quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

O Mundo e o Conhecimento de Deus: Contra o Idealismo e o Panteísmo

    Quando se fala que o conhecimento do mundo começa com Deus seria bom, antes de tudo, pensar por qual tipo de Deus se começa a pensar o mundo nesse sistema, porque há de se levar em consideração que a ideia de Deus pela qual se começa a pensar o mundo nem é a do Deus cristão propriamente dito (ao menos, não se trata de sua ideia completa), pois alguns atributos a partir dos quais pensamos Deus também são atribuídos a doutros deuses. Aliás, pelo fato de os próprios atributos divinos serem atributos variados para a nossa razão (pois os atributos dizem respeito também aos fins distintos dos atos de Deus no mundo), até mesmo a formação da nossa noção de Deus, a princípio, demanda certa tarefa de predicação que não ocorre a não ser tendo em vista certos objetos da nossa experiência com o mundo.

    É por isso que na teologia clássica, mesmo na teologia reformada clássica, a ordem temporal é chamada de "ordem predicamental", pois o início do trabalho de predicação (pelo qual conhecemos certas qualidades dos objetos e infitizamos para atribuí-las a Deus - p. ex., quando chamamos Deus de Todo-Poderoso - porque o poder conhecemos como um fenômeno no mundo) pelo qual discursando a respeito de Deus é impossível sem o conhecimento do mundo. Assim também a ordem divina é chamada de "ordem transcendental", pois ela está acima da nossa capacidade natural, e tal ordem se reflete na ordem do mundo e se faz conhecer também pelos atos especiais de Deus no mundo. Nem podemos ir com os idealistas que falavam de um dado natural da razão pelo qual temos uma notícia complexa de Deus inata em nossa mente devido a tudo o que está acima - e nem podemos começar com a noção de que a nossa razão é um prolongamento físico ( i. e., natural) de Deus como pensam os panteístas.

    Obviamente que quando se entende que o conhecimento real do mundo só se completa com o conhecimento real de Deus, conhecimento que se dá no fim do processo do conhecimento (a ordem do ser é distinta da ordem do conhecer), entendemos que o sentido completo do mundo só pode vir à nossa mente quando entendemos que ele possui um fundamento eterno que é Deus. Mas nem por isso começamos a conhecer a Deus por si mesmo, a não ser na medida em que isso nos é possibilitado pelas informações de Deus refletidas no mundo cujo conhecimento nos é mais próximo, e, mais propriamente, na sua revelação. Ambos são conhecimentos de tipo objetivo, conhecimento que é complementado com o conhecimento subjetivo que se dá na iluminação do Espírito que precisam certos dados desses conhecimentos objetivos na nossa mente, nos auxiliando na formação de uma noção mais perfeita de Deus.

Fanatismo e Juízo

    Hoje compreendo que o fanatismo é um juízo de Deus; e dos juízo é um dos mais severos, porque cega quase ou completamente aquele que por ele é afetado - pois esse alarga a sua convicção perturbada até às raias do infinito.

    Aqueles que assim enlouquecem são gente que, como diz a escritura, será quebrantada sem que haja cura, ou perceberá sua insensatez tarde, quando se chocar violentamente contra a parede da realidade.

    Uma convicção errada, em nome de Deus, pode se prolongar indefinidamente, e todos os prejuízos reais a que isso leva, para a mente do fanático, podem ser redimidos pela ideia de que assim se sofre por causa de Deus e de sua vontade.

    Quase pouca coisa pode acordar aquele que assim pensa do seu delírio incontrolável, pois esse não é um delírio comum, mas sim um do tipo que em sua raiz encontra a sua própria justificação, encontrando aí um circuito inquebrantável.

    A graça é a única coisa que pode pode quebrar no fanático a sua cadeia mental - e essa graça é só Deus quem pode conceder.

Espírito e Discrição: Ou: A Verdade e a Condução Amorosa

    Um espírito rico jamais se permite o hábito de falar abertamente, senão com certa discrição. Cristo mesmo disse que do muito que ele tinha para falar aos seus discípulos, nada ele poderia comunicar por não ter achado entre os seus ouvidos capazes de ouvir.

    A verdade é que a comunicação aberta pode ser destrutiva, e o cuidado pastoral de Cristo esteve em conduzir pouco a pouco a consciência dos seus, coberta com várias camadas de falsos pensamentos, falsas imagens do mundo e de si mesmos, à luz - algo que não poderia ser feito sem certa cura e trato mais refinado.
    A nossa mente em geral se cobre de vários sistemas de crença falsos que servem, por vezes, de uma camada protetiva. Não é por acaso que a hipocrisia é como que a substância da moral pública e seu escudo de batalha. Muitas vezes nós mesmos não conseguimos certa paz sem empunhar certa mentira, ou sem ocultar certa verdade.
    Neste cenário, a simples franqueza se transforma em um tratamento de choque - por vezes necessário -, e como coisas assim não vem sem certo desagrado, sendo muito fácil e provável tomarmos a franqueza como ofensa e como razão do alargamento da ferida.
    A situação revela aqui um verdadeiro paradoxo: a verdade que a tudo pode salvar, porque a tudo orienta, é aquela que, dadas as atuais condições, também pode a tudo destruir: a face de Deus à luz da qual tudo vive é aquela que ninguém pode olhar e ao mesmo tempo continuar a viver.
    Como resolvemos esse paradoxo? A única resposta possível é a condução amorosa. Mesmo que não pudesse falar tudo, Cristo não deixou de dar segurança aos seus, confirmando-os como seus. A verdade por ser algo descarnado deve se revestir de um coração humano e assim vir até nós, e a verdade deve se estreitar com um beijo à misericórdia para que nossos ouvidos possam ouvi-la.
    É assim que a nós veio a verdade do nosso Deus e o Evangelho do nosso Senhor.

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Contra os Maldizentes

    O Leandro Bezerra, neste fim de semana, teve a iniciativa genial de corrigir uma tradução que apresentei de um trecho da obra De Fide et Symbolo (IV. 9.), de Agostinho, fazendo a severa acusação de que o texto que apresentei estava errado. Outros, mais empolgados e festivos disseram que eu estava fraudando o texto. Em primeiro lugar, para esclarecer as dúvidas desses que são como que integrantes do segundo coro da hierarquia celeste, a tradução não era minha, mas sim do Fabrício Girardi (ver aqui1); em segundo lugar, a tradução das demais citações - retiradas dos Tratados sobre o Evangelho de João - são do padre José Augusto Rodrigues Amado (como você pode ver aqui2). Vou colocar adiante a citação no original do texto da controvérsia e uma tradução no português e em outras línguas, e explicar algo para aplacar a fúria querubínica dessa gente zelosa que, semelhante a rainha de copas, prefere manter a difamação à suspenção do juízo diante de uma suspeita de erro.

    O texto no original latino é este: "Sed admonet potius ut intellegamus secundum Deum non eum habuisse matrem"3. Em inglês temos esta tradução: "But He rather admonishesus to understand that, in respect of His being God, there was no mother for Him"4. Em espanhol, temos esta outra: "Más bien este texto nos llama la atención para que comprendamos que Jesús, en cuanto Dios, no tiene madre"5. E em francês temos: "Nous y voyons plutôt une preuve que le Christ n'a point eu de mère en qualité de Dieu"6.

    Notem que as correspondências formais ou equivalências dinâmicas se intercalam nessas traduções - que são os dois princípios de tradução comumente utilizado pelas escolas (para ver sobre esses princípios, basta ler este texto7). Mas em resumo o princípio de correspondência formal busca verter da forma literal as palavras do texto original, não se importando com a harmonia sonora ou estética do texto (o que torna esse princípio pouco utilizado na hora da tradução de poesias, por exemplo). Já o princípio de equivalência dinâmica busca verter o texto não procurando a correspondência formal entre as palavras do original e do idioma para o qual são vertidas as palavras, mas sim a melhor expressão do sentido, focando a comunicação. Por assim dizer, ambos os princípios de tradução visam, mesmo que por vias diversas, a melhor forma de expressar o sentido original do texto, mas um foca na preservação da forma das palavras e o outro a comunicabilidade delas.
    Entendido isso eu posso colocar aqui o texto da Paulus - traduzido pelo Fabrício Gerardi - em confronto com o texto original. No texto de Gerardi temos a seguinte tradução: "Queria mostrar, acima de tudo, que Deus, que não tem mãe, [etc.]". Já no texto original temos o seguinte: "Sed admonet potius ut intellegamus secundum Deum non eum habuisse matrem". É possível ver que Girard opta por um texto em que prevalece aqui o princípio de equivalência dinâmica, mas que não chega a desvirtuar o sentido do texto. O texto em latim começa com uma adversativa, ou seja, com o "Sed" que é correspondente ao "Mas" - como se diz dos "Sed contra" [Mas em (sentido) contrário]. "Admonet" é algo como "aviso", donde o termo "admoestação", e o "potius" é "antes" (como: "antes" é melhor... etc.), e "ut intellegamus" podemos verter como "para [que] entendamos". Já "secundum Deum", é mesmo "segundo Deus", o que no francês é traduzido como "na qualidade de Deus", que em Inglês está como "em relação ao seu Ser [como] Deus". Já o "non eum habuisse matrem" é mais literalmente traduzido como "ele [que] não tinha mãe". Podemos traduzir da forma mais literal possível para o português da seguinte maneira: "Mas admoesta, ao invés, a compreendermos que ele, [que] enquanto Deus não tinha mãe, etc.". O "que" entre colchetes "[]", nesta última frase, eu coloco em razão do restante da frase que não precisa ser traduzido aqui.
    A razão pela qual optei por esse texto é que nesse terreno sensível eu posso me escudar em alguém que teve a competência de traduzir o trabalho inteiro do qual esse trecho foi tirado. Não se trata de uma tradução minha, e nem foi um trabalho de "fraudar um texto" da minha parte - coisa da qual estou sendo acusado, tendo isso um apoio do fato de o Leandro Bezerra ter dito, numa fala inconsequente, que se trata de um "erro de tradução". Mesmo ele reconheceu que se tratava de uma "tradução dinâmica" - fazendo clara referência ao princípio de equivalência dinâmica (que julgo, ao menos, que ele conheça, por ter estudado exegese bíblica) -, mas que isso "comportava riscos", ao mesmo tempo insinuando um "primarismo acadêmico" da minha parte etc.. E assim: o que o Leandro pensa ou deixa de pensar de mim é algo para o qual estou me lixando. O que me deixa inquieto é a miríade dos zelosos que gravitam em torno dele, que tem ódio ao protestantismo, e que entraram em uma toada difamatória, dizendo que eu "fraudei o texto", - mesmo que o Leandro soubesse (na pior das hipóteses), embora não tivesse se manifestado a respeito, de que não se tratava de uma fraude.
    Agora pergunto o seguinte: Qual a distinção absoluta entre "Queria mostrar, acima de tudo, que Deus, que não tem mãe, [etc.]", para: "Mas admoesta, ao invés, a compreendermos que ele, [que] enquanto Deus não tinha mãe, etc."? Eu respondo: a disposição caritativa, ou difamatória ou orgulhosa de quem os lê. Alguém querer sacar qualquer "heresia" dessas traduções é coisa simplesmente grotesca, mas se quiser sacar obviamente que assim o fará. O problema maior foi que o que eu escrevi acabou sendo colocado em meio a um controvérsia, já que o Leandro estava tentando responder ao Pedro França Gaião (que sim, tem às vezes um péssimo gosto por controvérsias), que jogou meu texto no meio das hienas, enquanto eles discutiam a respeito de Nestório.
   Mas algumas notas a respeito do meu texto, que é este8: 1) Eu não afirmo que Agostinho é nestoriano; 2) Afirmo que Agostinho cria na unidade substancial entre a natureza humana e divina na hipóstase una do Filho de Deus; 3) Eu concedo validade ao termo Teótokos (Mãe de Deus) por causa da sua referência cristológica; 4) Quanto ao que eu disse que "em sua literalidade" certas afirmações não seriam "efesianas" eu me reservei ao sentido de que olhando o todo da sua obra, e se atento a isso, Agostinho não teria alcançado Éfeso - o que não implica que em sua teologia ele seja um antagonista de Éfeso (há um abismo de diferença entre uma coisa e outra; 5) A minha tese é que a teologia de Agostinho assim é porque ele não chegou ao nível de diferenciação da discussão tal como foi travada em Éfeso; 6) Sei que Éfeso guarda a linguagem diferenciadora quando a consideração daquilo que compete a Cristo no concreto (em vista da encarnação) e no abstrato (considerando as naturezas humanas e divinas em suas especificidades próprias), pois o Concílio não nega que no abstrato Deus não tem mãe (Agostinho), e que no concreto Deus tem mãe (em razão da união, pois é próprio da humanidade o ter mãe). 7) A questão é que Agostinho não toca na consideração a respeito da linguagem que convém ao concreto (neste tema específico, ou seja, ele não chega a utilizar o termo "Mater Dei") em toda obra sua que pode ser verdadeiramente creditada a ele de forma direta9, muito embora outras afirmações dão conta de que Agostinho não é contra Éfeso.
    E aqui fica a razão pela qual eu escrevi esse texto: a razão foi conceder de forma generosa de pronto que os mais evangelicais não podem ser considerados nestorianos porque tem reservas quanto ao termo "Mãe de Deus". Eles muito bem podem considerar - como o fazem no mais das vezes - a questão analítica e abstratamente (considerando a natureza de Deus em si mesma), mas não no concreto. Mas é óbvio que em uma consideração mais global, levando em conta o concreto da encarnação e sua consequência em sentido amplo, não se pode negar que Maria é mãe de Deus, assim como não se pode negar que "Deus tem sangue", como afirma a Escritura Sagrada (At 20.28).
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[1] AGOSTINHO. A Fé e o Símbolo. IV.9. Coleção Patrística, Vol 34. Ed. Paulus, São Paulo-SP, 2018, 2ª reimp. p. 41.
[2] Idem. Comentário ao Evangelho de João e Apocalipse, Tomo I. Ed. Cultor de Livros, São Paulo-SP, 2017. p. 165-167.
[7] WEGNER. Exegese do Novo Testamento: Manual de Metodologia. Ed. SINODAL/EST. São Leopoldo-RS. 8ª Edição, 2016. p. 47-52.
[9] Os textos em que mais há uma proximidade disso que já li são dois: 1) O "Virgindade Consagrada" (Coleção Patrística, Vol. 16. Paulus, São Paulo-SP, 1ª ed. 2000. V.6. e VI.6. p. 105, 106.), onde Agostinho afirmar que Maria é mãe da Igreja, segundo o espírito, porque gerou os "membros do corpo de Cristo" do qual fazemos parte, mas sendo "mãe da divina cabeça segundo a carne"; 2) No tratado VIII.9 do Evangelho de João (conf. a nota 2. p. 166), Agostinho diz que "Antes que Deus criasse aquela de quem ele havia de nascer enquanto homem, já a conheceu como mãe", e isso em virtude da encarnação como um futurível certo segundo a ciência de visão - visualizando a encarnação que Deus considerou evento certo, antes da criação de todas as coisas.

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

As 97 Teses de Lutero Contra o Escolasticismo

    Pelas teses abaixo responderá, em local e data a serem determinados ainda, o mestre Francisco Günther, de Nordhausen, para obtenção do grau de bacharel em Estudos Bíblicos, sob a presidência do reverendo padre Martinho Lutero, agostiniano, decano da Faculdade de Teologia de Wittenberg.

1. Dizer que Agostinho se excede ao atacar os hereges é dizer que Agostinho quase sempre teria mentido. Contra a opinião geral.

2. Isto é o mesmo que oferecer aos pelagianos e a todos os hereges uma oportunidade de triunfo ou mesmo uma vitória.

3. E é o mesmo que expor ao deboche a autoridade de todos os mestres da Igreja.

4. Por isso, é verdade que o ser humano, sendo árvore má, não pode senão querer e fazer o mal.

5. Está errado que o desejo é livre para optar por qualquer uma de duas alternativas opostas; pelo contrario: ele não é livre, e sim cativo. Contra a opinião comum.

6. Está errado que, por natureza, a vontade possa conformar-se ao ditame correto. Contra Duns Escoto e Gabriel Biel.

7. Na verdade, sem a graça de Deus, a vontade suscita necessariamente um ato desconforme e mau.

8. Não se segue dai, entretanto, que ela seja má por natureza, isto é, pertencente ao mal por natureza, conforme pretendem os maniqueus.

9. Mesmo assim, por natureza e inevitavelmente ela é má e de natureza viciada.

10. Admite-se que a vontade não é livre para tender para aquilo que lhe parece bom segundo a razão. Contra Duns Escoto e Gabriel Biel.

11. Ela também não tem a capacidade de querer ou não querer o que quer que se lhe apresente.

12. Dizer isto tampouco é contra o B. Agostinho, que diz: Nada esta tanto dentro da capacidade da vontade quanto a própria vontade.

13. Absurdíssima é a conseqüência de que o ser humano em erro pode amar a criatura acima de tudo e, portanto, também a Deus. Contra Duns Escoto e Gabriel Biel.

14. Não é de estranhar que ela pode conformar-se ao ditame errôneo e não ao correto.

15. Pelo contrário, é característica sua conformar-se exclusivamente ao ditame errado e não ao correto.

16. Preferível é esta consequência: o ser humano em erro pode amar a criatura; portanto, é impossível que ame a Deus.

17. Por natureza, o ser humano não consegue querer que Deus seja Deus; pelo contrário, quer que ele mesmo seja Deus e que Deus não seja Deus.

18. Amar a Deus, por natureza, sobre todas as coisas, é uma ficção, uma quimera, por assim dizer. Contra a opinião quase geral.

19. Também não tem validade o pensamento de Escoto a respeito do valente cidadão que ama a coisa pública mais do que a si mesmo.

20. Um ato de amizade não provém da natureza, mas da graça preveniente. Contra Gabriel Biel.

21. Nada há na natureza senão atos de concupiscência contra Deus.

22. Todo ato de concupiscência contra Deus é um mal e uma prostituição do espírito.

23. Também não é verdade que um ato de concupiscência pode ser posto em ordem pela virtude da esperança. Contra Gabriel Biel.

24. Isto porque a esperança não é contrária ao amor, que somente busca e deseja o que é de Deus.

25. A esperança não vem de méritos, mas de sofrimentos que destroem méritos. Contra a prática de muitos.

26. O ato de amizade não é a forma mais perfeita de fazer o que está em si, nem a mais perfeita disposição para a graça de Deus, nem uma forrna de se converter e de se aproximar de Deus.

27. Ele é, isto sim, um ato de uma conversão já realizada, temporalmente e por natureza posterior a graça.

28. "Tornai-vos para mim, e eu me tornarei para vós outros." [Zc 1.3] "Chegai-vos a Deus, e ele se chegará a vós outros." [Tg 4.8] "Buscai e achareis." [Mt 7.7] "Quando me buscardes, serei achado de vós." [Jr 29.13s.] - Afirmar, a respeito destas e de outras passagens semelhantes, que uma parte cabe a natureza e a outra a graça, não é outra coisa que sustentar o que disseram os pelagianos.

29. A melhor e infalível preparação e a Única disposição para a graça é a eleição e predestinação eterna de Deus.

30. Da parte do ser humano, entretanto, nada precede a graça senão indisposição e até mesmo rebelião contra a graça.

31. Invencionice vaníssima é a afirmação de que o predestinado pode ser condenado separando-se os conceitos, mas não combinando-os. Contra os escolásticos.

32. Igualmente não resulta nada da afirmação de que a predestinação é necessária pela necessidade da consequência, mas não pela necessidade do consequente.

33. Falsa é também a tese de que fazer o que está em si equivale a remover os obstáculos que se opõem a graça. Contra determinados teólogos.

34. Em suma, a natureza não tem nem ditame correto nem vontade boa.

35. Não é verdade que a ignorância irremediável exime de toda culpa. Contra todos os escolásticos.

36. Porque a ignorância de Deus, de si mesmo e do que são boas obras sempre é irremediável para a natureza.

37. A natureza até necessariamente se vangloria e orgulha por dentro da obra que, na aparência e exteriormente, é boa.

38. Não existe virtude moral sem orgulho ou tristeza, isto é, sem pecado.

39. Não somos senhores dos nossos atos desde o principio até o fim, e sim escravos. Contra os filósofos.

40. Não nos tornamos justos por realizarmos coisas justas; é tendo sido feitos justos que realizamos coisas justas. Contra os filósofos.

41. Quase toda a Ética de Aristóteles é a pior inimiga da graça. Contra os escolásticos.

42. E um erro dizer que a concepção de felicidade de Aristóteles não contraria a doutrina católica. Contra os moralistas.

43. E um erro dizer que, sem Aristóteles, ninguém se torna teólogo. Contra a opinião geral.

44. Muito pelo contrário, ninguém se torna teólogo a não ser sem Aristóteles.

45. Dizer que o teólogo que não é um lógico é um monstruoso herege, é uma afirmação monstruosa e herética. Contra a opinião geral.

46. É em vão que se forja uma lógica da fé, uma suposição sem pé nem cabeça. Contra os dialéticos recentes.

47. Nenhuma fórmula silogística subsiste em questões divinas. Contra o cardeal Pedro d'Ailly.

48. Mesmo assim, não se segue dai que a verdade do artigo sobre a Trindade contraria as fórmulas silogísticas. Contra aqueles e contra o cardeal.

49. Se uma fórmula silogística subsistisse em questões divinas, o artigo sobre a Trindade seria conhecido, em vez de ser crido.

50. Em suma, todo o Aristóteles está para a teologia como as trevas estão para a luz. Contra os escolásticos.

51. É altamente duvidoso que os latinos tenham uma opinião correta sobre Aristóteles.

52. Teria sido bom para a Igreja se Porfírio com seus universalia não tivesse nascido para os teólogos.

53. As definições mais correntes de Aristóteles parecem pressupor aquilo que pretendem provar.

54. Para o ato meritório basta a coexistência da graça; do contrário, a coexistência nada é. Contra Gabriel Biel.

55. A graça de Deus nunca coexiste de forma ociosa, mas é espírito vivo, ativo e operante; nem mesmo pelo poder absoluto de Deus pode suceder que haja um ato de amizade sem que a graça de Deus esteja presente. Contra Gabriel Biel.

56. Deus não pode aceitar o ser humano sem a graça justificante de Deus. Contra Occam.

57. Perigosa é a afirmação de que a lei preceitua que o cumprimento do preceito suceda dentro da graça de Deus. Contra o cardeal Pedro d'Ailly e Gabriel Biel.

58. Tal afirmação implica que ter a graça de Deus seria uma nova exigência além da lei.

59. Tal afirmação implica também que o cumprimento do preceito poderia ocorrer sem a graça de Deus.

60. Ela também implica que a graça de Deus se tornaria mais odiosa do que a própria lei o foi.

61. Disso não se infere que a lei deve ser guardada e cumprida na graça de Deus. Contra Gabriel Biel.

62. Portanto, quem está fora da graça de Deus peca constantemente, mesmo não matando, não praticando adultério, não cometendo roubo.

63. A conclusão a ser tirada é que essa pessoa peca por cumprir a lei de forma não espiritual.

64. Não mata, não pratica adultério nem comete roubo espiritualmente quem não se ira nem cobiça.

65. Fora da graça de Deus é a tal ponto impossível não ser tomado de ira ou de cobiça, que nem mesmo na graça isso pode suceder de forma a cumprir perfeitamente a lei.

66. Não matar, não praticar adultério, etc. exteriormente e em ato concreto é justiça dos hipócritas.

67. Não cobiçar e não se encolerizar provém da graça de Deus.

68. Portanto, sem a graça de Deus é impossível cumprir a lei, seja de que maneira for.

69. Sim, por natureza, sem a graça de Deus, ela é mais transgredida ainda.

70. Para a vontade natural, a lei, que, em si, é boa, torna-se inevitavelmente má.

71. Sem a graça de Deus, a lei e a vontade são dois adversários implacáveis.

72. Aquilo que a lei quer, a vontade nunca quer, a menos que, por temor ou por amor, finja querê-lo.

73. A lei é o executor da vontade, que é superado apenas pelo "menino que nos nasceu" [Is 9.6].

74. A lei faz abundar o pecado, porque irrita e retrai de si mesma a vontade.

75. Mas a graça de Deus faz abundar a justiça através de Jesus Cristo, porque torna agradável a lei.

76. Toda obra da lei sem a graça de Deus parece boa exteriormente, mas interiormente é pecado. Contra os escolásticos.

77. Sem a graça de Deus, a mão está voltada para a lei do Senhor, mas a vontade está sempre afastada dela.

78. Sem a graça de Deus, a vontade se volta para a lei movida pela vantagem própria.

79. Malditos são todos os que praticam as obras da lei.

80. Benditos são todos os que praticam as obras da graça de Deus.

81. Quando não entendido de forma errônea, o capitulo Falsas de pe. dis. V confirma que, fora da graça, as obras não são boas.

82. Não só as leis cerimoniais são leis não boas e preceitos nos quais não se vive. Contra muitos mestres.

83. Isto vale também para o próprio Decálogo e para tudo o que puder ser ensinado ou prescrito interior ou exteriormente.

84. A lei boa na qual se vive é o amor de Deus derramado em nossos corações pelo Espírito Santo.

85. Se fosse possível, a vontade de qualquer pessoa preferiria ser completamente livre e que não houvesse lei.

86. A vontade de qualquer pessoa odeia que a lei lhe seja imposta, a menos que deseje que lhe seja imposta por amor a si mesma.

87. Já que a lei é boa, não pode ser boa a vontade que é inimiga da lei.

88. Disso se evidencia claramente que toda vontade natural é iníqua e má.

89. A graça é necessária como mediadora que concilie a lei com a vontade.

90. A graça de Deus é dada para orientar a vontade, para que esta não erre também ao amar a Deus. Contra Gabriel Biel.

91. Ela não é dada para suscitar atos com maior frequência e facilidade, mas por que, sem ela, nenhum ato de amor é suscitado. Contra Gabriel Biel.

92. É irrefutável o argumento de que o amor seria supérfluo se, por natureza, o ser humano fosse capaz de um ato de amizade. Contra Gabriel Biel.

93. Perversidade sutil é dizer que fruir e usar constituem o mesmo ato. Contra Occam, o cardeal Pedro d'Ailly e Gabriel Biel.

94. O mesmo vale para a afirmação de que o amor a Deus subsiste mesmo ao lado de intenso amor pela criatura.

95. Amar a Deus significa odiar a si mesmo e nada saber além de Deus.

96. Nosso querer deve conformar-se em tudo a vontade divina. Contra o cardeal Pedro d'Ailly.

97. Não só devemos querer o que Ele quer que queiramos, mas devemos querer absolutamente qualquer coisa que Deus queira.

Oração em Dificuldade Especial*

Senhor Deus, uma grande desgraça me sobreveio.
Minhas preocupações estão me esmagando, não sei mais o que fazer.
Deus, sê misericordioso e ajuda.
Dá a força para suportar o que envias.
Não permitas que o medo me domine.
Cuida como um pai das pessoas que me são caras, especialmente da mulher e das crianças, [e] protege-as de todo mal e de todo perigo.
Misericordioso Deus, perdoa-me todo pecado que cometi contra ti e contra pessoas.
Confio em tua graça e entrego minha vida totalmente às tuas mãos.
Procede comigo como for do teu agrado e como for bom para mim.
Na vida ou na morte, estou contigo e tu estás comigo, meu Deus [e] Senhor, eu espero pela tua salvação e pelo teu reino.
Amém.
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[*] BONHOEFFER, Dietrich. Resistência e Submissão: Cartas e Anotações Escritas na Prisão. Ed. Sinodal, São Leopoldo-RS, 2ª ed. 2015. p. 194.

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Em Defesa da Substituição Penal; Ou: Do Pecado Original à Expiação na Cruz

    As ideias exóticas do rev. Gyordano geralmente me chegam por terceiros. E sim, eu comento algumas posições dele em grupos que administro. Mas essa última merece uma resposta pública e direta.

    Na última intervenção luminosa da sua parte ele afirmou o reducionismo no qual sempre fincou o seu pé, ou seja, de que "punir um inocente é injusto". Quem não concorda com isso? Mas a questão é mais profunda e complexa do que essa banalização metódica dele que busca tirar TODAS AS VEZES a inteligência do argumento da teologia da substituição penal, teologia que é mais profunda do que ele quer dar a entender com sua cruzada panfletária. Entendam: o Gyordano não quer refutar um argumento - caso contrário ele trataria de todos os pontos fundamentais dessa doutrina -, ele quer destruir uma posição.

    Mas comecemos pelo começo: A ideia de "imputação" não é meramente um abstratismo absurdo, como o reducionismo do Gyordano quer dar a entender, implicando que na teologia da expiação dos reformadores é afirmado que Deus quer meramente matar um inocente aleatório para se satisfazer. E isso é importante porque ele nega qualquer forma de imputação (atribuição extrínseca), seja da justiça de Cristo ao seu corpo - a Igreja -, no que diz respeito à justificação, seja a imputação da culpa - quer quando nos referimos ao pecado original, quer quando nos referimos à imputação da culpa do pecado a Cristo.

    É bem verdade que ele concebe como injusta a noção de imputação do pecado de Adão à raça toda. Ele, que ironicamente se apresenta como agostiniano, diz que não a culpa, mas sim a condenação de Adão que é atribuída à raça - como se fosse lógica e evidente a afirmação de que Deus aplica uma sentença condenatória a quem não possui culpa alguma. Condenar alguém sem culpa, isso sim é injustiça.

    Mas voltemos aos argumentos postulados pelos reformadores sobre a imputação da culpa. Primeiramente é necessário compreender se qualquer forma de imputação é negada, seja na Escritura, seja pela igreja. A resposta é não. Agostinho costumava se referir à expressão Paulina de que "pelo pecado de um só" a condenação veio sobre todos, inclusive daqueles que não pecaram como Adão, prefigurando aquele que haveria de vir (Rm 5.12). Mas por que que a imputação ocorre? É simples: porque há uma ligação fundamental entre Adão e a raça, da mesma forma que há uma ligação fundamental entre Cristo e o seu corpo como o segundo Adão.    

    Note que o argumento paulino é de que a morte (salário do pecado), que é a figura sensível da condenação nesse contexto, é passada à raça, não simplesmente por imitação, ou seja, todos contraímos a pena, até mesmo aqueles que não pecaram à semelhança de Adão, imitando sua transgressão fundamental. Diz Paulo que o julgamento (κρίµαkríma) derivou "de uma só ofensa para a condenação" (ἐξ ἑνὸς εἰς κατάκριµαex enos eis katakrima). Excluídos estão os pecados atuais se o juízo vem de uma só ofensa e não de muitas (ponlōn). E isso é importante por causa dos neonatos (bebês), pois estes não são capazes de pecados atuais (que unem a vontade e a consciência no ato pecaminoso), não obstante a isso, todos eles nascem sob o sinal do juízo condenatório que vem "de uma só ofensa".

    Estabelecido isso, é fácil entender a razão pela qual o juízo de que a imputação flui da Escritura não é um exotismo dos reformadores. Antes é uma exigência da Escritura reconhecida também pela igreja ao longo dos séculos (Agostinho, e mesmo Trento parte de uma noção de imputação da culpa em relação ao pecado original à raça). Mas a beleza da teologia da expiação paulina e reformadora é que a obra de Cristo é visualizada a partir de um contra-golpe em relação ao pecado original. A culpa ser atribuída a Cristo - como já afirmava Crisóstomo também - se relaciona de forma fundamental com o primeiro pecado. Não por acaso Cristo é chamado de "Novo Adão", pois ele é o cabeça da nova criação (a Igreja), assim como Adão é o cabeça da antiga Criação.

    Estabelecido esse entendimento é fácil compreender a razão pela qual a Cruz de Cristo se relaciona ao pecado fundamental que arruinou o gênero humano, pois Cristo inverte a obra de Adão, pois se o pecado de Adão é imputado sobre todos (na velha criação), Cristo absorve justamente essa condenação em seu corpo (pois ele é aquele que recebe a condenação sem o pecado Rm 5.14), e atribui - imputa - sua justiça a todo o seu corpo (a Nova Criação). Se o pecado original é atribuído à raça por termos uma ligação de origem com o primeiro homem (Adão significa "humanidade"), na nossa ligação com Cristo (pela fé e pelo batismo) isso é revertido, e é sua justiça que nos é imputada, não o pecado que Cristo não tem, e que não tendo pecado que é seu, em si ele destrói o pecado que é nosso.

    Cristo é inocente, mas em nosso favor recebe a nossa culpa e a nossa pena para reverter a marcha destrutiva provocada pelo pecado original.

    A resposta bíblica, paulina e reformadora é aquela que faz mais justiça ao tema do pecado original e dos pecados atuais, e isso de forma mais ampla e abrangente do que qualquer outra tagarelice teológica concorrente.

O Itinerário da Negação

     Hoje um itinerário da negação famoso aqui no tipiniquinstão em matéria de teologia é este:

    Negam a justificação somente pela fé porque negam a imputação da justiça de Cristo ao seu corpo, porque negam qualquer forma de imputação ou atribuição extrínseca, porque negam a imputação da nossa culpa a Cristo na Cruz, porque negam a imputação do pecado de Adão à raça humana toda.
    O mais interessante de tudo isso é que essa classe incompreensível de gente afirma de forma clamorosa a necessidade de batismo infantil para a salvação de crianças. Mas a pergunta é: salvar de quê, se o batismo que afirmam é para a remissão dos pecados, sendo que a culpa do pecado original não pode ser atribuída às crianças, não tendo elas, por tanto, necessidade de absolvição alguma? Há de ser perdoada a mera "natureza adâmica" que, por si mesma, não pode ser alvo de imputação e, por tanto, nem de remissão de culpa - já que a natureza continua corrupta depois do batismo?
    Se eles começam com um erro, logo terminarão nessa tragédia contraditória. Mas esse é o descaminho estranho da galera mais iluminada e cristã de todos os tempos.
P.S.: A única saída é o pessoal dizer que o batismo é para a infusão do Espírito Santo. Mas isso não ajuda, já que a salvação demanda anulação da culpa e não meramente a infusão do Espírito. Seria estranho Deus mandar para o inferno alguém que não tem culpa - porque nesse caso a culpa seria indiferente não apenas para a salvação, mas também para a condenação.

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

O Concílio de Trento e a sua Conceituação Perturbada de Concupiscência

    Trento, em sua posição adversa à Reforma, estabeleceu como de fide tanto que a justificação é retificação, como que a concupiscência, ou a desordem interior dos afetos, não poderiam ser chamados propriamente pecado. Essa posição forneceu um estrago permanente na teologia papista em pelo menos três frentes: 1) Obscureceu a noção referente à majestade de Deus; 2) Destruiu uma reta conceituação de justiça para a fé como justiça teológica ou religiosa; 3) Eclipsou a verdadeira situação do homem frente à majestade divina - já que até mesmo a noção teológica de pecado só pode ser reconhecida aqui à luz da revelação e não à luz de uma noção de "justiça civil" pela qual pecado, em sentido estrito, só é reconhecido à luz do ato, e não da corrupção (concupiscência) interior do homem.

    É assim que foi afirmado esse estrago permanente na sessão V.5 do Concílio:

"792. 5) Se alguém negar que pela graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, conferida no Batismo, é perdoado o reato do pecado original. Ou se afirmar que não é tirado tudo o que tem verdadeira e própria razão de pecado, mas disser que este é tão somente riscado ou não imputado (sed illud dicit tantum radi aut non imputari) – seja excomungado. Pois Deus nada odeia nos regenerados, visto nada haver de condenação nos que foram verdadeiramente sepultados com Cristo pelo batismo para a morte (Rom 6, 4), os quais não andam segundo a carne (Rom 8, 1), mas despojando-se do homem velho, e revestindo-se do novo que foi criado segundo Deus (Ef 4, 22 ss; Col 3, 9 s), se tornaram sem mancha, imaculados, puros, inocentes, filhos amados de Deus e herdeiros de Deus (Rom 8, 17), de maneira que nada os impede de entrarem logo no céu. Que fique, porém, nos batizados a concupiscência ou o "estopim", [fomes], isto o santo Concílio confessa e sente; mas tendo sido isto deixado para a luta, não pode prejudicar aos que não consentem e lutam varonilmente [auxiliados] pela graça de Jesus Cristo. Mas, pelo contrário, só será coroado quem legitimamente combater (2 Tim 2, 5). O santo Concílio declara que a Igreja Católica jamais entendeu que esta concupiscência – pelo Apóstolo denominada pecado (Rom 6, 12 ss) – se chame "pecado" por ser verdadeira e propriamente pecado nos renascidos, mas por se originar do pecado e nos inclinar ao pecado. Se alguém entender o contrário, seja excomungado.

    Percebam que pela atenuação do peso teológico negativo da concupiscência do homem em relação a Deus uma via importante se abre para a teologia papisa, que é a via da justificação pelas obras, já que as obras praticadas pelos regenerados conseguem o selo da aprovação como sendo suficientes (não plenamente perfeitas), mesmo que os regenerados não tenham propriamente as suas almas elevadas ao nível de uma justiça absoluta (no sentido de ser a justiça que convém ao homem perfeito e completamente quitado daquelas defecções que permanecem no homem regenerado).

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Ordem de Leitura Introdutória da Obra de Platão

Ordem de Leitura da Obra Platônica até As Leis é esta:


01º) Eutifron

02º) Apologia de Sócrates

03º) Críton

04º) Fédon

05º) Mênon

06º) I Acibíades

07º) Cármides

08º) Laques

09º) Lísis

10º) Eutidemo

11º) O Banquete

12º) Fedro

13º) Hípias Menor

14º) Hípias Maior

15º) Protágoras

16º) Górgias

17º) A República

18º) Timeu

19º) Crítias

20º) Teeteto

21º) Parmênides

22º) O Sofista

23º) Político

24º) Filebo

25º) Lísis

26º) As Leis

OBS: Nem todas as obras platônicas estão aqui.

terça-feira, 26 de julho de 2022

Jerônimo e a Precedência das Escrituras Hebraicas sobre as Escrituras Gregas

    Há uma precedência das Escrituras hebraicas sobre as gregas?

    Assim se posicionou Jerônimo (342-420 d.C.)*:

Os discípulos dos apóstolos se utilizam das Escrituras hebraicas. É evidente que os evangelistas e os apóstolos fizeram eles próprios o mesmo. O Senhor e Salvador, todas as vezes que faz menção ao Velho Testamento, cita exemplos dos volumes hebraicos, como esta passagem: “Aquele que crê em mim, como diz a Escritura, rios de água viva fluirão de seu ventre”(1), e na própria cruz: “Eli, Eli, lema sabachtani” (2), o que se traduz: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”, não como foi citado pelos Setenta: “Ó Deus, meu Deus, olha-me, por que me abandonaste?”, e muitas passagens a estas similares. E se dizemos isto, não é que estigmatizamos os Setenta tradutores, mas é o Cristo e os apóstolos que têm mais autoridade, onde quer que os Setenta não estejam em desacordo com o hebraico, aí os apóstolos tomaram exemplos de sua tradução; onde há divergência de fato, eles puseram em grego o que haviam aprendido junto aos hebreus.*

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[*] JERÔNIMO. Apologia Contra os Livros de Rufino. II.34

[1] Jo 7.38

[2] Mt 27.46; Sl 22.

Heidegger, Kierkegaard, o Princípio Matemático da Filosofia e a Revelação

    No livro "Ser e Verdade" Heidegger discorre sobre questões relativas ao próprio da filosofia ocidental. Lá ele tem uma tese interessante, que é a de que o "matemático" é princípio ocidental da filosofia. Por "matemático" ele compreende não meramente uma disciplina relativa aos números, mas algo que funda e determina essa filosofia, e discorrendo sobre o sentido próprio do "matemático" Heidegger aponta para a raiz dessa palavra, a saber, "mathema", aquilo que é, segundo os gregos, o próprio do que é passível de ensino e passível de ser aprendido ("mathesis"). Entre as coisas que podem ser aprendidas, os "methemata" se distinguem de outros setores do conhecimento, na área especulativa da física (physis), e na área da produção (poiómena) etc. Diferentemente desses outros setores, os "methemata" não estão atrelados àquilo que é dado como fenômeno, mas se distinguem por serem objetos que, podemos dizer, o ser humano se dá a si mesmo como realidades captadas em sua pureza apenas pela razão, não por fenômenos ou pela experiência.

    Aqui podemos dizer que seria simples reducionismo entender o "matemático" como números, relações numéricas, pontos, sólidos, linhas etc. Como dirá Heidegger, esses elementos são "matemáticos" apenas em sentido derivado; são elementos constituídos pelos "mathemata" e não constitutivos deles. Não leva muito tempo para que com isso possamos reconhecer que essa disciplina, que engloba o "ensinar e aprender", nos conduz à premissa de um método que serviu como o ponto de partida da filosofia platônica, e que revela assim o sentido dos "mathemata" no pensamento grego, a saber, a "maiêutica", que era método do partejamento de ideias pelo qual Sócrates extraia o conhecimento latente na alma daqueles que ele aplicava esse método. Essa premissa platônica que funda o método maiêutico está em que o homem é fonte de conhecimento para si, mas não porque ele detém o conteúdo de todos os fenômenos, e sim porque ele carrega em sua razão o princípio fundamental desse mesmo conhecer.

    Aqui é interessante notar que voltamos à epígrafe sustentada na porta do templo de Delfos: "Conhece-te a ti mesmo". Esse é o próprio do pensamento grego, pois é nessa volta a si mesmo que o homem pode ter acesso àquele princípio "matemático" que o conduz à verdade, à verdade que não vem a nós pelo fenômeno ou por algo externo a nós, mas que é congênito a nós. O mesmo Spinoza, quando afirma que a exposição no seu "Ética" é feito more geometrico demonstrata, ou "segundo a modo de demonstração geométrica", não quis dizer que sua obra partia dos princípios da geometria analítica e da análise das formas espaciais, mas sim que seu procedimento era dedutivo, se seguindo de premissas, cuja conclusão era rigorosamente revestida e reforçada por uma armadura formal. Tal lógica se funda em um princípio racional que o homem se dá e pelo qual ele pode julgar e concluir. É um próprio humano.

    É impossível você chegar nesse ponto e não ver a semelhança com a postulação aparentemente simples de Kierkegaard, que distingue o "próprio do cristianismo" com o "próprio dos gregos" no "Migalhas Filosóficas". Explico: Toda essa descrição do "princípio matemático" que, segundo Heidegger, domina a filosofia ocidental é uma preparação para um confronto direto com Hegel, que segundo Heidegger é o clímax do desenvolvimento da "tendência ocidental" na filosofia, filosofia que é Théo-Lógica.

    No Migalhas Filosóficas Kierkegaard opõe dois métodos para a aquisição da verdade, preparando assim seu ataque à filosofia hegeliana. O primeiro método, que é o grego, parte da premissa de que o homem é mestre para si, tendo a maiêutica socrática como evidência máxima dessa compreensão. No cristianismo a premissa é totalmente outra, pois a verdade não é alcançada por um método pelo qual o homem se põe a caminho, nem é aquilo que o homem dá a si mesmo necessariamente, mas sim aquilo que nos chega, e não algo para onde vamos, é aquilo que é dado por outro, a saber, o Cristo e a sua revelação, e não algo que damos a nós mesmos e nem nos damos partindo dos fatos da natureza. Kierkegaard parte daquilo que Schelling chamará de "filosofia positiva", ou a "filosofia da revelação", algo que não pode ser uma verdade que alcanço necessariamente pela via da dedução, algo a que chego sem que coisa alguma fora de mim me seja dada. Kierkegaard conclui aqui o que os teólogos sempre souberam, a saber, que o posto pela revelação divina não é uma verdade simplesmente dedutível (pela via negativa, no sentido do idealismo alemão, i. e., pela via da razão pura), e nem dedutível a partir dos fatos naturais dados, mas é algo eminentemente positivo (para além do positivo simples da natureza), a saber, se trata do que Deus decidiu estabelecer segundo a sua vontade (potência ordenada), vontade que não tem razão de ser a não ser o desejo divino, muito embora os (melhores) teólogos também sempre tenham afirmado que a revelação não é contrária à razão, pois, como deduzir a ressurreição dos mortos da simples razão ou a partir dos fatos da natureza? E como considerar a ressurreição irracional pelo ângulo da potência absoluta de Deus?

    Embora Heidegger parta desse ponto de vista kierkegaardiano - levando em consideração que Kierkegaard foi, possivelmente, o mais violento inimigo de Hegel -, ele não permanece em todos os pontos de vista cristãos de Kierkegaard, e também rompe o equilíbrio estabelecido entre a filosofia e a revelação como foi estabelecido ao longo da história da Igreja. Sabemos que Heidegger foi um monstro, mas é interessante notar o seu itinerário argumentativo e o amplo domínio que possuía da história da filosofia, indicando certos pontos doentios dessa história (em Descartes) e as fragilidades de quem considera a realidade apenas do ponto de vista daquilo que o homem pode dar a si mesmo em sua razão, desconsiderando que nem tudo o que compõe a verdade (nem a verdade superior) pode ser dado ao homem pelo próprio homem.

Sola Scriptura e Equívocos

    Existe uma confusão muito grande que visa implodir a validade do princípio protestante Sola Scriptura. Nenhum teólogo protestante afirma que a Igreja inexistiu sem a Escritura, ou sem o conjunto dessas escrituras. Todas as igrejas onde haviam pessoas com fé e batizadas eram comunidades cristãs. Ninguém nega hoje que existam cristãos - na China, Coreia do Norte e em outros lugares - sem a Escritura ou apenas com parte dela. O que não existe é uma igreja sem a Palavra de Deus e sem a fé em Cristo (que é a Palavra de Deus).

    Outra questão é a seguinte: a positivação do conteúdo da pregação é uma tendência dos atos divinos que remonta ao Antigo Testamento, e certamente tudo visando o nosso bem. E o que sobra do AT para nós cristãos não são as "tradições orais" - que os fariseus alegavam também ter -, mas sim os oráculos positivados nos textos bíblicos. Não seguimos os ensinos de Platão que repugnava a positivação das "doutrina esotéricas" em escrito (e se Platão consignava suas doutrinas em cartas, mandava que os destinatários, uma vez lidas as correspondências, as queimassem). A razão disso é que a revelação é uma instituição pública, manifesta pelo interesse de todos os homens, sem ambiguidades, e sem se tratar de uma mensagem restrita a uma elite. É a comunicação divina, manifesta em escrito, à humanidade que ele criou.
    Pensem bem: a imensa maioria dos ensinos esotéricos (e temos acesso a parte deles em documentos que não foram queimados) dos gregos se perderam, e esses eram transmitidos via "tradição oral". Outros, se estão aí, nem sabemos se remontam aos mestres dos mistérios gregos. Mas uma coisa sabemos: o apelo à "tradição oral" é muito próprio de um discurso de uma "elite mística", depositária de mistérios. Foi assim que os gnósticos conseguiram arrastar parte da igreja, já que eles alegaram terem recebido esses ensinos diretamente dos apóstolos (algo impossível de provar e também de refutar). Sendo assim, aquilo em que os polemistas cristãos se fiavam era na revelação pública, revelação positivada nas Escrituras, e transmitida pelos apóstolos e evangelistas às igrejas - pois essas palavras eram palavras dos profetas e Apóstolos.
    E uma nota importante: mesmo Irineu de Lyon, bispo cristão do séc. II e III d.C., em sua polêmica contra a heresia gnóstica, apelava firmemente para o sentido dos textos sagrados para refutar os ensinos desviantes dos gnósticos E quando apelava para a paradosis (a tradição, ou aquilo que foi entregue) tinha em mente uma coisa: a reta interpretação das escrituras deixadas pelos apóstolos e profetas. Como prova disso o texto do mesmo Irineu entitulado "Demonstração da Pregação Apostólica" nada mais trata do que o conteúdo da Escritura e da reta forma de vê-la. Nada mais do que isso e nada menos, o que nos leva à conclusão de que a tradição é a própria Escritura e a sua reta interpretação, pois foi a Escritura e as Palavras ali consignadas que nos foram entregues (paradosis), por amor a nós, em condescendência pela nossa fraqueza, para a nossa salvação.
P.S.: O fato de Irineu de Lyon no "Contra as Heresias" ter acusado os heréticos gnósticos de terem com eles uma "estátua de Cristo" já deveria nos sinalizar qual era a sua interpretação da Escritura, e qual o seu entendimento a respeito do preceito de Deus para as igrejas.