segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Mudança de Discurso?

    O gyordanismo, se podemos chamar assim o fenômeno teológico recente, agora cobra os resultados de uma profecia auto-realizável, ao dizer que negamos na substituição penal a questão da "pena exata" em seu sentido fenomênico meramente exterior, e que isso se dá em razão de uma instabilidade constitutiva da teologia da substituição penal que faz seus proponentes fatalmente "retornarem a Anselmo".

    Agora duas coisas importantes a serem pontuadas sobre a acusação:

    1) Antes de mais nada a profecia auto-realizável é aquela acusação que você faz, com espanto e perplexidade, de que uma coisa será aquilo que ela é. É como se alguém dissesse: "aposto que se plantar bananeira, você ficará com as duas mãos no chão". Em quê essa ilustração se encaixa na questão aqui discutida é como segue:

    O rev. Gyordano diz que a teologia da substituição penal não pode ser "substitutiva" em sentido estrito porque "nem todos" (como se os "nem todos" constituíssem casos raríssimos) os proponentes dessa teologia afirmam que duas penas aos perdidos se encontraram em Cristo: a separação eterna do Pai e a morte espiritual (as duas são uma só, no fim). Nesse sentido não há "sofrimento no lugar", "substituição" etc. A questão é que ele tem uma noção de substituição que já funciona como uma carta marcada no discurso, e com notas que jamais foram defendidas pelos proponentes da teologia da substituição penal. Então se alguém se defende dizendo que não é assim, logo vem a cartada: "então não é substituição". Truco!!! Ele parece decidir o que é e o que não é a substituição penal.

    Prestem bem atenção na questão fulcral que determina todo o entendimento sobre a substituição penal a partir das seguintes notas: 1) Cristo é homem impecável; 2) Logo seu ser não é fracionado, como é o ser dos condenados; 3) Cristo recebe todo o peso dos pecados da humanidade em si, em seu ser imaculado, e nisso ele recebe a ira divina como se os pecados dos homens fossem confessados sobre ele, satisfazendo e fazendo a reparação diante da justiça de Deus; 4) A pena devida é qualitativa no sentido da intensidade do esmagamento com o qual ele foi esmagado na Cruz; 5) Jesus recebe não todas as espécies de penas (já que elas são contraditórias entre si - e isso foi um argumento conhecido na idade média), mas algo proporcional que axiologicamente (valorativamente) está radicado na exigência da justiça. Aqui não é impossível entender que Jesus suportou toda a maldição da lei quando, na morte cruenta na cruz, se fez realmente maldição; 6) Há substituição evidentemente porque os pecados não são meros atos exteriores - nem no direito se julga um crime como mero ato exterior fora do seu significado próprio recebido do contexto do crime (nem todo assassinato é igual segundo a sua constituição valorativa, embora os atos exteriores dos assassinatos às vezes sejam idênticos) -, mas infrações das quais a justiça divina demanda reparações segundo a ordem estabelecida, e aqui não estou me detendo no fato de que Jesus cumpriu ativamente (e não apenas passivamente na cruz) a lei no nosso lugar, o que é constitutivo da doutrina da expiação e justificação; 7) Jesus não pode sofrer a pena como o demônio e o condenado, pois se o condenado ou o demônio sofressem a pena na mesma intensidade, eles sofreriam destruição eterna - a qualidade do ser impecável de Jesus demarca toda essa questão.

    2) Por várias razões aqueles que defendem a teologia da substituição penal (como ela é, e como foi concebida) jamais retornaram a Anselmo. Eis aqui algumas delas: 1) Anselmo não entende que na satisfação Deus é o agente da pena, como afirma a teologia reformada com base na Escritura (Is 53:5,10); 2) Em certo sentido Anselmo liga a cristologia à teologia da expiação na questão do sofrimento de valor infinito que só o Deus encarnado pode ter, mas não se segue daí que isso se dá da mesma forma que a teologia reformada concebe a questão, principalmente na especificação da aplicação dos benefícios angariados pela morte de Cristo na cruz; 3) Anselmo não explica a necessidade de uma união mística na aplicação dos benefícios da redenção - e Tomás de Aquino até crítica Anselmo porque sua teologia não explica qual a relação orgânica entre a Cabeça e o Corpo nessa staurologia (o rev. Gyordano erra o alvo quando direciona essa crítica à teologia da substituição penal e não à teologia de Anselmo); 4) A obra intercessória de Cristo é o meio da aplicação dos benefícios angariados pela sua obra expiatória, e isso não existe na teologia da satisfação de Anselmo, parecendo mais uma transmissão de méritos para aqueles que são salvos que não é explicada. A teologia reformada entende que a intercessão de Cristo pelo Corpo é uma continuidade do ofício sacerdotal de Cristo, embora tal obra não seja de caráter satisfatório; 5) Anselmo não considera a obediência ativa de Cristo como parte especial da teologia da expiação, pois para Anselmo se Cristo cumpriu a lei, cumpriu apenas em benefício de si mesmo - já que isso era algo devido a Deus em função da sua condição humana. A obra superrogatória na qual Cristo nos conquista a salvação é algo realizado exclusivamente na Cruz, o que contrasta radicalmente com a teologia reformada, já que esta considera a obediência ativa de Cristo como parte constituinte da obra da redenção, e nisso Cristo também cumpre a lei vicariamente (no nosso lugar).

    Notem que nesses cinco pontos a possibilidade de um "retorno a Anselmo" é algo impossível para aqueles que fazem a horrível manobra de conduzir teologia da substituição penal de volta para aquilo que ela incrivelmente sempre foi.

    Mas aqui a baixo vai um texto longo de Herman Bavink para ilustrar a questão da "pena qualitativa" - embora em alguns pontos o endosso não seja per se absoluto para uma afirmação exata da teologia da substituição penal - que tanto confunde a cabeça de algumas pessoas acostumadas - até inconscientemente - à noção anselmiana de que a expiação de Cristo está fundamentada em uma noção meritória quantitativa. Segue o texto:

    "Segundo, o caráter substitutivo da obediência de Cristo automaticamente envolve também equivalência, porque corresponde completamente à exigência da lei. Essa equivalência, porém, foi entendida de forma diferente pela Reforma e por Roma. Duns Scotus cria que um ser humano santo ou um anjo também teria feito satisfação por nossos pecados se Deus tivesse aprovado essa substituição, pois “toda oferta criada tem tanto valor quanto Deus quer que tenha, e não mais”. Semelhantemente, os remonstrantes posteriormente ensinaram que não a justiça de Deus, mas somente a integridade (aequitas) exigiu uma satisfação e que “o mérito que Cristo pagou foi pago de acordo com a estimativa de Deus Pai”.

    Francamente em oposição a essa interpretação, Aquino disse que a paixão de Cristo foi não somente uma satisfação suficiente, mas “uma satisfação superabundante pelos pecados da raça humana”. Foi então levada em consideração a questão de se uma gota do sangue de Cristo não teria sido suficiente para fazer a expiação. Toda essa forma de observar a questão, tanto em Aquino quanto em Duns Scotus, está baseada em uma estimativa quantitativa externa do sofrimento de Cristo.

    Em princípio, a Reforma rompeu com esse sistema de avaliação. Isso fica evidente pelo fato de que ela rejeitou tanto a “aceitação” de Scotus quanto a “superabundância” de Aquino; que, além da obediência passiva, ela também incluiu a obediência ativa na obra de Cristo; que, embora considerasse o sacrifício de Cristo equivalente, ela não o considerou idêntico àquilo que seríamos obrigados a sofrer e a fazer; que ela o considerou completamente suficiente, de forma que nenhum acréscimo, por meio de nossa fé e de nossas boas obras, era necessário, seja segundo os católicos ou segundo os remonstrantes. Os reformados diziam que a obra de Cristo por si mesma era completamente suficiente para a expiação dos pecados do mundo todo, de forma que, se ele quisesse salvar um número menor, ela não poderia ser menor e, se quisesse salvar um número maior, não teria de ser aumentada.

    Os pecados, de fato, não são débitos financeiros e a satisfação não é um problema de aritmética. A transferência de nossos pecados para Cristo não foi um processo tão mecânico que os pecados de todos os eleitos tiveram de ser cuidadosamente contados e depois colocados sobre Cristo e expiados separadamente por ele. Cristo tampouco passou por todas as fases da vida humana e fez expiação separada pelos pecados de cada fase ou idade, como Irineu e outros afirmaram. Ele também não sofreu precisamente as mesmas coisas (idem) que nós, pois consciência de culpa e assim por diante não podia ocorrer nele e ele também não conheceu a morte espiritual como inclinação para o mal e não sofreu a morte eterna em forma e duração, mas apenas intensa e quantitativamente como abandono de Deus.

    Há também alguma verdade na “aceitação”, pois a estrita justiça de Deus exigia que todo ser humano devia fazer pessoalmente satisfação por si mesmo e foi sua graça que deu Cristo como o mediador de uma aliança e imputou sua justiça aos membros dessa aliança. Uma estimativa quantitativa, portanto, não se encaixa no caso da satisfação vicária. Na doutrina da satisfação, estamos tratando de fatores diferentes daqueles que podem ser medidos e pesados. O pecado é um princípio que controla e corrompe toda a criação, um poder e um reino que se expande e se organiza em numerosos pecados reais. A ira de Deus é uma fúria dirigida contra o pecado de toda a raça humana. Sua justiça é a perfeição pela qual não pode tolerar ser negado ou desonrado como Deus por suas criaturas. A satisfação vicária, portanto, significa que, como fiador e cabeça, Cristo entrou na relação com Deus - sua ira, sua justiça, sua lei - na qual a raça humana estava. Para essa humanidade, que foi dada a ele para reconciliação, ele foi feito pecado, tomou-se uma maldição e tomou sobre si sua culpa e punição. Quando os socinianos dizem que, de qualquer forma, Cristo podia fazer satisfação somente por uma pessoa, não por muitas, porque só suportou a punição do pecado uma vez, esse raciocínio é baseado na mesma estimativa quantitativa que a “aceitação” de Duns Scotus e a “superabundância” de Aquino, pois embora o pecado que entrou no mundo por meio de Adão se manifeste em uma série incalculável de pensamentos, palavras e atos pecaminosos, e embora a ira de Deus seja sentida individualmente por todo membro culpado da raça humana, foi uma lei indivisível que foi violada, a ira indivisível de Deus que foi acendida contra o pecado de toda a raça humana, a justiça indivisível de Deus que foi ofendida pelo pecado, o Deus eterno e imutável que foi afrontado pelo pecado."1

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1] BAVINK, Herman - Dogmática Reformada. vol. 3, ed. Cultura Cristã p. 406,407

Algumas Distinções entre a Teoria da Satisfação de Anselmo de Cantuária e a Teologia da Expiação Penal Substitutiva

    As distinções entre a Teologia de Anselmo de Cantuária e a Teologia dos reformadores no campo da expiação são as seguintes:

    1) A Teologia da Satisfação não entende que Jesus sofreu uma "pena devida" que trouxesse satisfação aos requisitos da Lei; Anselmo fala sobre a honra ofendida de Deus, e sobre a satisfação devida prestada pela morte de Cristo na cruz, morte essa que possuí valor infinito. Nisso ele estava embasado em uma linguagem que remontava ao direito privado germânico. A distância entre uma coisa e outra é imensa, se pararmos para pensar bem.

    2) A Teologia da Satisfação não tem espaço algum para a consideração da obediência ativa de Cristo. A Teologia Reformada e Luterana consideram em uníssono que a expiação advém também da obediência ativa de Cristo, que embora seja analiticamente distinguida da obediência passiva (morte na Cruz), não é ontologicamente separável, pois ambas as obediências são predicadas da história da pessoa una de Cristo, estando separadas apenas por questões teóricas.

    3) Na Teoria da Satisfação anselmiana não há a explicação do papel da ressurreição, já que o ato da redenção é explicado exclusivamente como a realização da cruz; contudo a ressurreição está em continuidade com a obra da expiação, já que a ressurreição é a confirmação gloriosa da validade do ato expiatório do Cristo imaculado, assim como é a possibilidade da continuidade da própria obra expiatório na obra da intercessão - Já que Jesus foi ressuscitado para a nossa justificação.

    4) A Teoria da Satisfação de Anselmo indica que os méritos superabundantes de Cristo são transferidos ao pecador em perdão de pecados e na abertura para a realidade da vida eterna. Trata-se da aplicação da obra superrogatória de Cristo. Mas não se explica o como dessa aplicação. Na teologia dos reformadores (reformada e também luterana, guardada as suas distinções) a explicação se dá na exposição do ofício sacerdotal de Cristo que continua com a obra intercessória de Cristo. Os benefícios da justificação, do perdão dos pecados, da renovação e da perseverança são aplicados pela oração de Cristo pelo bem do seu corpo, e é justamente para ser o cabeça da Igreja que ele ressuscita assim como continua a interceder por nós - algo que Cristo, como morto, não faria, pois não poderia ser o cabeça físico do seu Corpo.

Será que Estou Mentindo?

    "Afirmar Nicéia e Calcedônia é negar a possibilidade de separação real entre o Pai e o Filho. É verdade que nem todos os que aderem à teoria da SP chegam a afirmar essa separação, mas atenção: o rompimento de comunhão entre Deus e o homem (afastamento, alienação) é a consequência mais importante do pecado, e todas as demais são decorrentes, sintomas dela, às vezes metáforas dela. Se Cristo não sofreu essa consequência, ele não sofreu, como substitutivo, as consequências do pecado". (MONTENEGRO, Gyordano. Punido pelo Pai? / editado por Jadson Targino. 1 ed. João Pessoa: Publicações Digitais Independentes. 2020, Jesus Sofreu a Ira de Deus? [Parte 6]).

    Não quero me estender sobre esse assunto, mas tenho que me declarar. Quando afirmei que o rev. disse que a substituição penal implica em morte espiritual - a separação do Pai e do Filho na cruz -, estava me referindo a afirmações como essas. A aplicação da lógica àquilo que vai escrito acima é simples. Basta retirar os "nãos" da seguinte frase: "Se Cristo 'não' sofreu essa consequência, ele 'não' sofreu, como substitutivo, as consequências do pecado", que ficaria assim: "Se Cristo sofreu essa consequência [da separação entre o Pai e o Filho - o que infringe Calcedônia e Nicéia], ele sofreu, como substitutivo, as consequências do pecado". Note que no texto ele está se referindo à substituição penal, e em específico ao artigo sobre a substituição, ao qual damos a nossa anuência e que ele diz necessariamente desembocar em separação entre o Pai e o Filho. Isso não é invenção da minha cabeça, é o que está escrito a cima.

    Ou seja: se nós afirmamos que Cristo morreu como substitutivo, sofrendo a pena a nós devida - no sentido do peso da pena -, sofrendo em seu corpo as consequência do pecado - as defecções -, então, segundo o rev. Gyordano, é necessário afirmar a separação real de Deus Pai e o Deus Filho. A questão é que essa consequência radical não foi afirmada pela teologia reformada, já que o Filho assume uma pena qualitativa que não o faz desmanchar em sua justiça, em sua fé, esperança e amor ao Pai. Não basta afirmar que estou mentindo sobre o rev. ter afirmado que a SP implica em morte espiritual, basta afirmar as consequências lógicas desta afirmação feita em objeção à teologia sustentada pela teologia reformada e confeccionada por pessoas como Calvino, Zanchius, Turrentini etc., para entendermos a questão.

Algumas Considerações Sobre os Erros do Reverendo Gyordano Montenegro Basilino Sobre a Teologia da Substituição Penal

    Infelizmente o rev. Gyordano M. Basilino acha que a substituição penal é alquimia. Ele realmente acredita que as ideias de "substituição" e de "pena" estão amparadas em uma noção de equivalência de nível pueril, tipo: se a humanidade foi condenada ao inferno é necessário em uma teologia da "substituição penal" que o mesmo indivíduo que assume a pena a sofra tal como o condenado a sofre na igualdade da PENA, sendo o substituto lançado no inferno literalmente e sofrendo como o condenado literalmente. Ele está convencido mesmo disso sem levar em consideração várias explicação dos próprios reformadores a respeito.

    Infelizmente ele já disse de forma até muito imprópria que a SP consequentemente leva ao resultado se que Cristo sofreu a pena do inferno de fogo, ou que os reformadores ensinavam que Jesus sofreu a separação do Pai etc., ou que a substituição penal não explica a função do sangue de Cristo - se ele tivesse se dado o trabalho de ler Bavink nesse sentido não diria que alguém negligenciou o papel purificador do sangue. Essas coisas causam admiração em quem não leu nada a respeito e que toma por verdade informações aleatórias por ausência de outras informações pelas quais seria possível realizar uma comparação digna do assunto.

    Quanto à pena que Cristo assume, geralmente se diz que ela se trata de uma pena qualitativa e de peso infinito, a qual é polarizada pela santidade e pela graça infinitas de Cristo. Ela não se encaixa em uma noção quantitativa de pena - como Bavink explica -, tal como poderia se depreender da uma leitura literalista da Lei do Talião, onde pelo agravo de um olho, o olho do agravador deveria ser igualmente ferido. Não estamos falando dessa equivalência (e seria bom ler o que os reformadores sempre falaram sobre a questão antes de se meter a falar da própria questão, questão que se desenha sobre a forma de um espantalho de mente de alguns, inclusive na do rev. Gyordano), pois os reformadores nunca disseram essa enormidade, já que Jesus não sofre todas as espécies de penas, como se concluiria de uma leitura literalista (e não axiológica) da Lei do Talião, visto que existem penas contraditórias (ninguém pode sofrer a pena por afogamento e por fogo ao mesmo tempo). O que sempre foi afirmado é que Jesus sofreu uma pena qualitativa que uma leitura rasa da Substituição Penal não pode captar. E nesse sentido há certa razão em dizer que na ordem da justiça o Pai aceita esse tipo de pena como mais do que satisfatória para saldar a nossa dívida com a justiça divina - como afirma Bavink.

    Há de se levar em conta a inocência de Cristo, o que corresponde à noção do seu ser intacto, o que consequentemente implica em que ao sofrer a pena Jesus não a sofre como um condenado, ou seja: Jesus não sofre a pena como sofrerem os condenados e o diabo, já que o ser desses é fragmentado. Jesus não é fragmentado e por isso não perde a fé e a esperança, o que para ele é impossível, e nem pelo peso do evento é destroçado a ponto de perder a ordenação da sua alma, e nem perde a justiça e o amor a Deus a quem sempre amou, assim como não comete o pecado de desespero de salvação. Não há morte espiritual em Cristo - que é algo que o rev. Gyordano quer empurrar goela a baixo a todo custo como uma consequência inevitável da substituição penal, o que é um erro enorme, dado tudo o que já foi dito.

O Pai não Julga?

    O fato de Jesus ter dito "Assim, o Pai a ninguém julga, mas confiou todo o julgamento ao Filho" (Jo 5:22) não pode servir de versículo prova contra a Substituição Penal, pois esse versículo é antecedido por este: "o Filho nada pode fazer de si mesmo, senão somente aquilo que vir fazer o Pai" (Jo 5:19).

    A ideia aqui não é que "O Pai não julga absolutamente", pois se isso o Pai não fizesse, logicamente o Filho jamais julgaria, já que faz apenas aquilo que viu o Pai fazer. A questão em foco está na autoridade messiânica de Jesus de Nazaré, que como o Messias de Israel será aquele que julgará e aquele que já julga os povos.

Perceba que com base na teologia de João, que é uma teologia acentuadamente escatológica, a manifestação de Jesus já é o julgamento (krísin) final, no sentido de que aquele que o aceita é salvo, e aquele que o nega já está condenado, pois permanece sob a ira de Deus (Jo 3:36).

    É isso que quer dizer que "o Pai não julga", pois o ponto de juízo, para os homens, é Jesus Cristo, Jesus que é o Filho que aprendeu a realizar todas as coisas com o Pai, e que nada pode fazer sozinho ou por si mesmo.

P.S: SOLA SCRIPTURA

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Algumas Considerações sobre a Teoria do Resgate em Gregório de Nissa

    É interessante como as várias tentativas de explicar a expiação buscam equilibrar os atributos divinos. Por mais estranho que possa parecer, na teoria do resgate explanada por Gregório de Nissa (329-390) na obra A Grande Catequese, é afirmado que Deus manteve o equilíbrio de três atributos na execução da expiação. Tai atributos são: justiça, amor e sabedoria.

    É como segue:

    1) Na sua justiça: quando Deus não usou de poder tirânico contra Satanás, mas reconheceu seus direitos sobre o homem, e que portanto não poderia liberar o homem sem pagar um justo preço pela humanidade que voluntariamente se submeteu às trevas - o domínio do demônio - quando pecou.

    2) No seu amor: quando Deus não se contentou em ver a humanidade em seu estado deplorável, entregue ao poder do demônio, decidindo resgatá-la do poder do inimigo, realizando a economia da encarnação, livrando a humanidade ao dar a si mesmo (o Filho) como preço de resgate por ela.

    3) Na sua sabedoria: quando Deus, equilibrando a justiça e o amor, conduziu sabiamente a economia, e ocultando a sua divindade sob véu da carne, como um anzol é ocultado na isca, e assim fazendo captura o demônio na sua própria ganância (o enganador foi enganado justamente), já que não estando ciente do plano divino, o demônio mata Cristo na cruz, e quando ele pensa ter ganho acaba se destruindo, pois tem na morte de Cristo mais do que o preço que foi requerido. Então o preço é pago e, ao mesmo tempo, Satanás é destruído por ter se levantado contra o Filho imaculado de Deus.

    Os problemas evidentes dessa teoria do resgate são os seguintes:

    1) Ainda que o pecado seja uma criação diabólica, nada consta que ao submeter o homem pelo engano, seguiu-se daí um "direito do demônio", pois não há direito real que possa advir da usurpação. Não é estranho que a teoria do domínio siga essas premissa. E sim, ainda que os principados e potestades tenham subjugado a criação, não segue-se daí que haja nem virtual e nem atualmente um direito do demônio após o advento do pecado no mundo, que é o que é em virtude da defecção do pecado e da impossibilidade do homem de se voltar para o bem sobrenatural.

    2) A teoria do resgate, ao considerar a expiação, faz com que o problema do pecado seja um problema do homem com o demônio e não com Deus, ou melhor, um problema antropológico e metafísico que assinala a devida separação entre o homem e Deus.

    3) Ainda que reconheçamos que o pecado deixa o homem cativo sob o poder das trevas (o que é fato inescapável), o cativeiro é um cativeiro da vontade, pois o homem no pecado não pode não querer o mal, o que o torna sujeito ao diabo. Essa teologia nada tem a explicar sobre a defecção antropológica causada pelo pecado.

    4) No Oriente, onde essa teoria vingou majoritariamente, não é estranho que não tenha vingado também a teologia sobre o pecado original, pois essa teologia não se reporta em primeiro plano ao homem, senão a um conflito divino contra as potências demoníacas que adquiriram direitos sobre a criação. E ainda que essa teoria tenha uma verdade metafísica evidente, o drama da redenção se desenrola por sobre as nossas cabeças.

    5) Não consta que no Antigo Testamento os sacrifícios sejam transações entre Deus e os demônios. Aliás, essa é a característica de vários rituais pagãos em que os sacrifícios eram feitos também aos demônios para que eles não importunassem os viajantes, construtores, recém nascidos etc. Esse costume sobrevive em determinados setores das culturas orientais, xamânicas, indígenas e pagãs no geral.

    6) Nada há no Novo Testamento (e nem na Escritura como um todo) indicando que houvesse alguma transação dessa espécie, nem implícita e nem explicitamente.

    7) Mas para sermos justos, a verdade metafísica da teoria do resgate é que basicamente o mal trata-se de um acidente parasitário que não pode subsistir fora do bem, ou do ente. E sendo que o mal tende para o nada (não-ser), ao lograr o seu êxito o mal se destrói. Já o bem, por ser o que é, em sua essencialidade não pode ser destruído. Mas obviamente essa verdade pode subsistir em outras teorias da expiação, assim como subsiste não só na metafísica cristã como na sua ética como um todo.

    Eu poderia citar mais problemas, mas basicamente estes são os que por hora levanto nessas considerações.

Quem é Arrogantemente Louco para se Dizer Justo Diante de Deus?1

    Existem na terra homens justos, grandes, fortes, prudentes, continentes, pacientes, misericordiosos, homens que suportam, com paciência, todos os males por causa da justiça; mas, se é verdade, porque é mesmo verdade: "Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos" (I Jo 1:8), e: "nenhum ser vivo se pretende justo diante de ti" (Sl 142:2), então, eles não são sem pecado e nenhum deles seria tão arrogantemente louco para pensar que não precisaria fazer a oração do Senhor por quaisquer pecados seus.

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1] Agostinho - O Castigo e o Perdão dos Pecados. Livro 2.18

Justiça Infusa não é Justificação

    Se no catecismo da Igreja Católica se afirma que a justificação é a conformação interior do homem com a justiça divina, seguir-se-ia daí que a justificação seria a infusão completa da justiça, no sentido da conformação do que somos ao ser de Cristo. Aqui a justificação seria o mesmo que santificação. Ao contrário dessa ideia, na Escritura a I Carta de João, lemos explicitamente: "se dissermos que não temos pecado, enganamos a nós mesmos, e a verdade não está em nós" (I Jo 1:8) - lembrando que João se dirige a uma Igreja que não duvidamos estar possuída pela graça.

    Antes disso, a teologia da reforma diz que a pena do pecado, a fonte da impolução, continua em nós, e que somos absolvidos dos nossos pecados, e por estarmos unidos a Cristo e recebermos a filiação, e a justiça de Cristo passa a ser a nossa justiça em função dessa unidade - mesmo que recebamos castigos corretivos de Deus por causa da impolução. É por isso que justificação implica em que os nossos pecados não nos são imputados, e que mesmo após a absolvição fica a mancha da nossa natureza e a lei do pecado habita em nós, sendo essa mancha sarada progressivamente no processo de santificação, que é a conformação do nosso ser com o ser de Cristo operada pelo Espírito Santo - sem aumento algum da qualidade da filiação, que é a filiação que recebemos por sermos aceitos por Deus Pai em Cristo Jesus o Filho. É justamente por isso que ao sermos justificados pela fé entramos em uma aliança com Cristo.

    A teologia católica romana não abre espaço para a aceitação do homem na justificação "apesar de", apesar das nossas manchas, pecados etc., pois o resultado da sua compreensão de justificação é que é necessário você ser intrínseca mente justo para ser aceito por Deus (e nem a graça atual oferecida universalmente ajuda nisso, já que ela não é justificação no sentido Paulino do termo, que é justificação independentemente de obras), o que é uma ideia que não se encontra na Escritura, a começar pela forma da aceitação de Deus e da aliança de Deus com os patriarcas.

As Obras e a Justificação

    É interessante que João Crisóstomo ensina que "obras da lei" é qualquer obra possível, e que por obras homem nenhum pode ser justificado diante de Deus. Justificação é por fé e essa é o meio receptor da graça que Cristo conquistou por todos nós em sua vida e no alto do madeiro, onde ele destrói a nossa maldição, tornando possível para nós a posse do Espírito prometido que ele nos derrama após a ressurreição.

    É a interpretação mais correta da ideia de "obras da lei", já que é estranho Paulo em Rm 8 afirmar que a enfermidade da lei é a "carne humana", se isso não implicasse que o homem não pode, nem depois do batismo ou da fé, deixar de lado a concupiscência pela qual ele cobiça, assim como pensa mal sobre tudo quanto é coisa.

    Aliás, essa é a mesma interpretação de Santo Agostinho que afirma que homem algum pode ser perfeito nesta vida, entendendo que a perfeição humana ainda é imperfeição diante de Deus, e que apesar de nossa culpa ser extinta na justificação, ainda permanece a pena do pecado que ele nomeia "fonte de pecados" e concupiscência.

O desespero da monstruosidade da incerteza quanto à consolação da justificação (como diriam dogmaticos luteranos como um Johan Theodore Muller) é o único caminho de quem colocou as obras como requisito da justificação. Ou a justificação é independente de obras, ou alguém jamais alcançará a justificação e o prêmio da justificação, que é a visão eterna de Deus.

    Realizar obras aceitáveis diante de Deus requer justificação - pois a fé opera pelo amor -, o que é diferente de dizer que a obra é necessária e requisito para a justificação. E aqui vemos como alguns se põe metas impossíveis de alcançar sem ter parado para pensar direito sobre o ponto central da questão.

The Vatican's Failure

    Tem um documento no site do Vaticano, elaborado pela Comissão Teológica Internacional em 1995 a pedido do Papa João Paulo II, que ao discorrer sobre a teologia da expiação dos reformadores diz que Calvino ensinou a enormidade de Jesus foi lançado no inferno e sofreu a dor dos condenados para pagar pelos nossos pecados. É por esse tipo de apresentação da teologia da expiação desenvolvida na teologia reformada que é possível explicar muitas oposições a ela, e nisso me vem um certo embasbacamento, pois a partir daí é possível saber o quão longe, às vezes, teólogos de alto calibri estão de uma informação adequada do que seria a teologia da expiação segundo compreendida pela teologia reformada - o que não é espantoso, já que até mesmo reformados desconhecem aquilo que professam. Se os de dentro não se acham na obrigação de saber o que professam, quem vai requerer que os de fora tenham essa obrigação?

A Piada, o Moralismo e o Trickster

    A divisa entre moralismo e moral é análoga à distinção que se faz entre justiça do justiçamento cruel. Moralismo é, invariavelmente, a afetação que, ainda que fundado em bases justas, é, no fim, guiada por reducionismos irracionais, cuja a afetação contra a mulher adúltera no Evangelho de João é um dos maiores exemplo - uma afetação, podemos dizer, sem consciência de si e que descarrila para a esfera do grotesco.

    Hoje mais cedo disse que a afetação moralista contra o pai trans, para o cristão, não era uma resposta bem vinda. Isso não significa que devamos suprimir a nossa própria humanidade diante da coisa, nos privando do sentimento de ofensa que a piada do pai trans suscita. A questão é que, mesmo diante da ofensa proposital - sim, ninguém ignora que a piada da Natura tem a finalidade de causar ofensa proposital - o cristão pode cair em outro truque, que é o truque do toureiro, que ao bandeirolar seu pano vermelho em frente ao boi o toureiro visa justamente encravar a lança no gado ensandecido e desorientado pela sua fúria.

    A reflexão moral, ao contrário, não substitui o afeto moral pela inteligência, e nem mesmo a inteligência pelo afeto moral, mas une ambas para fornecer uma resposta adequada à ofensa, por vezes embalada por uma ironia contra a qual o trickster não é capaz. E como disse o Vitor Barreto, a piada do pai trans é característica do mito do trickster, que na mitologia é apresentado, por exemplo, na figura do deus nórdico Loki, que, como o transsexual, é o deus do disfarce e da trapassa, e que, por meio da própria trapassa, é capaz de abalar até mesmo os fundamentos do mundo.

    A questão é que a derrota do trickster está na sua inteligibilidade, pois uma vez compreendido o seu modo de agir o trickster é destruído de vez. Não basta apenas afetação moral, já que é desorientando que o trickster ganha poder - basta ver os trickster modernos como o Pernalonga ou o Pica-Pau, os quais ganham poder sobre seus inimigos na medida em que os enfurece. E é justamente nessa compreensão do chiste, na inteligibilidade do núcleo contraditório da piada trapasseira, no agir orientado, no afeto ordenado e na paciência que poderemos vencer, assim como ganhar a nossa alma.

    Sim, a afetação da ofensa não resolve por si, e é por isso que o moralismo é também o túmulo da moral.

O Pai Trans e a Resposta da Igreja

    A resposta moralista ao pai trans é o fosso da argumentação. O que a Igreja precisa mesmo, como disse o pr. Guilherme de Carvalho, é ressaltar a multidimensionalidade de uma antropologia que realmente defina o papel de um pai no mundo e a inescapabilidade da figura masculina na constituição da própria humanidade.

    Para isso a resposta exasperada é a última coisa a agregar na questão - e a Igreja cristã e seus líderes tem falhado na produção de uma definição sistemática dessa antropologia para um enfrentamento fundado na razão, ou, no mínimo, falhado em atualizar algo que já foi tão bem pensado nesse sentido ao longo da história da Igreja.

    Se a Igreja é a coluna da verdade por ser a depositária da revelação, cabe a ela destrinchar essa revelação para o bem do homem e atualizar a informação dessa revelação em meio à turbulência dos tempos - estabelecendo o um diálogo teológico entre revelação e cultura -, pois sabemos por onde vão os pés dos homens quando o homem está entregue a si mesmo, e nisso a força orientadora do pensamento cristão deve imprimir a sua marca indelével através da virtude de Cristo que não separa o justiça, misericórdia e inteligência.

    É justamente nessa direção que a verdade de Cristo derramada no mundo pela Igreja deve se manifestar, já que a orientação da inteligência é um dos bens supremos de Deus manifestos ao homem, pois dissipando a confusão dos tempos os cristãos podem realmente manifestar a mundo um serviço qualificado a Deus em todas as esferas; um serviço que é manifesto com as marcas da justiça, da misericórdia assim como da criatividade e da inteligência.

Por Que a Nossa Oração é a Oração de um Filho de Deus?

    A oração cristã possui também uma teologia, e uma das mais belas teologias, já que ela possui por base a noção de que em toda oração que fazemos há alguém nos antecede, nos segura e aperfeiçoa aquilo que oramos, entregando essa oração aperfeiçoada para o Deus Eterno.

    Essa é a ideia de mediação, e é em função dessa mediação que a eficácia da nossa oração é garantida como uma oração feita pelo Filho de Deus. Falando claramente a mediação é o ato de alguém que está no meio, entre uma realidade e outra, é o ato de realizar o trânsito entre uma coisa e outra, e no caso em questão o trânsito entre os homens e Deus. Esse trânsito qualificado, essa mediação, é possível por causa do Cristo em quem o Pai ligou para todo o sempre os céus e a Terra.

    Aqui há a ideia belíssima e fundamental da fé cristã: Cristo é o ponto de destaque da revelação divina, o ponto de intersecção entre o mundo dos homens e mundo de Deus. Eternidade e temporalidade estão unidas em sua pessoa, e a oração que fazemos no tempo está habilitada a transitar para Deus nesse ponto de intersecção como se fosse a própria oração da pessoa divina e humana de Cristo, o nosso mediador eterno.

    Na questão em que nos detemos, a partir do que foi dito, é possível compreendermos isto: ao mediar a nossa oração, Cristo faz das nossas orações a sua própria oração; é aqui se desvela a razão pela qual nossa oração é a oração de um filho de Deus, pois tal oração é (re)feita, por nós, pelo próprio Filho de Deus que aperfeiçoa o nosso orar, já que não sabemos orar como convém.

    A Escritura nos afirma que ao colocarmos a nossa fé em Cristo, somos unidos a Cristo e ao Pai - no amor do Espírito Santo - e recebemos com isso o dom da filiação, já que ao nos unirmos a Cristo pela fé e pelo batismo o que é de Cristo também passa a ser nosso, e o que é nosso é passa a ser perfeito pela justiça de Cristo.

    E por fim, é aqui a própria ideia da imputação da justiça de Cristo pode ganhar evidência solar - muito para além do perigo do descarrilamento alienador da linguagem jurídica que a noção de imputação pode envolver -, pois ao interceder por nós diante do Pai, Jesus Cristo eleva a nossa oração à justiça suprema, já que a nossa oração é a oração de Cristo e a oração de Cristo é, por graça amorosa, a nossa oração.

O Sacrifício Vicário de Cristo: Análise Exegética e Trabalho Hermêutico sobre Textos do Antigo e Novo Testamentos

    Que na Substituição Penal Deus realiza o derramamento da ira não em referência a Cristo, como pensam os detratores da doutrina, mas sim em relação àqueles que Cristo representa na Cruz, pois ali Jesus assume uma morte, juízo da lei, não por causa de si, mas em razão da humanidade que desobedeceu a Deus, trazendo maldição e morte sobre si, é algo óbvio. Cristo se faz sacrifício pela culpa afim de remover a culpa mediante a aceitação da pena, a nossa pena, que é a maldição da morte. Nisso concordam Calvino, Turretini, Bavink etc.

    Mas passo agora para a análise de textos bíblicos nos quais busco sinalizar a viabilidade bíblica de uma teologia da expiação com as notas distintivas da teologia da substituição penal.

    A começar pelo cântico do Servo Sofredor de Is 53, é sintomático que em Is 53:10 Deus (YHWH) é o agente do esmagamento do Servo Sofredor - agradou Deus moê-lo -, justamente quando o servo se coloca como sacrifício de culpa ('asham – que também significa culpa – Salmo 68:21,22 -, e aí a questão dos reformadores colocarem a ideia da “transferência da culpa”, que poderia ser entendido mais exatamente como a responsabilidade em lidar com a culpa que cai sobre o sacerdote que deve lidar com isso mediante o “sacrifício de culpa”, ou entender que Jesus ao morrer estava executando a obrigação sacerdotal de realizar um sacrifício para fazer cessar a culpa). O Servo ser destroçado por YHWH (sim, esse é o significado do verbo dac'o, que está no Piel, que é a voz ativa intensiva do hebraico), e se colocar como sacrifício de culpa ('asham) são coisas que ocorrem de forma simultânea. Mas outro detalhe é que em Is 53:05 temos que ele foi destroçado (meduca') por causa das nossas iniquidades (me'avnteynu). E o "destroçado" está no Pual, na voz passiva intensiva do hebraico – o servo é quem recebe o destroçamento -, sendo que em 53:10 o agente do destroçamento por causa dos delitos é YHWH, o que implica que o castigo (musar) da paz que está sobre o servo explica que isso se refere diretamente ao servo que, ao mesmo tempo, é o sacrifício da culpa ('asham) que é destroçado por YHWH, realizando a remoção da culpa e a expiação.

    Também é preciso colocar na equação que Cristo, em Marcos 15:34 (Hó Theós moi, hó Theós moi, é'is ti egkatelipés) e Mateus 27:47 (Theé moi, Theé moi, inatí me egkatélipes) clama por causa do abandono divino. Aqui Jesus não fala no lugar de ninguém e nem simbolicamente - em nenhum evangelho Jesus fala como se estivesse falando por outro - e Turretini acertadamente afirma que deve ser compreendido aqui uma certa retirada do senso de favor, o que não implica na perda da retidão, da graça de Cristo e nem mesmo da unidade e do amor divino que, paradoxalmente, acompanha o Filho para que o Pai seja o Deus Pai dos abandonados.

    Em Mateus 9:44, Jesus afirma que ele será "entregue" (paradídostai), e em Marcos 9:31 se diz que o filho do homem "está sendo entregue" (paradídotai), e em Lucas 17:22 diz que ele será entregue (paradídostai). Mas temos em Romanos 4:25 que Jesus "foi entregue por causa das nossas transgressões" (´os paredóthe diá tá paraptomata). Então esse "entregar" resolve a nossa questão junto a Deus, questão que é marcada pelas nossas transgressões.

    E tanto mais importante é que a passagem de Rm 1:18-31 inicia dizendo que "A ira de Deus se revela do céu" (Apokalyptetai gár 'orgé Theou ap uranou), e que Deus, em Rm 1:24, entregou (parédoken), nesta ira, o homem ao desejo perverso do seu coração. Perceba que isso ocorre em Rm 1:26, e 28, onde se diz que Deus "entregou" (parédoken). Obviamente podemos dizer que há uma negatividade neste "entregar", ainda que entendamos que o mesmo Jesus se entrega a si mesmo pelo pecador, o que não negamos (Gl 2:21 - paradóntos eautón hyper emou).

    Mas coloco uma interpretação fundamental aqui. É sabido que em Gênesis a serpente, ao ser condenada, recebe a punição de comer o pó (Gn 3:14), tal como do pó é feito o homem. Então fazemos a interpretação, ligando o juízo da serpente ao juízo de Adão. Obviamente o homem foi, por um justo juízo, entregue ao poder das trevas em função do pecado (Ef 2:1-4). Mas Cristo também caiu no poder das trevas, ou melhor, foi entregue ao poder das trevas, dizendo: "mas esta é a vossa hora e o poder das trevas" ('all' a´úte ´estín hymôn he hôra kaí he exousía toû skótos) (Lc 22:53), então podemos dizer que Jesus cumpre em si o juízo do homem que pelo pecado é abandonado por Deus ao poder das trevas, e isso por causa das transgressões do próprio homem - a Substituição Penal não é uma ideia inútil e nem infundada -; mas isso jamais ocorre em referência a Cristo, senão que pela economia da salvação, já que cumprindo em si o destino do pecador, ele destrói esse mesmo destino para o pecador que aceita Cristo pela fé. Uma vida entregue por vidas em sentido qualitativo.

    Seguindo todos esses dados, acrescentamos mais: em II Coríntios 5:21 é dito: Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós, para que nós viéssemos a ser nele (em Jesus Cristo) justiça de Deus (tón mé gnónta hamartían hyper hemon hamartían epoíesen, hína hemeis gnometha dikaiosín Theo en autô). É sabido que no Antigo Testamento tanto a palavra para 'transgressão' como a palavra para 'sacrifício pela transgressão' são as mesmas (hath't - Levítico 4:3,8,14,20), o que corrobora com a ideia de que Jesus se fez pecado, como sacrifício pelo pecado. Embora alguém possa desviar a atenção aqui, é necessário compreender que na Escritura em II Coríntios 5:21 se diz que "Aquele que não conheceu pecado, ele se fez pecado", e podemos seguir ligando a interpretação a Gálatas 3:13.

    Sigamos a interpretação: em Gálatas 3:13 temos o texto: “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio maldição por nós, porque está escrito: maldito todo aquele que for pendurado no madeiro” (Christós hemas exegórasen katáras toû nómou genómenos hyper hemôn katára, ek tês hóti gegraptai, Hepikátaros pâs hó kremámenos epí schíló). Quase nunca se fala de quê a Cruz nos resgata, e obviamente aqui temos a resposta: da maldição da lei, que é pena do pecado. O sangue nos resgata desta maldição, pois Cristo se fez “kátaras”, maldição, e maldição é a morte que faz o homem ir ao pó e a mulher às penas do parto, essa mesma maldição que, em seu gênero, Jesus assume, assumindo em si a defecção do homem, pois assume a nossa morte, juízo da lei, juízo de Deus, em sua morte, e nós assumimos, pela fé, a sua vida, que é o Espírito prometido (Gálatas 3:14 – hina eis tá ethne he elogia tou Abraam gnetai en Christô Iesu, hina tem epangelía tou pneumatos).

    Mas a quê se refere a "maldição do madeiro"? Ela se liga às palavras de Deuteronômio 21:22,23, onde o homem que cometeu crime punível com morte, e que após a punição foi pendurado em uma estaca ou árvore, não poderia pernoitar pendurado, já que era "maldito de Deus" (ci-killat 'elohim). Crisóstomo argumenta que essa passagem tem um duplo aspecto, onde Cristo substitui uma maldição por outra. Obviamente Jesus não poderia ser maldito intrinsecamente, já que jamais cometeu pecado. Contudo ele poderia ser suspenso no madeiro, assumindo a nossa maldição. Ele é enfático quando afirma: "Imaginemos que houvesse um condenado à morte, mas um inocente quisesse morrer voluntariamente por ele, e o livrasse da pena. Foi assim que agiu Cristo"1. Notem o que ele diz: "foi assim que agiu Cristo", ou seja: assumiu a pena do crime.

    Mas em um outro comentário a II Coríntios 5:21, onde se diz que Cristo se fez pecado por nós, João Crisóstomo, com maior intensidade ainda, diz: "Se um rei visse um ladrão e criminoso ser torturado, e entregasse à morte seu filho amado, unigênito, genuíno, e além da morte transferisse a responsabilidade do crime para o filho, incapaz de tal crime, afim de salvar o réu e livra-lo da infâmia, e após o elevasse a uma grande dignidade e lhe concedesse salvação e glória [...]"2. Nunca é demais afirmar que Crisóstomo não é um "teólogo reformado" - o que seria algo absurdo e anacrônico -, mas apresenta em seus exemplos notas obviamente aproximativas quanto à teologia da expiação abraçada na teologia reformada - o que seria um disparate negar.

    No cômputo geral privilegio a interpretação que parte da premissa de que a expiação contém aspectos penais e substitutivos que não se constituem, obviamente, na totalidade do quadro da teologia da expiação. Poderíamos enfatizar a destruição dos poderes diabólicos, a recapitulação da humanidade, a questão pneumática e observar a expiação do ângulo da cura e a aplicação da obra da expiação naqueles que aceitam Cristo pela fé. Mas para os propósitos a que se subordinam o texto, é suficiente o que já foi dito.

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1] João Crisóstomo - Comentário à Carta aos Gálatas. 3:13
2] João Crisóstomo - Comentário à Segunda Carta aos Coríntios. 5:21

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

O Eu, o Corpo e o Gênero

   Eu realmente entendo que é dever de cada um ter compaixão com quem tem problemas de gênero; compaixão demonstrada em forma de cuidado e interesse concreto. Estamos falando de amor real, e como todo amor não deixamos de acrescentar a compreensão quanto à verdade da questão. O que não se pode deixar de falar é que essa questão é mais profunda - e também mais antiga - do que se pensa, e em um sentido mais profundo do que as reflexões que comumente vemos sobre esse tema.

   Essa questão de aversão ao corpo biológico, do insistente desejo de transcendê-lo para aterá-lo em sua substancialidade é obviamente intrigante e fruto de uma espécie de pesamento que tende a separar o "eu", a identidade pessoal, do corpo, estabelecendo aí um dualismo - de tipo cartesiano mesmo - que volta e meia ressurge para causar alguns tremores culturais.

   A percepção de pertencer a uma realidade inadequada, de pertencer a um cosmos errado, é algo que faz história. Se retrocedermos o bastante cairemos no problema gnóstico que isso suscita, no problema que compreende o corpo como a cova da alma, o que faz muitos lutarem por uma "desbinarização", o que, em termos lógicos, poderíamos classificar como o retorno da espécie para o gênero - o que é algo francamente impossível - ou um avanço para uma transcendência dos sexos - o que é algo também impossível.

   E é justamente aí que temos a mensagem cristã, que contrastando radicalmente com tudo isso afirma que sim, esse cosmos é o cosmos adequado, que esse corpo é o corpo bom, bom de tal forma que comporta o evento em que Deus se encarna em um homem, não em um "homem em geral", mas sim no homem específico, portador de um sexo específico e unido a essa natureza corpórea específica por toda a eternidade. O Cristianismo é aceitação mais radical da criação e a oposição mais potente à revolta violenta contra ela.

A Fé, a Mortificação e a Esperança

   O homem consciente de si sabe que existe uma fratura interior, uma convulsão que podemos nomear de violência. A fé que opera pela amor é o meio pelo qual enfrentamos essa fratura e essa convulsão interior, e podemos chamar a nossa militância contra esse estado de coisas de mortificação.

   É justamente aqui que entendemos o apelo do Apóstolo quando diz: "não reine o pecado em vosso corpo" (Rm 6:13); não quer dizer "não exista", mas "não reine".

   Mesmo os autores eclesiásticos antigos (Ambrósio, Agostinho) entendiam que após a conversão e batismo o pecado em nós não está extinto - assinalando aqui a continuidade da ruptura da nossa natureza. Essa é a chamada "lei do pecado" (Rm 7), que deve ser mortificada para não reinar em nós.

   É aqui que vemos que estamos em estado de cisão, cisão entre o que somos e o que deveríamos ser. Somos por vezes marcados pela angústia, pela violência e mesmo pelo estado de alienação interior; mas a questão é que na fé ganhamos um sentido e poder para a milícia e para a esperança da incorrupção na reconciliação final da nossa natureza com Deus.

   Mente quem diz que estarão findas as guerras com a nossa carne e com nossas pulsões no nível da presente vida. No tempo não há fim de guerra, há fim de culpa, pois Cristo se fez maldição por nós, e o que podemos, pelo poder da fé e do Espírito, é gozar de um armistício entre uma guerra e outra, pois enquanto vivemos somos chamados à mortificação (Cl 3:5-7), mortificação que é trabalho para toda a vida, já que a glória da imortalidade é dom para outra vida (I Co 15:55).

A Especulação, a Revelação e a Teologia dos Nomes de Deus

   Quando Tomás de Aquino afirma que os nomes de Deus são para nós possíveis por causa de um termo médio que se encontra entre a ordem predicamental e a ordem transcendental - o que fundamenta a possibilidade mesma da analogia -, seguindo a especulação do Pseudo-Dionísio, tudo o que ele faz é uma especulação adequada para esclarecer o conhecimento que podemos ter dos atributos de Deus, os quais podem ser analogados segundo a experiência que temos do mundo, mundo este causado por Deus.

   De Deus não podemos ter um conhecimento apropriado a não ser a partir dos efeitos dos quais ele é a causa. Então diz Tomás que ainda que tais efeitos sejam inferiores à sua causa, é necessário que entre efeito e causa haja alguma semelhança; portanto a forma do efeito está na causa que a excede - ainda que, para fugir do univocismo e do panteísmo, no que discordará fortemente Scotus, Tomás afirme que a relação entre a causa e o seu efeito seja equívoca, pois a causa é maior do que o efeito, tal como uma pegada no barro é menos perfeita do que a forma da bota que a produz: a virtude que faz da bota um marcador do barro é distinta da virtude que faz da pegada uma pegada que está no barro, embora haja relações de semelhança entre elas, e mesmo semelhança quanto ao gênero da virtude que pertence a ambas nessa relação (a forma da bota cravada no barro), não obstante não pertencendo a ambas do mesmo modo; assim também há diversidade quanto ao ser de ambas, que para elas é distinto, embora a bota seja a causa da forma da pegada. É justamente nessa relação que podemos encontrar o termo médio que possibilita a analogia, o que afasta o equivocismo absoluto e o univocismo.

   Dessa forma, os vários nomes de Deus se justificam para Tomás em função dos vários efeitos dos quais Deus é causa; e por não conhecermos a Deus em sua essência, são justificados os vários nomes de Deus pelas várias causas pelas quais conhecemos suas perfeições, pois se conhecêssemos a Deus em sua essência um só seria o nome de Deus para nós. Dizemos que Deus é bom pela experiência da bondade no nível da vida, e por ser Deus pleno de todas as perfeições é justificado que designemos Deus como o Sumo Bem - já que nele a bondade está, como diriam escolásticos, de forma eminente; da mesma forma damos a Deus o nome de poderoso etc.

   A divisa dessa questão é que, mesmo que adequada à teologia especulativa e à epistemologia, a teologia de Tomás e do Pseudo Dionísio ainda não contemplam a totalidade da significação que a Escritura dá aos nomes de Deus, e nem seguem a sua principal significação na dinâmica própria da revelação, onde os nomes de Deus desempenham uma significação específica na vida de fé daqueles para os quais o nome de Deus foi relevado. E é altamente improvável que seja possível descobrir essa significação a partir de uma teologia exclusivamente especulativa, e um dos exemplos é como se segue: quando a escritura nomeia Deus como o "Deus de Abraão, Deus de Isaque e Deus de Jacó" isso não poderia ser permutado pelo "Deus de Hamurabi, Deus de Nabucodonosor e Deus de Ninrode", pois embora saibamos que Deus é um para todos, na Escritura a primeira formulação do nome de Deus se encontra não como uma simples descrição inteligível (ainda que parcial) de um ente, pois embora seja algo para ser entendido tal nome vale como uma invocação de Deus. Deus revela um nome porque por ele Deus permite ser invocado, já que tal nome é um signo sob o qual dormita uma decisão, decisão essa que nada mais é do que uma aliança especial que não pode ser alcançada pela simples especulação (Ex 3:6). Isso ultrapassa o sentido de um conhecimento natural, pois nesse sentido entramos na esfera de um conhecimento especial de Deus, ou seja: De Deus tal como ele se revela ao mundo.

   Um dos rumos que a teologia filosófica tomou, já nos padres gregos, ao associar a revelação mosaica do nome de Deus à especulação, é um dos exemplos de eclipsação do sentido real da revelação especial de Deus. O nome YHWH, revelado a Moisés no Horebe (Ex 3:14), não serve necessariamente a uma especulação ontológica - ainda que isso possa ser feito -, mas revela o nome divino que sinaliza o profundo mistério do Deus, o Deus que formulou e que estava cumprindo sob o nome YHWH a sua aliança com Abraão, Isaque, Jacó e sua descendência. E outro exemplo da revelação do nome de Deus que está relacionado à sua liberdade quanto à sua soberania, livre eleição e graça (Êx 33:9), está obviamente em um contexto de revelação divina concernente aos propósitos de proteção singular do Senhor prestados ao povo de Israel, e não à especulação de Seus atributos, já que aqui há um transbordamento na história da essência divina calcado não apenas na Sua natureza imutável, mas na Sua vontade aplicada, na Sua revelação especial.

   Conquanto o conhecimento de Deus pela luz natural da razão tenha o seu lugar próprio, ainda assim tal via jamais será suficiente para nos garantir o conhecimento divino completo do que Deus é para nós, e se acharmos que tal conhecimento pode ser possível de forma integral sem os benefícios da graça e da revelação, erraremos terrivelmente em matéria não pouco importante. Em primeiro lugar o pecado nos priva da visão de Deus, sendo a mente humana ferida pelo pecado. Só a cura da nossa vontade e a providência divina podem nos ajustar para um real conhecimento de Deus, visto que não ignoramos que haja a necessidade de uma certa postura para tal conhecimento que, em verdade, jamais pode ser realizada sem a graça da cura das nossas deformações e sem o restabelecimento de um vínculo apropriado entre nós e Deus realizados pela graça. Os demônios tem uma "informação" de Deus, mas jamais um conhecimento no sentido escriturístico de "participação privilegiada", de "experiência em" que somente aos regenerados e santificados está disponível - mesmo que o demônio seja potencialmente apto para esse conhecimento -, e é por isso que apenas na fé e no Espírito é que está facultado ao homem dizer e compreender realmente o significado da invocação "Jesus é o Senhor" (I Co 12:3).

A Palavra de Deus como Pessoa

   Uma das coisas mais interessantes que acontece quando se dirigem aos protestantes com a seguinte afirmação: "A Palavra de Deus é uma pessoa", é que depois disso segue-se o velho costume de apresentar catecismos, bulas e a ideia de que a fé incipiente é "fé implícita", porque isso é igual à confiança no ensino da Igreja e tal - o que historicamente é algo problemático, se pararmos para prestar atenção -, negando o caráter existencial da afirmação que há uns segundos atrás lançou contra esses seres fundamentalistas que colocam uma Palavra Escrita acima de tudo o mais.

   Mas o interessantíssimo deste fato é que a ideia de que a fé se dirige a Jesus como uma pessoa que salva, sendo a fé uma abertura ao Cristo, de modo que assim você pode participar com a alma dos seus benefícios, sendo isso fundado em uma notícia, ou uma boa notícia, em um "conhecimento trazido pela fé acima do estado atual da dogmática eclesiástica", é justamente a ênfase do protestantismo, ênfase que foi reavivada por teólogos como Emil Brunner e Barth, por exemplo.

   Brunner é um explícito em dizer que a redução de Deus às ideias de Deus é algo impossível, sendo a própria teologia uma organização sistemática de sinais que sempre apontam para, mas jamais manifestam a realidade absoluta do objeto da fé como tal - já que é papel do Espírito Santo harmonizar no espírito do homem o conjunto dos sinais que sinalizam para o objeto da teologia e o objeto da própria teologia, que é a automanifestação de Deus no mundo. Obviamente que pontos equívocos podem estar presentes na teologia, e é por isso que é sempre saudável guardar em mente que Cristo é uma pessoa, que a Palavra de Deus é uma pessoa, e não uma doutrina; e ainda que tal doutrina seja a mais ortodoxa possível, ela cumpre uma função limitada à sua finalidade que deve ser complementada pela auto-manifestação do Deus que quando se manifesta só pode se manifestar com espírito e poder. O sinal só é autêntico quando aponta adequadamente para a realidade sinalizada.

   Essa ênfase é a ênfase filha do século XX e que ganhou espaço na teologia pela abertura desse tema pelo teólogo/filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard, o qual exerceu influência póstuma poderosíssima na teologia protestante e também na filosofia. O existencialismo - que começou como uma filosofia cristã - afirmava o caráter fragmentário do homem enquanto tal e o equívoco entre o conhecimento atual e a realidade absoluta - em função do pecado -, daí o encontro com Cristo não ter necessidade de ser mediado pela cultura, nem pela cultura eclesiástica, já que o encontro se dava no instante eterno onde o homem se acha face a face com Deus. O homem não precisa da mediação da cultura para se achar com Deus, porque a cultura real é algo que só pode ser fundamentado nesse encontro - o princípio é sempre maior do que aquilo que dele é derivado.

Justificação, Santificação e a Substituição Penal

   A substituição penal na teologia não afirma que a morte de Cristo extingue a morte do homem. E isso é tão verdade que a defecção da natureza, incluindo a morte e a concupiscência, continuam mesmo após a justificação e adoção - como ensina a própria teologia da substituição penal.

   E ainda que haja um desconforto quanto à linguagem "judicial" dessa teologia, a justificação tem a ver não com a infusão da justiça e de superqualidades no homem, mas sim com a absolvição do homem que, pela fé em Cristo, passa a não ter dívida de condenação com Deus. Como os reformadores ensinaram extensamente, não somos livres pela expiação da totalidade das negatividades que pesam sobre a vida - também continuamos sujeitos à Ira de Deus, mas não do mesmo modo -, pois Cristo morreu no nosso lugar também para desfazer a culpa e a pena, para extinguir a vigência do império da morte, extinguindo a condenação do pecado e não fato de morte.

   Justificação não é santificação, mas é a mudança de uma relação entre o homem e Deus a partir da qual, na adoção, o homem é aceito como filho de Deus "apesar de".

   Segue-se que pela adoção somos aceitos como filhos, e não tendo nós os pecados imputados passamos à mortificação dos pecados que é possibilitada pela habitação do Espírito pelo qual somos renovados dia-após-dia. Se assim não fosse, confundiríamos santificação com justificação, fazendo da fé a obra mais terrível de todas e caindo no mais terrível e espantoso legalismo. Obviamente que Deus cria em nós o ser que será salvo, mas o progresso em santidade não é justificação, a justificação é algo criado no homem, algo que é graça, graça essa alçada subjetivamente pela fé onde o homem se abre para o fato de que é aceito por Deus pela obra de Cristo, ainda que o homem se ache, mesmo no ato da fé, em estado fragmentário, mesmo "apesar de".

   A justificação pela fé não ocorre por causa de uma superqualidade moral daquele que crê (ainda que na regeneração - que não é justificação e nem santificação - recebamos o poder para amar e crer em Deus e em sua obra realizada Cristo), mas sim por causa da dignidade do objeto da fé, objeto pelo qual somos tornados filhos de Deus, aceitos ainda que em estado fragmentário, aceitos apesar de. A justificação é o paradoxo onde o homem é feito justo ainda que pecador, pois aqui seu pecado não é imputado; é a entrada na condição onde o homem é achado ao mesmo tempo justo e pecador (simul justus et peccator) em função justamente de sua natureza fragmentada, que ainda assim é aceita por Deus em Cristo e apenas em Cristo.

O Evangelho do Reino de Deus

   Nenhuma parte da obra de Cristo deve ser tratada de modo estanque, já que ela só pode ser justamente visualizada como todo no qual Deus executa a sua obra de redenção. Não devemos unilateralizar o Evangelho em "razões centrais" que ofusquem essa visualização do todo; não devemos unilateralizar a verdade do Evangelho no ministério terreno de Jesus (liberais), ou no sacrifício expiatório (evangelicais) e nem mesmo na sua ressurreição (os exorcistas da tradição).

   Se levarmos em consideração a obra de Cristo, da consideração da sua unidade depende a reta percepção do que é, no hoje, ser Igreja. Pois o proceder do daqueles pertencentes ao reino pela fé Cristo, cuja possibilidade é para nós aberta pela encarnação, morte e ressurreição de Cristo, na adoção de Filhos, é a possibilidade também da renovação da face da Terra. Todo ensino cristão que não une a adoção ao discipulado e idso à missão da Igreja está dando voltas e não entendendo o propósito para o qual somos chamados por Deus.

   A boa notícia, portanto, o Evangelho, não é apenas o Evangelho da Salvação, mas é o Evangelho do Reino de Deus, não de um reino abstrato a ser desfrutado após à morte, mas sim o Evangelho de um Reino onde é possível vermos os céus se abrindo sobre a Terra e trazendo para nós razões de esperança, assim como trazendo a manifestação dos filhos de Deus no interior de uma criação que geme ansiosa pela manifestação desses mesmos filhos de Deus.

Restituição pela Culpa

   É elucidativo o fato de que Deus, no sistema sacrificial do Antigo Testamento, exigia, além do arrependimento e confissão dos pecados, a reparação devida para a remoção da culpa. Não se tratava de um "simples perdão" sem a devida satisfação, já que a partir do sistema sacrificial de Israel não havia perdão sem sacrifício expiatório (Levítico 5:15,16).

   Por outro lado não se tratava de um rito de simples "purificação da impureza ritual", levando em consideração que , no que diz respeito à culpa do homem, a "impureza ritual" é mancha do pecado e, em virtude disso, o próprio pecado. É certo, portanto, que não há remoção de culpa por simples arrependimento sem a devida expiação. É como diz o texto de Números:

   "Dize aos filhos de Israel: Quando homem ou mulher fizer algum de todos os pecados humanos, transgredindo contra o Senhor, tal alma culpada é. E confessará o seu pecado que cometeu; pela sua culpa, fará plena restituição, segundo a soma total, e lhe acrescentará a sua quinta parte, e a dará àquele contra quem se fez culpado. Mas, se aquele homem não tiver resgatador, a quem se restitua a culpa, então a culpa a que se restituir ao Senhor será de responsabilidade do sacerdote, além do carneiro da expiação pelo qual por ele se fará expiação" (Números 5:6-8).

   É nesse sentido que Cristo é o resgate, a restituição pelos nossos pecados mediante a satisfação das exigências da lei de Deus para a remoção da culpa. Impossibilitados como somos de fazer a devida satisfação - à semelhança do que que vai no vs. 8 -, Cristo é, como o nosso sacerdote, aquele que nos substituiu na responsabilidade de realizar a satisfação e a restituição da culpa, o que fez plenamente pelo seu sacrifício na Cruz, levando em si mesmo a pena devida aos nossos pecados, após o qual recebemos o pleno perdão.

Creia e Terás Comido1

   Pois ele lhes disse: " Trabalhe não pelo alimento que perece, mas pelo alimento que resta para a vida eterna", disseram-lhe eles: O que faremos para realizar as obras de Deus? O que faremos?, eles perguntaram. Seremos capazes de cumprir esse preceito, observando o que? Jesus respondeu e disse-lhes: Esta é a obra de Deus: que você acredite em quem ele enviou. Isto é, então, comer alimentos que não perecem, mas que permanecem para a vida eterna . Para que você prepara os dentes e a barriga? Creia e terá comido.


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1] AGOSTINHO - Tratados sobre o Evangelho de João. Trat. XXV.XII

Agostinho e a Via Negativa de Ascensão do Espírito a Deus; Ou: Deixe Tudo para Trás e Vá a Deus1

   Ele busca a separação no Pai e no Filho; você não consegue encontrar. Mas, se você subiu ao alto, não pode encontrá-lo; se você tocou algo acima de sua mente, então não pode encontrá-lo, porque, se você alterna entre o que em seu espírito errado é forjado, você fala com suas fantasias, não com a Palavra de Deus; suas fantasias enganam você. Transcenda o corpo e concentre-se no espírito; também transcende o espírito e se concentra em Deus. Você não toca em Deus se você também não transcende o espírito. Quanto menos você tocará se permanecer na carne? Aqueles que, portanto, se concentram na carne, a que distância estão de saborear o que Deus é, porque não estariam lá, mesmo que se concentrassem no espírito! O homem está longe de Deus quando entende carnalmente; e há uma grande diferença entre a carne e a alma; mas há mais diferença entre o espírito e Deus. Se você estiver com disposição, você está no meio: se você olhar para baixo, existe o corpo; se você olhar para cima, há Deus. Eleve-se acima do seu corpo e deixe até você para trás. Veja, com efeito, o que um salmo disse e você aprenderá como Deus é amado: As lágrimas, afirma ele, tornaram-se alimento dia e noite, enquanto diariamente me dizem: "Onde está o seu Deus?". Como se os pagãos dissessem: "Aqui estão nossos deuses; onde está seu deus?". Eles, com efeito, mostram o que é visto; adoramos o que não é visto. E para quem mostrar? O homem que não tem como vê-lo? Porque, se eles certamente vêem seus deuses com os olhos, também temos outros olhos para ver nosso Deus. Nosso Deus tem para purificar aqueles olhos de modo que vemos o nosso Deus, porque Felizes são aqueles com um coração limpo, porque aqueles verão a Deus. Como, então, ele teria dito que fica perturbado quando todos os dias lhe dizem: "Onde está o seu Deus?" E declara: "Lembrei-me disso: me dizem diariamente "Onde está o seu Deus?" e, como se quisesse captar o seu Deus, ele afirma: Lembrei-me disso e derramei a minha alma. Então, para sentir meu Deus, sobre quem me disseram: "Onde está o seu Deus?" Não derramei a minha alma na minha carne, mas em mim; Eu transcendi para tocá-lo, porque acima de mim está quem me fez; ninguém o sente, apenas quem se transcende.

    Pense no corpo: é mortal, é terreno, é frágil, é corruptível: jogue-o fora. Mas talvez a carne seja temporária? Pense em outros corpos, pense nos corpos celestes: eles são maiores, melhores, refulgentes; observe-os também; eles giram de leste para oeste, não são fixos; são vistos com os olhos, não apenas pelo homem, mas também pelo gado; Deixe-os para trás também. Mas como eu deixo os corpos celestes para trás, você pergunta, quando eu ando na terra? Você os deixa para trás não com a carne, mas com a mente. Jogue-os fora também! Embora brilhem, são corpos; embora brilhem do céu, são corpos. Venha, porque talvez você suponha que não tem para onde ir quando contempla tudo isso. Mas para onde vou, você pergunta, além desses corpos celestes, e o que devo deixar para trás através da mente? Você já contemplou tudo isso? Eu contemplei isso, você responde. Com o que você o contemplou? Este contemplativo aparece.

    De fato, o próprio contemplativo de tudo isso, aquele que discerne, distingue e de alguma forma o pesa no equilíbrio da sabedoria, é o espírito. Sem dúvida, melhor do que tudo o que você pensou é o espírito com o qual você pensou sobre tudo isso. O espírito, então, é espírito, não corpo; Deixe para trás também! Para que você possa ver para onde ir, compare primeiro o clima; Compare com a carne. Sem mencionar que você não se compara a compará-lo. Compare-o com o brilho do sol, da lua, das estrelas: maior é o brilho da alma. Veja primeiro a velocidade do próprio humor. Veja se a centelha da mente pensante não é mais veemente que o esplendor do sol brilhante. Com o espírito, você vê o sol nascer; seu movimento, quão lento é comparado ao seu humor! Em breve você poderá pensar no que o sol fará. Virá de leste a oeste, amanhã sairá do outro lado. Embora seu pensamento tenha feito isso, ainda é tarde, mas você passou por tudo. Uma grande coisa, então, é o espírito! Mas como eu digo "é"? Deixe-o também para trás, porque também o espírito, embora seja melhor que qualquer corpo, é mutável. Ora sabe, ora não sabe; agora esqueça, agora lembre-se; agora ela quer, agora ela não quer; agora ele peca, agora ele é justo. Portanto, deixe toda mutabilidade para trás; não apenas tudo o que é visto, mas também tudo o que se move. De fato, você deixou a carne para trás, o que vê; você deixou para trás o céu, o sol, a lua e as estrelas que são vistas; Deixe para trás tudo o que se move! De fato, tendo deixado essas coisas para trás, você veio à sua mente; mas também lá você encontrou a mutabilidade do seu espírito. Deus é mutável? Então, deixe sua mente para trás também. Despeje sua alma em você para alcançar Deus. Onde está seu deus?

    Não suponha que você deva fazer algo que o homem não pode. O próprio evangelista João fez isso. Ele transcendeu a carne, transcendeu a terra que pisou, transcendeu os mares que viu, transcendeu o ar onde os pássaros flutuam, transcendeu o sol, transcendeu o sol, transcendeu a lua, transcendeu as estrelas, transcendeu todos os espíritos que não são vistos; Ele transcendeu sua mente com a própria razão de seu encorajamento. Depois de transcender tudo isso, derramando sua alma, onde ele chegou? O que ele viu? No princípio havia a Palavra, e a Palavra existia em Deus. Se, então, na luz que você não vê separação, que separação você procura no trabalho? Olhe para Deus, olhe para a Sua Palavra para aderir àquele que através da Palavra fala, porque ele mesmo, quando fala, não fala com sílabas, mas brilha com o esplendor da sabedoria, isto é, "O que se diz de sua sabedoria?" É o esplendor da luz eterna. Observe o esplendor do sol. Está no céu e espalha esplendor por todas as terras, por todos os mares. E é, sim, luz corporal. Se você separar o esplendor do sol do sol, separe a Palavra do Pai. Eu falo do sol. Uma leve chama fraca de uma lâmpada, que pode ser extinta com um golpe, difunde sua luz sobre tudo o que a subjaz. Você vê a luz gerada pela chama, você vê a emissão, você não vê a separação. Entendam, portanto, queridos irmãos e irmãs, que o Pai, o Filho e o Espírito Santo aderem inseparavelmente um ao outro, que esta Trindade é um Deus, e que todas as obras do Deus único, estas são do Pai, estas são do Filho, estes são do Espírito Santo.

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1] AGOSTINHO - Tratados Sobre o Evangelho de João. Trat. XX.XVII,XVIII

A Contemplação do Bem

   Um erro comum que muitas pessoas cometem na caminhada espiritual é atentar demais para a maldade das coisas e, por conseguinte, se impressionar excessivamente com a força do mal.

   E isso não significa que devemos ser insensíveis ao mal ou que não podemos ficar chocados com certos atos de maldade no mundo. Mas a questão é que o mal possui um elemento sutil de sedução que acaba sendo em sua própria natureza algo desviante.

   O que é preciso reafirmar é que devemos ser, antes de mais nada, maravilhados pelo bem e cultores da bondade absoluta. Manter os olhos fixos na luz divina, tendo a nossa mente banhada em seu bem, é obviamente algo mais proveito para todos nós.

   Manter os olhos fixos na luz eterna não é fugir do mundo, antes trata-se do ato que nos possibilita enxergar o mundo, e tudo aquilo que nele há, na totalidade da sua verdade.

Orígenes (185-254 d.C.) o Aniconista

   Se ele [Celso] julga certo que eles jamais tiveram valor por sua categoria ou número, pois não se encontra qualquer alusão à história dos judeus entre os gregos, eu responderei: se atentarmos para o seu regime inicial e as disposições de suas leis, veremos que foram homens que apresentavam na terra uma sobra da vida celeste. Entre eles, não havia nenhum outro deus a não ser o Deus supremo; nenhum artífice de imagem que tivesse direito de cidadania. Nenhum pintor, nenhum escultor tinha espaço em seu Estado, pois a lei bania todos os artífices desse gênero para eliminar qualquer ideia de fazer estátuas, prática que atrai os simples e desvia os olhos da alma para longe de Deus na direção da terra. Havia, pois, entre eles esta lei: "Não vos pervertais, fazendo para vós uma imagem esculpida em forma de um ídolo: uma figura de homem ou de mulher, figura de algum animal terrestre, de algum pássaro que voa no céu, de algum réptil que rasteja sobre o solo, ou figura de algum peixe que há nas águas que estão sob a terra" (Dt 4:16-18). A intenção da lei era encarar a realidade de cada ser, impedindo que fossem modeladas fora da verdade imagem que mentiam a respeito da verdade do homem e da realidade da mulher, da natureza, dos pássaros, dos animais, do gênero dos pássaros, dos répteis, dos peixes. E o motivo era venerável e sublime: "Levantando os olhos o céu e vendo o sol, a lua, as estrelas e todo o exército do céu, não te deixes seduzi-los para adorá-los ou servi-los!" (Dt 4:19)

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1] Orígenes - Contra Celso. Paulus, Lib.IV.XXXI. p.307

Obs: A concepção de "Estado Judaico Inicial" - isto é, antes da degradação da nação - de Orígenes quanto aos escultores e pintores está proporcionada à justificação do banimento de escultores, pintores e poetas da República de Platão (601-603b.), já que esses se aplicam àquilo que é o terceiro em relação à verdade. É como Platão diz: "Então concerne esse tipo de imitação a algo que é o terceiro a partir da verdade, ou não é?" (602c), ou: "Isso, então, era sobre o que eu queria encontrar um consenso quando afirmei que a pintura e a imitação como um todo produzem obras que estão distantes da verdade, ou seja, que a imitação realmente se associa a um elemento [inferior] da nossa alma que se distancia da razão [parte superior da alma], e que o resultado desse relacionamento e amizade não é nem saudável, nem verdadeiro." (603a,b) - Platão - A República. Edipro. Lib.X p. 407, 409.

Fé e Descrença

   Todo aquele que faz das obras pessoais elementos necessários da salvação deve, necessariamente, carregar a dúvida quanto à eficácia salvífica da graça de Deus para dentro do seu coração.

   A confiança na graça salvadora está para a fé assim como a incerteza diabólica está para a ausência da fé, já que o fruto da fé e da habitação do Espírito em nós é a confiança, confiança para a qual é prometido um grande galardão.

   À luz do evangelho ausência de confiança é a descrença da graça, é a fraqueza carnal que opõe dúvida à eficácia do poder de Deus que, independente da obra humana, pode nos elevar do estado de perdição ao estado da glorificação.

   Não há compatibilidade possível entre a presença do Espírito e a descrença na eficácia de Deus, já que a dúvida não é parte da fé, mas é algo que ainda que esteja na caminhada de muitos que crêem, deve ser superado pelo poder do Deus que pode até mesmo ressuscitar os mortos.

O Ato Primeiro e a Oração

   Do ponto de vista nosso, a oração é iniciada por uma movimentação pessoal, é um mover-se em direção a Deus. Mas a percepção real que possuímos de Deus é um dado que nos é concedido de fora, tal como a fé que não é tanto um ato psicológico, mas é um dom divino a partir do qual confiamos em algo que já é certo para a fé, mesmo que esse Algo esteja para além da nossa experiência.

   Oração, por tanto, é a resposta ao chamado de Deus; oração é o ato pessoal pelo qual e no qual somos conduzidos e reformados pelo poder Espírito que nos eleva à esfera da realidade eterna onde somos transformados em uma nova criatura; a oração é a abertura constante à percepção de que o mundo é envolvido pela eternidade, abertura pela qual nossos olhos são cada vez mais abertos para Aquilo que sempre esteve e sempre estará aí.

   Se começamos entender a oração como ato pessoal, terminaremos por perceber que ela é um ato segundo, uma consequência de um ato primeiro de um Deus que sempre começa movendo todas as coisas, incluindo aí o mover do nosso coração para a oração, e que generosa e soberanamente nos concede a oportunidade de saber e ver a sua imensa glória, poder e bondade pelas quais é sustentado tudo o que existe

   É como disse o apóstolo Paulo se referindo a Cristo, o Senhor: "Porque dele, por ele e para ele são todas as coisas." (Rm 11:36a)