quarta-feira, 8 de julho de 2020

Nestorianismo ad Nausean; Ou: A Teologia da Substituição Penal e a Unidade Substancial entre a Natureza Humana e Divina de Cristo

   Um fato inquestionável da teologia da Substituição Penal é que ela de forma alguma implica em separação ontológica entre o Pai, o Espírito e o Filho, como se, para o sofrimento da ira divina na Cruz, o Filho fosse como que apartado da Trindade. Da mesma forma há o consenso de que o evento da Cruz não divide as duas naturezas de Cristo.
   Na mentalidade popular, muitos das igrejas que até mesmo confessam que "Cristo sofreu no nosso lugar" e que "pagou o preço dos nossos pecados" erroneamente atribuem "morte espiritual" ao Filho de Deus em virtude de seu abandono na Cruz. No entanto quem já passou os olhos nas considerações de Calvino a respeito da teologia da Substituição Penal sabe que em nenhum momento o reformador sequer cogitou em morte espiritual em relação a Cristo. Pelo contrário, Calvino entendia que mesmo nas agonias indizíveis suportadas por Cristo na Cruz, jamais o nosso Senhor sofreu "desespero de salvação", ou lhe faltou fé, esperança e confiança na justiça de Deus. Da mesma forma, Calvino afirma que mesmo no interior dos sofrimentos, "não lhe é detraído o poder" 1, o que significa pensar que não há também qualquer cisão entre a natureza humana e divina de Cristo.
   As considerações um tanto quando extensas de Calvino a esse respeito encontram uma síntese sofisticada na pena do teólogo reformado italiano François Turrettini, que sem sobra de dúvidas é um dos três maiores teólogos da tradição reformada, e certamente o maior no que diz respeito às habilidades no campo da filosofia.
   Estas são as considerações de Turrettini:
"Ora, este abandono não deve ser concebido como absoluto, total e eterno (tal como é sentido somente pelos demônios e pelos réprobos), mas temporal e relativo; não com respeito à união da natureza (a qual o Filho de Deus uma vez assumiu, e a qual ele nunca desfez); ou da união de graça e santidade, porque ele foi sempre inculpável (akakos) e puro (amiantos), dotado de imaculada santidade; ou de comunhão e proteção, porque Deus estava sempre à sua direita (SI 110.5), nem nunca ficou sozinho (Jo 16.32). Mas, no tocante à participação de alegria e felicidade, Deus, suspendendo por algum tempo a presença favorável da graça e o influxo de consolação e felicidade para que ele pudesse sofrer toda a punição a nós devida (no tocante à subtração da visão, não no tocante à dissolução da união; no tocante à ausência do senso do amor divino, interceptado pelo senso da ira divina e vingança que repousa sobre ele, não no tocante à privação ou extinção real desse amor). E, como dizem os escolásticos, no tocante à “afeição da vantagem” para que fosse destituído da inefável consolação e alegria que provêm do senso do amor paternal de Deus e da visão beatífica de seu semblante (SI 16); porém não no tocante à “afeição da justiça”, porque ele não sentia em si nada desordenado que tendesse ao desespero, impaciência ou blasfêmia contra Deus." 2.
   Também Turrettini explica que Cristo não sofreu o castigo como sofrem os condenados, pois não existe fração ontológica em Cristo pelo qual ele realmente pudesse "sofrer a condenação", embora evidentemente a sofra como "peso em si", mas não como o condenado a sofre em si.
   Assim ele explica:
"Além do mais, tampouco se poderia dizer que ele entrou no lugar dos condenados ou foi condenado. De fato ele pôde suportar os castigos dos que merecem ser condenados, porém não dos condenados, ao ponto de adentrar os lugares infernais preparados para eles (de onde ninguém pode regressar), ou que ele foi devotado ao castigo eterno, visto que a eternidade dos castigos que merecemos foi compensada ricamente em Cristo por seu peso e por seu valor extremo" 3.
   Vemos aqui que Turrettini, de saída, impugna a acusação de "nestorianismo", heresia do século V d. C. que defende a sobreposição de naturezas em Cristo, o que seria o mesmo que afirmar que não há uma união substancial entre a natureza divina e humana em Jesus e sim uma separação em que a relação entre o Verbo e Jesus se daria apenas no nível moral - algo que as confissões reformadas conjuntamente condenam.
   Na citação também entendemos no que consiste o sofrimento dessa ira divina, que em Turrettini se trata de um "sensus", na suspensão da "afeição de vantagem" ou dos auxílio da graça que dizem respeito não à união hipostática, mas no sentimento do gozo temporal de certo influxo da graça que, evidentemente, pode se ausentar sem prejuízo da unidade. É justamente por isso que vemos mudanças temporais em Cristo, como no evento da transfiguração, onde Jesus teve em sua face o resplendor do Sol (Mt 17:2), sem que isso aumentasse a qualidade da união hipostática.
   A questão crucial aqui é que, arrasada a possibilidade de nestorianismo, também é automaticamente impugnada a acusação de arianismo ocasional - em virtude do abandono divino de Jesus na Cruz -, ou de que Pai e Filho estavam "ontologicamente separados" na Cruz.
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1] CALVINO, João - Institutas da Religião Cristã; ed. Casa Editora Presbiteriana. 1985. Livro II. Cap. XVI.12. p. 282-285
2] TURRETTINI, François - Compêndio de Teologia Apologética. p. 429
3] Idem. p. 430