terça-feira, 2 de outubro de 2018

Protestantismo e Democracia

   Uma das obsessões de gente que se acha mais iluminada do que o resto das pessoas está em buscar motivos para controlar a sua vida. Veja a quantidade de intelectuais que detesta a democracia justamente porque acha que em suas cabeças se encontra o melhor dos mundos: Marx, Trotsky, uma parcela de intelectuais católicos radicais, Iluministas, e mesmo alguns filósofos ilustres como Platão.
   Ainda que alguns estivessem certos sobre os diagnósticos que deram sobre a "doença das massas", sobre empobrecimento inevitável em que cai o pensamento quando ele se transforma em clichê público, ou quando jargões substituem a investigação racional da realidade, ou ainda quando a opinião substitui o conhecimento, ou quando dizem que determinadas estruturas sociais dificultam a aquisição do conhecimento verdadeiro, eles erram quando superestimam o próprio conhecimento da realidade, ignorando a sabedoria prática espalhada na população, que em média é infinitamente maior do que a quantidade de informação de que é capaz um só homem ou uma classe de filósofos.
   Foi nessa desconfiança da sabedoria prática espalhada entre a população que surgiram, no período do chamado "iluminismo francês", os planejadores centrais da sociedade, tanto no que diz respeito ao plano econômico, quanto no plano educacional. E dessa miséria padecemos ainda hoje em nossa estrutura de Estado.
   Ainda que todo mal se diga sobre o protestantismo, ele é o responsável pela devolução da liberdade pública, com o critério básico de que houvesse uma fé para tornar consciente a massa de sua responsabilidade moral. Não é por acaso que na era das revoluções, o metodismo de John Wesley criou uma espiritualidade de massa na Inglaterra - com influências na América - que impediu a revolta que engoliu a França com a Revolução levada a cabo por abstrações de intelectuais fanáticos.
   A desconfiança protestante - em especial nas sociedades influenciadas pela teologia calvinista - contra o poder concentrado tem uma razão: a fé no pecado e um ceticismo antropológico que abomina qualquer concentração absoluta de poder no homem que "bebe a iniquidade como a água" (Jó 15.16).
   Não é estranho que a própria constituição dos EUA - um milagre da graça comum - tenha surgido com todas as defesas possíveis contra a concentração absoluta de poder; e não é impossível compreender, apesar dos olavismos da vida, que o ambiente do próprio protestantismo tenha fomentado essa defesa contra a tirania, seja contra a igreja única, seja contra o Estado único, ou contra o empresário único.

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Deus entre a Razão e a Vontade

   O pensamento teológico ou filosófico a respeito de Deus ao longo da história da Igreja se debateu entre os polos "razão e vontade", ou "forma e dinâmica". Não foram poucos os que sacrificaram um em nome do outro. Ou a Razão prevaleceu sobre a Vontade (Aquino); Ou a Vontade prevaleceu sobre a Razão (Duns Scotus).
Aqueles que enfatizam a prevalência da razão ou da forma na natureza divina geralmente o fazem por tentarem livrar da nossa ideia de Deus o monstro da arbitrariedade: Deus age de tal forma clara e inequívoca que o faz longe de qualquer possibilidade de contradição consigo mesmo. A compatibilidade de Deus com a razão concede à razão humana a possibilidade de conhecimento da natureza de Deus de forma autônoma... Contudo Deus assim considerado tem a sua vontade sacrificada, ficando ele devedor de uma determinada natureza, possibilitando até a ideia de uma "eternidade do mundo". Aqui Deus é reduzido a uma lei.
Mas aqueles que enfatizam a Vontade em Deus buscam preservar a sua soberania: Deus não é devedor de uma natureza, e por exemplo: Deus não criou o mundo porque em si ele o considerou "o melhor dos mundos", fazendo-o a partir de uma condição lógica pretérita, antes o mundo é bom porque Deus o criou como criou. Essa ênfase da liberdade absoluta de Deus o deixa livre de qualquer natureza, destacando uma realidade dinâmica no fundamento do ser; contudo algo terrível dorme aí: Deus poderia subverter a totalidade da criação, sendo "potestas absoluta" (Autoridade Absoluta - como afirmou Ockam), o que poderia desembocar em arbitrariedade totalitária.
Foi com esse dualismo no interior do pensamento cristão que se esgotou a teologia da Idade Média, estando todos nós, ainda hoje, no interior desse dualismo. E na força da secularização tal dualismo acabou impulsionando outros dualismos , entre os quais e ênfase do "racionalismo iluminista" e do "historicismo irracionalista".
Mas não seria o pensamento cristão a afirmação da unidade entre essas hipóstases polares, ou a possibilidade de transcender esses reducionismos, afirmando tanto a razão quanto a vontade, ou a dinâmica quanto a forma, não sacrificando uma esfera de realidade sobre a outra, mas harmonizando plenamente uma e outra?