virtude ao ato. Assim se compreendia que a recepção do Espírito estava ligada ao batismo (At 2.38; Jo 3.5), e assim a recepção da nova vida. Também entendemos que o batismo de Cristo é o batismo em sua morte pelo qual morremos com ele para vivermos em Deus (Cl 2.12; par. Gl 2.19,20).

    Mas nada disso é algo sem a fé pela qual recebemos tudo a vida do Senhor e seu Espírito (Ef 1.13), já que a fé tem tudo o que é necessário para a nossa salvação.

O Caminho do Emanuel

  O livro em que pela primeira vez ouvimos a profecia a respeito do Emanuel (עִמָּנוּאֵל) é o livro de Isaías em 7.14. O contexto da profecia era a guerra sírio-efraimita, onde os reinos da Síria e do Israel do Norte se uniram contra o Reino de Judá, ou o Reino do Sul. Essa passagem pode ser melhor compreendida a partir do quadro geral do momento. Nessa época, início do séc. VIII a.C., reinava Acaz (7.1), e a notícia de que o exército sírio-efraimita foi congregado contra seu reino agitou seu coração e o coração do povo como se agitam as árvores do bosque com o vento.

Evidente momento de tentação contra o Reino do Sul, também a situação é iluminadora em função da postura exigida por Deus através do profeta ao rei. Assim se diz para que o rei não temesse ou desanimasse (7.4), pois a história trataria de pulverizar seus inimigos (7.7-9); assim Deus exige uma fé sem a qual o rei não se manteria de pé (7.9) Mas o rei reage com ceticismo (7.11-13), então Deus anuncia a vinda do Emanuel nascido de uma “mulher jovem” ( ou virgem). Essa profecia diz respeito, em primeiro plano – não levando em consideração agora a profecia apontando para Cristo propriamente -, ao rei Ezequias, rei que figura entre os três mais piedosos reis do Antigo Testamento ao lado de Davi e Josias.

Mas qual seria o diferencial de Ezequias que o distinguiu de Acaz? A fé. O ceticismo de Acaz – e do povo – o levou a confiar na guerra (8.6). Nesse mesmo contexto da descrença de Acaz Deus falou a Isaías a não temer o que esse povo teme (8.12); Assim, esse povo tropeçaria em Deus por sua descrença (8.14). E levando em consideração que essa guerra estava situada dentro de uma ameaça maior, a ameaça da Assíria contra a qual Síria e Efraim queriam se fortalecer tomando também o reino de Judá, vemos que Deus frustrou o plano de todos os reinos inimigos de Judá. Em Is 37 vemos que Deus desmontou o exército da Assíria com sua glória (10.17), não com mãos humanas, ou com a violência da guerra.

Mas o que isso tem a ver com o nosso Emanuel, o nosso Jesus Cristo, Deus conosco? Essa passagem ilustra bem qual foi o tipo de vitória alcançada por Cristo, vitória atingida por aquele caminho sobremodo excelente (1Co 13). Assim Jesus, o nosso Deus Conosco, nos mostra como Deus decidiu vencer, ou seja, não com poder, mas com justiça; não por força e nem por violência, mas pelo Espírito (Zc 4.6); mostrando uma vitória que, considerada carnalmente, só pode ser vista como derrota, ou seja, pela fé e pela cruz. E por que é assim, porque o caminho do justo é viver pela fé na fidelidade de Deus (Rm 1.16,17).

Porque Atentou para a Humildade da Sua Serva; Ou: Maria, Mãe de Deus

  Não poucas pessoas no meio evangélico tem certa restrição contra uma consideração mais elevada do papel de Maria na história da salvação, e isso em função de certos abusos teológicos contidos na teologia católica romana. Mas como já afirmamos acima, o abuso não pode constranger o uso, e uma reta compreensão a respeito do papel de Maria na Escritura pode iluminar profundamente certos aspectos importantes da nossa fé.

Então aqui para começar francamente: o papel de Maria como mãe de Cristo – e por isso como Mãe de Deus, pois Jesus é uma única pessoa que congrega em si a natureza humana e divina – evidencia a sua posição como a mulher mais importante e abençoada da Escritura Sagrada. De fato, todas as gerações a chamarão de bem-aventurada (Lc 1.48), e assim Maria é por graça e não por coisa alguma pela qual ela pudesse ter alcançado dignidade tão excelsa, pois a graça a dignificou.

Assim podemos aprender algo de Maria: 1) Seu espírito meditativo a respeito das coisas do Senhor (Lc 1.29; 2.19; 2.51); 2) Sua prontidão em dizer sim à missão a qual o Senhor a incumbiu (Lc 1.38ª); A compreensão de sua posição diante de Deus que a visitou por graça, pois atentou para a “humildade da sua serva” (Lc 1.48) – e aqui não devemos entender que a humildade de Maria é uma “causa”, denotando uma virtude pela qual ela conquistou a dignidade de ser mãe do Senhor.

Assim Maria demonstra, principalmente nesse último caso, a via pela qual nós recebemos qualquer coisa do Senhor, pois o que recebeu recebeu por fé, excluindo qualquer consideração grandiosa de si nesse receber, pois só quando nos nadificamos diante de Deus é que recebemos algo do Senhor, pois Deus sempre costuma criar do nada, e enquanto nada formos nada Deus criará em nós.

A Grandeza de José, pai do Senhor

    Personagens bíblicos servem de modelo de devoção, bondade e lealdade. Esses atributos são constitutivos daquilo que nomeamos como piedade, palavra de resto gasta pelo seu uso equívoco e, a bem da verdade, hipócrita. Mas o abuso não deve prejudicar o uso, e uma purificação do termo se torna necessário para clarear seu sentido.

    Uma das formas de compreendermos bem o sentido da palavra piedade é nos remetendo a exemplos concretos que demonstram manifestam o teor real dessa virtude. Tomamos José, esposo de Maria e pai de Jesus, que como indica Mt 1.1-24, tomado pela suspeita da traição de Maria, buscou deixa-la em secreto, não querendo infamá-la e expô-la, podendo proceder assim seguindo o impulso da raiva vingativa.

    Não obstante a isso José foi advertido por um anjo a tomá-la por esposa pelo fato de que o ente gerado no ventre de Maria foi formado pelo Espírito, e que esse seria o Emanuel, o salvador do povo de seus pecados. E também em 2.13-23, guiado pelo Espírito José foge com Maria e Jesus ao Egito, assim como volta de lá em um tempo favorável.

    Aqui está à nossa frente o sentido de piedade. José abdicou de sua vida pela vontade do Senhor de uma forma tão profunda e fundamental que nele não sobrou espaço para si mesmo. Piedade é observância estrita, uma tradução da palavra ευσεβεια (eusebéia), que é a virtude característica daquele que serve de forma devota e observante a Deus.

Tomemos para nós, pela fé, o modelo de vida desse homem santificado pela Graça de Deus.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Bultmann e a Linguagem Existencial do Novo Testamento

    Inegavelmente a Teologia do Novo Testamento de Rudolf Bultmann é um dos trabalhos teológicos mais brilhantes produzidos no século passado. E é possível dizer isso a despeito de sua proposta hermenêutica ser problemática de alto a baixo. Assim, se faz necessário separar o Bultmann exegeta do Bultmann teólogo sistemático.

    Mas seguindo o fio condutor de sua descrição da Teologia Paulina é visível que ele segue de perto a ortodoxia luterana, oferecendo, não obstante, uma chave interpretativa extremamente criativa a partir da qual se torna possível detectar a estrutura típica da revelação do Antigo Testamento (AT) por trás da linguagem grega do Novo Testamento.
    Um exemplo disso é como Bultmann esclarece como o termo mundo (kosmō) é usado por Paulo, pois diferentemente do uso grego o termo kósmos não se refere, para Paulo, a uma "grandeza cósmica", assim o termo não é usado majoritariamente para se referir a uma grandeza física objetiva que engloba o universo, os homens e os deuses aí incluídos; antes o termo kósmos se refere a um espaço de relações e possibilidades de ação assim como os atos dos entes aí incluídos. Assim, em Paulo, o kósmos se "entristece", tem um "espírito", é cegado, sofre o juízo, anseia e é reconciliado.
    A estrutura formal do mundo (kósmos) inclui uma intencionalidade e, nesse sentido, é sujeito, sendo a sua compreensão possível se sua realidade é visualizada não a partir da categoria do espaço, mas sim do tempo. Qualquer um que conheça um pouco de filosofia sabe que essa forma de leitura é atravessada pelo existencialismo que muitos consideram ser a forma da própria "mentalidade hebraica" (ou do Antigo Testamento).
    Aqui não importa muito se você concorda ou não com essa filosofia, pois o trabalho exegético de Bultmann te coloca diante de uma interpretação bíblica que demanda em muitos pontos esse tipo de "mentalidade", justificando a noção de que Paulo joga com categorias "existenciais" típicas de revelação israelita.
    Uma deixa aqui: Dooyeweerd evidentemente leu Bultmann e muitas categorias de sua filosofia exigem esse tipo de interpretação bultmanniana em sua filosofia, a exemplo da conclusão de que termos como "sōma, nous, sarx, psyqué e kardia" (corpo, entendimento, carne, alma e coração) são termos que, ainda diferenciados em sua estrutura formal própria, se referindo por vezes a aspectos diferentes do "antrōpós" (homem), não obstante são termos que possuem um uso sinonímico se referindo ao "eu".
    Segundo essa concepção da antropologia Paulina levantada por Bultmann, não há um princípio superior no homem pelo qual outros elementos constitutivos sejam subordinados como inferiores tal como vemos no pensamento grego, onde o "nous" ou a "psyché" se referem ao verdadeiro "eu" com a exclusão da corporalidade (sōma ou sarx) formada pela matéria, ou a hylē - ainda que seja possível para Bultmann, ao contrário de Dooyeweerd e Barth (não pelos mesmos motivos), uma "teologia natural".

Dooyeweerd, a Filosofia Popular Grega e o Novo Testamento

    A despeito do gênio de Dooyeweerd, seu trabalho deixa a sensação de que busca uma purificação da filosofia e teologia cristãs que é simplesmente impossível dada a constituição do próprio Novo Testamento.

    A questão é que vários termos gregos utilizados principalmente por Paulo se referem à filosofia popular de base helênica, termos esses cujo uso remonta ao período "iluminista" do povo judeu, período situado em uma época anterior próxima ao nascimento de Cristo (séc. IV a I a.C.
    Termos como aretē, koinōnoi, physéōs, syneídēsis, tá kathēkonta, prónoia [virtude, participação, natureza, consciência, o que convém, providência] são termos bíblicos discerníveis à luz da filosofia popular helênica que penetrou a mentalidade judaica da diáspora, terreno que formou filósofos como o judeu Fílon, assim como o grupo que nos forneceu Paulo e do qual surgiu - como resta óbvio - os cristãos helênicos.
    A fusão da mentalidade hebraica e helênica é ainda mais visível na mentalidade dos apologistas como Aristides, Atenágoras e Teófilo, os quais demonstram não uma ruptura com o pensamento paulino, mas antes uma continuidade.
    Assim, a ideia de uma "antítese" bíblica absoluta é, em sentido cristão, algo impossível, pois o cristianismo, a exemplo dos profetas e poetas do AT que se serviram de muito material religioso egípcio e cananita, ressignificando-o à luz da fé israelita, também se serviu de imenso material helênico e hebraico, fundindo-os em uma síntese superior à luz da revelação.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

O Novo Pacto Civilizatório Contra a Unidade Entre a Mente e a Realidade

   Certa vez eu vi um jornalista falando de "pacto civilizatório", entendendo isso à maneira daqueles neokantianos que fundaram o constitucionalismo jurídico moderno, ou juspositivismo, onde o direito é constituído segundo a "norma hipotética fundamental", sendo essa norma aquilo que está positivado na Constituição dos países, que por sua vez é formada pelos "valores norteadores de uma civilização ou nação". Essa linguagem técnica pode parecer excessivamente complicada para você, mas ela é potencialmente perigosa a depender do tipo de "valores civilizacionais" nos quais a constituição de um país se funda.

Quando esse jornalista falou de "pacto civilizatório" ele estava falando basicamente dos novos "direitos sexuais" e das agendas ligadas à "ideologia de gênero". Recentemente a J. K. Rowlin criticou uma nova tomada de atitude da polícia Scotland que decidiu que iria passar a registrar agentes que comentem estupro com o genital masculino segundo a percepção de gênero desses estupradores. Essa atitude sinaliza um sinal dos tempos no sentido bem específico de que o niilismo, a destruição de qualquer forma de objetividade agora é uma constante civilizatória a ponto de nortear o juízo dos policiais de Scotland. Já há tempos que o ódio à realidade, e a tentativa de fazer prevalecer o puramente subjetivo, a fantasia, é uma das forças propulsoras principalmente do mundo ocidental. E esse tipo de atitude, digamos, espiritual dessa civilização, anuncia tempos trabalhosos.

Algo importante a ser destacado: essa questão transcende questões sexuais, pois um homossexual ou um transexual não tem a mínima necessidade para ser o que é de cair na concepção extremada da ideologia de gênero. Não é importante aqui questões de "gênero" simplesmente, já que essas questões atuais são apenas uma forma de manifestação de algo realmente mais profundo, pois se trata de uma forma de compreensão das coisas, de uma atitude que pode ser projetada sobre outros assuntos que envolvam uma relação saudável ou doentia entre a mente e o objeto, entre as pessoas e a realidade. Revoluções modernas envolvem um comportamento fanático que implica em um egoísmo atrofiado perante tudo o que existe. Quando a fantasia toma o lugar da realidade, ou quando o real é considerado meramente como um "julgamento pessoal", qualquer noção de verdade vira jogo de poder, ou a "verdade do mais forte", pois não existe mais uma verdade a nortear o juízo e a mediar as relações entre um homem e outro. O logos da realidade cai, e tudo o que sobra é puro poder. Esse é um sintoma de uma politização extrema de todos os assuntos humanos. Nesse sentido, todas as "políticas de gênero" passam a ser a mera luta para impor sua subjetividade contra qualquer evidência, ou digamos, contra a subjetividade do "outro". Tudo vira questão de narrativa. A coisa não deixa ter seu tom de ironia quando reacionários anti-vacinas defendem a liberdade de forma extremada contra evidências científicas diante dos revolucionários de gênero, sendo que esses por sua vez acusam os reacionários de serem "irracionais" na exata proporção que seu tipo de defesa também envolve um apego à liberdade imaginativa contra toda experiência, ou seja: biologicamente alguém que nasceu com um corpo dotado de órgão genital viril é um homem independentemente de sua consideração, mas é o seu julgamento pessoal contra toda evidência quem vai decidir se isso é ou não assim.

As fantasias extremadas tendem a torcer a realidade. Na literatura algo assim é exemplificado na toada de Dom Quixote, que saudoso da época da cavalaria - coisa decadente em seu tempo - se punha a viver histórias fantásticas lutando contra um moinho de vento querendo crer que se tratava de um dragão. Sua brincadeira inocente tornou-se perigosa na medida em que ele começou a ser levado a sério, se tornando até ameaçador àqueles que evitavam embarcar no seu delírio. E nesse ponto não é impossível perceber o quão problemático pode ser um delírio coletivo, e isso porque toda toada dessa natureza pode vir a se tornar um "valor civilizacional" a constituir um "novo pacto civilizatório", e, por fim, orientar o direto penal, selecionando os "indesejáveis para o novo mundo", os exotando com páreas da "nova civilização". Pois quando o diversionismo escapa da esfera da fantasia, se tornando um movimento histórico, os primeiros a serem esmagados, a exemplo da J. K. Rowling, são os que se recusam a separar a razão do objeto ou a mente da realidade, vendo a coisa tal como ela é e não como os outros querem que a coisa seja.

Ver o óbvio sempre foi a sina do profeta, e esse, quando vocacionado à profecia, é também chamado para o sofrimento do mártir. Assim, o novo pacto civilizatório é uma armadilha construída - talvez inconscientemente - para caçar quem se recusa a não ver a realidade.

A Apologética Católica, o Método Histórico-Crítico e a Verdade da Fé

    Uma das estratégias interessantes que alguns apologistas católicos tem usado recentemente contra protestantes/evangélicos - apesar de essa estratégia ser usada de forma mais assertiva desde a conclusão do Concílio Vaticano II - é usar o método de pesquisa histórico-crítico para apontar contradições na Escritura Sagrada, assim como levantar a hipótese de que o cânon do Novo Testamento não pode ter sua autoria comprovada por métodos de pesquisa histórica, impossibilitando dar certeza plena de sua origem apostólica.

    A questão é que com isso os apologistas tentam inocular um profundo ceticismo no protestante médio, minando certos pressupostos básicos que fundamentam sua fé: 1) Considerando que para o protestante a Escritura é a Palavra de Deus e isso por ser a palavra dos Apóstolos e Profetas, os quais constituem o "fundamento da igreja" (Ef 2.20), minada a confiabilidade na bíblia o protestante, em tese, como que "perderia o chão" no qual apoia sua fé; 2) Assim, o princípio "Sola Scriptura" ruiria também, já que necessitamos, para sermos cristãos, de uma autoridade que confirme a veracidade do conteúdo da Escritura para a validação da fé; 3) O método histórico-crítico assim é posto como uma "apoché" cartesiana, pois enfraquece a certeza na autoridade objetiva da Escritura, pois se valendo de um gênio satânico a por em dúvida toda confiabilidade na Escritura, no fim, o apologistas católico oferece o papa como uma espécie de cogito a iluminar todas as coisas, pondo-o como a única autoridade objetiva capaz de confirmar a fé do cristão - coisa que o papado pré-Vaticano II desde ao menos de Bonifácio III não se casava de dizer.

    Esse tipo de estratégia é uma faca de dois gumes para os apologistas, pois para agir assim, além de ignorar a resposta que os protestantes deram a essa questão - levando em consideração que foram os próprio protestantes que primeiramente aplicaram esse método de pesquisa ao estudo da bíblia -, eles precisam implodir a tradição da Igreja que colocou como critério de canonicidade a origem apostólica e profética das Escrituras, assim como a consideração antiga da Igreja de que o cânon não foi "definido", mas "recebido", como afirma São Serapião segundo Eusébio de Cesaréia. Mas resta óbvia a razão pela qual eles agem como agem: Destruindo a confiabilidade que possuímos na Escritura, ou tornando "impossível" justificar a sua autoridade como autoridade apostólica, teríamos que confessar que a base da nossa fé na Escritura tem que estar além da Escritura, ou seja, na Igreja e, por fim, no papado que confirma as Escrituras (como diria Tomás de Aquino).

    Essa forma de consideração tem vários vícios, pois jamais o protestantismo negou a autoridade da igreja a começar pelo fato de que cremos nos apóstolos e nos profetas, os quais são também a Igreja. Além do mais a Escritura só tem autoridade para nós por ser a Palavra expirada por Deus pelos apóstolos e profetas, tal como sempre creu a Igreja - e assim: ou isso é verdade ou não é, e não será mais verdade porque a igreja disse e nem menos verdade se a igreja isso negar. À Igreja de Cristo cabe receber na fé sua a Escritura, se ela é cristã. Além do mais a Escritura também é o kerygma apostólico, e seu sentido teológico (que para nós importa) sempre esteve patente na Igreja, mesmo quando não se possuía o Cânon completo - isso é rastreável nos vários testemunhos que temos dos pais da Igreja e apologistas mais antigos -, significando que a fé que ilumina a Escritura deve estrar presente no Cristão se ele de fato deve crer em Cristo como Cristo-para-si, pois Cristo não será Cristo-para-nós a não ser que digamos SIM a Cristo por meio do Espírito que testemunha com o nosso espírito que somos filhos de Deus (Rm 8.16).

    De certo modo uma forma de fé "kerygmática" está presente no próprio Lutero que via na posse do Espírito Santo a posse da fé apostólica - e devemos dar anuência a isso a não ser que sejamos céticos quando ao trabalho providencial do Espírito e já não sejamos mais cristãos. Também a fé reformada aponta para um elemento subjetivo inalienável pelo qual recebemos como autoridade a palavra divina, pois a bíblia é devidamente reconhecida como "Palavra de Deus para nós" na fé, pois o Espírito disso nos dá testemunho, e não seria razoável deixar de crer assim só para mudarmos a consideração sobre a autoridade (passando da fé na Escritura para uma mera fé na Igreja tal como os apologistas entendem), e isso apenas para chegarmos à mesma conclusão, ou seja, que a Escritura é a Palavra de Deus. No fim o protestante crê no testemunho da Igreja e concede fé a esse testemunho, e a Escritura vale para o cristão porque vale para a sua fé, e ciência histórica alguma pode destruir isso (a Escritura é onde o Logos se torna letra, ou, como diria Schelling, é o nosso "mito fundador").

    Como diria Kierkegaard no "Pós-Escrito", a ciência histórica chega muito tarde para responder pela veracidade da fé. A igreja nunca teve real necessidade disso, e não precisamos esperar pela conclusão do parênteses eterno aberto pelos históricos-críticos para crer, pois a Escritura é verdade para o cristão porque antes de tudo é verdade na fé a qual testemunha nos nossos corações o conteúdo do kerygma da igreja: Cristo é o nosso Senhor e Salvador. Essa é a verdade da Escritura sustentada pelo Espírito, e esse é o objeto da nossa fé.

domingo, 12 de dezembro de 2021

Deuteronômio, a Guerra e a Providência

O livro de Deuteronômio oferece uma leitura teológica interessante de certos eventos que devem ser lidos ao lado da história corrente dos israelitas, de modo que a leitura teológica acaba oferecendo uma iluminação da história corrente. Em Dt 2.24-37 há a interessante história da conquista dos israelitas das terras de Seon, rei de Hesbom. Ao atravessar o rio de Arnom Deus prometeu a Moisés "infundir pavor e medo" no coração de todos os povos a respeito dos israelitas, ou seja, Deus iria voltar a mão dos povos de modo a esses serem hostis àqueles, criando uma ocasião em que, pela defesa, o povo de Deus tomariam posse da terra..

Uma das coisas que poucos prestam atenção é que o modo de conquista da Terra de Canaã por parte dos israelitas em muitos casos não envolve um ataque direto aos habitantes, mas um ataque baseado na legítima defesa. No caso em questão o procedimento de Israel seria o de "pedir passagem", "oferecendo paz" com a promessa de pagamento por aquilo que eles viriam a consumir de água e alimento dessa terra (Dt 2.27-29). A resposta de Seon ao ao apelo dos israelitas, no entanto, foi hostilidade e guerra, pois, segundo Deuteronômio, seu coração estava perturbado e "cheio de pavor".

Nesse momento a profecia intervém com uma interpretação iluminadora da história, e o teólogo do Deuteronômio afirma: "Mas Seon [...]não quis deixar-nos passar; pois o Senhor, o Deus de vocês, tornou-lhe obstinado o espírito e endureceu-lhe o coração, para entregá-lo nas mãos de vocês, como hoje se vê. [...] Estou entregando a vocês Seon e a sua terra. Comece a ocupação, tome posse da terra dele" (Dt 2.30, 31).

Há dois ângulos que o teólogo de Deuteronômio nos oferece pelos quais podemos ler esse evento: o ângulo histórico e teológico: 1) Pelo ângulo histórico o que vemos é um povo estrangeiro pedindo passagem por uma terra, e que é hostilizado pelo governante da terra - transgredindo a venerável lei da hospitalidade, tão importante no mundo antigo -, se defendendo da agressão; 2) Pelo ângulo teológico vemos Deus concorrendo com a história, conduzindo a história até o seu fim querido, "endurecendo" o coração de Seon segundo seu desígnio providencial.

O que podemos compreender dessa história é que se perdermos de vista a distinção entre a esfera histórica e a esfera providencial perderemos a rica complexidade do evento, oferecendo a ele interpretações simplistas e até mesmo perversas. É justamente na perda dessa complexidade que surgem acusações absurdas do tipo que imputa massacres dolosos ao povo do Antigo Testamento; também aqui surgem justificativas de gente perturbada que julga conquistar, por meios lícitos e ilícitos, coisas em nome de Deus só porque mete Seu nome na boca. A questão é que nem nas guerras deixou de exigir a reta justiça por parte dos seus Aquele que da história é Senhor.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Citações das Obras de N. T. Wright a Respeito do Evento da Crucificação e a Substituição Penal

"Você se pergunta, por que Deus me abandonou nesse momento? E a resposta vem: nesses momentos, meu filho, eu o estava carregando.

É importante dizer, logo no início dessa [sic] seção, que esta não é uma boa forma de entender esta história. Quando Jesus exclamou as palavras iniciais do Salmo 22, perguntando por que Deus o abandonara, Mateus não pretende que pensemos de forma reconfortante: "Tudo bem, ele apenas sentiu como se isso tivesse acontecido". De fato, Deus o estava carregando." Parte de toda a questão da cruz é que o peso de toda a maldade do mundo realmente concentrou-se sobre Jesus eclipsando a luz do amor de Deus, assim como a luz do dia foi eclipsada por três horas. [...] Jesus está aqui dando a sua vida "em resgate por muitos" (20:28), e o pecado de muitos que ele carrega sobre si fez com que, pela primeira e única vez em sua experiência, uma nuvem ficasse entre ele e o Pai, a quem amava e obedecia, aquele que se agrada com ele"1.

"Assim como em um álbum de fotografia, Marcos constrói a história da crucificação de Jesus por meio de pequenos retratos [...]. Em nenhum tempo ele permanece muito tempo em um tema particular, exceto em se tratando do tema principal, que emerge durante todo o tempo: o tema de que Jesus é crucificado como rei dos judeus, É porque ele carrega consigo o destino e a sorte de Israel como o seu representante ungido que sua morte tem significado para Marcos. Israel está onde a violência e a perversidade do mundo parecem ter se concentrado [...]; mas o messias, o rei, já as tomou [a violência e a perversidade] sobre si e, assim, abriu um caminho de resgate, de salvamento, para todo aquele que o seguir."2

"Nem Jesus, em Marcos, alivia seu sofrimento bebendo vinho como sedativo. Ele escolhe, ao contrário, beber os resíduos do cálice que seu Pai lhe deu (10:30; 14:36)"3.

"No caso de Jesus, o 'crime', aos olhos da lei romana, foi o fato de ele afirmar ser o rei dos judeus. [...] Para reforçar ainda mais o argumento, Jesus foi crucificado entre dois bandidos, ou bandoleiros: novamente, eles não eram ladrões ou golpistas insignificantes, mas revolucionários. No centro da imagem e do pensamento de Marcos, está uma profunda reflexão: Jesus está morrendo uma morte que pertencia apropriadamente às pessoas violentas do reino, aos guerrilheiros nacionalistas"4.

"Mateus explica o véu que foi rasgado como um terremoto; Marcos afirma que se trata de um mistério, embora presumivelmente nos sugira, à luz dos quatro capítulos anteriores, que, de agora em diante, o Templo está acabado. Seu propósito foi superado pelo evento que acabara de ocorrer. De agora em diante, o acesso à presença do Deus vivo está aberto a todos através da morte de seu filho.

E tudo acontece por causa do abandono de Deus ao filho de Deus. O horror que inundou Jesus no Getsêmani e, então, parece ter recuado por algumas horas, voltou em todo o seu espanto, o horror de beber o cálice da ira de Deus, de compartilhar a a profundidade do sofrimento, mental, emocional e físico que caracterizou o mundo em geral e Israel em particular. A nuvem negra do mal, o mal de Israel, o mal do mundo, o mal em si, maior que a soma de suas partes, o isolou daquele a quem ele chamou de 'Aba' de uma maneira que ele nunca conhecera antes. E, brotando de sua vida inteira de oração baseada na escritura, chegou, como que por um reflexo, um grito não de rebelião, mas de desespero e desalento, ainda que um desespero que, tendo perdido contato com Deus, ainda pergunta a ele porque tinha que ser assim. O filho rejeitado pelos lavradores olha em vão para o seu pai e pergunta o porquê. A questão de Jó - por que um inocente sofre? - mistura-se com a questão não apenas dos salmistas, mas de milhões no mundo antigo e no mundo moderno, e se torna a pergunta, para usar a linguagem cristã posterior, que o próprio Deus usa quando vê abandonado por Deus, que Deus, o Filho usa quando se vê abandonado, de forma inconcebível, por Deus, o Pai; A menos que lutemos com essa pergunta, não apenas ficaremos isolados da compreensão do mistério cristão central; também desvalorizaremos o evangelho que encontra o mundo em seu ponto mais profundo de necessidade"5.

"Devemos reparar que Jesus, o revolucionário santo, sabe que está recebendo a morte de um ladrão. Isso faz parte do xis da questão. Ele está carregando em si mesmo o destino que pronunciara tantas vezes `nação voltada para a guerra; os ais que anunciou contra Jerusalém e seus habitantes (p. ex.; 13:1-5) estavam se cumprindo nele. Um só homem estava carregando os pecados de muitos"6.

"Mas, se muitos recusarem, mesmo agora a se voltar para ele e segui-lo, arrepender-se de seus atos de violência, então o destino que lhes está reservado fará com que a crucificação de Jesus, em comparação, pareça leve [...].

Isso explica o restante da passagem sobre as mulheres, incluindo a 'bem-aventurança' confusa e horripilante descrita nela. Lá no início do evangelho, Jesus pediu a bênção de Deus para os pobres, os mansos, os que têm fome e os que choram. Agora, ele diz às mulheres que elas logo pedirão essa mesma benção para as que não tiverem filhos, que normalmente ficavam muito envergonhadas por causa disso [...]. Essas mães verão os próprios filhos crescerem e se revoltarem contra Roma, e irão vê-los sofrer o destino que Roma sempre infligiu aos rebeldes. Jesus combina a clara declaração de sua própria intenção - de sofrer o destino de Israel - com o aviso claro, fazendo eco às advertências ao longo de todo o evangelho, para aqueles que não o seguem.

Lucas apresenta o mesmo argumento de um modo diferente ao comparar os dois que foram crucificados um de cada lado de Jesus. Um zomba, mas o outro expressa a visão de Lucas sobre toda a cena. Jesus, mais uma vez, está sofrendo a morte apropriada ao rebelde, ao ladrão, ao criminosos; por mais inocente que seja, ele está carregando o pecado de muitos"7.

"Em todos os quatro evangelhos, não apenas em João, a cruz é a vitória que conquista o mundo. Estou cansado de explicá-la apenas em termos de Christus Victor, visto que historicamente, essa interpretação tem sido associada com outros tipos de desenvolvimento e colocada em contraposição a outras teologias da expiação. Entretanto, a ideia de vitória messiânica como nova interpretação de um antigo tema judaico é precisamente o que os quatro evangelhos tem em mente.

Segundo argumentei exaustivamente em outro lugar, Jesus entendia sua morte segundo várias vertentes do testemunho bíblico, principalmente Is 40-55 e, no contexto dessa passagem, a grande sessão sobre a substituição vicária, a Quarta Canção do Servo (Is 52:13-53:12). Quanto aos quatro evangelhos não devemos ter dúvidas de que seguem essa linha. Para eles, Jesus morre uma morte penal em lugar do culpados, isto é, no lugar dos culpados Israel e da culpada humanidade.

Tudo isso faz sentido não por jogarmos a 'substituição' contra a 'representação', como tem sido prática comum, mas por meio do papel de Jesus precisamente como Messias representativo de Israel, pelo qual ele está perfeitamente posicionado para ser o substituto de Israel e do mundo"8

"Em particular, está implícito quando Jesus fala da galinha que reúne pintinhos debaixo das asas; sua intenção era ver o perigo se aproximar e absorver, em si mesmo, sua força plena (Mateus 23:37; Lucas 13:34). A ideia está presente, mais uma vez, quando ele fala do 'cálice' que deve beber; a alusão remete ao 'cálice da ira de Deus', operando por intermédio da violência destrutiva do Império Romano contra o que para os pagãos parecia ser a rebelião de súditos e um rei rebelde"9.

"[...] a morte de Jesus também foi, em certo sentido, penal. Jesus anunciou o juízo iminente de Deus sobre o seu povo rebelde, um juízo que consistiria em devastação nas mãos de Roma. Ele então vai adiante do seu povo e toma precisamente esse juízo — literal, física e historicamente — sobre si mesmo. “Não apenas em verdade teológica, mas em fato histórico, um único homem carregou o pecado de muitos”. Trata-se de uma morte penal e substitutiva, embora mais ampla e menos aberta a objeções do que outras expressões dessa teoria"10.

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[1] WRIGHT, N. T: Mateus para Todos. Mateus 16-28, II Parte. Ed. Thomas Nelson, Rio de Janeiro - RJ, 1ª edição, 2020. p. 227, 228.

[2] Idem. Marcos para Todos. Ed. Thomas Nelson, Rio de Janeiro - RJ, 1ª edição, 2020. p. 363

[3] Ibid. p. 265

[4] Ibidem.

[5] Ibid. p. 269, 270

[6] Idem. Lucas para Todos. Ed. Thomas Nelson, Rio de Janeiro - RJ, 1ª edição, 2020. p. 343

[7] Ibid. p. 343, 344

[8] Idem. Como Deus se Tornou Rei. Ed. Thomas Nelson, Rio de Janeiro - RJ, 1ª edição, 2019. p. 255

[9] Idem. Simplesmente Jesus. Ed. Thomas Nelson, Rio de Janeiro - RJ, 1ª edição, 2020. p. 224

[10] Ibid. p. 231, 232

domingo, 5 de dezembro de 2021

Ed René e o Estado Lamentável da Igreja no Brasil

    O Ed René é hoje um desafio, e só alguém como ele pode ser assim em virtude da sua inteligência. E o difícil de discerni-lo para quem se compromete de verdade em querer entender o que ele diz é que, de fato, há uma profusão tanto de verdades quanto de equívocos em sua fala, coisas as quais ele pode articular bem porque possui uma inteligência acima da média comum das lideranças pastorais brasileiras. E visualizando o estado deplorável que a igreja no Brasil se encontra em relação a um conhecimento substancial a respeito da fé cristã - o que resulta nas atrofias fundamentalistas (que de fato são problemáticas) e liberais pseudo esclarecidos (quem tem muito a ver com a ala do Ed René) -, desse evento lamentável podemos esperar coisas ruins.

    Para alguns pode parecer incrível o que irei falar, o que não deixa de ser verdade por este fato ser pouco reconhecido: a igreja brasileira, e me refiro aqui à ala evangélica, precisa de uma injeção de conhecimento cristão, principalmente em se tratando dos seus líderes, caso contrário os anos à nossa frente só nos reservará barbárie camuflada de "evangelho", o que das impiedades é a maior. Tendo isso em vista, o Ed René não é um problema em si mesmo, mas sim um sintoma de uma coisa muito pior, coisa que cresceu na sombra de uma negligência a qual, de certa forma, caracteriza o tipo muito "prático" que permitiu o crescimento rápido das igrejas evangélicas no Brasil, e tudo às custas de colocar de lado uma formação cristã mais sólida.

    Especifico: o tipo de retórica antireligiosa do Ed René é um terreno fértil para um tipo de cristianismo legalista que é o alimento comum em nossas igrejas, fruto sim da evangelização americana muito mais preocupada com questões morais do que com questões teológicas. Esse ambiente proporciona frustrações produzidas em escalas industriais. Aliada a isso está aquele tipo de fé ensandecida e profeteira que está muito distanciada da pregação paulina da graça e mesmo do sermão da montanha. Nesse terreno deprimente, ser capitulado pela retórica anti-religiosa do Ed René não é algo incrível, mas é a consequência mesma de um tipo de espiritualidade doentia oferecida a granel em nosso pobre país. Um país que tem que escolher entre um Ed René e um Silas Malafaia está verdadeiramente em maus lençóis, pois não há nenhum aliado mais promissor de um herege pseudo-esclarecido do que um pseudo-ortodoxo grosseiro e tacanho, e nem há um aliado maior de um pseudo-ortodoxo grosseiro e tacanho do que um herege pseudo-esclarecido.

    Paradoxalmente a igreja sofrerá em razão daquilo que permitiu seu rápido crescimento. Não é a "letra" que matará, mas sim a ausência de sua substância, o que deixa cristãos no falso dilema que coloca alguém na posição equívoca de ou escolher um fundamentalista barato e tacanho, ou um Ed René da vida que na esteira da sua inteligência oferece falsas consolações para um coração sem qualquer tipo substancial de orientação de vida. O fato do Ed René estar errado não anula o fato de que muito autoritarismo, falso moralismo e mesmo muita grosseria e tolice sejam o pão de cada dia de uma parcela considerável de igrejas.
    Tendo tudo isso sido considerado é fácil entender que membros decepcionados sempre terão falsas esperanças para lhes oferecer falso consolo - uma leitura da Palavra de Deus ao gosto do "espírito dos tempos", um deus que oferece mais facilidades do que exige compromisso, um consolador sem escrúpulos, medidas etc. É muito possível que um cristão que está fugindo da tirania acabe, sem perceber, caindo nas mãos da maldade, mas não nas mãos e nos cuidados do Senhor. É possível que alguém fugindo de um tacanho Davi Miranda etc., acabe nas mãos de hereges cobras e habilidosos como um Ricardo Gondim, um Ed René ou um Caio Fábio da vida. E assim história se repete: "Meu povo perece por falta de entendimento" (Os 4.6).

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Cristo no Coração da Tempestade; Ou: N. T. Wright e o Significado da Crucificação

    Com todas as conhecidas oposições de N. T. Wright sofre e tem sofrido em seu pensamento teológico, muito em função de ser ele contado entre os propositores da polêmica NPP (Nova Perspectiva Paulina), como sempre ocorre, seu nome é mais comentado do que seu pensamento realmente conhecido. O que geralmente se conhece a respeito de suas posições teológicas vem na rabeira de comentários de blogs ou na vazão de bílis representada em forma de letras aqui e ali. Contudo há algo da sua reflexão a respeito de cristologia que tem considerável valor, principalmente por sua tentativa de promover um cristologia bíblica integral, longe de dissecção abstratista que a cristologia não raro sofre nas mãos de teólogos "modernistas" ou mesmo de escolas consideradas "conservadoras".

A bem da verdade, certa acusação que pesa contra Wright de que ao lê-lo você tem certa impressão de que ele está desenterrando uma verdade oculta que o cristianismo manteve oculto por uns 600 anos tem sua razão de ser. Mas mesmo assim é produtivo dar ouvidos à sua teologia - mesmo que seja necessário lê-lo com certa suspensão de juízo. É possível ver vez ou outra em seus livros a afirmação incômoda de que certas escolas, pessoas ou teologias centenárias estão "lendo a bíblia de forma errada", e até mesmo que o Credo Niceno obscureceu os sinóticos e a mensagem sobre o Reino de Deus, e com isso perdeu o valor da militância temporal da Igreja e do discipulado, ao saltar da concepção de Cristo pelo Espírito para o padecimento sob Pôncio Pilatos1. Daí surgiram certas tendências enviesadas de reduzir o Evangelho à crucificação - tendência ocidental -, dando espaço para teologias atrofiadas como a de Rudolf Bultmann, o qual questionou a historicidade dos evangelhos, concentrando o valor da mensagem do Novo Testamento no confronto existencial da proclamação com a situação do receptor da mensagem e a "transformação da mente" daí decorrente. Nada de história, mas sim uma nova consciência de si. E mesmo que teólogos e eclesiásticos conservadores neguem esse reducionismo bultmanniano, seguem seu espírito ao reduzir a mensagem do evangelho à "justificação", por exemplo. A clara fratura existente entre teólogos conservadores - tendo em Bultmann seu exemplo reducionista mais extremado - e teólogos liberais que enfatizam a ação histórica e política da Igreja e a "moral concreta", como ocorre em teólogos como Harnack e Troelsch, resultam, segundo Wright, da ausência de uma "leitura total" da bíblia e da falta de uma compreensão total das obras e da vocação de Jesus e da mensagem dos Evangelhos, pois estes mostram na verdade "Como Deus se Tornou Rei".

    Separadas as coisas, vemos que a teologia de Wright surge como uma proposta de cura da reflexão excessivamente prismática das escolas teológicas. A questão é que mesmo em seus cortes abstratos, essas escolas ainda representam por certo ângulo certas verdades da mensagem cristã, tal como a luz quando direcionada a um prisma é refratada em várias cores. Segundo Wright a mensagem do Evangelho não se parece com a tentativa de reconstrução histórica da mensagem do Evangelho - ex. em Albert Schweitzer -, onde Jesus se dirige a Jerusalém para continuar seu programa de reforma e é acidentalmente esmagado pela força política local2. Assim, Jesus não foi meramente um "homem bom esmagado pelo 'sistema', como outro revolucionário zeloso deu sua vida pela causa", embora haja uma parca razão nessa forma de pensar3. Também Jesus não foi apenas agente meramente de uma "manifestação do amor divino que influencia moralmente a seguirmos seus passos"4, embora haja também verdade nisso. Também Jesus não é meramente um "modelo representativo", o qual atravessa a morte, nos capacitando a atravessar a atravessa-la por um "novo caminho"5, mesmo que haja razão nisso. Assim, Jesus não é agente de uma transição, no qual ele se dá a um Deus que irado com os homens satisfaz a sua ira ao puni-lo6. Mesmo que ele negue essas teologias consideradas em sua abstração própria, Wright ainda assim afirma que elas tem seus pontos a serem defendidos7.

    Consideradas em seu aspecto formal abstrato, Wright tenta busca por em ordem todas essas tendências teológicas para unifica-las em um sistema teológico ordenado, seguindo uma teologia bíblica que faz jus à vocação de Jesus como messias de Israel e como salvador da humanidade. Em primeiro lugar Wright busca unir as expectativas messiânicas segundo um modelo bíblico determinado. Segundo seu parecer a consciência e vocação de Jesus seguem certos padrões, como expressos por exemplo no Salmo 22, onde o imenso sofrimento diante do abandono divino é seguido do júbilo pela salvação do Senhor. Esse é um tipo de leitura que considerada sem uma visão correta das coisas pode soar ilógica, mas que recebe seu devido significado se iluminada pela história de Jesus. Também unidas aos aspectos messiânicos de Cristo como rei de Israel estão unidas as considerações sobre o templo, o qual recebe um novo significado à luz de Jesus como o portador da presença de Deus. Isso é claro na teologia da ceia apresentada por Cristo, ceia na qual são despedidas nos símbolos a presença e o "novo sacrifício". Aqui é manifesto o "novo templo", templo que agora está além da estreiteza nacionalista da decrépita Israel histórica. Assim, Jesus oferece nova resistência às potências das trevas por um novo caminho, resistência não meramente contra Roma, mas sim contra o poder diabólico que a sustenta, e assim faz destruindo essas potências do alto da Cruz, onde Cristo estabelece seu trono, obedecendo a vontade do Pai. Vendo por esse ângulo os Evangelhos tem uma mensagem histórica muito determinada, mais ampla do que o sentido vislumbrado pelos cortes abstratos nos quais, segundo Wright, as escolas incorrem.

    Comentando a partir de um olhar mais amplo sobre as teologias das escolas, Wright afirma que: 1) A morte de Jesus é exemplificativa: Vemos em cada estágio da narrativa do evangelho, trabalhado em pequenos sinais vitais, uma atmosfera de cura e perdão, de um amor poderoso em busca de resgate e restauração, conforme observamos nos detalhes iniciais da carreira pública de Jesus. Em outras palavras, ele não deixou de ser o mesmo Jesus portador do reino. Pelo contrário: o que ele faz na cruz é a culminação e a explicação retrospectiva de seu trabalho anterior8. Ou seja, a morte de Jesus é exemplificativa porque ela nos fornece o modelo segundo o qual nós mesmos devemos viver e morrer, ou seja, perdoando e restaurando. 2) Também a morte de Jesus é representativa: Da mesma forma, em segundo lugar, Jesus estava de certo modo “representando” seu povo e, por meio dele, o mundo todo. Jesus viveu em um mundo de entendimento no qual fazia sentido ver o Messias substituindo Israel e este substituindo o resto da humanidade. Contudo, ainda que o tema seja importante, não apenas nos evangelhos como também em Paulo e em outros textos bíblicos, ele mal consegue carregar o peso exigido9. 3) Essa morte é também penal: Em terceiro lugar, a morte de Jesus também foi, em certo sentido, penal. Jesus anunciou o juízo iminente de Deus sobre o seu povo rebelde, um juízo que consistiria em devastação nas mãos de Roma. Ele então vai adiante do seu povo e toma precisamente esse juízo — literal, física e historicamente — sobre si mesmo. “Não apenas em verdade teológica, mas em fato histórico, um único homem carregou o pecado de muitos”. Trata-se de uma morte penal e substitutiva, embora mais ampla e menos aberta a objeções do que outras expressões dessa teoria10.

    Todas essas coisas consideradas, cabe salientar que todas essas elaborações que Wright apresenta deve ser apresentadas em um contexto maior para que seja possível visualizar seu devido sentido. Contudo, no fim, a posição do bispo anglicano é de que em última instância a cruz sinaliza o Novo Êxodo, um novo estabelecimento pelo qual os céus são unidos à terra, ou seja, a crucificação é o meio pelo qual Deus tornou manifesto o seu reino, libertou o seu povo concedendo a ele uma nova vocação e destruiu o poder das trevas - e também a ira de Deus11, em uma ênfase muito semelhante a de Lutero e de Jerônimo em seu comentário de Mt 27. -, sendo esses os motivos pelos quais Cristo voluntariamente se colocou, como vai dizer o bispo, "dentro da tempestade"12.
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[1] WRIGHT, N. T. Como Deus se Tornou Rei. Ed. Thomas Nelson. 2019. p. 36-43

[2] Idem. Simplesmente Jesus. Ed. Thomas Nelson. 2020. p. 221

[3] Ibidem. p. 230, 231

[4] Ibidem. p. 231

[5] Ibidem.

[6] Ibidem.

[7] Ibidem.

[8] Ibidem.

[9] Ibidem.

[10] Ibidem. p. 231, 232

[11] Ibid. p. 224. Nesse trecho a colocação de Wright é essa: "Em particular, está implícito quando Jesus fala da galinha que reúne pintinhos debaixo das asas; sua intenção era ver o perigo se aproximar e absorver, em si mesmo, sua força plena (Mateus 23:37; Lucas 13:34). A ideia está presente, mais uma vez, quando ele fala do 'cálice' que deve beber; a alusão remete ao 'cálice da ira de Deus', operando por intermédio da violência destrutiva do Império Romano contra o que para os pagãos parecia ser a rebelião de súditos e um rei rebelde..."

[12] Ibid. p. 222-225

terça-feira, 30 de novembro de 2021

As Vestes do Pecado e o Flagelo que Assumiu por Nós: Comentário de Jerônimo a Mt 27

    Jesus foi entregue, então, aos soldados para que fosse açoitado, e os açoites retalharam aquele sacratíssimo corpo e aquele peito capaz de Deus. Fez-se isso, pois, para que, como está escrito: "Muitos são os flagelos dos pecadores", sendo ele açoitado, nós fôssemos libertados dos golpes conforme o dizer da Escritura ao varão justo: "Nenhum flagelo chegará à tua tenda".

    "Os soldados do governador conduziram Jesus para o pretório e rodearam-no com todo o pelotão. Arrancaram-lhe as vestes e colocaram-lhe um manto escarlate..." [...] No manto escarlate, Jesus carrega as sangrentas obras dos pagãos [...].

    "Depois de escarnecerem dele, tiram-lhe o manto e entregam-lhe as vestes. Em seguida, levaram-no para o crucificar" - Quando Jesus é flagelado, cuspido e escarnecido, não leva a própria veste, mas aquela que por nossos pecados assumira; quando, porém, vai ser crucificado, tendo passado toda aquela encenação de deboche e de escárnio, recebe então as vestes originais, assume o próprio ornamento, e, ao instante, os elementos se perturbam e a criação presta seu testemunho ao Criador"1.

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[1] JERÔNIMO. Comentário ao Evangelho de Mateus 27.26-29,31. Ed. Paulus, São Paulo-SP, 2020. p. 365-367.

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Platão e a Modernidade Política

    Na penúltima publicação afirmei que Platão cavou um sulco indelével na mente do mundo. Em todo mundo ocidental isso é conhecido. E para parafrasear Goethe: "tudo o que é muito conhecido é por isso mesmo, paradoxalmente, não tão bem conhecido".

    A questão é que Montesquieu, que foi quem forneceu a moldura das instituições públicas modernas na tripartição de poder e as formas de eleições da magistratura, foi ricamente influenciado pelas "Leis" de Platão. Platão, assim, não delineou de forma duradoura o itinerário, principalmente, do pensamento do mundo ocidental, mas ainda exerce de forma marcante influência sobre o desenho de suas instituições.

    De fato, Platão afirmou há mais de dois milênios atrás que uma constituição deveria resultar da união das formas de governo democrática, aristocrática e monárquica, coisa presente nas instituições modernas, sendo a forma mais democrática de governo constando nas câmaras "baixas" (parlamento federal p.ex), a forma aristocrática no senado, e a forma monárquica no executivo (governo, presidência, primeiro ministro etc.).

    Até muito da definição das idades distintas para cada cargo está presente nas "Leis", e até recentemente o tempo limite de um magistrado da suprema corte no Brasil era de 70 anos, idade limite para os juízes, segundo Platão, os quais deveriam exercer a função por no máximo 20 anos

A Dupla Via de Acesso a Deus; Ou: Teófilo, Orígenes e Agostinho e a Questão das Virtudes Éticas e Dianoéticas

    Um dos aspectos mais interessantes do pensamento dos antigos teólogos cristãos é que o conhecimento de Deus exige precondições que podemos chamar, segundo o que se convencionou na filosofia, de precondições éticas, assim como precondições dianoéticas, ou seja, precondições morais e intelectuais. A compreensão desse tipo de pensamento é importante em virtude da percepção que essas disciplinas nos dão a respeito das disciplinas espirituais tal como compreendidas pelos teólogos cristãos antigos, algo que é de imensa validade para nós.

    Agostinho nesse sentido afirma:

Esta disciplina é a própria lei de Deus que, permanecendo sempre fixa e inabalável nele, quase se inscreve nas almas sábias para que tanto melhor saibam viver e tanto mais sublime e mais perfeitamente a contemplem com sua inteligência e com maior empenho a guardem em sua vida. Esta disciplina impõe aos que desejam conhecê-la uma dupla ordem, da qual uma parte se refere à vida, outra à erudição1.

    Em outras palavras, Agostinho exorta aqui que se cultive certas virtudes que podemos chamar de "éticas", ou virtudes morais, e as virtudes "dianoéticas", que seriam as virtudes da mente, afim de alcançarmos uma unidade com Deus.

    Mas Agostinho não está isolado nessas considerações, pois essas podem ser rastreadas desde os primeiros apologistas. No II século d.C., Teófilo de Antioquia discorreu sobre as condições morais e intelectuais para a apreensão de Deus nestes termos:

De fato, Deus é experimentado por aqueles que podem vê-lo, desde que os olhos de sua alma estejam abertos. Todos têm olhos, mas alguns os têm obscurecidos e não percebem a luz do sol; e não é porque os cegos não vêem que a luz do sol deixa de brilhar, mas os cegos devem buscar a causa em si mesmos e em seus olhos. Do mesmo modo, ó homem, tu tens os olhos de tua alma obscurecidos por tuas faltas e tuas más ações2.

    Das consideradas "virtudes dianoéticas" para a visão de Deus, Teófilo parte da consideração de que há uma possibilidade de se conhecer Deus partindo de uma comparação entre as ações de Deus no mundo e o próprio Deus e as relações entre a alma e o corpo, ou partindo de uma reflexão sobre a estrutura da própria criação ou sobre as relações humanas, ou seja, partindo da "analogia entis":

Do mesmo modo como a alma não pode ser vista no homem, pois ela é invisível para os homens, mas pode ser imaginada por causa dos movimentos do corpo, assim também acontece com Deus: ele não pode ser visto pelos olhos humanos, mas pode ser visto e imaginado pela sua providência e pelas suas obras [...] Assim como o grão da romã, do interior de seu habitáculo, não pode ver o que está fora da casca, pois está lá dentro, também o homem, que é envolvido com toda a criação pela mão de Deus, não pode contemplar a Deus. Além disso, crê-se que um soberano terrestre existe, embora ninguém o veja: suas leis, seus editos, seus funcionários, suas autoridades, suas estátuas o tornam conhecido. E tu não queres reconhecer Deus pelas suas obras e manifestações de seu poder?3 (Ibidem 5).

    Orígenes que também enxerga a visão de Deus como o "fim" (τελος) do homem, afirma que há precondições morais para essa visão de Deus:

Além disso, segundo o que afirmamos, Deus, não sendo um corpo, é invisível. Mas através daquele que se entrega à contemplação, ele pode ser contemplado com o coração, quer dizer, com o espírito, e não com qualquer coração, mas com o coração puro. Pois não é permitido que o coração manchado veja a Deus, mas é preciso a pureza para se poder dignamente contemplar aquele que é puro4.

    Da mesma forma, partindo da relação entre o sensível e o inteligível, Orígenes afirma a possibilidade de conhecimento de Deus mediante o conhecimento do mundo, o que constitui o método mesmo da analogia entis:

E não é em obras pouco acessíveis, lidas somente por pequeno número de eruditos, mas sim mais populares, que está escrito: “Sua realidade invisível — seu eterno poder e sua divindade — tornou-se inteligível, desde a criação do mundo, através das criaturas” (Rm 1,20). Decorre daí esta conclusão: embora os homens nesta vida devam partir dos sentidos e do sensível quando querem se elevar até a natureza do inteligível, de modo algum devem se prender ao sensível. Tampouco diremos que é impossível sem o uso dos sentidos conhecer o inteligível, ainda que se proponha a questão nestes termos: quem pode conhecer sem o uso dos sentidos? Provaremos que Celso não teve razão em afirmar que isso não tem a ver nem com o homem nem com a alma, mas com a carne5.

    De forma mais ampliada e sistematizada, Agostinho especifica o que seriam tanto as condições morais como intelectuais para a apreensão da verdade divina. E começando por discorrer sobre os pré-requisitos morais para a compreensão da verdade ou do Logos divino, Agostinho prescreve disciplinas morais como segue:

Portanto, os jovens que se dedicam ao estudo dessa disciplina devem viver de tal modo que se abstenham de assuntos eróticos; dos prazeres da glutonaria; do desregrado cuidado e adorno do corpo; das fúteis ocupações com espetáculos; da indolência de tanto dormir e da preguiça; da rivalidade; da difamação e da inveja; das ambições de honras e poderes; do imoderado desejo do próprio louvor. Saibam que o apego ao dinheiro é um veneno certíssimo para toda a sua esperança. Não façam nada com fraqueza, nada temerariamente. Nas faltas de seus familiares reprimam a ira ou a refreiem de tal modo que ela pareça vencida. Não odeiem a ninguém. Não queiram curar todos os males. Observem muito ao punir para que não seja demasiado, e não seja pouco quando o castigo é reconhecido. Não deem castigo se não servir para melhorar e não perdoem se isto for ocasião para piorar. Julguem amigos seus todos aqueles sobre os quais vocês tenham recebido poder. Procurem servir-lhes de tal modo que vocês tenham vergonha de ter poder sobre eles; tenham poder sobre eles de tal modo que tenham prazer em servir-lhes. Nos pecados dos outros não se incomodem se eles não recebem a correção de boa vontade. Evitem com toda precaução as inimizades, suportem-nas com toda equanimidade, acabem com as inimizades o quanto antes possível. Em toda conversação e convivência com os homens basta observar este provérbio popular: Não façam a ninguém o que não queiram que lhes façam. Não aspirem a administrar a coisa pública se não forem perfeitos. E cuidem para se aperfeiçoar antes de chegar à idade para ocupar um cargo de senador ou, melhor, já na juventude. Mas, se alguém se converte em idade avançada a estas coisas, não pense que não lhe diz nenhum respeito este preceito: pois certamente guardará estas coisas com mais facilidade pela sua idade. Em todo tipo de vida, em qualquer lugar e ocasião procurem ter ou fazer amigos. Mostrem condescendência com as pessoas dignas, mesmo que elas não esperem isso. Não se perturbem por causa dos soberbos e de modo algum sejam como eles. Vivam de maneira apropriada e conveniente. Venerem a Deus, pensem nele, busquem-no apoiados na fé, esperança e caridade. Desejem a tranquilidade e um currículo seguro para seus estudos e para todos os seus colegas. Almejem uma mente boa e uma vida pacata para si mesmos e para todos aqueles para os quais vocês possam desejar6.

    Esse suíte imenso de prescrições exemplifica o itinerário moral para a visão de Deus, coisa já presente entre outros filósofos além dos filósofos cristãos. Mas esse esforço moral não é unilateral, pois é seguido também em paralelo com certas disciplinas que visam a elevação da mente para essa empreita. Nesse sentido Agostinho afirma:

    A seguir, exporei como devem instruir-se os estudiosos que já orientaram sua vida segundo o que foi dito acima. Necessariamente somos levados a aprender de dupla maneira: pela autoridade e pela razão. Em função do tempo, a autoridade tem prioridade, mas em função da própria coisa a prioridade está com a razão. Uma coisa é aquilo para o qual se dá prioridade ao agir e outra o que se tem em maior apreço na intenção. Por isso, embora à multidão ignorante pareça mais saudável a autoridade dos homens bons, a razão se adapta mais aos instruídos7.

    Avaliada a "dupla via de conhecimento", ou seja, pela autoridade e pela razão, Agostinho descreve o que seria propriamente a razão, e sua utilidade para o conhecimento divino:

A razão é o movimento da mente capaz de discernir e estabelecer conexão entre as coisas que se conhecem. Utilizar-se dela como guia para entender a Deus ou a própria alma que está em nós ou em toda a parte, é próprio de pouquíssimos no gênero humano, não por outro motivo senão porque para aquele que está disperso nos assuntos dos sentidos é difícil voltar-se a si mesmo8.

    Aqui o hiponense segue a tradição filosófica que moldou muito o seu pensamento, ou seja, o platonismo, que também afirma ser a posse da razão privilégio de poucos, além de fazer estabelecer o paralelo entre o múltiplo e o mundo sensível caracterizado pela da dispersão da atenção (na sensualidade e demais prazeres e objetos de cobiça), e o uno à razão. Indo adiante, Agostinho expõe o como que as disciplinas liberais podem ser vias de acesso à verdade, isto é, como elas podem ser vias de ascese mental pelas quais afiamos a nossa razão, tornando-a um instrumento capaz de captação da verdade naquilo que lhe é possível. Assim ele destaca as disciplinas da gramática, dialética, retórica, a, aritmética, música, a geometria e a astronomia, ou seja, as sete disciplinas das artes liberais, senso estas matérias propedêuticas (que perfazem o ensino básico, ou introdutório) à compreensão da realidade, realidade que envolve a realidade do mal, da ordem do mundo, da distinção entre sensível e inteligível e da natureza da alma, assim como natureza de Deus.

    Após discorrer sobre os pré-requisitos morais, assim como os requisitos intelectuais para a contemplação de Deus, Agostinho afirma sobre o fim dessa praeparatio:

Estas e muitas outras coisas a alma bem instruída fala consigo mesma e desenvolve dentro de si. Mas não quero prosseguir nessas reflexões para que, uma vez que desejo ensinar-lhes sobre a ordem, não venha eu a ultrapassar o modus (comedimento), que é o pai da ordem. Pois a alma se eleva gradativamente à perfeição de costumes e de vida não apenas só pela fé, mas também com certa razão [...]

Mas quando a alma se adorna e se ordena e se torna harmoniosa e bela, ousará ver a Deus e a mesma fonte de onde mana toda a verdade e ao próprio Pai da Verdade. Grande Deus, como serão aqueles olhos! Como serão puros e formosos, vigorosos e firmes, serenos e felizes! E que é aquilo que eles veem? O que, digam-me. O que podemos julgar que seja, o que avaliar, o que falar? Diariamente ocorrem-nos palavras, mas que são todas elas manchadas de coisas muito vis. Nada mais direi senão que nos é prometida a visão da beleza, por cujo reflexo são belas as demais coisas e se tornam feias se comparadas com ela.10.

    Obviamente que Agostinho não nega que os não instruídos nessas artes não possam vir a conhecer a Deus, muito embora ele tenha a tendência a não considerar os indoutos como felizes neste mundo, como segue:

Mas aqueles que, satisfeitos apenas com a autoridade, se aplicam com constância a uma vida de bons costumes e desejos justos, porque ou desprezam a aprendizagem ou não têm força de vontade suficiente para instruir-se nas boas disciplinas liberais, não sei como poderia chamá-los de felizes nesta vida, mas creio firmemente que, logo que saírem deste corpo, terão maior facilidade ou maior dificuldade em liberar-se conforme tenham vivido mais ou menos retamente11.

    Contudo não se deve desprezar que esse livro, mesmo que evidentemente profundo, foi no início carreira teológica de Agostinho. Assim, nas Retratações, texto escrito no cume de sua maturidade teológica, Agostinho faz certos reparos críticos à sua obra A Ordem, como se segue:

Na mesma época, escrevi também dois livros sobre A Ordem, no intervalo dos escritos sobre os acadêmicos. É importante a questão de que neles se trata, ou seja, se a ordem da divina Providência abrange todas as coisas boas e más. Ao perceber que o assunto era difícil de ser compreendido, e muito mais difícil para a percepção daqueles com os quais dele tratava, preferi deixar de discutir e preferi falar da ordem no aprender, com a qual se pode progredir do que é corporal para o não corporal.

Mas, nestes livros, desagrada-me também ter intercalado muitas vezes o termo "fortuna". E por não ter acrescentado "do corpo", ao mencionar o sentidos corporais. E por ter dado muita importância às disciplinas liberais, ignoradas por muitas pessoas santas, e alguns, que as conhecem, não são santos12.

    É certo que todos esses arrazoados expostos acima indicam disciplinas a serem executadas por nós afim de se garantir o conhecimento de Deus, como que sugerindo uma via de acesso que parte de baixo para cima. Mas se analisarmos bem a questão esse tipo de compreensão não pode ter lugar mesmo entre os autores que proferiram essas palavras. Não há, em absoluto, potência no homem para "achar a Deus". Todas essas disciplinas são como são, ou seja, praeparatio, ou preparações que não garantem em absoluto que o objeto a que se visa será dado. Agostinho, o grande pai do monergismo no cristianismo antigo, evidentemente entende que achar a Deus é graça e que essa ou vem de Deus ou não vem de lugar algum.

    Agostinho comenta essa questão relativa à necessidade da graça a fim de encontrarmos a Deus:

Pelágio prossegue e diz no livro antes citado: "Aquele que faz bom uso da liberdade, entregar-se totalmente a Deus, mortificando sua vontade de modo que pode dizer com o apóstolo: 'Eu vivo, mas já não sou eu que vivo, pois é Cristo que vive em mim' (GL 2,20); e deposita seu coração nas mãos de Deus para que ele 'o incline para qualquer parte que ele quiser' (Pr 21,1)".

É grande ajuda da graça divina, sem dúvida, que ele incline o nosso coração para onde quiser. Mas essa grande ajuda nós a merecemos, conforme ele disse na sua loucura, quando, sem outra ajuda, que a do livre-arbítrio, corremos para o Senhor, desejamos ser dirigidos por ele, submetemos nossa vontade à dele e, aderindo-lhe constantemente, constituímos com ele um só espírito. E Ester bens tão extraordinários, segundo ele [Pelágio], nós os conseguimos somente pela liberdade do arbítrio. E assim, com estes méritos precedentes, conseguimos que ele incline nosso coração para onde quiser.

E como pode chamar-se graça, se não é dada de graça? Como pode chamar-se graça, se é pagamento do que é devido? Como dizer que é verdade o que diz o apóstolo: 'E isso não vem de vós, é dom de Deus; não vem das obras, para que ninguém se encha de orgulho'? (Ef 2,8-9). E novamente: 'E se é por graça, não é pelas obras ; do contrário, não é mais graça'? (Rm 11,6)13.

    Nesse ponto se torna óbvia a afirmação de que inclinar-se a Deus é algo possível unicamente pela graça, assim como encontra-lo. Também Orígenes, teólogo cujas afirmações polêmicas no faz julga-lo como alguém que cria ser a graça de Deus recompensa de méritos pessoais, afirma no Contra Celso nada menos de que a graça divina é aquilo que nos proporciona o que não podemos obter pela nossa natureza, como se segue:

Platão pode dizer: “Descobrir o autor e pai deste universo é muito árduo”: ele dá a entender que não é impossível para a natureza humana descobrir a Deus como ele merece ou, se não como ele merece, pelo menos mais e melhor do que a multidão. Se isto fosse verdade e Deus fosse realmente descoberto por Platão ou por algum dos gregos, eles não teriam venerado, chamado a deus, adorado nenhuma outra coisa, quer abandonando-o, quer associando nele coisas incompatíveis com sua majestade. Nós, porém, sustentamos que a natureza humana não é capaz, em si mesma, de modo algum, de procurar a Deus e descobri-lo com pureza, a não ser que seja ajudada por Aquele que procuramos14.

    A questão das disciplinas espirituais deve ser bem localizada afim de evitarmos equívocos. E como podemos perceber elas não são garantias de acesso a Deus em sentido absoluto, e isso porque, em 1º lugar somos feridos pelo pecado, e em 2º porque tal acesso é realidade absolutamente aberta a nós pela graça. Mas não podemos ignorar que é unicamente no estado da natureza intacta que podemos ter unidade com Deus, ou seja, quando amamos verdadeiramente (condição moral), e assim podemos ver a Deus verdadeiramente (uso pleno da faculdade intelectual ou noética).

    Olhando pelo ângulo do fim último, ou considerando a questão escatologicamente, não podemos ignorar que a realidade dessas disciplinas e seus fins se apresentam para nós como um padrão absoluto que deve ser amado e sempre buscado, pois tal padrão é, como diz Agostinho, uma lei eterna para nós, e mesmo no estado de imperfeição devemos buscar realizar em tudo o que somos a medida absoluta de Deus, a qual é, no fim, Amar a Deus de toda nossa alma, força e entendimento, e amar o nosso próximo como a nós mesmos.  

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[1] AGOSTINHO. A Ordem. II.VIII.25

[2] TEÓFILO. A Autólico I.2

[3] Ibid. 5

[4] ORÍGENES. Contra Celso. VI.69

[5] Ibid. VII.37

[6] AGOSTINHO. A Ordem II.VIII.25

[7] Ibid. IX.26

[8] Ibid. XI.30

[10] Ibid. XIX.50,51

[11] Ibid. IX.26

[12] Idem. Retratações. I.3

[13] Idem. A Graça de Cristo e o Pecado Original. I.31

[14] ORÍGENES. Contra Celso.VII.42