sexta-feira, 29 de abril de 2022

O Poder do Mal e a Graça na Oração

    O Senhor também nos instrui que é necessário que digamos na oração: "E não nos deixes cair na tentação". Isso mostra que o adversário nada pode contra nós sem que Deus o permita, afim de que se volte para Deus todo nosso temor, zelo e devoção; pois nada é possível ao mal no sentido de tentar-nos sem que lhe seja dado o poder. Prova-o a Escritura, que diz: "Veio Nabucodonosor, rei da Babilônia, a Jerusalém e atacou-a; e o Senhor entregou-a em suas mãos". [...]

    De duas maneiras é dado o poder [ao mal] contra nós: para castigo, quando pecamos; para a glória, quando somos provados. Vemos, por clara manifestação de Deus, que assim aconteceu com Jó. Diz Deus: "Eis que tudo o que é dele coloco em teu poder: atento, porém, não tocares nele". E o Senhor, no seu evangelho, no tempo da paixão, diz: "Nenhum poder terias contra mim, se te não fosse dado do alto".

    Ao rogarmos para não cairmos em tentação, somos lembrados da nossa fraqueza e miséria; e rogamos assim para que ninguém se exalte solenemente [...]. Pois ensinando-nos a humildade, diz o Senhor: "Vigiai e orai para não cairdes em tentação [...]". Antepõe, assim, uma confissão humilde e submissa ao pedido, atribui tudo à dádiva divina, afim de que se obtenha da sua misericórdia aquilo que se pede [em oração] com temor e reverência"*.
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[*] CIPRIANO DE CARTAGO. A Oração do Senhor.25, 26. Obras Completas, Vol. I. Coleção Patrística. Vol. 35/1. Ed. Paulus, São Paulo-SP, 1ª ed. 2016. p. 193, 194.

quarta-feira, 27 de abril de 2022

"SENHOR, Eis Aqui Duas Espadas": A Interpretação de Calvino de Lucas 22.36-38 a 22.51, e a posse das espadas.

    Lucas 22.35-38 é geralmente usado como uma licença de Cristo para que os discípulos pudessem levantar uma defesa armada contra a guarda do Sinédrio. Trata-se de uma passagem que tem sido usada de forma panfletária aqui no Brasil desde Olavo de Carvalho, que importou essa interpretação de grupos dos EUA. Eu não quero entrar nesses detalhes exteriores e políticos, mas como a questão diz respeito a uma interpretação bíblica, julgo poder avaliar essa passagem - e por que, como pastor, eu não poderia fazer isso?

    Para isso João Calvino pode vir em nosso socorro com sua interpretação a respeito dessa questão. E é surpreendente que ele, contado como aquele que forneceu as bases para a formação de uma liga internacional protestante responsável pela defesa do protestantismo na Europa, formulou uma interpretação que não saca de Lc 22.35-38 qualquer justificativa para matar segundo uma suposta orientação dada por Cristo a seus discípulos.

    Comentando o vs. 36, Calvino se vale de uma interpretação espiritualizante da passagem, dizendo que se antes eles foram beneficiados com tudo, mesmo sem levar alforje ou bolsa de viagem, agora, tendo com base e experiência da Providência divina em supri-los em tudo, eles deveriam renovar a sua confiança em Deus e não se importar com o alimento que perece, mas fortalecer nessa experiência seus corações, permutando essa mesma experiência do livramento pela esperança na sustentação em meio às dificuldades que viriam, e, por assim dizer, "comprando" espadas espirituais para vencer a tentação em uma batalha espiritual, e não em uma batalha física. É como segue:

"'Mas agora, quem tem bolsa, leve-a'. Em linguagem metafórica, ele assevera que eles logo encontrarão grandes problemas e ataques ferozes; como quando um general, pretendendo levar os soldados ao campo de batalha, chama-os às armas e ordena-lhes que deixem de lado todos os outros cuidados, e não pense em nada mais além da luta, nem mesmo na aquisição de alimentos. Pois ele mostra - como geralmente é feito em casos de extremo perigo - que que tudo deve ser vendido, até o alforje e a bolsa, para fornecer-lhes armas. E, no entanto, ele não os chama para um combate externo, mas apenas, sob a comparação da luta, os adverte das severas lutas de tentações que devem sofrer, e dos ataques ferozes que eles devem sustentar em disputas espirituais".1

    E assim Calvino segue:

"Para que eles possam mais voluntariamente se lançam na providência de Deus, ele primeiro os lembrou, como eu disse, que Deus teve o cuidado de supri-los com o que era necessário, mesmo quando carregavam consigo nenhum suprimento de comida e roupas. Tendo experimentado suprimentos tão grandes e sazonais de Deus, eles não devem, no futuro, alimentar qualquer dúvida de que ele proveria cada uma de suas necessidades"2.

    Sobre o versículo de nº 37 Calvino comenta a respeito da necessidade de ser "contado entre os transgressores", indicando que levando a culpa e a pena desses ele pudesse apresentar os seus remidos inocentes e inculpáveis perante o Senhor. A respeito da teoria da expiação de Calvino já sabemos bem. Mas nos importa seu comentário a respeito do vs. 38 que diz: "Então lhes disseram: Senhor, eis aqui duas espadas! Respondeu-lhes: Basta!". É impressionante a sensibilidade do reformador na interpretação dessa passagem, pois Calvino afirma os seus discípulos, por um estupidez não pequena, não haviam entendido nada da instrução de Jesus, pois tomaram o metafórico pelo literal. É como segue:

"Foi uma ignorância verdadeiramente vergonhosa e estúpida, que o discípulos, depois de terem sido tantas vezes informados sobre carregar a cruz, imaginam que eles deve lutar com espadas de ferro. Quando dizem que têm duas espadas, é incerto se eles querem dizer que estão bem preparados contra seus inimigos, ou se queixam de que estão mal providos de armas. É evidente, pelo menos, que eles eram tão estúpidos a ponto de não pensar em um inimigo espiritual."3

    Podemos dizer que nessa passagem Calvino tanto coloca em evidente oposição a cruz e a espada, quanto estabelece uma identidade entre ambas. Opondo a cruz à espada Calvino afirma que era evidente que do ensino de Cristo se segue a verdade de que não devemos matar pelo evangelho, e sim morrer por ele. Por outro lado, identificando a cruz à espada Calvino afirma que essa é, entre todas as armas, a única arma do Evangelho pela qual combatemos o nosso inimigo, que não é um inimigo externo, físico, mas sim espiritual. A cruz é a espada espiritual do cristão, a arma pela qual o cristão vence quando vulnerado, e não quando destrói a vida de alguém. Assim, o "Basta!" de Jesus não é anuência, é apenas uma forma de seguir com a estupidez dos seus discípulos, estupidez que será desfeita com a glória da ressurreição.

    Mas esse não é todo o conteúdo do vs. 38, pois Calvino ainda destrói toda ilusão que ainda poderia ser sustentada na ideia de que o Evangelho concede à igreja qualquer poder temporal. A teoria das "duas espadas", influente na Idade Média, onde se afirmava que Deus havia entregado para a Igreja duas espadas, a espiritual pela qual os sacerdotes da igreja ministravam o Evangelho, e a espada temporal que a Igreja concedia ao Estado para que esse fosse o braço armado de Deus, estando, por tanto, a serviço da Igreja, é abertamente contestada por Calvino. Assim ele comenta:

"Quanto à inferência que os Doutores em Direito Canônico tiram dessas palavras - que seus bispos mitrados têm uma dupla jurisdição - não é apenas uma ofensiva alegoria, mas uma zombaria detestável, pela qual eles ridicularizam a palavra de Deus. E era necessário que os escravos do Anticristo caíssem em tal loucura, de pisotear abertamente sob pés, por desprezo sacrílego, os sagrados oráculos de Deus"4.

    A interpretação espiritualizante de Calvino se justifica ao percebermos que no vs. 51 Jesus acode o soldado que teve a sua orelha decepada por Pedro. Jesus não poderia ter dado uma ordem contraditória a seus discípulos, incentivando-os a comprar espadas para depois negar o seu uso; nem mesmo é sensato julgar que Jesus queria que seus discípulos portassem espadas apenas para teatralizar a sua prisão. Fato é que quando Jesus disse que importava ele ser contado entre os transgressores, esse era um aviso para que os discípulos se preparassem para a tentação, como foi dito acima. Além do mais, nos versículos de Mateus 26.51-54 Jesus repreende severamente o ato da decepa da orelha do servo do Sumo Sacerdote, afirmando: "Guarda a tua espada; pois todos os que lançam mão da espada à espada perecerão". Contudo, esse é o comentário de Calvino sobre Lc 22.51:

"Por seu zelo tolo, Pedro trouxe grave reprovação sobre seu Mestre e sua doutrina; e não há dúvida de que este foi um artifício pelo qual Satanás tentou envolver o Evangelho em desgraça eterna, como se Cristo tivesse feito companhia a assassinos e pessoas sediciosas para propósitos revolucionários. Esta, eu acho, foi a razão pela qual Cristo curou a ferida que Pedro havia infligido"5.

    O ato de ferir o servo do Sumo Sacerdote era um fato destrutivo e que poderia trazer infâmia a Cristo, justificando sobre ele todas as acusações de sedição, tumulto etc., como já havia acontecido com outros tipos de candidatos a messias antes dele. Então operar um milagre sobre o servo do Sumo Sacerdote foi um meio de contornar a situação embaraçosa e potencialmente destrutiva causada pela tolice de Pedro, que em seu zelo sem entendimento buscou defender Jesus mediante a aplicação da violência.

    É incrível perceber o quanto Pedro se destrambelhava em sua forma de querer o bem o Senhor, ou na forma de entendê-lo, e esse é só mais um dos outros tantos casos. Contudo, Calvino infere que tal ato não foi suficiente - como não foi de fato - para aplacar seus adversários.

    Mas antes de mais nada, aqui vai explicado de antemão o que eu não disse: Eu não afirmei que qualquer forma de auto-defesa seja necessariamente pecado. Não é, caso contrário o uso da força pelas nações seria evidentemente uma transgressão, e poderíamos nisso colocar sob anátema todo Antigo Testamento.

    Sendo assim, aqui vai o que eu disse: Que é falso que Jesus ensinou ser possível matar, mesmo a pretexto de auto-defesa, segundo o Evangelho. Sendo assim, podemos fazer a devida distinção entre Lei e Evangelho, entre a aplicação da justiça e a aplicação da misericórdia, pois a mensagem do Evangelho é de como Deus manifesta a sua misericórdia salvadora, não de como vingamos o pecado. No evangelho abraçamos a nossa cruz para morrer com Cristo e não para matar em nome dele. É por isso que se diz que a justiça (justificadora) se manifesta no Evangelho independentemente da Lei (Rm 3.21,22), pois pela aplicação da Lei que vinga o pecado ninguém será justificado (Gl 2.16).
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[1] CALVINO, João. Commentary on Luke. 22.36

[2] Idem.

[3] Idem. On Luke 22.38

[4] Idem.

[5] Idem. On Luke 22.51a

sexta-feira, 8 de abril de 2022

Atanásio Contra os Panfletários: Ou: A Questão da Expiação Penal na Obra "A Encarnação do Verbo"


    Uma carteirada influente em relação a Atanásio é que o tipo de teologia da redenção oferecida pelo bispo alexandrino exclui absolutamente qualquer forma de substituição penal. Ou a substituição é "não penal", ou a pena que Cristo sofre é "não substitutiva". E no caso de Atanásio há ainda uma tese um tanto quanto improcedente de que o alexandrino defendia que a entrega de Cristo à cruz era um sacrifício prestado à morte (sem mais) - seja lá o que isso signifique de proveitoso para nós.

    A questão é que ainda que padecendo de certas lacunas, a reflexão de Atanásio une de forma importante certos atributos divinos que perfazem a equação da redenção, como a bondade divina e o princípio de veracidade, como ele chama. Pois se, como ele diz, era indigno de Deus deixar o homem perecer em sua própria corrupção, por outro lado Deus não poderia "deixar barato" a transgressão, já que no início da criação Ele já havia proferido a sentença de que se o homem transgredisse a lei, comendo o fruto proibido, ele morreria.

    Atanásio explica a questão da seguinte forma:

"Além disso, ciente de que o livre-arbítrio do homem inclina-se num ou noutro sentido, adiantou-se e consolidou pela lei e em determinado lugar a graça que já lhe havia outorgado. Introduziu-o no paraíso, efetivamente, no paraíso e impôs-lhe uma lei. Se os homens conservassem a graça, permanecendo na virtude, teriam no paraíso vida isenta de tristeza [...]. Se, ao invés, transgredissem a lei [...], deixariam de viver no paraíso. [...]

A Sagrada Escritura, o assinala previamente, referindo a palavra de Deus: 'Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas a árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela comeres terás de morrer' (Gn 2.16,17). 'Terás de morrer' não significa apenas: Morrereis, mas permanecereis sujeitos à corrupção e à morte"1.

    Nesse ponto deve ficar claro algo: a sentença da corrupção é fundamental para a compreensão daquilo que Atanásio exporá como o "princípio de veracidade divina". E sabendo que o homem não permaneceu na justiça enquanto habitante do paraíso, logo a sentença deveria ser consumada contra o homem.

    Como veremos abaixo, tal princípio de veracidade, pelo qual Deus rigorosamente deseja a execução da sentença contra a transgressão, acaba criando um dilema divino em virtude de outro princípio divino, que é a sua bondade, que é algo constitutivo de sua natureza. Assim, se por um lado Deus não pode mentir e a sentença contra a corrupção deve ser mantida contra o homem, por outro Deus é bom e não deseja que o mesmo homem transgressor, criado à Sua imagem, pereça.

    Atanásio expõe o dilema nestes termos:

"Por conseguinte, não convinha deixar os homens serem arrebatados pela corrupção, por ser isso impróprio e indigno da bondade de Deus.

"Como, porém, devia ser assim [,ou seja: é digno da bondade de Deus salvar o homem e não deixa-lo perecer], era também oportuno, ao invés, manter o princípio de veracidade de Deus na legislação sobre a morte [, já que "quem comeu o fruto da ciência morrerá]. Seria impensável que, para utilidade a nossa conservação, Deus, Pai da verdade, se mostrasse mentiroso.

Que devia, pois acontecer? Que faria Deus? Exigir dos homens arrependimento da transgressão? Poder-se-ia afirmar ser isso digno de Deus. [...]

Mas, o arrependimento não salvaguardaria o que a Deus convinha; pois uma vez mais, ele não continuaria a ser verídico se os homens não ficassem sob o poder da morte. Além disso o arrependimento não põe termo às condições naturais, mas apenas põe termo aos pecados"2.

    Nessa parte Atanásio, expondo um duplo princípio, deixa evidente a dupla polaridade dos interesses divinos que deveriam ser mantidos em função da dignidade de Deus, e mesmo de sua natureza, ou seja: 1) Deus não pode mentir, 2) mas também Deus é bom? O que então fazer nessa situação paradoxal na qual Deus deve conservar a sua integridade, reconciliando dois princípios cujo tensionamento parece nos conduzir a uma espécie de aporia? A resposta a tudo isso está na encarnação de Cristo.

    Mas note antes de tudo que a necessidade da aplicação do princípio de veracidade é algo necessário, neste contexto, somente em razão de uma demanda hipotética, ou seja, Deus poderia não ter exigido necessariamente a morte do transgressor, contudo, já que assim fez, Deus necessita agir segundo o seu o princípio de veracidade e executar a sentença da morte. Compreender isso é fundamental para o que vem a seguir.

    Então Atanásio explica como Deus concilia o "princípio de veracidade" com sua bondade para a realização da expiação dos pecados:

"Assim, de algo que é nosso, tomou um corpo semelhante ao nosso, e como todos estamos sujeitos à corrupção da morte, ele o entregou à morte, em prol de todos, apresentando-o ao Pai. Agiu, desta maneira por filantropia. Desta maneira, uma vez que todos nele morrem, a sentença de corrupção proferida contra os homens será ab-rogada. [...]

Por conseguinte, qual sacrifício e vítima imaculada, oferece à morte o corpo que assumiu, e logo faz desaparecer a morte de todos os corpos idênticos ao seu, através da oferta de vítima correspondente.

É justo que o Verbo de Deus, superior a todos, ao oferecer seu corpo, templo e instrumento, qual resgate por todos, solva a nossa dívida por sua morte. Deste modo, unindo todos os homens pelo corpo semelhante ao deles, o Filho incorruptível de Deus pode justamente a todos os homens revestir da incorruptibilidade. [...]

Com efeito, pelo sacrifício do seu próprio corpo, ele pôs termo à lei que pesava sobre nós, renovou-nos o princípio da vida, deu-nos a esperança da ressurreição"3.

    Essa coletânea de quatro citações indicam muito do que é a teologia da redenção de Atanásio. Em primeiro lugar vale ressaltar que Atanásio se situa entre aqueles que adotam a "teoria física" da expiação, escola que tem em Irineu de Lyon o seu maior representante. Assim, para Atanásio a expiação é também uma questão de "devolução da imortalidade" mediante a habitação do verbo na carne humana, e isso é bem explícito no terceiro parágrafo citado na última coletânea onde ele diz: "Deste modo, unindo todos os homens pelo corpo semelhante ao deles, o Filho incorruptível de Deus pode justamente a todos os homens revestir da incorruptibilidade".

    Mas seria reducionismo da nossa parte resumir a complexidade da teologia de Atanásio a esse nicho específico da teologia da expiação, perdendo assim as nuances do seu pensamento. E ao contrário do que dizem os panfleteiros contra qualquer forma de expiação penal, por demanda lógica é impossível não concluir que o próprio aspecto penal está presente na teoria da expiação de atanasiano - de modo muito explícito.

    Em duas partes específicas nas citações acima Atanásio afirma que Jesus entregou o seu corpo à morte. Ora, tal entrega à morte não é uma entrega a uma certa entidade chamada "morte". A afirmação de Atanásio, antes, é uma fórmula resumida a que o bispo recorre para dizer que Jesus entregou seu corpo imaculado à sentença de Deus proferida contra o homem por ocasião da transgressão. E que fique claro: trata-se da entrega que Jesus faz de seu corpo à execução penal de uma sentença proferida por Deus contra o homem. O proveito disso para o homem é que, de agora em diante, o homem em Cristo não morre mais como um condenado4, já que assim sua dívida para com a sentença é quitada pela morte de Cristo.

    E para que não sobre dúvida que Atanásio tem em vista que a encarnação oferece uma dupla solução para o problema da perdição do homem, ou seja, a solução da "abolição da dívida", e a anulação da corrupção propriamente dita, ele escreve deste modo:

"Restava, contudo, ainda saldar a dívida de todos, pois todos, conforme mencionamos acima, deveriam morrer [em função do princípio de veracidade divina], e esta foi a causa principal de sua vinda à terra. Por isso, após ter revelado sua divindade pelas obras, restava ainda oferecer o sacrifício por todos, entregando por todos à morte o templo de seu corpo [...].

Assim, encontram-se no mesmo ser dois prodígios: a morte de todos se cumpria no corpo do Senhor, e de outro lado a morte e a corrupção eram destruídas pelo Verbo unido a este corpo. Necessário era a morte, forçoso advir para todos. a fim de que a dívida comum fosse saldada"5.

    Veja que termos penais e jurídicos rasgam de alto a baixo as reflexões de Atanásio, e que tal argumentação concorre juntamente com afirmações que se enquadram melhor na teoria física da expiação, pois os efeitos deletérios da corrupção são anulados por Cristo ter assumido a humanidade em si. Uma coisa não exclui a outra. Assim, a encarnação devolve ao corpo humano tanto a imortalidade (pelo princípio da bondade divina), como também, tomando que é nosso (o corpo), Jesus o entrega à morte para desfazer a sentença da corrupção proferida por Deus contra nós, solvendo a nossa dívida (pelo princípio da veracidade) em seu próprio corpo.

    Em Atanásio, por motivos distintos e complementares, tanto a encarnação quanto a morte de Cristo tem efeitos redentivos. E mesmo na parte em que Atanásio afirma que pelo só perdão Deus poderia por termo aos pecados, isso não pode nos levar à consideração de que o perdão puro pode isentar o homem da "sentença" - ora, se isso é impossível, vai a pique a tese do perdão absoluto. Se as palavras ainda possuem sentido a execução de uma sentença só tem razão de ser em função de uma culpa. Não à toa Atanásio chama a nossa corrupção de "dívida", e "dívida contraída em função de uma transgressão", o que nos sujeita à morte como sentença, coisa pela qual Cristo também morre em favor de nós, abolindo essa sentença.

    É bem possível que Atanásio só estivesse sendo contraditório, e suas palavras não possuem consistência lógica - o que não é raro nos pais da igreja -, e ele afirmasse a noção da "sentença" sem querer a sua conclusão, ou visse a redenção apenas pela via da encarnação. Fato é que não retirar de nós a sentença é ainda a não execução de uma absolvição absoluta, pois a absolvição absoluta que deixa correr livre uma sentença ainda não é absolvição. Também, se há perdão absoluto, não há necessidade de alguém morrer para "abolir a dívida" e "solver a sentença". Mas se quisermos ser mais consistentes e fazer justiça ao pensamento de Atanásio, o princípio de veracidade, ao ser mantido, deve requerer uma compensação, e essa é encontrada no corpo de Cristo, o qual é oferecido ao Pai em favor de nós.

    E para reforçarmos ainda mais essa compreensão, podemos recorrer à célebre carta de Atanásio a Marcelino onde o alexandrino escreve sobre a interpretação dos salmos. Essa carta é do nosso interesse porque Atanásio recorre ao termo "ira de Deus" para definir a razão pela qual Cristo padece na cruz. Atanásio é explícito em definir o sofrimento de Cristo como uma penalidade sofrida em favor de nós - e mais do que isso: Atanásio afirma que Jesus sofre a penalidade do pecado que deveria recais sobre nós. É como segue:

"Eles perfuraram minhas mãos e meus pés - o que mais isso pode significar, exceto a cruz? E os Salmos 88 e 69, novamente falando na própria pessoa do Senhor, dizem-nos ainda mais que Ele sofreu essas coisas, não por Seu próprio bem, mas por nós. Tu fizeste a tua ira repousar sobre mim, diz aquele; e o outro acrescenta, paguei por coisas que nunca peguei. Pois Ele não morreu como sendo Ele próprio passível de morte: Ele sofreu por nós e suportou em Si a ira que foi a penalidade de nossa transgressão, assim como Isaías diz: Ele mesmo suportou nossas fraquezas. [Mt 8:17] Assim, no Salmo 138 , dizemos: O Senhor fará um recital para mim ; e no 72 o Espírito diz: Ele salvará os filhos dos pobres e humilhará o caluniador, pois da mão do poderoso libertou o pobre, o carente a quem não havia ninguém para ajudar"6.

    Dado tudo o que expomos, só resta a conclusão: Ora, se Cristo sofre a morte como sentença proferida em função da transgressão, coisa demandada pelo "princípio de veracidade", sua morte é penal; e se, como o próprio Atanásio diz no terceiro paragrafo da última coletânea acima, ele faz a morte desaparecer de todos os corpos semelhantes aos seus pelo oferecimento da oferta de uma "vítima correspondente", sua morte é substitutiva.

    Antes de alguém imputar a mim coisas que eu não disse, não estou afirmando que Atanásio é um "calvinista" ou um "luterano". Essa questão nem em jogo está. Antes, o que desejo com o texto é expor que a noção de que Cristo sofreu uma pena que pesa sobre todos nós, e que a execução dessa pena (que era nossa) redunda em efeitos positivos e redentivos para nós não é uma invenção dos reformadores. Para Atanásio "todos morrem em Cristo", pois Cristo "morre a morte de todos", e que por isso "não morremos mais como condenados", já que com isso ele "saldou a nossa dívida".

    A confecção de uma quimera que visa por na pena e na cabeça do alexandrino a ideia de que para ele a morte de Cristo é penal, mas não substitutiva, e também é substitutiva, mas não penal, não passa de um festim tosquíssimo confeccionado para alimentar a fantasia de descoberta típica dos incautos. Enquanto esses acham que estão descobrindo a roda, outros já os atropelaram em desabalada corrida.

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[1] ATANÁSIO. A Encarnação do Verbo. I.3.4,5.

[2] Idem. I.7.1-3.

[3] Idem. II.8.4, 9.1,2 e 10.5.

[4] Ver em II.10.5b.

[5] Idem. IV.20.2 e 5

[6] ATANÁSIO. Carta a Marcelino. par. 7. Disponível em: UMA CARTA DE ATHANASIUS, SOBRE A INTERPRETAÇÃO DOS SALMOS | Teologia Reformada na Semper Reformanda

sábado, 2 de abril de 2022

Agostinho, o Aniconismo e a Metodologia Espiritual

Com toda segurança é possível afirmar características seriamente aniconistas na teologia de Agostinho. E apesar de todo contorcionismo mental para provar o contrário, é possível encontrar muitos testemunhos nos escritos dele que corroboram com isso. Contudo, mais do que uma simples "negação das imagens", ao que tudo indica o aniconismo agostiniano é uma metodologia espiritual, uma metodologia que visa distinguir radicalmente a realidade última (Deus) das realidades penúltimas (o mundo, o corpo e o espírito), como se segue:

"Se vocês levarem em consideração o que é simples produto do vosso espírito sujeito a erro, vocês falam com as suas imagens [mentais], e não com o Verbo de Deus, e as imagens [mentais] de vocês os enganam. [...] Jamais vocês atingirão Deus se não ultrapassarem o campo do espírito. [...] Os que saboreiam a carne, quão longe estão de saborear o que é o próprio Deus. [...] Nem poderiam saborear o que é o próprio Deus, ainda que saboreassem o que é próprio do espírito. [...] O que me criou está acima de mim. Ninguém o atinge senão se ultrapassar a si mesmo.
A vossa alma é uma coisa admirável. Mas por que digo é? Subi também acima da alma de vocês. Ela também está sujeita a mudanças, embora seja superior ao corpo. Ora conhece, ora não conhece. Ora se esquece, ora se recorda. Ora quer, ora não quer. Ora peca, ora é justa. Subi, portanto, acima de tudo o que sofre mudança; e não só acima de tudo o que se vê, mas ainda acima do que pode mudar-se. Vocês ultrapassaram para além da carne que se vê, além do céu, do sol, da lua, e das estrelas que se veem. Passem além do que está sujeito a mudanças. Ultrapassadas todas essas coisas, vocês já vieram à alma de vocês, mas também aí encontraram mutabilidade.
Deus será mutável? Passem para além da alma de vocês. Derramem a alma de vocês mesmos para se colocarem em contato com Deus, de quem é dito a vocês: "Onde está o teu Deus?"1
E aproveitando essa citação, por esse ângulo é possível visualizar, até de forma condescendente, a razão da dureza e frieza do catecismo maior de Westminster ao proibir até mesmo a confecção de imagens mentais de qualquer das três Pessoas da Santíssima Trindade, como se segue: "Os pecados proibidos no segundo mandamento são: estabelecer, aconselhar, mandar, usar, e aprovar, de qualquer modo, qualquer culto religioso não instituído por Deus; tolerar uma falsa religião, fazer qualquer imagem de Deus, de todas ou de qualquer das três Pessoas, quer interiormente no espírito, quer exteriormente, em qualquer forma de imagem ou semelhança de alguma criatura"2.
Note que o catecismo maior está se referindo absolutamente ao culto de tais imagens, pois, por exemplo, não poderíamos considerar pecado a simples representação de Cristo gerada pela experiência dos apóstolos com o Cristo histórico. Contudo, é óbvio que mesmo no que diz respeito à "imagem mental", não devemos confundir uma imagem gerada pelo nosso espírito com o próprio Deus, estando Deus, e seu Ser, infinitamente acima do nosso espírito e das representações que, como diz Agostinho, devem ser "deixadas de lado", e isso para que a pretexto de piedade não adoremos o produto da nossa mente como se Deus fosse, adorando a nossa fantasia no lugar de Deus.
Assim, a metodologia espiritual que visa "se elevar acima da mente" é aquela que entrega todas as representações mentais ao fogo da glória divina, para que uma vez consumidas deixemos tudo o que é mera representação e passemos a visualizar unicamente aquilo que é pura realidade e atualidade.
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[1] AGOSTINHO. Tratados Sobre o Evangelho de João. Tratado XX.11,12.
[2] CATECISMO MAIOR DE WESTMINSTER. Pergunta 109.