quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Comentário em Isaías 3.6-15: (עַמִּי֙ נֹגְשָׂ֣יו מְעוֹלֵ֔ל) O caos e a inversão: O juízo sobre Judá e Jerusalém (2ª Parte)

 Texto Hebraico de Isaías 3.6-15:

6 כִּֽי־יִתְפֹּ֨שׂ אִ֤ישׁ בְּאָחִיו֙ בֵּ֣ית אָבִ֔יו שִׂמְלָ֣ה לְכָ֔ה קָצִ֖ין תִּֽהְיֶה־לָּ֑נוּ וְהַמַּכְשֵׁלָ֥ה הַזֹּ֖את תַּ֥חַת יָדֶֽךָ׃
7 יִשָּׂא֩ בַיֹּ֨ום הַה֤וּא׀ לֵאמֹר֙ לֹא־אֶהְיֶ֣ה חֹבֵ֔שׁ וּבְבֵיתִ֕י אֵ֥ין לֶ֖חֶם וְאֵ֣ין שִׂמְלָ֑ה לֹ֥א תְשִׂימֻ֖נִי קְצִ֥ין עָֽם׃
8 כִּ֤י כָשְׁלָה֙ יְר֣וּשָׁלִַ֔ם וִיהוּדָ֖ה נָפָ֑ל כִּֽי־לְשׁוֹנָ֤ם וּמַֽעַלְלֵיהֶם֙ אֶל־יְהוָ֔ה לַמְרֹ֖ות עֵנֵ֥י כְבוֹדֹֽו׃
9 הַכָּרַ֤ת פְּנֵיהֶם֙ עָ֣נְתָה בָּ֔ם וְחַטָּאתָ֛ם כִּסְדֹ֥ם הִגִּ֖ידוּ לֹ֣א כִחֵ֑דוּ אֹ֣וי לְנַפְשָׁ֔ם כִּֽי־גָמְל֥וּ לָהֶ֖ם רָעָֽה׃
10 אִמְר֥וּ צַדִּ֖יק כִּי־טֹ֑וב כִּֽי־פְרִ֥י מַעַלְלֵיהֶ֖ם יֹאכֵֽלוּ׃
11 אֹ֖וי לְרָשָׁ֣ע רָ֑ע כִּֽי־גְמ֥וּל יָדָ֖יו יֵעָ֥שֶׂה לֹּֽו׃
12 עַמִּי֙ נֹגְשָׂ֣יו מְעוֹלֵ֔ל וְנָשִׁ֖ים מָ֣שְׁלוּ בֹ֑ו עַמִּי֙ מְאַשְּׁרֶ֣יךָ מַתְעִ֔ים וְדֶ֥רֶךְ אֹֽרְחֹתֶ֖יךָ בִּלֵּֽעוּ׃ ס
13 נִצָּ֥ב לָרִ֖יב יְהוָ֑ה וְעֹמֵ֖ד לָדִ֥ין עַמִּֽים׃
14 יְהוָה֙ בְּמִשְׁפָּ֣ט יָבֹ֔וא עִם־זִקְנֵ֥י עַמֹּ֖ו וְשָׂרָ֑יו וְאַתֶּם֙ בִּֽעַרְתֶּ֣ם הַכֶּ֔רֶם גְּזֵלַ֥ת הֶֽעָנִ֖י בְּבָתֵּיכֶֽם׃
15 מַלָּכֶם מַּה־ לָּכֶם֙ תְּדַכְּא֣וּ עַמִּ֔י וּפְנֵ֥י עֲנִיִּ֖ים תִּטְחָ֑נוּ נְאֻם־אֲדֹנָ֥י יְהוִ֖ה צְבָאֹֽות׃ ס

Tradução e Comentário:

6,7)

כִּֽי־יִתְפֹּ֨שׂ אִ֤ישׁ בְּאָחִיו֙ בֵּ֣ית אָבִ֔יו שִׂמְלָ֣ה לְכָ֔ה קָצִ֖ין תִּֽהְיֶה־לָּ֑נוּ וְהַמַּכְשֵׁלָ֥ה הַזֹּ֖את תַּ֥חַת יָדֶֽךָ׃
יִשָּׂא֩ בַיֹּ֨ום הַה֤וּא׀ לֵאמֹר֙ לֹא־אֶהְיֶ֣ה חֹבֵ֔שׁ וּבְבֵיתִ֕י אֵ֥ין לֶ֖חֶם וְאֵ֣ין שִׂמְלָ֑ה לֹ֥א תְשִׂימֻ֖נִי קְצִ֥ין עָֽם׃

     Quando um homem se achegar ao irmão dele e disser, na casa de seu pai: Tome essa roupara para ti, e seja um líder para nós. Toma esse monte de destroços sob tuas mãos. E naquele dia ele se levantará dizendo: Não sou médico, em minha casa não há alimento (pão), nem roupa alguma. Não me estabeleçam por príncipe do povo.

       A inversão continua a sua corrente devastadora. O cenário desenhado pelos vs. 6 e 7 evidencia a situação deplorável do futuro previsto por Isaías. Um homem chega ao seu irmão, da casa de seu pai, e lhe oferece vestes e também a liderança sobre a casa, pedindo que ele tome, como líder (קָצִ֖ין), o monte de destroços (הַמַּכְשֵׁלָ֥ה) sob as mãos suas (יָדֶֽךָ). O fato mesmo é que a resposta deste irmão representa o profundo abandono de Deus, como que deixando sem qualquer princípio de governo aquilo que está em ruínas. Em situações normais qualquer um entenderia como privilégio o convite para liderar e não como um agouro temível. Mas em tempos de calamidade e dificuldade, aqui figurados como um monte de destroços, o estado de coisas está acima da capacidade de qualquer governo. E sem um princípio de direção, o que vemos é um corpo político como que descabeçado, e, nesse sentido, ausente de qualquer direção. O irmão diz que não é o que ata - um médico - (חֹבֵ֔שׁ), nem tem posse de alimento (לֶ֖חֶם) em casa e nem mesmo roupa (שִׂמְלָ֑ה), e assim evidencia seu desinteresse absoluto por ser chefe do povo (קְצִ֥ין עָֽם).

8, 9-12)

כִּ֤י כָשְׁלָה֙ יְר֣וּשָׁלִַ֔ם וִיהוּדָ֖ה נָפָ֑ל כִּֽי־לְשׁוֹנָ֤ם וּמַֽעַלְלֵיהֶם֙ אֶל־יְהוָ֔ה לַמְרֹ֖ות עֵנֵ֥י כְבוֹדֹֽו׃
הַכָּרַ֤ת פְּנֵיהֶם֙ עָ֣נְתָה בָּ֔ם וְחַטָּאתָ֛ם כִּסְדֹ֥ם הִגִּ֖ידוּ לֹ֣א כִחֵ֑דוּ אֹ֣וי לְנַפְשָׁ֔ם כִּֽי־גָמְל֥וּ לָהֶ֖ם רָעָֽה׃
אִמְר֥וּ צַדִּ֖יק כִּי־טֹ֑וב כִּֽי־פְרִ֥י מַעַלְלֵיהֶ֖ם יֹאכֵֽלוּ׃
אֹ֖וי לְרָשָׁ֣ע רָ֑ע כִּֽי־גְמ֥וּל יָדָ֖יו יֵעָ֥שֶׂה לֹּֽו׃
עַמִּי֙ נֹגְשָׂ֣יו מְעוֹלֵ֔ל וְנָשִׁ֖ים מָ֣שְׁלוּ בֹ֑ו עַמִּי֙ מְאַשְּׁרֶ֣יךָ מַתְעִ֔ים וְדֶ֥רֶךְ אֹֽרְחֹתֶ֖יךָ בִּלֵּֽעוּ׃ ס

    Porque Jerusalém cambaleia e Judá cai. Porque a língua e as obras deles são contra o Senhor, para afrontarem a sua gloriosa presença. Os aspecto do seu rosto testifica contra eles; e, como Sodoma, publicam seus pecados e não os encobrem. Ai de suas almas! Porque haverá retribuição da sua maldade. Digam ao justo que lhes bem irá, pois comerão do fruto de suas ações. Ai do perverso! Mau lhe irá; porque receberão a paga por aquilo que suas mãos fizeram. Os opressores do meu povo são crianças e mulheres exercem domínio sobre ele. Oh! Meu povo! Os que te guiam te fazem tropeçar e destroem o caminho por onde vocês devem seguir.

    O versículo 8 estabelece uma relação interessante. A capital balança e o reino inteiro cai. Aqui estamos temos um texto que vai para além do paralelismo poético típico da literatura hebraica, pois aqui há a descrição de um fato político na relação entre o centro de poder e a periferia. Certamente que uma capital, por concentrar mais poder, é mais robusta para suportar uma crise, mas também tem capacidade de reverberar sua insensatez de forma mais poderosa do que as regiões que estão sob o seu governo. E porque isso ocorre? Pois a língua e as obras deles são contra o Senhor (כִּֽי־לְשׁוֹנָ֤ם וּמַֽעַלְלֵיהֶם֙ אֶל־יְהוָ֔ה). E como veremos, vários desvios em relação aos preceitos do Senhor geram catástrofe.

    O nosso modo um tanto quanto nominalista e atomizado de pensar não raro estabelece uma divisão desnecessárias entre a dinâmica da nossa história e os preceitos divinos, ou a ação divina. Mas devemos pensar que, ao invés disso, a Escritura tem uma visão mais unitária do mundo, relacionando cada fato e realidade histórica com Deus. Assim, se a língua (לָשׁוֺן) e as obras deles (מַֽעַלְלֵיהֶם֙) são contra YHWH (אֶל־יְהוָ֔ה), tudo consequentemente vai pelos ares. É interessante notar que a palavra obras deles é formada pela raiz עלל, raiz que constitui também a palavra תַעֲלוּלִ֖ים do vs. 4 que traduzimos como maus tratos, ou mesmo crianças. É certo que palavras de raízes idênticas possuem sentidos distintos na língua hebraica. Não obstante, é bem possível que o gênio poético do profeta Isaías, inspirado pelo Espírito, tenha colocado palavras idênticas para sacar daí um certo sentido, pois podemos ver que o uso das palavras com a raiz עלל estão sendo usadas neste bloco textual em um sentido evidentemente negativo. Assim, as obras deles (מַֽעַלְלֵיהֶם֙) e a língua (לָשׁוֺן) são contra YHWH, para afrontarem (לַמְרֹ֖ות) aos olhos da (עֵנֵ֥י) glória dele (כְבוֹדֹֽו). Portanto, seus feitos são atrevimentos contra Deus, e disso resulta a sua miséria e, então, Jerusalém cambaleia e Judá cai.            

    Também os pecados do povo estão estampados no aspecto do (הַכָּרַ֤ת) rosto deles (פְּנֵיהֶם֙), quase formando um discurso de confissão de culpa, o que incrivelmente não impede o avanço da rebelião desse povo que resulta na publicação da sua transgressão como Sodoma (כִּסְדֹ֥ם), ou seja, sem ao menos qualquer afetação de pudor, o que faria eles corar de vergonha dos seus atos. Trata-se da maldade que descamba sem atrito. São aqueles que, ao contrário dos hipócritas, convertem sua maldade numa segunda natureza. Então um Ai: "Ai (אֹ֣וי) da vida deles (לְנַפְשָׁ֔ם). Pois farão mal a si mesmos (כִּֽי־גָמְל֥וּ לָהֶ֖ם רָעָֽה)". Anunciem (אִמְר֥וּ) ao justo (צַדִּ֖יק), pois bem (כִּי־טֹ֑וב) irá, pois o fruto (כִּֽי־פְרִ֥י) das ações deles (מַעַלְלֵיהֶ֖ם) eles comerão (יֹאכֵֽלוּ). Interessante que aqui o ações deles (מַעַלְלֵיהֶ֖ם) é uma palavra com a raiz עלל, a mesma que forma as palavras com sentido evidentemente negativo que apontamos anteriormente. Contudo aqui há um sentido positivo que no contexto em questão significa obras. Mas já no vs. 11 temos: Ai (אֹ֖וי) para o ímpio (לְרָשָׁ֣ע) mau (רָ֑ע)! Pois haverá (será feita = יֵעָ֥שֶׂה) retribuição (Porque retribuição = כִּֽי־גְמ֥וּל) às obras (יֵעָ֥שֶׂה) das suas mãos (יָדָ֖יו).

    Toda a torção provocada pelo pecado e pelo levante contra Deus reverbera na realidade: aqueles que oprimem (נֹגְשָׂ֣יו) são crianças (מְעוֹלֵ֔ל) e mulheres (וְנָשִׁ֖ים) governam (מָ֣שְׁלוּ) "meu povo" (עַמִּי֙). O pecado afeta a razão e a disposição em ordenar as coisas: os governantes são tanto imperitos, ou quem não tem capacidade de liderar direito, quanto mulheres. A sensibilidade contemporânea pode se sentir agredida com esses versículos. Mas no contexto geral do bloco textual o que o profeta deseja expressar é que há uma ordem de coisas estabelecida por Deus, e que essa ordem está flagrantemente fragmentada e cada coisa ocupa um lugar indevido: homens rejeitam o governo (cf. vs. 6, 7) , crianças tomam a direção das coisas e mulheres vão à frente, enquanto homens se omitem em períodos de calamidade. E toda essa torção é provocada pela indignidade da ação perversa dos cabeças, os anciãos e chefes do povo. A inversão da ordem, é resultado do levante contra Deus. Obviamente que quem deixa a cargo de crianças, ou imperitos, peca por maldade e negligência. E quando homens se omitem em tempos de calamidade, não assumindo sua função de liderança em tempos difíceis, abrem espaço para que mulheres sejam sacrificadas. Há um erro em tudo isso, erro resultante da inversão pecaminosa de todas as coisas e no descumprimento dos preceitos vindos dos "cabeças do povo".

    E o profeta continua: Oh, povo meu (עַמִּי֙)! Os que te governam (מְאַשְּׁרֶ֣יךָ) te fazem vaguear embriagado (מַתְעִ֔ים) e confundem (בִּלֵּֽעוּ) o caminho (דֶ֥רֶךְ) das tuas veredas (אֹֽרְחֹתֶ֖יךָ). Assim, nesse vaguear embriagado (מַתְעִ֔ים) Jerusalém tropeça e Judá cai, o centro cambaleia e os fracos são destruídos.

13, 14, 15)

נִצָּ֥ב לָרִ֖יב יְהוָ֑ה וְעֹמֵ֖ד לָדִ֥ין עַמִּֽים׃
יְהוָה֙ בְּמִשְׁפָּ֣ט יָבֹ֔וא עִם־זִקְנֵ֥י עַמֹּ֖ו וְשָׂרָ֑יו וְאַתֶּם֙ בִּֽעַרְתֶּ֣ם הַכֶּ֔רֶם גְּזֵלַ֥ת הֶֽעָנִ֖י בְּבָתֵּיכֶֽם׃
מַלָּכֶם מַּה־ לָּכֶם֙ תְּדַכְּא֣וּ עַמִּ֔י וּפְנֵ֥י עֲנִיִּ֖ים תִּטְחָ֑נוּ נְאֻם־אֲדֹנָ֥י יְהוִ֖ה צְבָאֹֽות׃ ס

    Yahweh se dispõe a lutar; Aquele que permanece se posiciona para sentenciar os povos. Yahweh entra em juízo contra os anciãos e os chefes do povo. Vocês são os que devastaram essa vinha; o que vocês roubaram do oprimido está na casa de vocês. O que há com vocês que destroçam o meu povo e esmagam a face dos pobres?

    Diante desse cenário caótico, o YHWH se levanta, ou se posiciona (נִצָּ֥ב) para defender uma causa (לָרִ֖יב). E o que permanece (וְעֹמֵ֖ד) para sentenciar (לָדִ֥ין) os povos (עַמִּֽים).

    Há coisas interessantes a se analisar nesse versículo nº 13, além daquilo que já analisamos quando tecemos alguns comentários sobre a relação do nome de Deus apresentado pelo profeta Isaías (אָדֹ֜ון) com os verbos רִ֖יב e דִ֥ין no vs. 1. Em relação a isso, obviamente que temos a profecia da manifestação futura de Deus querendo prestar contas com base na justiça (מִשְׁפָּ֣ט). E sentenciar (דִ֥ין) é parte disso. Mas podemos inferir que há um nome de Deus, que é (עֹמֵ֖ד) o que permanece, e isso é bem conveniente, pois no versículo anterior o profeta lamentou que os dirigentes fazem cambalear (מַתְעִ֔ים), e que YHWH עֹמֵ֖ד permanece. A oposição semântica traz à luz um significado belo da mensagem, que enquanto os dirigentes fazem cambalear Jerusalém e cair Judá, o Senhor é o que permanece, e É, se mantendo invariável e imutável em meio à variação cambaleante dos dirigente. É isso o que o possibilita a justiça, pois YHWH é justiça eterna, invariável diante da "justiça" embriagada dos homens que deveriam ser justos, mas falham.

    Assim YHWH entra em juízo contra os velhos (עִם־זִקְנֵ֥י) e os príncipes (וְשָׂרָ֑יו). Pois esses, os anciãos e os príncipes, dos quais se espera a ordem e o bom governo, veio apenas a devastação da vinha e a espoliação dos pobres. O roubo do trabalho do pobre (עָנִ֖י) estava nas casas deles (בְּבָתֵּיכֶֽם), aqueles que deveriam governar descentemente o povo segundo os preceitos de YHWH. E então YHWH faz a arguição: O que tem vocês (מַלָּכֶם) que destroçais (תְּדַכְּא֣וּ) meu povo (עַמִּ֔י) e macetam (תִּטְחָ֑נוּ) a face dos (וּפְנֵ֥י) pobres (עֲנִיִּ֖ים)? Essa arguição é uma reclamação da justiça, e casa com o que dissemos no vs. 1 em relação ao nome divino apresentado nesse vs. 15, onde YHWH Tsevaot também é chamado de אֲדֹנָ֥י ('adonay) a quem, como vemos aqui, pertence o oráculo (נְאֻם), significando-o completamente.

    Deus julga os pobres e defende sua causa, algo que se relaciona com o todo a mensagem da Escritura, pois na LXX (Septuaginta), neste mesmo versículo, o termo que traduzimos por pobre (עני), que no hebraico se refere mais especificamente ao oprimido, injustiçado e despossuído, é πτωχων (ptochon), que é uma variante na LXX - que encontramos também em Amós 2.7 etc. - da palavra πτωχος (ptochos). Em Lc 6.20 encontramos os pobres bem-aventurados com o termo grego πτωχοὶ, onde πτωχοὶ (ptochoi) é traduzido por pobres, e são estes os µακάριοι (makárioi), ou os bem-aventurados, pois tem Deus ao seu lado. E podemos finalizar dizendo que Isaías apresenta a revelação divina afirmando que quem fala é אֲדֹנָ֥י ('adonay), que como já enfatizamos é um título divino cuja raiz remonta a דִ֥ין (dîn), sendo a tradução de דִ֥ין algo como julgar, sentenciar, pleitear ou mesmo defender. Assim, este é o Deus que julga e julga sempre a favor do injustiçado, oprimido e do empobrecido em função da injustiça, pois Deus é justo e solícito com aquele que só n'Ele pode encontrar amparo e esperança, quando no mundo e no seu próximo só encontrou a fúria predatória, o que aponta para o fato de que esse mundo e esse próximo nem amparo e nem esperança podem oferecer.

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

A Predicação dos Atributos de Deus a Partir dos Nomes Divinos: Uma comparação entre a Bíblia Hebraica (BHS) e a LXX a partir da profecia de Is 1.1-15.

    Embora você já deva ter ouvido que a Septuaginta (LXX) seja mais fiel ao texto original do que a Bíblia Hebraica que dispomos hoje (o texto do códice de Leningrado, por exemplo), é necessário reconhecer que na tradução do texto hebraico para o grego há perdas, principalmente no que diz respeito ao seu aspecto poético, o que implica em uma percepção mais opaca do aspecto teológico do texto. Uma breve comparação dessas duas versões a partir do bloco textual de Isaías 3.1-15 pode lançar luz sobre isso. Embora substancialmente o sentido não difira entre essas duas versões, a construção textual e os termos utilizados nos rendem maior ou menor acesso a uma visão mais ampla da profecia, e mesmo a forma como o profeta apresenta a relação de Deus com o povo de Judá e Jerusalém, assim como o seu modo de revelação. Mas ao texto propriamente dito.

    O texto de Isaías 3.1 começa da seguinte forma na ARA: "Porque eis que o Senhor, o Senhor dos Exércitos" etc. A reduplicação da palavra "Senhor" não é comum nem ao texto da BHS (Bíblia Hebraica Stuttgartensia) e nem mesmo ao texto da LXX. O texto hebraico começa da seguinte forma: כִּי֩ הִנֵּ֨ה הָאָדֹ֜ון יְהוָ֣ה צְבָאֹ֗ות (ki hinneh ha'adon yehwah zeva'oth), ou seja: "Pois remove ha'adon, o Senhor dos Exércitos". Já no texto da LXX temos: Ιδου δη ο δεσποτης κυριος σαβαωθ (ido de hó déspotes kürios sabaoth), ou: Eis que o Senhor, o Senhor dos Exércitos. Aqui, para o nosso interesse, é importante observar a equivalência entre "o Senhor, o Senhor dos Exércitos" com "הָאָדֹ֜ון יְהוָ֣ה צְבָאֹ֗ות" e "ο δεσποτης κυριος σαβαωθ". Note que a única duplicação de termos ocorre na tradução para o português, e isso porque realmente os temos "Senhor" e "Senhor dos Exércitos" correspondem a nomes divinos, que, embora distintos em significado, possuem certa equivalência, mesmo que não absoluta.

    Mas vamos tornar mais específica a nossa comparação: o primeiro termo o Senhor corresponde ao הָאָדֹ֜ון (ha'adon) hebraico e ao ο δεσποτης (hó déspotes) grego. A palavra hebraica הָאָדֹ֜ון é um termo que contém o prefixo הָ, que é um típico prefixo que indica o artigo definido (a, o) e que encontramos antes de uma consoante gutural como é o caso de א (álef), a primeira letra do alfabeto hebraico que transliteramos pelo sinal " ' ". Portanto, o substantivo propriamente dito é אָדֹ֜ון ('adon) e corresponde a outros nomes divinos, como por exemplo אֲדוֺנַי ('adonay). No léxico analítico de Benjamin Davidson1 é dito que אֲדוֺנַי, que significa basicamente meu Senhor, majestoso ou glorioso, provém da raiz דון (dvn) a qual guarda correspondência com דין (dyn), ou mesmo דּוּן (dûn) e דִּין (dîn). O significado de דּוּן e דִּין é respectivamente julgar, governar ou mesmo disputar, pleitear ou defender a causa de alguém (cf. Jr 5.28, onde דִּין é um termo repetido duas vezes no versículo e tem o sentido de defender a causa, ou julgar a causa). Em Gn 6.3, onde se diz que meu espírito não contenderá para sempre com o homem, a palavra contenderá é יָדוֺן. Também a tradução do nome de דִּינָה (ddînah = Diná), a filha de Jacó, significa julgada. Em Pv. 22.10, as dois termos que são traduzidos por contenda, e que poderiam ser mais propriamente traduzidos por disputa desonrosa, são דִּ֣ין וְקָלֹֽון, e o termo דִּ֣ין significa aqui disputa. E por fim em Jó 19.29, a última palavra do versículo em questão na BHS é lida2 (qerê) שַׁדִּין embora seja escrita (ketîv) שַׁדּֽוּן. Mas em ambos os casos, sendo precedidas pela partícula relativa שַׁ (sha), os termos significam que haverá julgamento (דִּין ou דּֽוּן). No dicionário bíblico de Luis Alonso Schökel3, דִּין se refere à administração da justiça, e sendo essa a principal tarefa de um governante, o sentido de דִּין é coextensivo ao sentido de governar e reger. Também Strong vai nesse mesmo sentido4. Mas propriamente se referindo ao termo אָדֹ֜ון, vemos o seu uso em textos como Gn 18.12, onde Sara se refere a Abraão como meu senhor (אדֹנִ֖י), sendo esse o termo que o servo de Abraão usava ao se referir a ele (Gn 24.9ss), ou o termo que Ló usou ao se referir aos anjos (Gn 19.2), chamando-os de senhores (אֲדֹנַ֗י = 'adonay). Portanto compreendemos o sentido desse título divino se referindo a Senhor, déspota, rei, mestre, contendo o título forte carga de significação majestática.

     Já o termo δεσποτης (déspotes) tem o sentido geral de amo, senhor, sendo a distinção entre δεσποτης e κυριος o fato de que δεσποτης é utilizando sempre em um sentido mais lato, como denotando alguém que possui amplo e ilimitado poder e autoridade, sobretudo sobre pessoas; já κυριος possui sentido mais estrito, se tratando de um senhor que exerce seu poder de forma benigna. Na LXX, em Jó 5.8ss, temos o termo παντων δεσποτην indicando o Déspota sobre tudo, ou Senhor de tudo, como Aquele a quem deve ser exposta a demanda. No Novo Testamento encontramos o termo relacionado a Deus em Atos 4.24, onde se diz: δεσποτα συ ο θεος ο ποιησας τον ουρανον και την γην, ou: Senhor, tú Deus, o criador dos céus e da terra. Simeão, no cântico de Lc 2.29-32 também chama a Deus de δεσποτα, como encontramos no vs. 29: νυν απολυεις τον δουλον σου δεσποτα κατα το ρημα σου εν ειρηνη, ou: Agora despedes em paz o teu servo, Senhor, segundo sua palavra. E é interessante que aqui encontramos a relação δεσποτα + δουλος (doulós), ou melhor, a relação senhor + escravo, o que é muito apropriado segundo o uso dos termos no grego. Em 2Pe 2.1, encontramos δεσποτην se referindo a Cristo, como ocorre também em Jd 4, quando se refere ao único Soberano, ou ao μονον δεσποτην. Também encontramos o termo relacionado a chefe de família em 1Pe 2.18, no sentido do senhor do escravo doméstico: οι οικεται υποτασσομενοι εν παντι φοβω τοις δεσποταις, assim devem os servos domésticos (οι οικεται) se sujeitar (υποτασσομενοι) com todo temor (εν παντι φοβω) aos seus senhores (τοις δεσποταις). Os demais textos de 1Tm 6.1-2; 2Tm 2.21 e Tt 2.9 vão no mesmo sentido deste último uso.

    Feitas todas essas considerações, agora podemos partir para Isaías 3.1-15 para vermos a importância das palavras hebraicas no estabelecimento do sentido teológico do bloco textual. Assim, Isaías, na bíblia hebraica, começa apresentando Deus em sua profecia como אָדֹ֜ון. A profecia em questão trata-se de um juízo proclamado sobre a Judá e a Jerusalém do séc. VIII a.C., ou seja, uma profecia voltada ao Reino do Sul. E podemos, por amor à precisão, nos remeter aos vs.13-15 onde vemos a clara oposição de Yahewh que se dispõe a entrar em juízo ou melhor, a pleitear e julgar os povos em favor do oprimido e do Seu povo. As palavras usadas no texto hebraico de Is 3.13 para se referir aos termos para pleitear ou a para entrar em juízo é, nessa mesma ordem, לָרִ֖יב (ladîv) e לָדִ֥ין (ladîn), entendendo que para ambas as palavras o לָ (la) é um prefixo que indica um movimento em direção a algo (para, ao etc.), sendo a raiz da palavras, em ordem רִ֖יב (dîv) e דִ֥ין (dîn). No texto grego essas duas palavras são traduzidas por κρισιν (crisin), que vem de κρισις (krisis), significando respectivamente julgamento, separação, juízo. Obviamente que a relação entre κρισις e δεσποτης não é uma relação absolutamente clara, como é a relação entre אָדֹ֜ון e דִ֥ין, pois ambos guardam a proporcionalidade semântica entre o juiz que promove a justiça e o julgamento justo. Também é importante observar a sonoridade poética da frase que liga justamente a ação de 'adon que se dispõe a ladîn, ou seja, a pleitear a causa. Outros substitutos poderiam ser usados para se falar de justiça, como é o caso de מִשְׁפָּט, que aparece apenas uma vez no vs.14. Também, se a tarefa do soberano, como observa Shökel, é promover a justiça, nada cabe mais a 'adon do que assim fazer, promovendo a justiça. E o texto, nesse sentido, relaciona maravilhosamente o título divino (אָדֹ֜ון) com uma ação que lhe é correspondente (לָדִ֥ין).

    É importante observar que no Antigo Testamento os nomes divinos desempenham um papel muito mais importante do que podemos observar com uma leitura superficial do texto. Já há muito tempo se estabeleceu que certas porções de textos carregam certa "tradição teológica" conforme os nomes divinos e os assuntos são enfatizados nessas porções. Assim se tornou costume falar em tradição javista, ou tradição heloista etc. Mas o que podemos perceber é que o título divino é equivalente ao seu modo de revelação. Quando falamos do Deus da provisão, por exemplo, nos remetemos a Gn 22.1-19, ao episódio do sacrifício de Isaque, e mais especificamente ao vs. 14 onde Abraão nomeia o lugar de יְהוָ֖ה יֵרָאֶֽה (Yhaweh yr'eh = Javé Irê), ou O Senhor proverá. É importante perceber a questão do modo de revelação ligado ao nome divino porque temos aqui aquela matéria da teologia pela qual falamos sobre a predicação de certos atributos de Deus a partir dos nomes pelos quais Ele mesmo se fez conhecido. Portanto a escritura hebraica nesse ponto lança uma luz absolutamente poderosa na forma como, segundo o registro do texto, Deus decidiu se revelar em Is 3.1, 14 e 15 como Deus Justo que julga a causa do oprimido (עֲנִיִּ֖ים), pois é Ele quem estabelece o direito (מִשְׁפָּט) dos indefesos e fracos contra aqueles que destroçam (תְּדַכְּא֣וּ) esmagam (תִּטְחָ֑נוּ) a suas faces.

___________________________________________________________

[1] BENJAMIM, Davidson. Léxico Analítico Hebraico e Caldaico. Ed. Edições Vida Nova, São Paulo-SP. 2018. p. 317, 318

[2] O sistema qerê e ketîv é um sistema de distinção que encontramos nos manuscritos hebraicos e que preservam a tradição que diferencia a forma com a qual um determinada palavra é tradicionalmente lida (qerê) e como ela é escrita (ketîv).

[3] SCHÖKEL, Luiz Alonso. Dicionário Bíblico Hebraico Português. Ed. Paulus, São Paulo-SP, 1ª ed. 1997, 6ª Reimp. 2018. p. 154

[4] STRONG, James. Dicionário Hebraico do Antigo Testamento. in: Bíblia de Estudo Palavras-Chave Hebraico e Grego. CPAD. Rio de Janeiro-RJ, 2ª reimp., 2ª ed., 2011. ref. Strong. 1777, p. 1597. ou mesmo em ref. Strong 136, p. 1509.

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

O Ridículo, o Brutal e o Desconhecimento de Si

    Erros semelhantes, nascidos por uma falsa percepção de si, não possuem o mesmo peso quando praticados por pessoas diferentes, e em especial quando essa falsa percepção habita indivíduos inócuos ou indivíduos poderosos. Um discernimento interessante a respeito dessa matéria está na obra Filebo de Platão:

"Faz a divisão, por tanto, com base no seguinte: todos os que combinarem essa falsa concepção com debilidade e se mostrarem incapazes de vingança quando forem objeto de riso, poderás classificar de ridículos, ao passo que aqueles que forem fortes e capazes de se vingarem, classificarás mais corretamente como poderosos é odiosa e desonrosa, uma vez que a ignorância no indivíduo poderoso é odiosa e desonrosa, na medida em que autêntica ou dissimulada é danosa aos seus semelhantes; entretanto, a ignorância no débil situa-se na esfera do naturalmente ridículo."1
    Essa digressão que Platão colocada na boca de Sócrates está relacionada à questão da consciência de si, pois mais acima ele faz alusão ao famoso oráculo gravado na entrada do templo de Delfos, o qual aconselhava: "Conhece a ti mesmo". Nesse ponto, seguindo o propósito geral da obra, que é tratar sobre a natureza do prazer (ηδονη = ēdonē), Sócrates afirma que o vício é dor e que entre os vícios estão a ignorância e a estupidez, e que essas, sendo resultado do desconhecimento de si, levam as pessoas a certa desmedida na consideração de si mesmas, viciando seus atos. Essa desmedida na consideração de si, geralmente, leva as pessoas a três enganos, ou seja: à consideração de que são mais ricas do que são, mais belas do que são ou mais sábias do que são.
    Um dos pontos altos dessa reflexão está relacionado principalmente ao terceiro tipo de engano, que é aquele comum às pessoas que se acham mais sábias do que são. Se voltarmos os nossos olhos para outra obra platônica, a Apologia de Sócrates, veremos que essa desmedida na consideração de si por parte dos poderosos foi o que matou o velho mestre de Platão, pois Sócrates, movido pela profecia do oráculo de Delfos, tinha na filosofia a missão divina de inquirir a real consistência da sabedoria daqueles que se diziam sábios. E na medida em que avançava em sua missão, ao descobrir que os que se diziam sábios na verdade nada eram, começou a angaria o ódio da classe poderosa de Atenas - o que também diz respeito aos sofistas que treinavam candidatos à política ateniense e, portanto, estavam envolvidos na vida da alta classe da cidade grega.
    A questão, que Platão conhecia bem, era que a ignorância e a estupidez, sendo ridículas e inócuas entre os fracos - ao pensarem ser mais belos, mais ricos, e mais sábios do que eram -, eram perigosas quando habitavam a mente daqueles que tinham mais poder de ação, pois mais capazes de levar adiante o ódio nascido da fratura de sua vaidade moral, quando sua contradição e ignorância eram expostas à luz dos fatos. Também toda essa reflexão acima subsidia a nossa compreensão sobre o emblemático dito de Platão onde ele afirmou que os povos não seriam felizes a não ser que os filósofos fossem reis e os reis fossem filósofos, pois para Platão quando a mente de um governante ou poderoso estiver bem disposta com a realidade será posto um fim à brutalidade insana e à odiosa grosseria - prejudicial aos semelhantes -, coisas às quais só a estupidez dos grandes é capaz.

Comentário em Isaías 3.1-5: (וְנִגַּ֣שׂ הָעָ֔ם אִ֥ישׁ בְּאִ֖ישׁ וְאִ֣ישׁ בְּרֵעֵ֑הוּ) O caos e a inversão: O juízo sobre Judá e Jerusalém (1ª parte)

Texto Hebraico de Isaías 3.1-5:

1 כִּי֩ הִנֵּ֨ה הָאָדֹ֜ון יְהוָ֣ה צְבָאֹ֗ות מֵסִ֤יר מִירוּשָׁלִַ֨ם֙ וּמִ֣יהוּדָ֔ה מַשְׁעֵ֖ן וּמַשְׁעֵנָ֑ה כֹּל מִשְׁעַן־לֶ֔חֶם וְכֹ֖ל מִשְׁעַן־מָֽיִם׃
2 גִּבֹּ֖ור וְאִ֣ישׁ מִלְחָמָ֑ה שׁוֹפֵ֥ט וְנָבִ֖יא וְקֹסֵ֥ם וְזָקֵֽן׃
3 שַׂר־חֲמִשִּׁ֖ים וּנְשׂ֣וּא פָנִ֑ים וְיוֹעֵ֛ץ וַחֲכַ֥ם חֲרָשִׁ֖ים וּנְבֹ֥ון לָֽחַשׁ׃
4 וְנָתַתִּ֥י נְעָרִ֖ים שָׂרֵיהֶ֑ם וְתַעֲלוּלִ֖ים יִמְשְׁלוּ־בָֽם׃
5 וְנִגַּ֣שׂ הָעָ֔ם אִ֥ישׁ בְּאִ֖ישׁ וְאִ֣ישׁ בְּרֵעֵ֑הוּ יִרְהֲב֗וּ הַנַּ֨עַר֙ בַּזָּקֵ֔ן וְהַנִּקְלֶ֖ה בַּנִּכְבָּֽד׃

Tradução e Comentário:

1, 2, 3)

כִּי֩ הִנֵּ֨ה הָאָדֹ֜ון יְהוָ֣ה צְבָאֹ֗ות מֵסִ֤יר מִירוּשָׁלִַ֨ם֙ וּמִ֣יהוּדָ֔ה מַשְׁעֵ֖ן וּמַשְׁעֵנָ֑ה כֹּל מִשְׁעַן־לֶ֔חֶם וְכֹ֖ל מִשְׁעַן־מָֽיִם׃
גִּבֹּ֖ור וְאִ֣ישׁ מִלְחָמָ֑ה שׁוֹפֵ֥ט וְנָבִ֖יא וְקֹסֵ֥ם וְזָקֵֽן׃
שַׂר־חֲמִשִּׁ֖ים וּנְשׂ֣וּא פָנִ֑ים וְיוֹעֵ֛ץ וַחֲכַ֥ם חֲרָשִׁ֖ים וּנְבֹ֥ון לָֽחַשׁ׃

    Porque, eis que, ha'Adon, o Senhor dos Exércitos, remove totalmente o sustento, o sustento de pão (alimento), o sustento de água, o homem valoroso de guerra, o juiz, o profeta, o adivinho, o ancião, o chefe de cinquenta, o respeitável, o conselheiro, o mago e o hábil encantador.

    O que veremos à frente, dos vs. 1-15, é um quadro distópico a respeito do reino do sul (Judá e Jerusalém). Um quadro completamente invertido de Is 2.1-5, o qual se mantém fixo como um quadro paradigmático, como uma tela de fundo que lança luz sobre a fealdade disforme da realidade pragmática de Judá e Jerusalém.

    Isaías continua a sua profecia e profere um nome para Deus que, segundo a tese deste comentário, lança luz sobre toda esta porção do texto que vai dos vs.1-15. O nome em questão é הָאָדֹ֜ון (ha'adon), sendo o prefixo הָ (ha) apenas um indicativo de אָדֹ֜ון ('adon). O nome אָדֹ֜ון nos remete a אֲדֹנַי ('adonay) escrito apenas com hôlen, ou אֲדוֺנַי ('adonay) escrito com hôlen-vav, sendo estes grafias que representam um dos nomes divinos listados no Antigo Testamento. O nome divino é derivado de דּוּן (ddun) e דִּין (ddyn) e significa basicamente dominar, governar, pleitear, defender um causa e mesmo julgar ou juízo. Assim o significado básico de אָדֹ֜ון nos leva à consideração de que o Senhor dos Exércitos (יְהוָ֣ה צְבָאֹ֗ות), como governante todo poderoso, e como juiz plenipotente, entra em um tipo de relação com seu povo com base na justiça e, nesse sentido, em justiça vindicativa. Isso é claro se compreendermos apresentação por parte de Isaías de Deus como אָדֹ֜ון; e se estabelecermos uma ligação entre esse nome de Deus ao vs. 13, onde se diz que Yahweh (יְהוָ֑ה) se dispõe (נִצָּ֥ב) a pleitear em juízo (לָרִ֖יב) e a sentenciar (לָדִ֥ין) os povos (עַמִּֽים), entendemos a razão pela qual Isaías manifesta esse nome de Deus. Especificamente em sentenciar (לָדִ֥ין) tomamos o לָ como preposição em relação ao verbo דִ֥ין o qual deriva de דִּין (ddyn) e, como já vimos, significa sentença, juízo etc., sendo raiz de אָדֹ֜ון. Assim ha'adon (הָאָדֹ֜ון) sentencia (לָדִ֥ין) os povos (עַמִּֽים) e é nessa sentença que vemos o significado de todo esse bloco que vai dos vs. 1-15.

    O profeta proclama a sentença do Senhor: tirar todo sustento. Desde o sustento de alimento (מִשְׁעַן־לֶ֔חֶם) ao sustento de água (מִשְׁעַן־מָֽיִם) seriam tirados, o que redundaria na miséria física do povo. A ideia de miséria é justificável porque a partícula כל é apresentada duas vezes para se referir a toda água e a todo alimento. No entanto, não seriam apenas os elementos básicos para a sustentação da vida aqueles retirados do povo, mas também aqueles elementos que garantem certa sustentação da ordem. Então o homem valoroso de guerra, o juiz, o profeta, o adivinho, o ancião, o chefe de cinquenta, o respeitável, o conselheiro, o mago e o hábil encantador, todas essas coisas o Senhor remove (הִנֵּ֨ה). E pelo tipo de pessoas que constituem a ordem política de Judá e Jerusalém podemos ver que essa a liderança estava tocada pelo apodrecimento. O profeta divide espaço com o adivinho (קסם); o ancião, o homem respeitável e o conselheiro também dividem espaço indevidamente com os feiticeiro (חֲרָשִׁ֖ים) e o mago perito (נְבֹ֥ון לָֽחַשׁ). Somados a esses estão o valente (גִּבֹּ֖ור) e o homem de guerra (אִ֣ישׁ מִלְחָמָ֑ה). A mistura dá conta do desastre, da catástrofe física e espiritual de Judá e Jerusalém: podemos ver que o profeta é tocado pela cegueira, quando o vemos associado com o adivinho (קֹסֵ֥ם). No Antigo Testamento Interlinear vol. 3 da SBB temos a tradução de קֹסֵ֥ם por agoureiro, e entendemos que isso é uma tradução razoável onde o gênero é tomado pela espécie, já que קסם é uma palavra que podemos traduzir por adivinho em um sentido geral e mais especificamente como a arte do falso profeta (יקסם).

    Quando conjugamos a existência de um profeta com um falso profeta e isso relacionado ao homem respeitável (וּנְשׂ֣וּא פָנִ֑ים), ao ancião (זָקֵֽן) e ao conselheiro (יוֹעֵ֛ץ), vemos que a elite de Israel, aquela que tem a função de governar, e de sentenciar, estava totalmente degrada. Para um homem respeitável e para um ancião condescenderem com as artes de um falso profeta é preciso que a degeneração espiritual tenha avançado muito longe. E não podemos desconsiderar o quanto um adivinho pode exercer uma influência destrutiva tanto em relação ao povo quanto àqueles que eles se aproximam. Assim, com os representantes que julgamos ser os mais capazes prejudicados desse modo, não estranha que a impiedade e a insanidade tenham exercido domínio sobre Judá. Também a presença do mago (נְבֹ֥ון) e dos feiticeiros (חֲרָשִׁ֖ים) demonstram como a alta cúpula de Judá estava tocada pelo desejo de poder a qualquer custo, assim como afetada pela superstição e insensibilidade à maldade. Em todo casos, a degradação do juízo era evidente. E se assim era, qual seria a qualidade de governo dos príncipes de Israel? Qual seria a qualidade das suas sentenças? Não seriam as coisas torcidas, gerando uma onda de opressão? Também, com esses cabeças em posse do valente (גִּבֹּ֖ור) e do homem guerreiro (אִ֣ישׁ מִלְחָמָ֑ה), podemos ver o quadro geral como a mistura do juízo perverso unido ao poder militar. Pois todo poder é, em geral, neutro, e possui certa bondade física por simplesmente existir. Mas do poder aliado à loucura só podemos esperar insanidade, injustiça e violência.    

4,5)

וְנָתַתִּ֥י נְעָרִ֖ים שָׂרֵיהֶ֑ם וְתַעֲלוּלִ֖ים יִמְשְׁלוּ־בָֽם׃
וְנִגַּ֣שׂ הָעָ֔ם אִ֥ישׁ בְּאִ֖ישׁ וְאִ֣ישׁ בְּרֵעֵ֑הוּ יִרְהֲב֗וּ הַנַּ֨עַר֙ בַּזָּקֵ֔ן וְהַנִּקְלֶ֖ה בַּנִּכְבָּֽד׃

    E darei jovens como chefes e os maus-tratos os governarão. Entre o povo, oprimem uns aos outros, cada um, ao seu próximo; e se atreverá o jovem contra o velho e o desprezível contra aquele que é honrado.

    O juízo de Yahweh, assim, daria a Judá a inversão que eles estavam procurando. E vemos a inversão de um reto juízo abstratamente considerado ganhando concreção de forma assustadoramente real: jovens dominam opressivamente. O desmantelamento da ordem da realidade ganha concreção e os termos são colocados de forma que possamos entender que o desastre é derivado da forma como as coisas se encontravam. O problema do governo do jovem não vem da malícia propriamente dita, ainda que ela possa estar presente. A questão está justamente em que a pouca experiência desabilita o jovens ao governo, ao exercício de um tipo de poder que só pode ser exercido positivamente na posse de certa experiência. Estamos, portanto, diante da desrazão dos que governarão (יִמְשְׁלוּ־בָֽם) caoticamente, e a palavra תַעֲלוּלִ֖ים (ta'alulim) só confirma isso. תַעֲלוּלִ֖ים vem de עלל e significa (somando suas declinações), entre outras coisas, tratar mal, repetir uma ação, agir como criança, abusar etc. Embora as traduções tragam geralmente o sentido da palavra como se referindo a crianças, o contexto nos sugere um emprego tanto polissêmico como negativo dessa palavra. Podemos, por isso, entender aqui um governo desastroso de imperitos, ou mesmo o desastre de um governo de jovens e inexperientes, ou mesmo um governo de irresponsáveis que traz maus-tratos. E se em Deuteronômio 1,13[1] temos o paradigma para a escolha daqueles postos como cabeça (רֹאשׁ) do povo, possuindo atributos como sábios (חֲכָמִ֧ים), inteligentes (נְבֹנִ֛ים) e experimentados (ידֻעִ֖ים), um governo sem sábios e experimentados (חָכָם) é tudo aquilo que é o inverso de um governo praticado segundo a sabedoria de Yahweh.

    O quadro distópico que desenhou a futura inversão no campo vertical do exercício do poder agora se delineia também de forma terrível no campo horizontal da relação entre as pessoas. Aqui o vs. 5 diz que no que diz respeito ao povo (עַם), ou à comunidade, oprimirá (נִגַּ֣שׂ) cada um contra o outro (אִ֥ישׁ בְּאִ֖ישׁ), e cada um contra o próximo (וְאִ֣ישׁ בְּרֵעֵ֑הוּ). Essa realidade profetizada por Isaías está em flagrante descompasso com o preceito de Lv 19.18, que diz: לֹֽא־תִקֹּ֤ם וְלֹֽא־תִטֹּר֙ אֶת־בְּנֵ֣י עַמֶּ֔ךָ וְאָֽהַבְתָּ֥ לְרֵעֲךָ֖ כָּמֹ֑וךָ אֲנִ֖י יְהוָֽה׃, ou: Não te vingarás, nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo com a ti mesmo. Eu sou o Senhor!

    Aqui se torna óbvia a flagrante transgressão contra dois preceitos do Senhor: 1) A transgressão contra o preceito de escolher homens sábios, inteligentes e experimentados como cabeças do povo (רָאשֵׁ֣י הָעָ֔ם); 2) A transgressão contra o preceito de amar o próximo como a ti mesmo (אָֽהַבְתָּ֥ לְרֵעֲךָ֖ כָּמֹ֑וךָ). Portanto, temos uma transgressão em dimensão vertical, que diz respeito à má qualidade da autoridade exercida sobre o povo, e a transgressão em dimensão horizontal, no ressentimento cultivado e no ódio deliberado contra seu semelhante.

    Somada a essa inversão se soma outra, inversão que torna a realidade caótica vislumbrada ainda mais deprimente: 1) e se atreverá o jovem contra o velho (יִרְהֲב֗וּ הַנַּ֨עַר֙ בַּזָּקֵ֔ן); 2) e o desprezível contra aquele que é honrado (וְהַנִּקְלֶ֖ה בַּנִּכְבָּֽד). Aqui a visão prudencial e a consciência de certa ordem de coisas na profecia de Isaías não poderia ser mais assertiva. Há certo gênio nessa profecia que nos indica uma visão de coisas que não pode ser desprezada, pois é certo que o atrevimento do jovem contra o velho só pode indicar desordem. Pois em Lv 19.32 há o preceito de se levantar diante das cãs e de reverenciar a face do velho. Portanto, o se atrever (יָרָה), ou se lançar diante da face do velho é também uma inversão da ordem, ainda mais isso sendo feito por parte de um jovem (נַעַר), o qual é inexperiente por definição e, por tanto, dificilmente capaz de formular um juízo para lançar acusações ou ofensas diante de um ancião. Da mesma forma é o cúmulo da audácia e mendacidade o vil (קָלָל), alguém leve e sem peso algum, um vilão em sentido estrito, se lançar (יָרָה) contra um nobre (נִּכְבָּֽד), ou melhor, contra aquele que tem peso, glória e honra.

____________________________________________________

[1] Original: הָב֣וּ לָכֶם אֲנָשִׁ֨ים חֲכָמִ֧ים וּנְבֹנִ֛ים וִידֻעִ֖ים לְשִׁבְטֵיכֶ֑ם וַאֲשִׂימֵ֖ם בְּרָאשֵׁיכֶֽם׃