quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Os Revolucionários: Nada de Novo Sob o Sol



   Os hereges da idade média abriram o capítulo da especulação sobre o Terceiro Reino, a iniciar por Joaquim de Fiore. Acreditavam eles que, após o reino do Pai (a Lei Mosaica), do Filho (o reino dos sacerdotes descendentes dos apóstolos), viria o Reino da Liberdade do Espírito Santo - onde todas as instituições corruptas, desde a Igreja aos reinos, seriam derrubadas pelo advento do povo de Deus, o povo sábio guiado unicamente pelo Espírito, o povo santo que possuía o "futuro nas mãos".

   Tais especulações, de certa forma, ficaram tão grudadas ao imaginário do ocidente que não é estranho ver tais ideias inundarem movimentos de massa, como a tentativa por parte dos franciscanos de implantar um comunismo na Idade Média; dos puritanos de reduzir a Inglaterra a pó, aniquilando com a impiedade inglesa e com os os "ímpios" - o que culminou da ditadura de Oliver Crowell -; dos iluministas franceses que crendo ter atingido a iluminação, aniquilaram o "Ancien Régime" decepando a cabeça dos padres e dos "inimigos do povo"; dos marxistas que, afirmando o proletariado como a classe possuidora do "futuro nas mãos", iriam derrubar na bala os governos e os burgueses, inaugurando o "novo mundo" e o "novo homem"; e dos nazistas, que crendo estar no cume da evolução humana, buscaram solapar todas as bases do antigo regime alemão inaugurando o Terceiro Reich (sim, o Terceiro Reino) - todos foram incendiários, e os três últimos foram realmente destrutivos.

   Esse desejo brutal pelo "novo", por varrer a "iniquidade do mundo" é algo tão velho quanto a tentação adâmica de superar o "antigo regime" no Jardim do Éden. É por isso que um pessimismo saudável derivado da teologia do pecado original, juntamente com a reverência pelas experiências dos antigos, poderiam aplacar esse otimismo que pensa poder construir um novo futuro, sumindo com as ruínas do presente - pois, como dizia o sábio e pessimista Salomão: nada há de novo debaixo do Sol.

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Notas Sobre a "Fome de Justiça"

   Quem não desconfia que muito do "senso de justiça" reinante não seja apenas um manto para disfarçar o desejo de desrespeitar, ofender, destruir, subjugar e dominar? Não me admira que muitos dos que defendem de forma terrível a sua "causa" façam isso porque a militância disfarça sob o manto da virtude aquele desejo patológico que se visto em si mesmo só enxergaríamos como o fruto de um caráter deformado e o desejo puro de destruir. No século XVI e XVII foram os puritanos dizendo que queriam obedecer a Bíblia, se afirmando como "sacerdotes da humanidade", causaram desordens não experimentadas no curso de um milênio na Europa; no século XX os defensores dos pobres promoveram um morticínio em escala nunca antes vista na história humana; no Brasil, há trinta anos, os defensores da ética estão desfigurando com ódio as afeições mais humanas e o senso de realidade mais apurado.

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   Tem quem defenda, em nome da justiça, algo que na prática só pode ser feito por um golpe militar. Quando o ódio ferve e temos o desejo de "chutar todos os políticos" devemos pensar que isso só pode ser possível por um poder altamente organizado. A única instituição capaz disso é o Exército (que, hoje, 2016, não está afim disso)... Mas por outro lado isso é um discurso oportuno apenas para extremistas. Por tanto, vamos com menos ardor e mais cautela. As paixões tendem a emburrecer e causar confusão sobre a questão do debate, pois não proporcionam aquela visão de longo alcance que nos mostra a consequência dos nossos atos -- Todo apaixonado inveterado é um desastre em um mundo que funciona movido também por ideias. 

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   A "fome de justiça" como virtude isolada de outras virtudes é um desastre. É semelhante a uma fé sem amor, pois uma fé sem amor se transforma em fanatismo, ou degenera em vontade demoníaca de poder. De que adianta exercer poder quando isso se faz de forma irracional ou quando achamos que devemos impor a nossa "ideia de bem" ao mundo, não analisando nossos pensamentos para ver se eles, de fato, farão bem ao mundo? O idealista acrítico que pensa que o seu desejo por justiça pode contribuir com o mundo, quando a sua ideia de justiça está errada, só faz com que se alargue ainda mais a ruída de um mundo que ele prometeu curar. Não deveríamos parar de agir para refletir sobre que tipo de bem queremos para o nosso mundo? Se falar sem pensar é vergonhoso, por que aqueles que não entendem do que falam deveriam nos mostrar as saídas de uma situação com relação a qual eles nunca pensaram direito? E por fim: será que não estamos caindo em um misticismo que crê que "desejar o bem" é, por isso mesmo, materializá-lo? Quem foi que ensinou, por tanto, que a "fome de justiça" isolada em si mesma seria boa e não má ao nosso pobre e debilitado mundo?

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   A obstinação em não estudar, em não entender a realidade, mas transformá-la (como apregoava o velho Marx), é um dos empreendimentos mais suicidas que existe. Hoje sofremos uma infestação de palpiteiros que não entendendo do que falam propõem fórmulas mágicas para a salvação do mundo, como se o simples querer o bem fosse o suficiente para realizá-lo.

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   Maldita hora em que no Brasil se decidiu - como pontificava Paulo Freire -, não ter mais aquele tipo de educação "conteudista", onde o professor ensinava regras de gramática, matemática, e não fazia da pedagogia um meio de levantar uma geração de ativistas, "educando-os para a libertação". Mas hoje se estigmatiza o ensino em favor da educação, e temos como recompensa uma geração de burros que optando por não mais entender a realidade, buscam apenas "transformá-la" segundo um modelo preconcebido, agindo de forma a tornar o mundo em algo brutal e irracional à semelhança de suas próprias inteligências. A UNE, esse apoio a um tirano como o Fidel por parte da maior parte da imprensa, são evidências concretas desse emburrecimento maciço e dessa perda de realidade e humanidade que os moldes do ensino de Paulo Freire proporciona.

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   A política é um bem, mas quão mal vai um mundo onde tudo é política e onde tudo está preso aos chavões que tomados por princípios nunca são pensados, mas inculcados como verdades evidentes. Isso é fato quando vemos que a luta total pelos pobres gerou a pobreza total; a luta pela liberdade total a escravização total; a luta pela igualdade total a tirania total; a luta pelo sexo total a esterilidade total; a luta pela politização total a guerra total. Quando é que vamos parar de buscar transformar o mundo e nos perguntarmos que tipo de mundo teremos das ações que, em nome de uma justiça desejada (mas não pensada), pretensiosamente julgamos inquestionavelmente boas por si mesmas?

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Racismo


   Você pode até reconhecer que o povo alemão foi, outrora, chamado de bárbaro, inculto e portador de uma língua extremamente confusa que servia - como dizia Bismark, um alemão - para conversar com cavalos. Mas ninguém sensato há de negar que Mozart, Bach e Wagner foram um dos maiores músicos de todos os tempos, e que Leibniz e Schelling foram um dos maiores filósofos da humanidade.

   Mas vamos nos perguntar algo: Será que o insucesso ou o sucesso do povo alemão se deve ao DNA germânico? Isso é um absurdo grotesco - e, na verdade, racismo, ainda que positivo. E por que há, então, toda essa luta feroz na defesa de uma cultura negra contra uma cultura branca - como se houvesse uma unanimidade de pensamento entre os negros? Afirmar isso não seria uma mentira? Seria, pois a cultura nasce de indivíduos ou de grupos que aceitam ou rejeitam valores.

   O assunto como posto hoje em dia evidencia uma clara perda de realidade, sendo que essa confusão chegou a tal ponto que se um negro rejeitar como valores seus aquilo que o pensamento politicamente correto pensa ser "valores negros" e passa a usar terno, gravata e sapatos, ao invés usar roupas que realcem a sua "africanidade" (e nada contra alguém realçar a sua africanidade), o próprio negro é tido - como disse o jornalista Paulo Henrique Amorim, processado e sentenciado por isso - como alguém tendo "alma branca" - o que é, evidentemente, absurdo, racismo e desumano, pois nega um fator característico que distingue a humanidade: a liberdade para aceitar e rejeitar valores.

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

A Conquista de Si

   Há uma dificuldade imensa em manifestar-se ao mundo a partir da totalidade de nossa realidade interior e da forma como percebemos cada evento, sentimento, pessoa, ideia etc. Como dizia Nietzsche: "todo espírito profundo possui uma máscara."

   Algumas razões se impõe sobre a vida para que a "revelação total do eu" seja inibida: trabalho, amizades, compromissos, convenções sociais, cultura etc. Mesmo Jesus Cristo buscou revelar-se pouco a pouco - e se apresentou de forma gloriosa, enquanto estava peregrinando neste mundo, só a Pedro, Tiago e João no alto do monte tabor (longe das massas), pedindo segredo para os três que viram.

   Assim como, segundo Lutero, esta vida não é devoção, mas a busca pela verdadeira devoção, também no nosso hoje não desfrutamos do nosso verdadeiro eu, mas sim da cruenta, difícil e pesada busca por um. Aqui há dois caminhos: ou enfrentamos a cruz da busca, ou aderimos às facilidades e falsidades excitantes do mundo - é nesse sentido que podemos compreender a seguinte frase no livro do Apocalipse, se referindo à razão da vitória dos Mártires sobre a Besta e sobre o Falso Profeta: "E não amaram a própria vida até à morte" - já que vislumbravam algo superior a tudo o que existe neste mundo.

   Somos convidados a crucificar dia a dia o nosso eu pelo ao bem e pela perfeição absolutos. Mas não nos elevando a lugares que não são os nossos, e não fugindo da dor e da perda fé em si mesmo que o auto-conhecimento nos proporciona, lancemos como peregrinos nesta terra toda a nossa confiança na graça do Deus da verdadeira devoção e do verdadeiro eu a serem conquistados totalmente na eternidade.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Burguês de Esquerda; Ou: O Radical Chique


   Não sigo apenas minha cabeça, mas leio livros e análises de pessoas mais inteligentes do que eu para não revestir a minha falta de informação de autoridade, e sair desinformando gente mundo afora. Assim segue, e afirmo que o Partido Democrata americano e a própria Hillary está à esquerda do espectro político. A própria esquerda americana inclui artistas, juristas, acadêmicos, cineastas, jornalistas, apresentadores de TV (gente chamada por lá de "radical chique", "esquerda limousine", o a nossa conhecida expressão "esquerda caviar"), como All Gore, Angelina Jolie, Brad Pit, George Clooney - que foi contra o impeachment da Dilma -, Richard Gere, Jhon Travolta, Whoopi Goldberg, Ben Affleck, Leonardo DiCaprio, Cameron Diaz, George Soros etc.

   Contudo há uma distinção substancial entre o pensamento de esquerda americano e a versão europeia, já que o primeiro sofreu condicionamentos específicos por causa da própria história constitucional americana. Roger Scruton, um dos principais teóricos do pensamento conservador britânico já explica o que distingue o pensamento de esquerda americano, como segue:

   “O pensamento americano de esquerda é uma espécie diferente de sua contrapartida europeia, tendo seguido um caminho evolucionário à parte, em condições não propícias ao desenvolvimento da hostilidade. No entanto, ele compartilha com o socialismo europeu certa estrutura subjacente, e exerceu uma influência similar, ainda que tardia. O triunfo da constituição dos EUA foi fazer da propriedade privada e da liberdade individual características inalienáveis, não somente para o plano político, mas também para o próprio pensamento político. Quase toda filosofia americana com inclinação esquerdista no século XX fundou-se em preconcepções liberais, e uma parte muito pequena desafiou a instituição da propriedade. Em vez disso, ela concentrou-se em denegrir as formas vulgares que a propriedade pode assumir – ‘consumismo’, ‘consumo fútil’, ‘sociedade de massas’ e ‘publicidade de massas’.[...] É o espetáculo da propriedade nas mãos de pessoas comuns, descentes, rudes e incultas que atribulou as percepções da esquerda.” (SCRUTON, Pensadores da Nova Esquerda p. 39)

   O ódio ao “common sense” (o senso comum) por parte dos “radicais chiques” é conhecido entre os americanos. Na recente corrida presidencial que deu a Trump a vitória sobre Hillary Clinton, os analistas (estrangeiros e brasileiros) apontaram um fator essencial para a vitória do Magnata: “homens brancos que não possuem ensino superior”. Geralmente é ao homem rude, simples e não intelectualizado - algo extremamente valorizado no pensamento conservador anglo-americano, como relata o filósofo germano-americano Eric Voegelin – que está sob a mira dos pensadores de esquerda nos EUA. Não é de estranhar já que o homem comum não está interessado em grandes engenharias sociais, nas múltiplas formas de constituição familiar, liberação do consumo recreativo de drogas e do aborto indiscriminado, pois seu costume é tipicamente o do homem trabalhador que vive para cuidar de si, da sua família e ir a um culto em alguma igreja nos dias de domingo. Por tanto, nada de utopias e de grandes transformações sociais – algo que excita a imaginação de esnobes californianos e nova iorquinos.

   Por último é bom lembrar que grande parte deste flerte com o pensamento da esquerda chique americana pode ser visto no Brasil como nas novas modas de ciclistas, que na busca por não não poluir a atmosfera da cidade optam por um rolê de bike. Assim também, eles optam pelo vegetarianismo como um ato político contra o sofrimento dos animais, ou buscam sintonizar com as energias da natureza - não raro com ajuda de maconha - tão maltratada pela sociedade de mercado, ou em nome da substituição às religiões “opressivas” e “tradicionais”. Tais são as formas do pensamento político de esquerda dos EUA e que são representados no Brasil por indivíduos como Fernando Haddad ou por Marina Silva. Nada há de estranho neste pensamento chique que atrai, grosso modo, gente de classe média entediada que se sente culpada pelo próprio sucesso e que, como um ato de purgação da consciência, adere a certas agendas cult, pensando que comer rúcula e dar um rolê de bike irá salvar o mundo.

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Capitalistas de Esquerda

   Grandes empresários que servem à agenda da esquerda não são elefantes cor-de-rosa. É até engraçado ver no Brasil a quantidade de mega-empresários que se fizeram de uma agenda progressista nos costumes e na estrutura política uma pauta de ação - vide Eike Batista, Odebrescht, OAS, Júlio Camargo e até o engenheiro Paulo Maluf, que disse se sentir um comunista quando próximo do Lula - e ainda haver dúvidas sobre isso.

   A razão pela qual grandes corporações se servem de políticas de esquerda é que com o aumento da carga tributária, e a escolha de empresas de grande porte em processos de licitação (porque podem fazer serviços a preços mais acessíveis do que as pequenas empresas), os pequenos empresários são ELIMINADOS dos negócios, destruindo a concorrência e abrindo espaço para o oligopólio das grandes corporações.

   Tudo isso é uma espécie de jogo de xadrez, e quem ler o livro do economista Kelvin D. Williamson "The Pollitically Incorrect Guide to Socialism", ou o livro do filósofo Roger Scruton "Thinkers of New Left" não irá se assustar com a informação. Mas no Brasil isso é um segredo ainda restrito a um pequeno grupo de iniciados. E quem somos nós quando, neste país, a falta de informação é o próprio critério de autoridade?

A Eleição dos EUA e a Segunda Realidade


   Quem quiser se informar com os canais de informação tradicionais, ainda vai ter muita vergonha e errar o resto da vida - e mesmo que todo mundo te ache lindo, esperto ou simpático, a sua opinião não valerá uma rolha, e ainda fará que as pessoas que você tem por queridas errem.

   Na semana passada, quando contestei um amigo meu sobre a credibilidade da Globo News ele, meio consternado, me perguntou: mas em quem você confia? - ao que eu disse: Fox News. É óbvio: ela não é um deus ou um demiurgo, mas quase ninguém que conheço em lugar algum conhece alguma interpretação de fatos fora daquilo que os nossos canais tradicionais de informação apresentam (com uma unanimidade vergonhosa), mas vivem sendo alimentadas por uma segunda realidade plantada pelos ativistas (que não pretendem entender a realidade, mas transformá-la) e pelo beautiful people "bem-pensante".

   Esses mesmos são os que não entenderão a eleição americana, mas ficarão surpresos porque os nossos canais tradicionais de mídia ainda tratarão justificar que o monstro que pintaram do Trump foi eleito por causa da degeneração brutal da mente americana com relação à realidade, ao desprezarem um indivíduo angélico chamado Hillary (a monstra do ISIS, das drogas, da cultura libertina e do aborto até os nove meses de gestação) - se o Trump não é um anjo (e não é sob hipótese nenhuma), a Hillary é reprovável, não sendo melhor sob aspecto nenhum (excetuando a retórica).

   Mas o sinistro é que esse fenômeno é idêntico àquilo que Karl Kraus, jornalista germânico que presenciou a ascensão de Hitler ao poder, disse sobre o papel de degeneração mental dos alemães causada pela imprensa, que, literalmente, empurrou quase que a Alemanha inteira para a segunda realidade contra os judeus - já que o novo judeu será o americano branco sem ensino superior.

   O que ocorrerá será o seguinte: vai ser difícil a camada "bem-pensante" reconhecer seus erros, já que não tendo consciência moral, a tarefa mais fácil será justificá-los - não importa que monstruosidade seja plantada na realidade a partir daí. É óbvio que isso não pode acabar bem, já que o pior convicto é o mal-informado.

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Notas Sobre a Soberba

   Assédio moral é a arma do diabo para diminuir as pessoas, descreditar a igreja etc. Há muito mais misericórdia na igreja, na ideia de perdão dos pecados, do que há em um mundo hipócrita que não desejando apontar o erro para a correção da conduta, deseja simplesmente a aniquilação do indivíduo por causa de um erro causado. Sem pensar, a tendência para a qual o nosso mundo vai, constrói para ele um cenário de suicídio, pois é óbvio que ninguém está incontaminado pelo erro, já que cada qual tem do pecado um quinhão. Mas por causa deste moralismo hipócrita, a indignação afetada o mundo só cava o buraco onde irá cair. É questão de tempo até ele "resvalar o pé" e cair em contradição, como diz o Salmo, e ser enforcado na forca que ele mesmo preparou para que outro fosse enforcado em seu lugar.

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   Não acredite jamais em indignação afetada. Há quem, por "amor à justiça" duvide de um cristianismo de um pecador, pelo fato de ele cometer um erro, ou uma série deles. Não caia nessa, daqui a pouco será você a ser destruído por esse moralismo afetado. Há diferença entre o indivíduo que aponta o erro fatal de alguém, e o julgador que se alegra com a queda do seu inimigo. Não nos alegremos por causa da miséria moral de ninguém. Podemos até ser irônicos quando alguém erra; mas não há ironia que não esteja permeada por uma íntima dor, pela sensação de que o conjunto da obra não é o que deveria ser e que ela não é assim mesmo que estejamos dentro dela. Onde se encontra aquela vontade por expiação e arrependimento que são direcionados ao PECADOR, ao errante, e que não desejando a sua morte quer, antes de tudo, o seu arrependimento? Sejamos amigos com os que erram, pacientes, não fazendo a divisão escarnecedora entre nós e eles.

*

   Todo o falsário se compreende com o centro do mundo, o estágio mais avançado da humanidade e o ápice da razão. É duro e humilhante constatar que não somos o que queríamos ser. Mas há valor em quem se lança a si mesmo para a periferia da razão, reconhecendo que há quem seja melhor do que ele mesmo. Já o megalomânico só pode ser tratado com ironia, nunca com uma verdade direta - tal como Jesus em suas parábolas. E é até interessante ver como ele mesmo afunda em sua própria sabedoria afetada. Mas é tremendamente doloroso ver quantas pessoas ele arrasta consigo. Há sabedoria, às vezes, em ver Roma pegando fogo e, como Nero, contemplar tudo tocando harpa.

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Política como Ferida

   Política é aquele tipo de ferida que você deve cuidar não porque você goste dela, mas porque se ela inflama demais, acaba te matando.

   Por exemplo, por mais preguiça que eu sinta quando alguém faz terra rasada da pobreza existente na África e na Europa, não dá para ficar assistindo achando que tudo está bem como os padrões de comparação que andam por aí.

   Sinto, como todo mundo que consegue interpretar um texto sente em situações assim, que muita coisa já se perdeu, e que o mundo não deseja enxergar a realidade.

   Mas lutar por uma causa perdida é muito melhor do que simplesmente olhar e deixar o bonde passar, ignorando, em silêncio, o descarrilamento assassino em seus trilhos.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Evangelho e Pobreza

   Qualquer ser humano deve ter um cuidado especial para com os pobres - e principalmente no que toca à única coisa necessária. É interessante que Jesus, mais do que nutri-los, cuidou da educação moral e espiritual deles, preparando-os para a dignidade de Filhos.
   A pobreza não é virtude, mas uma realidade contingente - ou seja, não é uma categoria fixa da existência do homem, pois antes de o pobre ser pobre, ele é homem, um igual a todos. Quão mal não faz a ideologia quando coisifica o pobre, asfixiando-o e imobilizando-o dentro de categorias ou classes. Nesse sentido a ideologia - de tipo marxista -, operando por meio de uma coisificação brutal, priva-os daquilo que caracteriza seres humanos racionais: a liberdade, o compromisso, situando-os no aspecto da classe acima da sua própria humanidade e determinando a mesma, como ele disse: o proletariado possui as suas próprias categorias de pensamento.
   A primeira área em que Jesus atuou foi a do espírito - conteúdo universal a todo homem -, pois a fé todos podem possuir em qualquer lugar, independentemente das classes. Podemos ter fé em um escritório, no campo, na cidade, em uma sala de aula, na prisão, no leito de um hospital, na favela, no centro da cidade e mesmo no alto de uma Cruz.
   Revoluções sociais e políticas não são necessárias para a libertação última do homem, no máximo consistem em um tipo de lida de um problema humano, e que não raro geram outros problemas infinitamente maiores. O Evangelho, contudo, não tem necessidade de nada disso para ser aquilo que é: o apelo máximo e mais contundente ao espírito humano - e, no fim, como disse Jesus a Marta, a única coisa que, em última instância, importa.

sábado, 17 de setembro de 2016

Valores até à Morte



   Uma ética verdadeira é aquela que, como diz a carta aos Hebreus, resiste até ao sangue. Se uma ética boa não pode, por amor, derramar ou sofrer o derramamento de sangue é porque não é ética, nem tão pouco amor.

   Isso é forte? Pense só mais um pouco: se formássemos uma consciência sobre aquilo que é moral apelando apenas para as nossas comodidades e caprichos é óbvio que a melhor escolha seria determinada pelo nosso conforto e, por tanto, estaríamos livres do sacrifício e da escolha radical, já que seria a nossa vontade que moldaria os nossos valores e jamais seriam os valores que moldariam a nossa vontade.

   Nesse sentido até onde levaríamos a máxima de apenas fazer o bem e jamais o mal, mesmo em circunstâncias onde fazer o bem custe a vida? Onde levaríamos aquela máxima moral, que é a seguinte: "haja de maneira que você possa querer que a sua atitude seja transformada em uma lei universal", como diria Kant, o velhinho corcunda de Königsberg? É óbvio: será que desejaríamos que nossas ações direcionadas aos outros fossem praticadas por outros com relação a nós? Mais: será que aquilo fazemos em nosso quarto, ou escondido dos olhos alheios, poderia ser praticado por qualquer outra pessoa em qualquer tempo e lugar do mundo, e nas mesmas situações, ou que tal atitude seria de pleno agrado de todos, algo a ser ensinado para os nossos filhos ou praticado pelas pessoas que mais amamos e admiramos, sem isso ferir o nosso amor ou admiração? Pense bem: será que o nosso mundo seria o que é se retirássemos dele o auto-sacrifício ou aquela disposição divina de levar até às últimas consequências o nosso amor ao bom e o verdadeiro - o motor de tudo aquilo que é belo em nosso mundo?

   Se o martelar de toda essa ideia de uma disposição de buscar incondicionalmente o bem até às raias da morte fosse subtraído de nós - ainda que a experiência da realidade nos mostre a raridade ou a nulidade desta disposição em seres humanos concretos - daríamos espaço para a formação de um mundo de interesseiros, de bestas malignas, irracionais e perversas que devorariam tudo, deixando atrás de si apenas um rastro de dor sem recompensa e de infinita destruição. E mesmo que alguém fale da impossibilidade de concretização da virtude no mundo humano, objetamos com o fato de que os valores não estão aí para prestar condolências aos homens, visto que eles nada mais fazem do que apontar o caminho para cima, pois, militando contra a razão dos valores e contra o amor incondicional a eles, o que sobraria do nosso mundo senão a justificação de uma ruína sem fim?

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

A Destruição do Corpo e a Destruição do Mundo


   A ideia de considerar o corpo uma propriedade tem um quê de maligno, já que não existe uma separação entre o eu e o corpo pois o meu eu e o meu corpo somos uma coisa só. Isso por si só já deveria nos prevenir da ideia tipicamente moderna de que o corpo é uma propriedade a nossa disposição para fazermos dele o que bem quisermos.

   Há aqui um pensamento perigoso e destrutivo, pois se o meu corpo é minha propriedade eu posso vendê-lo, rasgá-lo, deformá-lo, desfigurá-lo, riscar ele e inserir objetos cortantes como bem quiser nele e tudo bem: meu corpo, minhas regras. Na raiz deste pensamento destrutivo está a razão da destruição do nosso próprio mundo: não há razões para distinguirmos entre a ideia de posse do nosso corpo e do nosso mundo longe da destruição consequente de ambos.

   Na medida em que entendemos o mundo e nosso corpo como propriedade, proclamamos a soberania de nossa vontade sobre o nosso corpo e sobre o mundo. Nesse sentido é que agem aqueles que destroem a face do mundo, picham muros, enchem as ruas de lixo, destroem construções e paisagens urbanas que trazem em si uma harmonia que embeleza a cidade, tal como pessoas que picham e entulham de metais seus corpos, deformando-o e desfigurando-o.

   Já alguém disse que o ódio à beleza é sempre totalitário, e não há nada mais totalitário do que proclamar a nossa vontade soberana sobre o nosso corpo e o nosso mundo, entendendo-os como escravos a existirem a serviço dos nossos caprichos.


   Essa foi a própria mentira com a qual a serpente enganou o primeiro casal: sereis como deuses; e como deuses, podeis fazer o que vocês quiserem sem prestar contas a ninguém. Quem duvida que é essa ideia mesma que traz o caos e o inferno para a superfície da história? 

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

A Desordem do Mundo e a Agonia do Espírito



"[...] Platão tinha desenvolvido o conceito de 'nosos' para indicar a desordem de um espírito que tinha perdido a sua orientação religiosa e espiritual; agora, com a ruptura da pólis [a cidade-estado grega], o 'nosos' se torna um mal social disseminado e atinge o ponto de uma deformação patológica da mente. O 'nosos' da mente é, assim como o surgimento da psicologia, um sintoma de desintegração política. A principal função do 'cósmion' político [ordem política onde se é possível fruir uma vida que veja o seu sentido existencial, ou de vida, realizado] é [...] diminuir a ansiedade existencial do homem ao dar à sua alma, pela evocação mágica de comunidade, a garantia de ter um lugar significativo em um cosmos [ordem da realidade] bem-ordenado. Quando o encantamento mágico perde a sua força [ou quando a ordem política perde autoridade por causa de ameaças internas ou externas], as inquietações primordiais são novamente liberadas; o mundo circundante torna-se uma vastidão desordenada, cheia de perigos desconhecidos, pressionando a alma humana; e o espírito que é exposto a essa experiência de desordem pode romper-se com a tensão; pode tornar-se desorganizado ao ponto de tatear em busca de qualquer ideia ou pessoa que pareça deter uma promessa de proteção e apoio. Os fenômenos sociais que acompanharam esse período [da desintegração do sentido conferido pelas ordens políticas] foram, assim na época helênica como na nossa, um aumento prodigioso no número de círculos esotéricos, de clubes, de comunidades espirituais semirreligiosas e escolas do pensamento, a ascensão de novos movimentos religiosos e seitas, o aparecimento de salvadores e líderes e a fundação da filosofia de conduta."

Eric Voegelin. História das Ideias Políticas Vol. I. Helenismo, Roma e Cristianismo Primitivo. Ed. É Realizações. p. 113,114.

sexta-feira, 29 de julho de 2016

O Culto a Dionísio: A Espiritualidade da Desintegração Social


   No período em que governou a Heléade - conjunto de cidades helênicas - o governador Psístatro (561-527 a.C.) difundiu o culto a Dionísio, com a clara intenção de destruir a coesão de famílias tradicionais e, desta forma, eliminar a influência delas sobre a sociedade helênica. É o que lemos no início do livro "História das Ideias Políticas Vol. I" de Eric Voegelin, editado e distribuído no Brasil pela Editora É Realizações.
   A informação surpreendente deve ser captada a partir da estrutura do culto de Dionísio de maneira a compreendermos o seu logos (sentido), afim de encontrarmos uma identidade deste fato histórico na história política das religiões, assim como nas correntes formas modernas de ideologias cujo dionisíaco mantem-se presente.
   Mas antes de mais nada devemos entender o que vem a ser o culto a Dionísio. Dionísio era o Deus da vitalidade, da loucura e do vinho. Uma das características do seu culto era que a sua divindade era infundida na vida dos seus adoradores por meio do vinho. Era, por tanto, um Deus orgiástico e que conduzia seus adoradores ao extravasamento extremo, assim como à loucura do êxtase - aquele tipo de espiritualidade que desintegra a personalidade de quem a ela se entrega. Na maior parte eram mulheres que oficiavam um culto, cuja mensagem envolvia a morte e o renascimento. É bem conhecida a estrutura de cultos orgiásticos assim, onde a morte do deus que espalha o caos entre os adoradores restabelece a ordem e, após ressuscitado, torna-se objeto de adoração. Este "ambiguidade divina" é característica de deuses pagãos.
   É bem conhecida de nós o antagonismo que Nietzsche, o filósofo alemão, propõe entre o apolínio e o dionisíaco em seu livro "O Nascimento da Tragédia" (Die Geburt der Tragödie)Propondo uma interpretação da música de Richard Wagner, Nietzsche vê neste fenômeno musical uma representação daquilo que ele compreendia como dionisíaco, que para ele tratava-se de um espírito revolucionário que marchava contra toda espécie de cultura apolínia, da qual a Alemanha se encontrava, em sua época, saturada. O apolínio então era a emersão da cultura da racionalidade, do cristianismo, da moralidade, das crenças em sistemas, do metafísico e do "espiritual descarnado", que, para ele, se opunha a toda espécie daquilo que ele definia como "vida". Portanto a emersão do irracional, da vontade de potência, do extático, da revolução espiritual, do extático trágico que apesar de cair no abismo cai dançando, seria o navio quebra-gelo que libertaria uma cultura situado em um niilismo não confessado por pessoas que haviam matado Deus, e que tinham medo de encarar as consequências disso. Para Nietzsche o apolínio era a farsa da cultura ocidental que operou por mais de dois mil anos desde Platão, na esteira da racionalização espiritual de um tipo de vida fundada em um Deus que a própria cultura ocidental, por causa de seu desenvolvimento cultural, havia aniquilado. Nietzsche acreditava que toda a metafísica era uma farsa a ser destruída por homens de coragem - os novos filósofos - que aceitavam o fato do niilismo não gemendo, mas com coragem, determinação, força e indiferença aristocráticas e com o extravasamento, êxtase e loucura dionisíacos.
   Não é preciso dizer que a explosão espiritual dionisíaca, aquela espécie de espiritualidade antiespiritual da qual falou Eric Voegelin, é a marca de vários movimentos revolucionários e ideologias. A explosão milenarista durante a Reforma, os movimentos dos sans culottes e os jacobinos na França revolucionária, facções do movimento puritano inglês, os movimentos de sex-lib na época da revolução russa e na revolução de 1968 marcam um ponto alto dos movimentos de explosão espiritual antiespiritual e de desintegração social que tanto conhecemos. Não há nada de estranho notarmos que muitos movimentos de extrato autoritário se sirvam de movimentos de apelo orgiástico entre os ativistas, promovendo, com isso, certa corrupção moral e a destruição social, enfraquecimento do poder das famílias e aniquilação do sentimento religioso. Todo essa desordem, uma vez instalada, é perfeita para o estabelecimento permanente daquele corpo social que escapa conscientemente ileso de tal dissolução para governar, como  Psístatro, sem oposições, já que a massa nesses movimentos afunda na loucura como afundou Nietzsche, o profeta de Dionísio.

   Recentemente a americana Camille Paglier foi entrevistada no programa Roda Viva e discorreu sobre a sua oposição à ideologia de gênero e os movimentos feministas. Um dos fatos interessantes de sua entrevista é que em certa altura ela disse que toda a grande confusão sobre a identidade sexual e os antagonismos recorrentes disso marcam todos os declínios civilizacionais por causa do colapso da unidade cultural e de sentido. Nisso ela não está sozinha, pois Santo Agostinho, no século V, já denunciava a razão do declínio romano: a extrema imoralidade e loucura gerada pelos cultos de mistérios adotados por Roma da já decaída Grécia (a pólis helênica) - mas ele não foi o primeiro, antes dele está Platão e antes de Platão estão os profetas do Antigo Testamento. O cristianismo veio como um remédio que restaurou a Europa da insânia em que havia caído desde o colapso do Império Romano, entregando-a salva à era moderna em que vivemos. E onde é que esta nossa grande confusão dionisíaca irá parar se não for refreada, todos sabemos. A questão de urgência é saber o quão apta esta está a nossa sociedade para perceber este grande mal que está a degenerar e embriagar o seu próprio corpo.

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Docetismo Gnóstico: O Princípio da Destruição do Corpo e o Princípio da Destruição do Mundo


   O Cristianismo, indo para além de uma relação subjetiva com Deus implica a imersão do sujeito na estrutura da realidade. A revelação de Cristo, por esse prisma, é a própria revelação do sentido pleno da história, assim como a revelação do sentido do homem nela. Há na revelação um sentido inesgotável que lança luz sobre a história da humanidade em todos os níveis, desde o inconsciente individual e das estruturas mais profundas do indivíduo humano até a existência humana como um todo, abrangendo as pessoas que existiram, que existem e das que ainda haverão de existir. A revelação em Jesus de Nazaré é o pomo amadurecido na história. 

   A elaboração teológica sempre ocorreu à luz de dilemas existentes no contexto histórico onde as doutrinas foram elaboradas. Com o passar do tempo se percebeu que, para além de um querela teológica entre os primeiros padres da igreja e os heréticos, a disputa para alcançar a verdade da revelação cristã estava intimamente relacionada com a questão da salvação. Mas como percebeu o filósofo germano-americano Eric Voegelin, vários movimentos revolucionários da era moderna, incluindo a estrutura da política moderna, e que tiveram um papel central na desintegração da razão e no enlouquecimento genocida do século XX, estão assentados sobre as bases mesmas das heresia combatidas pelo cristianismo.  

   Aqui não é lugar para uma dissecação completa das relação entre as heresias combatidas ao longo da história do cristianismo e o descarrilamento revolucionário dos vários movimentos políticos da modernidade. Contudo desejo refletir aqui brevemente sobre o docetismo.

   O docetismo foi um movimento gnóstico influenciado pelas religiões de mistério gregas (carregadas de orientalismo) e pelo próprio resíduo da filosofia helênica, e que se pôs a interpretar o cristianismo e o ministério terreno de Jesus. A palavra docetismo vem do grego"dokeo" (δοκέω) e que significa "parecer". Esta heresia afirmava plenamente que o Lógos divino (ou o Verbo Divino, como está escrito no primeiro capítulo do Evangelho de João) não havia encarnado definitivamente em Jesus de Nazaré, mas estava presente em Jesus apenas em aparência. Por tanto o Logos não havia sido crucificado na Cruz, e Deus não havia sido crucificado, como afirmavam os primeiros cristãos. Mas isso suscitou alguns questionamentos para os primeiros cristãos, pois: (1) se o Lógos não encarnou em Jesus, isso quer dizer que Deus não assumiu a natureza humana; (2) E se Deus não assumiu a natureza humana então o sacrifício na Cruz não foi um sacrifício de Deus em favor dos homens; (3) e se Deus não se sacrificou pelos homens então não fomos salvos e permanecemos em nossos pecados pois só Deus pode salvar. Aqui, pela negação dos docetas sobre a encarnação, duas bases teológicas essenciais para o cristianismo estavam ameaçadas: (1) a unidade amorosa de Deus com os homens manifesta na pessoa de Jesus (por ser ele totalmente Deus e totalmente homem); (2) a eficácia salvífica do sacrifício de Jesus para trazer ao homem a salvação eterna.

   Alguns esclarecimentos são necessários para termos bem claro as relações entre o descarrilamento revolucionário moderno e o docetismo, a começar pela impossibilidade da junção entre o humano e o divino na heresia docetista. Um elemento fundamental estava na questão relacionada à natureza humana e divina de Jesus. O docetismo afirmava taxativamente a impossibilidade da união singular de Deus no homem Jesus de Nazaré. Nesse sentido devemos lembrar a questão do destino da ressurreição. Será que para eles Jesus ressuscitou corporalmente? A resposta é negativa. Eles não aceitariam Deus sofrendo na Cruz (algo já presente em Atos dos Apóstolos 17:16-32), mas também negariam por sequência lógica o matrimônio entre Deus e a Igreja, aquela unidade desejada por Jesus e o seu desejo pela salvação do corpo humano. Nesse sentido há uma clara cisão entre o corpo e o espírito e a elevação desmensurada de um sobre o outro. As consequência lógicas do docetismo são três: (1) o pecado é algo que pode ser deliberadamente praticado que não afetaria o espírito; (2) o ódio radical e deliberado ao mundo segue a ideia de que o mundo é substancialmente mau, elevando o mal ao grau de substância. (3) ao elevar o corpo à condição de substância má, a meta final da fé é o da libertação do corpo por meio da liberação final do espírito. Não é estranha a identidade destes pensamentos e o preconceito de classes marxista, ou o ódio racista dos judeus pelos nazistas e a teologia gnóstica: os burgueses são maus em si mesmos, ou o judeu é mau em si mesmo. Do lado invertido, o docetismo também produziu a sacralização do cosmos por meio da heresia monofisita, que afirmava que a natureza humana havia sido absorvida pela natureza divina de Jesus. Desta forma, a sacralização de classes em Marx, onde os proletários são o povo messiânico que trazem em seu bojo o futuro, mesmo quando queimam vivos os kuláks, ou a raça ariana dos nazistas, que sendo sagrada em si mesma, pode criar campos de concentração e envenenarem judeus apenas por serem o que são, toca na questão da imanentização da eternidade no tempo, fechando a humanidade em si mesma e realizando a sacralização do cosmos que o Cristianismo tanto lutou por desfazer. O caráter de transcendência de Deus aqui é plenamente destruído em favor da imanência - o que mais tarde resultaria na morte de Deus e na elevação das ciências naturais ao grau de verdade divina abarcadora da totalidade da realidade. 

   A presente heresia gnóstica gerou dois movimentos aparentemente distintos, mas que se atentadamente observados, revelam uma identidade fundamental. Sendo que o primeiro ramo do gnosticismo gerou aquilo que podemos chamar de um "gnosticismo de direita". O movimento de direita no interior do gnosticismo é caracterizado pela austeridade absoluta e pelo distanciamento radical de tudo aquilo que toca a existencialidade da vida. É aquela busca pelo purismo exacerbado que regulamenta alimentos - e até proíbe-os -, que acha errado comer carne de animais, arrancar árvores, flores, folhas e sementes, e que exige jejuns extensivos, proibindo também todos os prazeres e até o casamento (I Timóteo 4:1-5 mostra expressamente Paulo possuía a consciência que alguns movimentos gnósticos estavam em plena floração no fim de sua vida). Tal movimento foi visto entre, por exemplo, os albigenses, onde há relatos de morte por inanição (morte por falta de nutrientes derivado pela abstenção de comida) de vido a jejuns extensos. O outro ramo foi o "gnosticismo de esquerda", que também partindo da premissa da malignidade do mundo e da matéria, se entregavam a toda sorte de erros tal como sexo grupal com intuito de praticar ritos sexuais, e até crimes - não importava a desordem generalizada que também poderia ser uma forma de libertação das estruturas malignas deste mundo. Um exemplo moderno bem claro deste gnosticismo de esquerda é o revolucionário Mikhail Bakúnin. A revolta de Bakúnin não parte de um utopismo como o de Marx, mas é mais altamente niilista do que o pensamento dele. Para Bakúnin a tarefa dos revolucionários era o de apenas destruir e não de construir nada, já que, segundo ele, eram profundamente corruptos para uma tarefa como a de construir algo paro mundo. Essa "corrupção total", essa insuficiência é algo como que uma outra natureza. E quem buscar uma identidade entre isso e as as ideias defeituosas dos reformadores Lutero e Clavino sobre a "corrupção total", não buscará em vão - apesar de eles tentarem a todo custo refrear as consequências destas ideias em vida. É como constatou com felicidade o teólogo reformado Karl Barth no fim de sua vida: o pecado não pode criar uma natureza ao lado da natureza de Deus. O Pecado, definitivamente, não cria.       

    Cá em nosso século, várias formas de "sexo livre" e a compreensão da incontaminação moral do sexo livre possui o mesmo amoralismo gnóstico que se apregoava nos séculos iniciais do cristianismo. Da mesma maneira a tendência revolucionária de considerar qualquer autoridade algo maligno em si mesmo é, por sua vez, uma reminiscência do gnosticismo, ou melhor, a sua melhor expressão. A disjunção da natureza humana e a separação entre consciência e verdade é, da mesma forma, uma variação da impossibilidade da encarnação da verdade na história. Não por acaso que muito do irracionalismo iniciado pela filosofia nominalista, que visava preservar a autoridade da revelação cristã do ácido das especulações racionalistas, guarda uma identidade emergente com os totalitarismos autoritários a que o Ocidente se viu imergido durante o século XX e que tão de perto nos ameaça hoje. A egofania vista em movimentos totalitários que apregoavam a total destruição das amarras da tradição são hoje as mesmas vistas em indivíduos que desejando a plena liberdade das amarras dos compromissos com a comunidade e com a família, e acabam por gerar um solipsismo tipicamente Ocidental que geram indivíduos cada vez mais atomizados, solitários e sujeitos às garras de um poder superior como o Estado. O trabalho longo e doloroso de conhecimento, assimilação e superação foi suplantado pela iluminação gnóstica individual, e hoje temos tantas verdades como cabeças no mundo. Mas até mesmo como Bakunín previu: um poder organizado tenderá a absorver os átomos soltos. 

   Mas o gnosticismo não acaba por aí, disjunção do equilíbrio entre espírito e matéria, alcançado na Idade Média, acabou por gerar na modernidade a destruição do Rosto do Mundo. Como bem observou o filósofo Roger Scruton, a destruição da arquitetura tem todo esse caráter egofânico. A cisão entre o belo e o verdadeiro - união característica da tradição filosófica cristã medieval - arruinou os gostos. As pichações, os lixos nas ruas e a destruição das pequenas comunidades em nome dos grandes empreendimentos tem todo esse caráter revolucionário e desrespeitoso para com a boa criação de Deus que só um gnóstico consegue ao considerar toda a criação má. A deformação do corpo por meio de plásticas, as pichações corporais adquirem o caráter da profanação que tanto ofendem os olhos e o bom senso daqueles que foram chamados a cuidarem dos jardim de Deus, compreendendo o contexto das palavras divinas, segundo as quais tudo aquilo que Deus criou é bom. A disjunção entre essência e aparência, nesse sentido, caracteriza também a negação das possibilidades de o Verbo se tornar carne, e que destruir o mundo e o corpo é destruir o objeto de amor de Deus. 

   Diante destas considerações, quais são as implicações das narrativas da encarnação de Jesus Cristo no Mundo, o Cristo que partiu o seu corpo por nós? A evidência clara de que gnosticismo é destruição e radicalismo doentio deve ser acompanhada com a clara compreensão de que a modernidade, ao invés de ser a história crescente da racionalidade, é claramente a história do crescimento do gnosticismo. A compreensão da estrutura do "mito" da encarnação que pode oferecer uma base de razão que se vê num contexto de uma humanidade ameaçada por não compreender a si própria em sua unidade da relação divino-humana, devendo reagir a isso, ou seja: o mito formador cristão (no sentido de Schelling), sendo a base de unidade de sentido no Ocidente, é a única fonte de sentido na humanidade que pode curar esse processo destrutivo na alma do pensador místico. Sendo assim é dever individual não tomar parte na cultura da destruição, mas superá-la em si mesmo mantendo a integridade da consciência ameaçada de desintegração frente a irracionalidade destrutiva da presente modernidade.       

   

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Diversão, Velocidade e Preguiça: O Homem e a Fuga de Si Mesmo


   O mundo onde estamos demanda ação, velocidade e inovação para sobreviver e fugir do tédio. Contudo a impressão que temos disso tudo é que o nosso mundo está em plena fuga, e aparentemente não sabemos de quê. Mas arrisco um palpite.

   No início do século XX o jornalista inglês Chesterton dizia que a alta velocidade inovadora do mundo era sinal de sua preguiça. Segundo ele, se as pessoas de fato fossem produtivas elas estariam enraizadas e laborando sem deslocamentos. Ele também detectou nesta enfadonha correria uma fuga contra a reflexão que resultava do acossamento do homem pela busca da verdade.

   De fato: são tantas ideias, tantas formas de ver o mundo que nós devemos desconfiar sobre a extensão destes "pensamentos novos". A lógica, cujo primeiro sistematizador foi Aristóteles, até hoje, depois de 2.400 anos, não deixou de receber contribuições. É óbvio, por tanto, que a quantidade pensamentos existentes são semelhantes à Torre de Babel: construções deixadas ao meio, inacabadas por falta de material para a obra ou por preguiça pura e simples.

   A quantidade assustadora de movimentos e de novos empreendimentos, ao longo do tempo, tende a deixar claro o quanto o homem moderno é inseguro: são casamentos deixados ao meio, educação de filhos insuficiente, obras sem um prosseguimento duradouro, artigos de jornais de cinco parágrafos, avisos do ministério da saúde de menos de um segundo na televisão, festas, divertimentos e esquecimentos.

   Pascal, como um bom fisiologista da alma, compreendeu como por uma iluminação semelhante aos profetas, que o homem futuro seria alguém que faria do divertissement um elemento essencial para a vida, pois afastado do doloroso conhecimento de si o homem tentaria afogar o espinho na carne da consciência nos prazeres, na diversão. Contudo, como a consciência é um fato inexorável no homem, permanecendo durante toda a extensão da duração de sua humanidade, o afogamento da consciência seria uma constante. Teríamos aí, de forma concreta, o homem da fuga, que escapa de si mesmo e do fado da sua existência como um animal em agonia.

   Eis o retrato do homem moderno: o homem do divertissement  (diversão, entretenimento) que luta para não enxergar aquilo que é, e que afoga a consciência no entretenimento afim de que não se descubra a si mesmo como um animal do desespero. De fato, a modernidade é marcada por sua busca por libertação dos laços da tradição, da religião e dos fados que constituíam a barragem que o cerrava em um lugar mínimo de proteção. Contudo toda a proteção tem o seu ônus, sendo o mais marcante dele a restrição da liberdade e a uniformização por vezes tediosa da vida; e ao se arriscar em busca da liberdade, e rompendo suas barragens de proteção o homem se viu diante do "terror da liberdade".

   Reinventar a roda, com o fim da tradição, tornou-se a forma básica de existência humana por meio da criação de microcosmos e arranjos de fragmentos de ordem por meio dos quais os homens se isolaram de si mesmos. Se antes havia uma imensa homogeneidade que entrelaçavam os homens em uma rede comum de sentido, a disparidade de sentidos fez com que as pessoas criassem tais microcosmos, caminhos e leis individuais que acabaram por se colidirem umas com as outras. Mas a natureza abomina o vácuo, e o fim dos grandes sistemas de sentidos acabou por se substituído por uma uniformidade nova através da cultura do prazer e consumo, e por meio do rearranjo de sentido amparado em ideologias totalitárias que buscam reconciliar o mundo dos prazeres com um universo de sentido. Os slogans de "libertação", "bem-estar social", "poder", a imanentização da transcendência - cuja realização as religiões tradicionais como o cristianismo assinalava para o além mundo - com as utopias existentes no mercado das ideologias satisfizeram os homens que fecharam a sua alma para a realidade, fazendo com que houvesse uma substituição da realidade pela ideologia, migrando a imaginação dos homens para uma segunda realidade onde suas paixões foram elevadas às alturas da vontade divina.

   Em todos esses fatos em que reconhecemos um fechamento da alma do homem, não poderíamos desprezar a estupidez que daí resulte: ao se fechar para suas próprias agonias e para a voz divina o homem acaba por desconhecer a fonte real de sua vida e de seus problemas. A falsificação do mundo, o orgulho e a violência resultantes, marcas da pequena besta, são como que inevitáveis quando o homem, desconhecendo a si mesmo, não trilha nos caminhos demandados pela realidade, revestindo a sua sede por poder como a lei suprema do universo. A ignorância no lidar com a vida, a falta do confronto com a angústia e o desejo pela recompensa rápida e total em vida acabam por estupidificar e alienar o homem do mundo e de sua estrutura, de si mesmo e dos outros homens. A colisão do homem contra o homem é a marca do fim da razão, razão que só é possível quando ordenada pelo fundamento divino da realidade, e que, em nome do conforto, foi lançado para a lata do lixo da história.


   Não é difícil enxergarmos a razão pela qual uma explosão de retorno às tradições e à religião está sendo vista de maneira tão vigorosa em nossos dias. O terror que esta liberdade niilista nos legou com a sua metafísica do nada, fez com que se pudesse olhar para o terror de um mundo vazio de sentido e a tragédia resultante daí, onde cada home tornou-se o seu próprio Deus. Também é óbvio que a experiência moderna já deu conta da destruição resultante de o homem fechar a si mesmo para a estrutura da realidade, criando em substituição a ela fantasias, enterrando a sua alma na diversão e na sede irrestrita por poder, o que acabou por gerar uma conservative wave e muita "caretice". Ao retornar para os grandes depositários espirituais de valores, várias pessoas buscam um eixo do mundo, algo que, sustentando tudo o que existe de forma duradoura, pode sustentar também a vida daquele que a isso busca.

sábado, 11 de junho de 2016

A Livre Interpretação das Escrituras e o Nazismo: Nem Tudo São Trevas


O fato da liberdade vista por si mesma é algo que não pode ser considerada nem boa e nem má. O questão se desenha no horizonte na da própria liberdade, e dos atos livres que tomamos com base em nossa responsabilidade pessoal. Tais atos sim podem ser considerados bons ou maus, mas não a própria liberdade. Como disse o filósofo luterano Friederich Schelling, a liberdade é aquilo que ocasionou a queda do homem, mas é apenas por meio da própria liberdade que podemos restaurar a unidade original que desfrutávamos juntamente com o Absoluto (ou Deus), ou seja, se por um lado é por meio da liberdade que se erra, por outro é unicamente através dela que se acerta.
Tenho por tempos criticado a maligna história da interpretação bíblica calcada unicamente na liberdade. De fato, não conheço nenhum intérprete bíblico sério de peso que tenha deixado de lado a tradição de interpretação no interior do cristianismo como critério de interpretação e de fonte de pensamento teológico fundamental - o que também fizeram teólogos luteranos, condenando o liberticídio possível gerado no interior da teologia protestante da livre interpretação. Contudo, a liberdade no protestantismo não é de todo má - mesmo para Schelling que não obstante reconheceu a potência filosófica e literária oriunda da doutrina católica -, possibilitando na história a irrupção de pontos iluminadores de liberdade individual que permitem a resistência contra a tirania do pensamento único.
A história da Alemanha no período nazista é algo que comprova esta afirmação minha, sendo possível considerar o poder de resistência baseado na liberdade individual um fator - neste período - superior até mesmo à hierarquia disciplinar do colegiados de bispos católicos no mesmo período, ainda que a ideologia do Nacional Socialismo tenha devastado tanto igrejas evangélicas quando a Igreja Católica. É assim que o filósofo germano-americano Erich Voegelin relata como ocorreram as coisas no período, tal como segue: "Nada pode ser explicado como o lugar-comum do nacional-socialismo. É um caso de fenômeno pneumopatológico de corrupção social. Deve-se estar consciente disso acima de tudo no caso das Igrejas." (VOEGELING. Hitler e os Alemães. p. 207)
Mas comecemos com a corrupção da teologia evangélica no contexto do Nacional Socialismo. Tal corrupção esteve de mãos dadas com a absorção do Zeitgeist (espírito da época) por parte das Igrejas concomitante à perda do Elã espiritual e consequentemente à perda da realidade. Como Voegeling enfatiza, a consciência humana no âmbito da vida ou das construções intelectuais só são saudáveis juntamente com a consciência da presença divina - querendo ele enfatizar a ideia de que todas as ações e pensamentos humanos devem ser iluminados por um juízo superior sobre o certo e o errado. E quando a presença divina é substituída como elemento de juízo para a consciência humana por uma ideologia política daí o homem se encontra sujeito a toda sorte de corrupções, já que eleva um movimento político à altura de Deus.
Um exemplo claro disso foi a horrorosa Confessio do professor de filosofia da Universidade de Leipzing Ernst Bermann, onde recolhemos esta pérola: "Creio no Deus da Religião alemã, o qual se manifesta na natureza, no alto espírito do homem e no poder de meu povo. E no salvador Kristo [com um 'K' para parecer mais alemão], que luta pela nobreza da alma humana. E na Alemanha, a terra onde uma nova humanidade esta sendo forjada" (BERGMANN, Ernst. apud VOEGELIN. Hitler e os Alemães. p. 217)
Outro exemplo está na frase abaixo daquele que viria a ser o Bispo de Brandeburgo, o pastor Joachim Hossefelder que representava à época o movimento dos "Cristãos Alemães". As palavras nojentas são estas:"Estamos no terreno da cristandade positiva. [Isso está no programa do partido] Confessamos uma crença afirmativa em Cristo, conforme à raça [...], de acordo com o espírito alemão de Lutero [o que longe está de Lutero] e da piedade heróica (sic) [...] Vemos na raça, Volkstum, e na nação o que Deus depositou em nós e as regras de vida confinadas a nós, para cuja preservação existe para nós a lei de Deus. Por tanto, a mistura de raças deve ser combatida [...]
[...] Rejeitamos a missão judia na Alemanha enquanto os judeus possuírem o direito de cidadania e, então, o perigo do ocultamento da raça e do abastardamento continuarem. (GOLDSCHMIDT & KRAUS, apud VOEGELING. Hitler e os Alemães. p. 17)
E por último, temos da ala mais radical à esquerda à ala mais moderada temos uma declaração teológica de Friedrich Gebhardt, como segue:" A crença em Cristo é conforme a raça na forma, conforme com Cristo no conteúdo.
[...] O Novo Testamento em si é Evangelho, [e prestem atenção às confusão teológica com cheiro forte de gnosticismo] o Velho Testamento não se torna Evangelho nem mesmo através do Novo Testamento. [Portanto, fora com o Velho Testamento]
Israel foi o povo escolhido (Volk), mas Deus o rejeitou, e deu o Evangelho a um "povo" ("Volk") que daria seu fruto. [Ou seja, os alemães] Nenhuma nação pode vindicar o Evangelho apenas para si, mas Deus, mesmo hoje, ainda pode rejeitar povos, assim como fez uma vez. [dando a entender a eleição do povo alemão para os novos tempos]
Tal decadência esteve, como disse no início, arraigada na elevação das crenças da época ao nível da revelação divina, ou seja: a fé em Deus estava conformada ao espírito da cultura da época. Não há outro nome para isso que não idolatria - e severa, violenta e odiosa idolatria, que nada mais se constituí do que colocar os ideais, a cultura da época e a visão de um povo em substituição à vontade divina.
Contudo a corrupção no interior da Igreja Evangélica teve a sua contra-parte garantida por causa da liberdade de interpretação das escrituras. Se por um lado a ideia de uma interpretação oficial e definitiva não era algo inaceitável para a tradição evangélica, por outro foi ela mesma que tanto abriu as portas para a nazificação da teologia como permitiu que outros se opusessem à mesma nazificação. Nesse contexto podemos destacar personagem como teólogos de alto calibre como Rudolf Bultmann, Dietrich Bonhoeffer (sendo este martirizado por causa de sua oposição intransigente ao Nazismo), Joachim Jeremias e Karl Barth (todos ligados à Igreja Confessante), assim como a oposição até à morte de pastores como Paul Schneider.
De Rudolf Bultmann, em reação às declarações escandalosas da faculdade Erglangen, defendeu a universalidade do evangelho em contraposição à ideologia de separação de raças no contexto do Nacional-Socialismo: "A opinião de Erlangen não diz que todos os cristão tem uma adoção comum como filhos de Deus, o que não põe termo às diferenças sociais e biológicas? Ao contrário, não esta todo cristão ligado à posição em que é chamado? Sim, com justificação completa. [Agora vem esta passagem, I Co 7:20.] Estou surpreso com a temeridade do apelo a I Cor. 7:20. Pois não há nada para se ler aqui dizendo que essas diferenças também valem para o espaço da Igreja e têm significado. [...] Ao contrário! Paulo diz que as distinções que não tem sentido para a Igreja mantém a validade no mundo. Ele opõe I Cor. 7:17-24 contra esses tolos, que querem transformar os princípios da comunidade eclesiásticas em leis do mundo, contra o desejo de emancipação dos escravos e das mulheres [Por tanto, políticas igualitárias, já que todos os homens são iguais como filhos de Deus. A referência de Bultmann é correta.] E devemos agora perpetrar a tolice oposta de transformar as leis do mundo em leis da Igreja?" (GOLDSCHMIDT & KRAUS. apoud Voegelin. Hitler e os Alemães. p. 225)
Por outro lado temos a oposição tenaz de Karl Bart, aquele teólogo que ofereceu o espírito da constituição da Igreja Confessante - que surgiu como uma reação à nazificação da Igreja Protestante (o que refuta a tese de certa ala católica radical de que a Igreja Protestante se presta à deificação incondicional do Estado) -, a Declaração Teológica de Barmen. Eis algumas passagens da declaração teológica: "Rejeitamos a falsa doutrina de que a Igreja teria o dever de reconhecer - além e aparte da Palavra de Deus - ainda outros acontecimentos e poderes, personagens e verdades como fontes da sua pregação e como revelação divina. [...]
A Igreja Cristã é a comunidade dos irmãos, na qual Jesus Cristo age atualmente como o Senhor na Palavra e nos Sacramentos através do Espírito Santo. Como Igreja formada por pecadores justificados, ela deve, num mundo pecador, testemunhar com sua fé, sua obediência, sua mensagem e sua organização que só dele ela é propriedade, que ela vive e deseja viver tão somente da sua consolação e das suas instruções na expectativa da sua vinda.
Rejeitamos a falsa doutrina de que à Igreja seria permitido substituir a forma da sua mensagem e organização, a seu bel prazer ou de acordo com as respectivas convicções ideológicas e políticas reinantes." (Declaração Teológica de Barmen, parte I e II)
É nesse espírito que uma ala importante das Igrejas Evangélicas do período Nazista conseguiram se safar da conformação acachapante a que foi submetida toda e qualquer instituição cultural alemã no período. Isso foi possível pela ausência de uma doutrina que submeta as doutrinas teológicas a uma rígida hierarquia autorizada para interpretar o Evangelho. A tragédia das igrejas católicas na época, que no período devido à busca da unidade episcopal decidiu, na Alemanha, se submeter às leis do país afim de não parecerem "subversivos", foi justamente colocar a unidade acima de uma confrontação direta com o regime, ainda que bispos aqui e ali se pronunciassem de maneira profunda contra a barbárie Nacional Socialista, e mesmo que a oposição à ideologia socialista tenha sido feita por meio de documentos muito antes da ascensão de Hitler ao poder, o que não houve pelo lado protestante - muitas vezes possível por conta do considerável background filosófico católico, superior ao backgrund filosófico protestante, ainda que esse último tenha a vantagem de possuir uma tradição de verificação científica das escrituras muito superior ao mesmo domínio científico católico.
Por fim, a questão da liberdade de interpretação, tal como desejei apresentar aqui, é algo ambíguo, tal como o é a liberdade: é algo que deve ser julgado na prática, pois se a liberdade de interpretação for tomada como um bem em si mesmo, devemos ter em mente que é unicamente por meio da liberdade de interpretação que opiniões teológicas degeneradas formam tendências destrutivas para a Igreja. Mas isso não é um mal em si, pois sem a liberdade não teríamos chance de colher interpretações saudáveis, espirituosas e profundamente significativas para a vida espiritual que enchem de vida as comunidades eclesiásticas evangélicas.