quarta-feira, 27 de abril de 2016

O Bode Expiatório


   A revelação da verdade divina em Jesus Cristo nunca foi matéria de discussão pacífica neste mundo. De fato, ao abrir-se para a encarnação Jesus decidiu entrar em um espaço de perdição, onde seu destino só poderia ser o aniquilamento. Por isso, a santidade e a pureza divinas jamais foram vistas com bons olhos quer em sua época quer agora.

   A concepção de Jesus como o bode expiatório já não pode ser mais considerada como artigo de provérbios populares e nem de matéria sobre discursos míticos. De fato o mecanismo do bode expiatório é um fato empírico histórico, onde o "homem massa" (o coletivo) se arremete violentamente de maneira unânime sobre uma vítima inocente, transformada em símbolo de todo o mal, dissensão e miséria no mundo. Eleger uma vítima é uma forma comum de camuflar os próprios erros individuais, retirando da esfera pessoal a culpa dos males que nos circundam.

   No entanto, no presente momento confuso de sacralização de determinadas classes, é preciso sublinhar o caráter essencialmente singular no caso de Jesus Cristo como alguém inculpável: ele era a Verdade encarnada. Sua existência como promotor da dissenção está vitalmente ligada à noção de santidade que lhe era próprio, e que lançava uma luz tão intensa sobre o mundo a ponto de colocar as claras a monstruosidade humana dissimulada pelo véu da falsa religiosidade, da hipocrisia e da revolta contra Deus. Jesus era um incômodo e as massas os incomodados. Como disse Raimund Schwager:

   "Todos os Evangelhos [...] mostram que a mensagem de Jesus - pelo amor inconcebível de Deus e por sua pretensão de ser um com Deus - trouxe à luz o rancor subterrâneo e a vontade oculta de matar, mesmo entre os fariseus piedosos e cultos. Na aliança contra ele desvelam-se as forças mais sombrias do coração humano. [...] Todas as forças hostis a Deus se ligam contra ele, e em seu corpo descarregaram seus maus desejos" (SCHWARGER, Raymund. Brauchen Wir eine Sündenbok? - apud. GIRARD. Aquele por Quem o Escândalo Vem. p. 78,79).

   No entanto a existência singular de Jesus não deixou de se repetir na vida dos sábios, de homens santos e dos profetas ao longo dos tempos. De fato, a existência da própria Igreja parece, de quando em vez, encarnar o papel de bode expiatório a contrapelo do bem que ela causou e causa no mundo - ainda que o próprio mundo seja suficientemente ingrato para com o serviço que ela (e só ela) prestou aos homens.
  
   Aqui e ali as criações da Igreja (como as universidades) parece se rebelar contra a sua geratriz, e isso não por um movimento de crítica, mas de substituição, quando a mentalidade que busca a verdade no mundo se converte afim de atender as exigências de ideologias que mal disfarçam o seu ódio irracional contra tudo o que é humano, a pretexto de defender o que é humano. Em substituição de uma verdade transcendental e eterna, imanentizam as esperanças para este mundo, escolhem bodes expiatórios - sejam os judeus, os Kuláks da Rússia, sejam as Elites, os intelectuais chineses da época de Mao Tsé-Tung, Deus mesmo etc. - se opondo à realidade inescapável de que o presente tempo não comportam as esperanças que podem ser satisfeitas apenas no tempo eterno. O dito "ópio do povo" na verdade é a única esperança que agora é substituída no coração do homem pelo ópio da ideologia, que lançando falsas esperanças e falsos inimigos no mundo, encobre do coração do homem que a sua única esperança nunca esta em si mesmo, mas no Deus que a tudo criou.

   Essa constatação é contraposta à soberba e arrogância de quem se coloca na ingrata empreita de construção de paraísos que o tempo tende a destruir. E os messianismos presentes sempre ocultam a prepotência de onipotência que sempre tentou o coração do homem, e que em sua própria dinâmica deixou um histórico de morticínios e destruições na tentativa de fazer do mundo não o melhor dos mundos possíveis, mas a perfeição em sua própria essência. E tal como nos ensina revolução francesa, quando materializar o mundo perfeito se torna impossível, cabeças começam a rolar.


   É neste espírito de profecia, nesta tendência de trazer incômodo para todas as gentes, que as palavras de Cristo sobre a condição humana trouxe a si o descarrilamento da violência que acabou por significar o mundo, constituindo um evento de verdadeira revelação divina sobre a condição selvagem do homem distanciado de Deus. Como disse René Girard: "Os Sinópticos [os quatro Evangelhos] fazem dizer que Jesus traz a guerra. João faz ver que, por onde quer que intervenha, Jesus provoca dissensões. A irrupção da verdade destrói a harmonia social fundadas sobre as mentiras da unanimidade violenta" (GIRARD, René. Aquele por Quem o Escândalo Vem. p. 84).

quinta-feira, 21 de abril de 2016

Insatisfeitos no Paraíso

   


   Como vemos na Bíblia, para Adão e Eva o próprio paraíso era insuficiente. No entanto, com seus respectivos espíritos banhados pelos ares do progresso, decidiram fazer uma melhoria no paraíso em que viviam. O resultado foi que acabaram por pôr tudo abaixo.

   Não que em nosso velho mundo não devamos querer melhoras, mas o que penso sobre o não contentamento humano é que o próprio homem pode ser alguém insatisfeito no paraíso, e que ao sair por aí desejando criar um mundo melhor ele acaba por implodir aquele velho, familiar e monótono mundo, onde tudo é tão do tamanho do coração humano, perdendo-o para todo o sempre. 

   É justamente este o resultado por se fazer do lugar-comum da mudança um adjetivo positivo. Qualificamos, como metafísicos modernos, a mudança como uma coisa "boa-em-si", fazendo do acidente uma substância, não porque o que permanece o mesmo seja ruim, mas porque insatisfeitos conosco mesmos.

   Contudo, na incapacidade de reformarmo-nos a nós mesmos, decidimos, em nome da libertação, revolucionar o mundo transformando-o à nossa imagem e semelhança, mas uma vez despida da sua imagem divina acabamos por tornar o nosso mundo em não-lar e em algo inumano ou mesmo anti-humano. 

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Karl Kraus, a Corrupção da Língua e a Segunda Realidade


  Existe um determinado clima social que permite a ascensão de tiranos. Geralmente tais são destituídos profundamente de senso moral, de realidade e de capacidade de reconhecer erros - podendo ser isso feito no nível verbal, mas não na ação concreta.

   Como deixou claro o jornalista austríaco Karl Kraus, a população alemã do pós Primeira Guerra erra profundamente deformada moral e espiritualmente, sendo isso causado principalmente pelo "clima de opinião" (para utilizar a expressão de Alfred North Whitehead) criado por jornalistas que não economizaram na formação de lugares-comuns que fizeram com que a opinião pública migrasse para uma segunda realidade. Em outras palavras, a ascensão de Hitler ao poder não foi um ponto na curva, mas foi pavimentada pela corrupção da língua levada a cabo pelos intelectuais, transformando a própria língua em um instrumento inviável para a descrição da realidade.

   Aqui temos um problema violento, extremamente presente no Brasil: a corrupção da língua. Esta, tal como vemos nos livros didáticos - que eu já examinei, pelo menos no caso do Paraná -, já que os educadores perderam a sua função de transmitir a realidade, buscando apenas transformá-la, esta patente. Este é um problema dos nossos jornais, das novelas, literatura etc., onde a corrupção ideológica já é tão violenta, que um grupo criminoso como o MST - que teve até aulas de guerrilha com um embaixador Venezuelano em terras Brasileiras (meu Deus!!!) -, é tido como libertador pela maioria esmagadora da nossa classe acadêmica formadora de opinião, que por meio do discurso e da formação de símbolos lançam todos para um mundo paralelo ao mundo real. Isso sem somar os cuspidores da liberdade, aqueles que afirmam que fulana não merece ser estuprada, e mesmo aqueles que não tendo cargos, se põe a vender a República em um quarto de hotel - ou seja: praticando corrupção a céu aberto -, sendo considerado herói, como é o caso do moribundo político chamado Luiz Inácio Lula da Silva.

   Sendo assim, neste estado de alienação moral e de perda da realidade, temos nos contentado com uma ideologia, uma mentira política torpe e grotesca, que prometendo o paraíso na terra, lança através de símbolos confusos a mente da população a um plano que em nada se coaduna com a realidade de fato, pavimentando a oportunidade da ascensão política de indivíduos que, carregados na onda ideológica, oferecem um futuro impossível - mesmo que desejado para indivíduos totalmente desprovidos de realidade e corrompidos moral e espiritualmente. O que teremos de tudo isso senão um mundo totalmente anti-humano, inajustável à natureza das coisas, ou um inferno indescritível?

Religião e Política: Imposturas


Portador de uma das mentes lúcidas do século XX, o filósofo austríaco Erich Voegeling, que criou instituições de pesquisa e estudos na Alemanha na década de 60 do século passado - com a intenção de produzir uma nova consciência política após a catástrofe nazista -, gerando resultados importantes que estão para além da imaginação vulgar, concebia a necessidade de olhar todos os processos humanos à luz da presença divina. 

O que há de interessante nisso é que, para ele, foi a perda da realidade, montada na crista da perda vigor espiritual e dos valores eternos, que, no pós-primeira guerra possibilitou a ascensão do nazismo, o que incluía o perda da realidade por parte das Igrejas, tanto católicas quanto protestantes, sendo a opinião pública deformada por intelectuais, educadores, políticos e jornalistas.

No entanto, quando você vê o seu coleguinha mugir coisas como: "devemos separar política de religião", basta refletir o seguinte: quais são os fundamentos sobre as suas concepções sobre o bem e o mal? Fora da realidade do espírito - que é o assunto da religião - não há como saber o que é bom e o que é mal. Sem isso não há ética, e, por isso, não pode haver política, apenas catástrofe. Filosoficamente não há outro caminho: ou é niilismo (como retratado no livro "Os Demônios" de Dostoiévski) ou é espiritualismo.

De uma longa tradição do pensamento espiritualista que vai dos tempos imemoriais, passado pelos profetas de Israel, Platão, Aristóteles, os estoicos, os filósofos e teólogos cristãos, a Idade Média, o Iluminismo Britânico e Americano, Leibniz, Schelling, Hegel, os impérios teocráticos europeus, até uma corrente conservadora moderna em política, a ideia da interpenetração entre religião e política sempre esteve presente - e, considerando o homem como indivíduo que caminha sob juízos acerca da realidade, não há como ser de outro modo.

Mas os ilumininhos, baseados em um provincianismo intelectual arcaico - que remonta à catástrofe da revolução francesa - querem provar que a interpenetração entre religião e política é o mal do mundo. Valha-me Deus!!!

sexta-feira, 15 de abril de 2016

A Ordem

   O estado de loucura atingiu as massas - o que é perigoso. É quase impossível no Brasil passar por todo esse processo sem um prejuízo dos sentimentos e da razão. O Ambiente presente tornou-se profundamente deletério, e somente uma estrutura mental e espiritual firme pode passar incólume a essa vaga de desinformação, antagonismo, sede por poder e irracionalidade. E o perigoso é que quando a estrutura psíquica se encontra desgastada e estafada, o ser humano acaba por aceitar qualquer coisa em busca de tranquilidade e alívio.

   Em tempos de angústia, as virtudes que possibilitam a resistência só são possíveis em uma personalidade onde reside aquela certeza acerca dos valores espirituais eternos. No entanto, como pode isso ser possível quando as instituições espirituais já se desfizeram das suas barreiras de contenção (a moral, os tabus, as hierarquia de valores), se firmando apenas em valores momentâneos que se desmancham no ar? A Igreja, que deveria se o baluarte da verdade em um mundo de incertezas, a Arca resistente contra o dilúvio da profanação, confusão e perda da realidade, se esfuma dia após dia diante dos reclames da cultura reinante - e, como sabemos, a um reclame deste presente tempo segue outro reclame e outro até à consumação dos séculos. Sendo assim, aquilo que deveria consistir em forças de conservação, se torna em um impulso desnorteante dentro do qual o home só pode se perder. Aqui é do espaço da perdição que falo.

   É imperativo em nossos dias repensarmos a necessidade da ORDEM sem a qual o homem não pode viver. Não são somente os valores e a realidade material importantes para o homem; na verdade valores materiais nada são se não podem ser julgados por uma instância superior e imperecível - a instância eterna do espírito. E a raça dos homens que pensam poder remodelar o mundo segundo as necessidades do momento, segundo o espírito do tempo, invariavelmente ignora a necessidade da ordem. Mas do outro lado se encontram aqueles que sabem que a humanidade não é um momento, que ela possui uma natureza inamovível, não remodelável e que pode descansar apenas nesta ordem que foi feita para o homem, sendo o homem feita para ela.

   Mas enfim, onde iremos parar nesta onda voraz de incertezas, onde mais nos aproximamos da aniquilação do que daquela estabilidade que permite a nossa alma descansar? Como pode ser que nesta voraz relativização de tudo o próprio homem não seja relativizado? A nossa história é pródiga em exemplos, e não nos faltam nos dias de hoje homens como os Peter Singers da vida que pensam no valor do homem como algo medieval, o que nos faz lembrar das macabras sinfonias tocadas no alvorecer da guerra e dos campos de concentração onde, por ser a terra uma moradia impossível, os homens, assim como Cristo na Cruz, só podem contar com Deus como esperança final, pois em tempos assim na Terra já não há nenhuma.

domingo, 10 de abril de 2016

A Percepção que Salva Segundo Aleksandr Solzhenitsy


   Acima de um tipo de percepção viciada no mundo sensível, aquela que tende a julgar o sucesso da vida apenas a partir do horizonte do sucesso material, sem o sentido espiritual que mostra aquilo que ela realmente é, está aquela que nos confere a possibilidade de ver uma esperança imortal que paira, invencível, sobre todas as coisas. Esta visão é aquela que compreende a instrução divina na história, ou que compreende a ação divina no Mundo, significando cada evento nele. Que Deus está na história - e totalmente nela - é algo que não podem ser negado por aqueles que acreditam que o Verbo se tonou carne (Jo 1). É somente isso que pode significar a nossa vida e lhe dar o significado adequado segundo o qual uma finalidade para o ser humano pode ser discernida. É isso que Solzhenitsy nos encoraja a compreender: Deus no Mundo e Deus em nós - tal como ele diz neste trecho:

   "A nossa visão não consiste na busca do sucesso material, mas na busca de um crescimento espiritual digno. Toda nossa existência terrena é mais do que um estágio transitório do movimento em direção a uma realidade superior, e não podemos tropeçar ou cair, nem ficar presos, inutilmente, em um degrau da escada... As leis da física e da fisiologia nunca revelarão o modo incontestável como o Criador, constantemente, dia após dia, participa da vida de cada um de nós, concedendo-nos, sem falhar, o vigor da existência; quando tal auxílio nos deixa, morremos. Na vida de todo o nosso planeta, o Espírito Divino se movem com a mesma força: é isso que devemos perceber neste nosso terrível momento de escuridão."


   E é somente esta percepção que pode nos salvar daquele limitado horizonte de consciência que tende a reduzir o homem ao campo da animalidade, pois o que é a vida superior se não uma vida na mente e no Espírito, que, por natureza, vai para além do nosso corpo mortal - como já diziam os primeiros cristãos após a era apostólica? Considerar o mundo como um todo fechado em si mesmo é algo que, se acreditado, nos daria todas as razões para definharmos em desespero no segundo seguinte em que déssemos crédito a esta superstição. Mas há uma vida superior, e todos os segundos desta vida neste mundo nada mais são do que momentos que compõem o grande ensaio que nos molda para a vida eterna - e perceber isso hoje é tudo.

sexta-feira, 1 de abril de 2016

A Guerra Contra a Razão e a Abolição do Homem


   A questão que se impõe em nosso século sobre a objetividade e subjetividade, sobre a capacidade humana de apreensão da realidade ainda faz muito barulho, porque é justamente esta questão que significa a nossa cultura como ela é.

   É comum ouvirmos nos centros mais “esclarecidos” e em cursos de ciências humanas que a verdade é subjetiva, e que as considerações sobre certo e de errado variam de pessoa para pessoa e de cultura para cultura. Um olhar superficial ou um estudo de religião e cultura comparadas poderá até sugerir que a verdade, de fato, é algo relativo e subjetivo – ironicamente tal vez até a única verdade absoluta admitida pelos relativistas. Mas este é apenas um aspecto do olhar sobre a questão, pois o que basicamente une as culturas é muito maior do que aquilo que as separa. Já Freud apontou que o tabu do incesto e estruturas de parentesco eram regras universais e que fora disso as relações humanas seriam impossíveis. O mesmo vale para as regras de não matar, não roubar, cuja compreensão das razões destas estruturas pode ser obtida por uma criança de cinco anos, fora outros fatores ignorados pela nossa camada “bem pensante”.

   Ideias tem consequências, e muito do pluralismo de um lado só servem hoje para motivos políticos bem fundados, sendo acatados para legitimar abortos, casamentos dos mais diversos tipos, liberação das drogas, destruição das religiões tradicionais, avanço contra o código penal etc. A ideia de fazer um nivelamento por baixo de todas as culturas, como se cada qual fosse boa a seu modo, esconde, na verdade, um niilismo autodestrutivo que desemboca na relativização de todos os valores, fazendo guerra à razão.

   Mas contra o quê guerreiam quando se avança contra a razão? Quais as consequências de deslegitimar a capacidade humana de captação da realidade de maneira objetiva? O que perde a humanidade quando se descredencia a ideia de verdade, tornando todos os dados do conhecimento apenas o resultado de uma atividade hermenêutica que fica restrita a confabulações internas sem nenhum valor objetivo?
   Foi pensado justamente nessas questões que o escritor, teólogo, apologista cristão e filósofo C. S. Lewis, o famoso escritor das “Crônicas de Nárnia”, pensou quando escreveu seu livro “Abolição do Homem”. Neste livro que ele analisou algumas consequências de considerar as experiências humanas como que destituídas de valor objetivo. A incapacidade de fazer juízos de valor, dizia ele, a abolição da consciência e a produção de uma cultura hedonista cuja felicidade se daria na conquista de mais prazeres e menos dores, retiraria o componente humano fundamental do ser humano, que era a razão.

   Logo no início do livro Lewis analisa o pressuposto básico de um livro de educação distribuído para as últimas séries, que afirmava que os julgamentos objetivos da realidade nada mais são do que sentimentos individuais sobre a realidade. Mas pensemos bem sobre as implicações desta afirmação tomando como exemplo a segunda Guerra Mundial: por acaso quando reconhecemos como brutais, anti-humanos ou monstruosos os fatos ocorridos e Aschwitz, fazemos isso com base em juízos de valor objetivos, podendo reconhecer aí uma divisa clara sobre o bem e o mal, ou fazemos apenas com base em julgamentos meramente sentimentais e subjetivos, condicionados pela nossa cultura ou visão de mundo e valores que nos foram inculcados pelos nossos pais? É preciso ter uma visão clara de que ideias tem consequências, e consequências tais que muito de nossa cultura pode ser considerada ou um mero acúmulo de material que pode ser jogado na lata do lixo na próxima esquina, por não possuir uma raiz que, atravessando a redoma da subjetividade, finca o pé na mais pura realidade, ou se, como dizia o filósofo alemão Friedrich W. J. von Schelling, contém estruturas que manifestam em si o Absoluto.
   A própria nomeação da aplicação natural da razão é chamada de especulação, que nada mais é do que a consideração de que a mente é apenas um espelho da realidade, pois REFLETE sobre a mesma, não criando verdades sobre o que quer que for. A razão natural age na compreensão sobre a proporcionalidade entre os fatos e os juízos, e uma vez abolido isso o homem não tem base para ação alguma, pois, nisso, toda a ação perde a legitimidade. É próprio do senso-comum considerar ações desproporcionais ou descoladas da realidade de maneira brutal como irracionais. Não se trata apenas de mero critério subjetivo. E há até mesmo um jurista brasileiro por nome de Amilton Bueno, leitor de Nietzsche, que considera o tribunal penal desumano, por conceber o juízo algo impossível ao homem. Como remédio para a situação ele simplesmente pede a abolição do código penal – mas, para ele, apenas esse juízo é correto.
   Não é demais constatar que o século XX foi o século da irracionalidade política. Mas para esse tipo de pensamento, não poderíamos fazer juízos de valor entre a democracia inglesa e a ditadura nazista, ou entre a democracia americana e a ditadura norte-coreana – pois, afinal, todos são bons ao seu modo. É um descalabro que na esteira de todo o pensamento relativista venha não a libertação do homem, mas a sua supressão. O que seria de um homem que sofrendo debaixo das botas de um ditador, faz um juízo de que o que sofre é algo anti-humano, contranatural, sentido que a situação na qual vive não é justa para com a natureza humana? Poderíamos considerar um escravo que sofre debaixo de varadas como alguém que faz juízos de valor cuja jurisdição não ultrapassa a sua subjetividade, tendo o verdugo, na mesma situação, a sua própria verdade, sem um terceiro que faça juízo entre uma coisa e outra? O que seria de um mundo sem a instância da realidade objetiva a mediar as relações humanas? Um terceiro. Uma metafísica, por assim dizer?
   O passo seguinte à abolição de todo o juízo é o estabelecimento final de toda animalidade e brutalidade possíveis, onde nem o poder da argumentação, nem os juízos de valor, nem o eloquente clamor de um oprimido debaixo do sofrimento possuem valor algum. Nos veríamos imersos em uma configuração social bárbara, a mão de todos contra todos, a bestialidade desenfreada, impossível de ser refreada pela instância da razão, já que, desimpedida pela consideração acerca do certo e do errado, nada mais pode ser errado.
   Onde podemos chegar com o culto do relativismo e da irracionalidade? Pelo que se sabe, a guerra contra a razão não é meramente uma guerra contra a razão, e nem mesmo a guerra em favor da libertação do homem e dos costumes que o prendem, mas basicamente uma luta contra o homem; uma busca por poder que esteja livre de todos os constrangimentos e de toda a coerção externa assim como interna. Enfim, veríamos estabelecia e legitimada a luta que, em nome da libertação do homem, só pode chegar à abolição do homem.