sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Uma Outra Forma de Legalismo



   Muito do dito "espírito cristão" está fundado, infelizmente, em um moralismo e legalismo nada cristãos, cuja prática, antes de fazer bem ao que pratica, traz, na verdade, a destruição.

      Tudo isso ocorre porque as pessoas acreditam que a autenticidade dos atos de amor relatados na Bíblia devem ser compreendidos à luz dos simples esquemas formais como lá estão relatados, ou a forma que costumeiramente são interpretados, desconsiderando as funções que tais atos representavam na vida dos atores; por exemplo: Jesus disse que "bem aventurado são os mansos". Esse mandamento não é algo a ser considerado como uma espécie de atitude de submissão invariavelmente definida em todos os momentos da vida e para todas as vontades, pois, se isso se desse, se pregaria o cultivo de um espírito estritamente submisso que, no fim das contas, mais faria mal do que bem, mas cativaria do que libertaria.

   Eliminamos o mandamento? Não, mas, pelo contrário, colocamo-lo em seu próprio lugar, e isso por que a bíblia não traz um catálogo de regras que devam ser compreendidas por si só como trejeitos e formas, mas sim assimilados à luz do significado que clareia a experiência, conferindo unidade à consciência que, com maturidade, vai discernindo a realidade nos mais diversos contextos da vida.


   Há muitos cristãos que sofrem por causa de seu comportamento legalista que se manifesta como uma moralidade indefinidamente submissa diante do imoral, pois esse último, com vileza, abusa da sensibilidade moral alheia, manipulando ao seu bel prazer as pessoas por meio de suas consciências, enquanto nada cobra de si mesmo. Contra esse, a forma de caridade pode vir como tolerância ou retaliação. Tudo dependerá do discernimento que, aos poucos, a graça que nos conduz à liberdade vai nos conferindo.

sábado, 15 de novembro de 2014

O Julgamento Qualitativo da Ação Humana

 

   A ação humana não deve ser compreendida como algo onde se manifestam formas que tragam em si o seu próprio valor de forma absoluta, seja este valor algo bom ou algo mal. Todo o julgamento nesse campo deve ser orientado com base na legitimidade da ação ou não.    

   As leis - ou seja: o código que delimita a ação humana - devem ser orientadas para o bem. Aqui nos encontramos com valores e, por isso, com a metafísica, pois a metafísica é aquilo que designa a orientação última para a vida e, por tanto, julga a ação humana, quer reprovando ou a provando, qualificando as intenções, os meios e os fins. 

   Com relação à ação humana, não há distinção entre os meios e nem entre os fins desta ação, pois os fins são bons, se os meios o são, assim coimo são maus os meios, se também maus são os fins e vice versa. 

   Mas há algo que é um tanto nebuloso nesta questão relacionada à ação humana, pois as semelhanças entre as ações ocultam um abismo infinito que separa uma ação que guarda, com relação à outra, um certo grau de semelhança quanto à forma, mas que se constitui em uma verdadeira diástase quando vista sobre o ângulo do valor. 

   Vejamos um caso famoso no livro "A República" de Platão, onde Sócrates trata da questão da justiça, perguntando a Trasímaco se a restituição de uma arma que o dono colocou sob a confiança de um amigo é algo justo em si mesmo. 

   O diálogo põe em questão a ideia da ação analisada a partir de si mesma, sendo, em primeiro lugar, compreendida como uma ação justa. Sócrates coloca em dúvida esta posição, pois a ação de restituir pode, a partir de uma determinada situação, torna-se o contrário de uma ação boa. 

   Eis a situação: o dono coloca uma arma sua sob a confiança de um amigo, e em um determinado momento de sua vida, o dono da arma fica privado de sua razão. Neste momento de privação da razão, ele decide reaver as sua arma com o amigo. Esse, compreendendo este estado de privação da razão, nega devolver a arma, pois sabe que desgraças podem dai vir: suicídio, assassinato dos pais, filhos, amigos ou mesmo provocar uma desavença na cidade. Agora fica a pergunta: a restituição de um bem confiado é algo bom em si mesmo? 

   Nota-se que, a partir do contexto, uma ação, que antes era algo bom ou justo, pode, não mudando em nada a ação humana - a ação da restituição -, tornar-se algo mau e perverso. Neste caso, toda a ação humana é boa ou não, quando esta relacionada a um contexto maior. De fatos brutos não se deduzem valores. 

   Fica evidente com isso que os atos não podem ser julgados através de uma análise baseada em formas fixas, pois é necessário enxergar estas ações com base em uma hierarquia de valores, onde no topo encontramos o bem, pois diz Sócrates: "aos amigos se deve fazer o bem, e nunca o mal", mesmo que este bem signifique reter algo a contra gosto daquele a quem esta restituição é feita, para evitar a destruição do mesmo.  

A Divisa do Mundo

   


   A ação humana é algo que não prescinde - lógico - do ser humano. Sendo assim, é impossível que tal ação não seja, de alto a baixo, algo integral, envolvendo a totalidade do indivíduo. As ações diferenciam-se em qualidade, intensidade, localidade e autoria, mas, acima de tudo, trata-se de uma ação humana no mundo. 

   Começo o texto com esta breve explicação para seguir discorrendo sobre um assunto um tanto cinzento, informe, mas que é de fundamental importância - principalmente nos dias de hoje. Esse assunto é a relação entre religião e política. 

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  A religião - e isto comprova a história - foi, e ainda é, a principal matriz civilizacional. Isso ocorre porque uma sociedade, por princípio, tem a necessidade de ordem e  valores. Ela, por tanto, demanda metafísica: princípios estruturais universais e permanentes que asseguram uma razão e sentido para todas as coisas. Tais princípios devem fundamentar o sentido da existência e as relações sociais; a vida individual e coletiva. A metafísica, por tanto, retira o homem do estado de animalidade; é a possibilidade do triunfo da razão e do sentido sobre o caos; nos retira da agonizante ideia da vitória do bem sobre o mal; faz a vida andar. 

   A religião existe por causa do mundo metafísico - o mundo do espírito -, pois crê ela que é no mundo do espírito que se encontra a verdade. O primeiro grande mandamento ensinado por Jesus Cristo exige um amor total por Deus - aquele que, segundo ele, é espírito (Jo 4:24). Se lermos na bíblia algo sobre a razão do triunfo humano, ela, totalmente, estará ligada a Deus. Ele, vemos, é o grande vitorioso sobre o Caos, sobre a Morte e sobre os demônios. Ele constitui o sentido da superação; a razão da vida e da continuidade dela; ele é o grande sentido que permite o homem não definhar em meio à hostilidade do mundo. Mas, também, Deus é aquele que pode ser a razão da hostilidade do mundo. Ali, no contexto da hostilidade, Deus ainda ordena marchar e viver. Que diga Jó.  

   A busca pela compreensão das coisas - essa infatigável "pulsão" que condena o homem a tentar compreender tudo -, só pode ter sentido se de fato há sentido - se há espírito. Nisso se sobressaem as religiões justamente porque, por exemplo, não há uma matriz para a construção de sentidos no mundo e de moral mais potente. O mito fundador do cristianismo (que, sob hipótese alguma, pode ser compreendido como mentira) - a bíblia -, traz em si elementos tão potentes para a construção do caráter do indivíduo, orientando-o para a vida, que a veracidade de sua "metafísica" é evidente quando olhamos, no mundo ocidental, por exemplo, a instituição do casamento monogâmico, sem contar o nome de cidades e, como observou Nietzsche no seu livro "Além do Bem e do Mal", o rigor científico e filosófico que, em seus primórdios, era uma demanda fundamentada na veracidade de Deus (no caso da filosofia), e, por causa desta veracidade, por ele ser o Criador do Mundo (não poderia, por isso, criar uma mentira, nem algo inteligível ou ilógico): a "maldição" da teologia está inalienavelmente fixa em nosso tecido cultural.

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     Com base nisso, podemos continuar compreendendo a unidade da ação humana no mundo - por tanto, quando existe e age, o homem somente pode fazer estas coisas como um todo, e não em parte. 

   A criação da divisão entre o Estado e a Igreja foi algo defendido ferozmente por Lutero, que se sentia escandalizado com o fato de que o Papa gozasse de tanto poder temporal, se servindo de exércitos, ordenando campanhas militares, ao invés de atuar no campo apenas espiritual (cultural, como compreendo). 

   No entanto, esta interpenetração entre política e religião nunca deixou de existir com o próprio Lutero, pois o seu poder de ação se estendia diretamente aos negócios do Eleitor Frederico III. Tanto era assim, que se lermos nos prefácio dos seus escritos, veremos que geralmente eles são dedicados ao príncipe. Também a sua influência foi determinante na batalha contra a revolta dos camponeses quiliastas, o que nos leva a compreender que esta cisão absoluta, não fora ideia de Lutero. O que Lutero desejava, no entanto, é que os sacerdotes, incluindo o Papa, se desse mais ao pastoreio das almas, do que o envolvimento direto com as guerras como generais e capitães, por exemplo, ou como monarcas (no caso do Papa) - mas vemos que no caso da guerra, isso foi algo impossível com o próprio Lutero. 

   Seguindo no contexto da Reforma, um dos movimentos oriundos daí que por motivos de existência mais lutou contra a ingerência do estado na vida individual, e que tanto aclamou a separação entre Igreja e Estado por causa daquilo que entendemos por "liberdade de consciência", foi o movimento conhecido como anabatista. 

   A razão - novamente teológica, vejam! - de existência deste movimento estava ancorada na tentativa de formar uma Igreja realmente composta por indivíduos convertidos e cientes de sua fé em Jesus Cristo. Na Inglaterra, que viu os primeiros frutos mais abundantes deste movimento, mesclado a princípios calvinistas, eles seriam conhecidos como os "Puritanos". A ideia dos puritanos estava embasada em um repúdio à qualquer Igreja estatal. Segundo eles, a Igreja não deveria ser obrigada a conviver com indivíduos não convertidos que estariam ligados a ela somente por motivos de nascimento ou nacionalidade. É daí que surge, também, um dos motivos para a rejeição integral do batismo infantil: um recém nascido não poderia fazer uma profissão de fé fundada na consciência pessoal. Vemos nesta teologia, também, a razão da rejeição radical ao catolicismo, ao presbiterianismo e ao luteranismo. 

   Se seria possível esta Igreja "pura", aí é que o meu ceticismo pesa. Mas filosofias a parte, no momento é importante compreender - justamente por que o grosso do movimento evangélico no Brasil tem uma profunda raiz neste movimento puritano -, que o motivo fundamental para a existência desta ideia de separação entre Igreja e Estado está, aqui, ancorada no desejo de desligamento da igreja estatal da Inglaterra: a Igreja Episcopal Anglicana. Também por isso, esta evidenciado o desejo de liberdade de consciência com o intuito de tornar mais claro o engajamento na fé. No entanto, como podemos perceber, tal movimento que desejava despolitizar a Igreja, foi um movimento político que repercutiu poderosamente na cultura, colocando a liberdade individual acima de muita coisa - mas não vamos tratar disso agora. 

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   Contudo - voltando para a filosofia -, seria possível compreender esta "despolitização" como algo apolítico? Materialmente este negócio é impossível, pois a política é tudo aquilo que é relacionado à pólis (cidade), segundo Aristóteles, e, por tanto, para as relações humanas; e, nesse sentido, se uma ação humana é por princípio uma ação histórica que se relaciona ao homem, a fé individual, assim como qualquer outra coisa neste mundo, não pode ser tão isolada e apolítica assim. Mesmo a privacidade é um assunto público, se, de fato, devemos respeitá-la. Nada há que não seja absolutamente apolítico - mas é sério quando tudo vira política, no sentido de começar por ela e não pelas pessoas. Compreendamos, por tanto, que a política é um produto final, e que se inicia no plano do espírito humano.  

   Com isso, nos encontramos com o ser humano histórico, com a sua consciência individual e seu universo de valores a orientá-lo no mundo. Nos encontramos com o indivíduo cristão que, com toda a sua desmundanização, ainda continua a ser histórico, ainda que viva a sua vida ascética no deserto ou em um mosteiro. Temos também os ascéticos intra-mundanos (como dizia Max Weber com respeito aos protestantes), com toda a sua ideia de desvinculação entre Igreja e Estado. Tudo bem! Mas convenhamos: culturalmente, tal pensamento aistoricista (um neologismo) é simplesmente um sonho. Por mais irrelevante que seja, o indivíduo religioso é um germe no universo, traz em sua consciência uma visão de mundo e passa a outros. Se orienta por essa visão - assim se espera, pelo menos. E sabemos que qualquer visão de mundo deseja, a princípio, ser universal. Deseja reproduzir, convencer, transformar. Pois bem, temos diante dos cristãos o texto bíblico, aquele que afirmamos mais acima que é o portador de um potente mito fundador. Ele - e isso é evidente -, traz um germe civilizacional ímpar, grave, pesado mesmo. Como seria o mundo e nós mesmos indiferentes a isso?

   Por tanto, podemos concluir que o religioso e o religioso cristão com sua existência são coisas determinantemente políticas, e assim seria mesmo se eles não quisessem. Isso - é óbvio! -, para o cristão, traz à luz a sua responsabilidade no mundo, pois seu compromisso com Deus, por Cristo, assim é um compromisso encarnado, histórico, impassível à indiferença. Tal vez, no lado cristão, esse desejo de separação entre a vida religiosa e a vida pública tenha o cheiro do docetismo, da negação da encarnação, da negação das responsabilidades históricas. Claro, não iremos transfigurar o mundo, não impediremos ninguém do usufruto de sua liberdade - por mais que as decisões com base nesta liberdade sejam desastrosas, para nós -, mas não precisamos, também, desse cúmulo de humildade. A nossa consciência - ou alma - é a divisa do mundo, é ali que nossa vida acontece. É ali que, para nós, tudo começa. É ali que opera, primeiro, a nossa fé; e como sabemos, a fé abala radicalmente o mundo.      

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Um Exemplo de Mentalidade Metonímica


 
   Tudo bem, vamos parar de ideologizações quadrúpedes e vamos ficar com os fatos reais: a integração continental da esquerda latino americana grandemente auxiliada por Chávez, e a camarilha Fidel Castro, Raul Castro, Maduro, Cristina Kirchner, Evo Morales, Lula, Rui Falcão, Mijuca etc., pode não ser uma conjuntura que surgiria do "Bolívar histórico", mas que tem haver com o "bolivarianismo", há!, isso tem sim.

   Para que compreendamos a coisa, depois que PT lançou um texto programático a lá Hugo Chávez, tem gente que ainda não conseguiu interpretar o texto como ele mesmo deve ser compreendido: estatização, chavismo e cubanismo na veia. Sim, aquela ideologia bolivariana chavista em ato.

   Agora, se Simon Bolívar era bolivariano ou não, isso não importa. O que importa é, no fundo, aquilo que a política sob este nome tornou-se: uma coisa muito para lá da esquerda do centro. Tanto é verdade que Chávez defendeu a revolução cubana e as FARC - o que está no Youtube para quem quiser ver -, que é um grupo que surgiu pelas mãos de Che Guevara.

   A ação da "libertação" do bolivarianismo chavista - já que Simon Bolívar era um ferrenho opositor do colonialismo espanhol - esta voltada contra o imperialismo americano - tipo aquela ideia de lutar contra o empresário imperialista vindo, sei lá ... de Vênus ... papo para meter medo em criancinha: "Mãe, tem um banqueiro capitalista de baixo da minha cama!".

   Isso não é papo acadêmico, onde o "bolivarianismo" não é cubanista por causa de ... Bolívar ... pois, para além da abstração, há um mundo real, o mundo da ação humana e política para além da ideologia.


   Assim sendo, querer ver na política da Venezuela aquilo que ela não é, achando que o "bolivarianismo" nada tem haver com Cuba por causa de Bolívar, é a mesma coisa do que julgar o gosto de uma bolacha pelas cores de sua embalagem.

domingo, 9 de novembro de 2014

Idealização do Homem: O Projeto da Morte

   

   Perguntar sobre o que seria, de fato, o homem, é se lançar, ao mesmo tempo, diante de uma resposta extremamente aberta: não existem dados empíricos para descrever quem seria o homem e o que seria, de fato, o ideal "homem" em toda a sua dimensão e profundidade. 

   Já a subjetividade, a liberdade, a criatividade, o poder de decisão, e a participação no universo moral, dão ao homem uma dimensão abissal, que, em última instância, só pode ser percebida por meio da participação pessoal, sendo que jamais pode esta dimensão eterna ser domada por um processo legal e educacional. Nem mesmo a caracterização do homem na bíblia como "imagem e semelhança de Deus" (Gn 1:27) pode responder a dúvida de quem seria o homem, mas, pelo contrário, amplia-a infinitamente. 



   Com isso, podemos considerar algo interessante: não há messianismos humanos com poder de levar cada indivíduo à um destino perfeito por via da força da lei, da ciência, da religião ou da conscientização: isso, em si, seria uma brutalidade imensurável, assim como um otimismo megalomânico para com a capacidade humana de planejar e colocar em marcha tal "plano messiânico". É necessário compreender que sempre haverá uma margem de absurdo incontrolável que, por causa da sensatez, devemos suportar. 



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   Estas questões acima podem suscitar algumas questões em nossas mentes como a da legitimidade das leis, dos códigos sociais, das religiões ou da visão de mundo que alguma pessoa emprega como meio de compreender a realidade e orientar suas decisões em meio a elas. Poderíamos, com isso, legitimar uma determinada ideia relativista, dando consistência para a compreensão de um Mundo anômico, mas não é o caso. 



   A questão da cultura é infinitamente mais ampla e complexa do que imaginamos. O psicanalisa Carl Gustav Jung, em seu livor "O Homem e Seus Símbolos", deu uma explicação à existência dos símbolos que também se aplica à cultura. Para ele, os símbolos não nascem pela simples vontade dos homens (ou por imposição de narrativas, como explicariam os franceses), mas tem haver com uma relação entre o homem e a natureza, entre a dimensão psíquica e a realidade. Neste sentido, voltando para a cultura, a estrutura da própria realidade e eventos históricos experienciados por homens, geraram leis e instituições afim de que por meio delas a sobrevivência fosse algo possível. A criação de tabus sexuais, por exemplo, como explica o sociólogo Claude Lévi-Strauss, foram essenciais para o estabelecimento da ordem social, e, por isso, para a sobrevivência da minoria das minorias: o indivíduo humano. 



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   Todo isso descrito acima, já afasta escandalosamente o processo de formação de uma determinada cultura da ideia da capacidade de idealização do ser humano. Essa idealização do humano tem as suas raízes já no renascentismo, que foi um movimento responsável pela criação de um determinado otimismo na capacidade da razão humana. Vale lembrar que este movimento desembocou no Iluminismo francês, que, como sabemos, foi no fim das contas um dos mais violentos movimentos históricos, e tudo impulsionado por um "bem" que se chamava razão.



      Nascia, ao lado de tudo isso, a ciência moderna e o otimismo na mesma ciência trouxe uma cultura que estava fundada na crença da capacidade de descrição e explicação da realidade por meio do método científico, trazendo a mesma realidade à luz da razão cuja capacidade foi sendo concebida como infinita. Concebida, também, ao lado de tudo isso, foi a esperança em um mundo tecnocrático, e com isso, a esperança na capacidade da resolução completa dos problemas da humanidade. Tal concepção fora tão poderosa que um importante filósofo do século XIX chamado August Conte, idealizou uma religião plenamente racional, dando a entender o seu otimismo nesta mesma razão.        


   A fé na ciência - que foi dada como uma manifestação da neurose segundo Freud -, foi evidentemente forte no século XIX. Basta lembrar Hegel e a sua máxima: "tudo o que é real é racional, e tudo o que é racional é real". No entanto, basta lembrar a profecia de Adoux Huxley, que no seu livro "Admirável Mundo Novo" alerta sobre o perigo da tecnocracia e do cerceamento da liberdade que resultaria da fé na ciência, o que, aos poucos, com base na idealização do homem por parte da ciência, acabaria por eliminar o ser humano real para dar lugar ao ser humano ideal através de um projeto cada vez maior de engenharia social ou biológica, o que se deu de maneira cabal nos projetos socialistas do século XX. 

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   Com certeza, nada pode nos esclarecer de maneira mais formidável esta fé na ciência - que trouxe com sigo a idealização do homem - do que os dois maiores projetos de engenharia social do século XX: o Nazismo e o Comunismo. 

   Ambos, ao seu modo, foram projetos fundados em uma pretensa cientificidade: o Nazismo nas ciências biológicas, e o Comunismo em uma visão científica da História e das relações humanas. Para o Nazismo, a genética trouxe à luz a questão da superioridade da raça ariana. Já para o Comunismo Marxista, o materialismo-histórico-dialético "evidenciou" de maneira mais crua o processo histórico, eliminando qualquer viés metafísico, já que o marxismo estaria focado na única realidade concebível: a matéria: o elemento por excelência da ciência. Há, não por acaso, um livro de Lênin que explicaria a própria dinâmica biológica com base no materialismo-histórico-dialético. Por isso, o que bastaria seria uma aplicação desta filosofia para que fossem eliminadas todas as ilusões, mentiras (a religião, segundo o marxismo) e, com isso, viabilizando a implantação da justiça de maneira plena. 

   Não por acaso, toda a realidade foi elevada ao nível destas teorias nestes dois regimes, e tudo aquilo que era considerado mal, injusto e ameaçador para estas ideologias, foram sendo tratadas como elementos inimigos a serem eliminados de uma vez por todas. Temos aqui, por tanto, a reedição da estrutura iluminista e a eliminação de tudo aquilo que não era considerado "racional", "verídico", ou do "bem". 

   O que resultou de toda essa fé na ciência, ou na cientificidade de uma teoria que, no fundo, mais fora uma idealização do ser humano, do que a descrição da própria realidade? Sabemos disso: a efetivação de genocídios e a concretização dos dois regimes mais violentos que se tem conhecimento na história da humanidade. 

   Para compreendermos isso, basta, por exemplo, ver como seria aplicada uma sentença de Marx, que é essa: "De cada um segundo a sua capacidade, a cada um segundo a sua necessidade." Ora, como compreender, com as diferenças gritantes que há entre um ser humano e outro, o que seria, cientificamente, a capacidade e a necessidade do ser humano? Por outro lado, não estaríamos amputando o ser humano de sua liberdade, assim como de sua humanidade, na supressão deste desejo invencível que ele tem de se dar ao supérfluo e ao lúdico? Qual a razão da felicidade? Para que serve ela? Não cairíamos em um abismo de dúvidas caso queiramos descrever o supérfluo e a sua importância na vida do ser humano? E a individualidade? Há! ... "Para o diabo com a individualidade" ... diria um coletivista. Dá para compreender, por aqui, qual o tamanho da arrogância e do autoritarismo daqueles que, em nome do "bem" e da "justiça", procuram, de cima para baixo, impor uma visão de mundo que, no fundo, nada mais faria do que eliminar o ser humano existente - com todas as suas ambiguidades -, para dar lugar ao "homem novo", ao "ser humano ideal" etc. 

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   Esbarramos, por tanto, em alguns fatos fundamentais que hoje parecem muito perto de nós: vivemos em um período de fé na "educação redentora", na "política redentora", no "partido redentor", no "estado redentor" e na "concepção de mundo redentora", na "razão redentora" e na "ciência redentora". Nem mesmo o cristianismo pretende ser um projeto de redenção para o mundo, mas para fora dele (Jo 18:36); e quanto mais a concepção da graça redentora - característica no mundo medieval e no protestantismo - foi sendo transferida para a política ou para a ciência, e quanto mais teorias coletivistas foram sendo impostas em detrimento da individualidade e da consciência individual, mais fanatismo e alienação foram sendo criados, a ponto de se colocar tanta fé em uma concepção de "mundo melhor", que o mundo existente com as suas ambiguidades foi sendo satanizado, destruído, manietado e assim o ser humano - sempre aquém dos ideais - existente nele. 

   Com isso, podemos compreender que não há uma filosofia histórica mais realista do que aquela que imperou no mundo medieval, onde o mundo e o ser humano não eram compreendidos sob a ótica daquilo que deveriam, em perfeição, ser: eram compreendidos como um absurdo, uma transitoriedade, e que deles nada mais poderíamos esperar do que a imperfeição e a bondade ao lado da corrupção, sendo que o ponto de cura possível só poderia ser achado na graça de Deus: o Ser mais Inatingível, "Outro" (Kierkegaard) e idealizável da história da filosofia.

sábado, 8 de novembro de 2014

Comparação Inconveniente

   


   Estabelecer uma relação de semelhança entre o Comunismo e o Cristianismo é coisa de principiante ou charlatão. Querer legitimar o Socialismo por causa da pregação e exigência ascética de Jesus é desconhecimento puro da história, teologia e política, ou é desonestidade consciente.


   Uma das causa é que no cristianismo não se pode fazer caridade forçada com o dinheiro alheio - como o socialista faz. Uma outra causa é histórica: veja se Fidel Castro possui vida de abnegado; veja os bilionários do Partido Comunista Chinês; veja a vida de Czar de Stálin. A História nos mostra algo curioso: a tendência dos grandes do comunismo é viver de modo a dar inveja aos maiores burgueses e banqueiros do mundo.

   O cristianismo e a comunidade do livro dos Atos possuem algo que o socialista odeia: a voluntariedade pessoal - pois toda a "igualdade" socialista é conquistada a força, ou pela via legal. NENHUM APÓSTOLO EM ATOS OBRIGOU NINGUÉM A VENDER NADA. Não havia, e nunca houve uma imposição por decreto do dever de ser caridoso no cristianismo. Não há leis de expropriação de terras ou de propriedades pessoais, e nem nada desta natureza com o intuito de estabelecer uma vida igualitária. Haviam meios no Antigo Testamento que favoreciam os pobres - verdade! -, mas que são diferenciados do socialismo por muitos motivos.

   Politizar o cristianismo é o pior projeto que alguém pode fazer. Cristianismo é uma religião da alma, da consciência pessoal, da transformação do coração. O socialismo odeia consciência pessoal, personalidade e o individuo - só quem não conhece a teoria coletivista não conhece o caso. Se Jesus exigiu o rico vender tudo para ser perfeito, isso não tornou-se a conditio sine qua non para alguém ser um cristão, e nem para o arrependimento.
   
   Haviam diferenças entre classes na Bíblia? Sim, é lógico que haviam. Haviam ricos? Sim, haviam e nunca houve a condenação de um rico pelo simples fato de ele ser um rico. Haviam pobres? Sim, a maioria - a riqueza generalizada é uma realidade histórica recente. Havia obrigação para com os pobres? Sim, sempre houve, como sempre houve, pela via cultural, esta obrigação em países de matiz cristã, independente de ser um país socialista.
   
   A ideia em torno da qual deve gravitar a nossa desconfiança é a do monopólio da virtude: será que é necessário o socialismo para a existência de um autêntico cristianismo? O que vemos no socialismo é isso: um amor eufemístico pelos pobres, e a hipocrisia daqueles que querem colocar pesados fardos nas costas do outro e não ousam empurra-los nem mesmo com um dedo (Mt 23:4). Sempre houve caridade no mundo, mas o erro é exigir amor por decreto. Bondade e virtude forçadas não geram recompensa, não trazem gratidão, não são realizações com base na bondade e liberdade.

   Se os cristãos conhecessem mais a história do cristianismo (de como reverberou de Cristo essa abnegação pelos pobres em pessoas realmente cristãs), assim como conhecessem, de fato, a história do socialismo, não acumulariam tanta vergonha para si mesmos ao defender uma ideologia que, no transcorrer da história, não fez outra coisa que criar líderes assassinos nos países onde se efetivou totalmente um governo nos moldes coletivistas, e assassinar, por baixo, 140 milhões de pessoas em menos de um século, espalhando uma onda de miséria sem precedentes.

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

O Ódio à Toda Beleza Possível




   Esses dias li em um livro que esta noção de igualdade que se apregoa por aí é fruto direto da inveja, e que acabou por tomar um corpo na área da política, assombrando muita gente.

   Neste livro foi citado um autor que escreveu uma obra de ficção, dizendo que em algum momento do futuro, haveria uma política de engenharia biológica que nivelaria a beleza na humanidade, para que não houvesse alguém mais belo que o outro; tudo em nome do "bem" e da "igualdade". 

   Não por acaso, quando a vida imita a literatura (ou os esquemas imaginativos de vidas possíveis - coisa já analisada por Aristóteles), um escritor argentino, provavelmente kichnerista, chamado Gonzalo Otárola, propôs a ideia de cobrar um imposto dos mais belos, pois a natureza lhes oferecera meios melhores de vencer na vida - retardo mental puro!



   Em consonância com esta ideia, reparto com meus amigos um ouro colhido no solo de minhas leituras, que é uma sentença de um dissidente cubano por nome de Reinaldo Arenas:



   "A beleza, sob um sistema ditatorial é sempre dissidente, porque toda ditadura é por si mesma atiestética, grotesca [louva o ridículo para que não hajam "preconceitos", enquanto, sem perceber, nivela o que há de belo e justo no mundo com o que há de lixo, eliminando a hierarquia dos valores por meio da qual podemos separar o que é melhor e o que é pior]; praticá-la representa para o ditador e seus agentes, uma atitude escapista ou reacionária."


   Todo o pensamento totalitário, esta onda de nivelar tudo o que é belo e digno no mundo com aquilo que é lixo e trágico, tipo: Funk com Mozart, modelos alternativos de casamento com a família tradicional, ditaduras com democracias verdadeiras, economia de mercado com o "socialismo" - socialismo que é a política da inveja mesmo -, etc, acabará nos forçando a ter uns costumes neandertais, como o daquelas índias que, após o parto, quando percebiam que seus filhos eram mais bonitos que a média, logo começavam a lamentar e desgrenhar os cabelos por causa de uma suposta feiura na criança, tudo afim de desviar a atenção invejosa dos maus espíritos.

   Vivemos, certamente, em meio a uma cultura da inveja, cujas ideias criam um tipo de "militância do bem" que é pura assombração, policiamento e perseguição! Tudo, é claro, em nome de uma suposta "igualdade".