quinta-feira, 27 de maio de 2021

Turretini e a Questão do Repúdio ao Culto às Imagens na História da Igreja

    XIV. Quarto, o culto às imagens era desconhecido na igreja cristã durante os primeiros quatro séculos. Isto transparece dos vários testemunhos dos pais que o impugnaram: Orígenes, Contra Celsum n3.40 e 7.70 (trad. H. Chadwick, 1965), pp. 155,156 e 384,385; Tertuliano, Apology 12 (FC 10:41-42) e De Idolatria (org. J. H. Waszink e J. C. M. van Winden, 1987); Clemente de Alexandria, Exhortation to the Heathen (ANF 2:171-206); Lactâncio, Divine Institutes 2.1 (FC 49:94­ 97); Epifânio (cf. Jerônimo, Letter 51, "Epiphanius to John of Jerusalem” [NPNF2, 6:89]); Jerônimo, Letter 57, “To Pammachius” (NPNF2, 6:112-119); Agostinho, Ennaratio in Psalnnim CXIII (PL 37.1483). (2) Do Concílio Elibertine (Concílio de Elvira), onde temos este decreto expresso: “Não devem existir quadros nas igrejas, nem qualquer objeto de culto ou adoração pintado nas paredes” (Cânone 36, cf. Mansi, 2:11). (3) Os pais constantemente acusam em termos fortes os pagãos do culto às imagens, e os gentios (respondendo à acusação cristã de que isso é uma desgraça) nunca apresentam o culto às imagens como praticado pelos cristãos, com o intuito de remover ou pelo menos mitigar o ódio à sua superstição em referência aos ídolos (o que indubitavelmente não teriam omitido, se algum costume desse gênero existisse então entre os cristãos). Eles não somente nunca fazem tal réplica, mas também os censura pela falta de altar e de imagens como a maior das impiedades. Para livrar-se de tal acusação, tão longe estão os cristãos de referir-se, no mais leve grau, a qualquer uso ou adoração de imagens entre eles, que, antes, empregavam várias razões para provar que é impossível ou ilícito e inútil fazer imagens da deidade. Os judeus, em suas disputas com os cristãos, nunca os acusaram de realizar culto às imagens (pelo qual eles tinham a maior ojeriza). Diferentes pais condenaram a arte pictórica, ou como absolutamente ilícita, ou vã e inútil. Destas e de razões semelhantes, deduz-se indisputavelmente que na igreja primitiva o culto às imagens não havia ainda prevalecido (o que o célebre Daille prova em sua maneira usualmente sólida em De Imaginibus 1,2 [ 1642], pp. 1 - 244). (4) Não poucos dentre os papistas confessam isto. Cassander: “E indubitável que no início do evangelho proclamado, durante um tempo considerável, entre os cristãos, especialmente nas igrejas, não havia nenhum uso de imagens” (“De Articularis Religionis ... consultatio”, Art. 21 [“De Imaginibus”] em Opera [1616], p. 974). E mais adiante: “Ora. quão fortemente opostos a toda veneração de imagens eram os antigos no início da igreja, só Orígenes declara” (ibid., p. 975). “Por fim”, diz ele, “admitiram-se quadros nas igrejas como que expressando a história de eventos ou retratando homens santos” (ibid., p. 974). Erasmo afirma: “Mesmo na época de Jerônimo havia homens de aprovada piedade que não introduziram imagens nos templos, nem pintadas, nem esculpidas, nem urdidas, nem mesmo de Cristo” (“Symbolum sive Catechismus”, em Opera [1704/1962], 5:1187). No mesmo lugar: “Pois nenhuma constituição, mesmo humana, ordenou que imagens figurassem nos templos; e, assim como é mais fácil, assim também é mais seguro remover todas as imagens dos templos” (ibid., p. 1188). Lilius Gyraldus: “Isso certamente não tolerarei, nós, digo, os cristãos, como outrora os romanos, vivíamos sem imagens na chamada igreja primitiva” (“Historiae deorum gentilium syntagma”,1 em Opera [1696], p. 15). Polydore Virgil testifica “que quase todos os pais antigos condenavam o culto às imagens em virtude de seu medo da idolatria, pois criam que nenhum crime poderia ser mais execrável” (De rerum inventoribus 6.12 [1671], pp. 417,418). Acrescenta a essas palavras o seguinte: "ele ensina que Moisés nada inculcava com mais veemência do que o povo não venerasse nada feito por mãos"; e que o profeta disse: “Que seja confundido quem adora imagens de escultura” (ibid., p. 418). O Index Expurgatorius (com a sanção do Concílio de Trento) ordenou que esta frase fosse apagada.

    XV. Não obstante, passados quatro séculos, quase no início do século 5º, Paulinus, bispo de Nola, c Severus (Sulpicius), bispo de Bituricensis, introduziram certos quadros históricos nas basílicas que erigiram. Isso não foi feito para que fossem imagens daquilo que é cultuado religiosamente, nem para que os próprios quadros fossem cultuados religiosamente; mas apenas para que fossem símbolos históricos e comemorativos, bem como ornamentos das basílicas, como é evidente à luz da Carta 13 de Paulinus a Severus (ACW 36:134-159). No entanto, visto que, gradativamente, mediante o uso de imagens, alguns introduziram o culto prestado a elas, sucedeu que no início do século 69 Serenus, bispo de Marselha, e Gregório 1, o Romano, decidiram combater essa superstição, ainda que de diferentes formas. O primeiro, removendo-as inteiramente; o segundo, contudo, retendo-as de fato, porém instruindo diligentemente o povo no sentido de que só eram úteis como lembranças e não para que de forma alguma fossem adoradas. Daí, escrevendo a Serenus, afirma: “Louvamos seu zelo cuidando que nenhum objeto manufaturado seja adorado, porém julgamos que você não deveria ter quebrado as próprias” (Gregório, o Grande, Letter 13, “To Serenus” [NPNF2, 13:53; PL 77.1128]). No entanto, visto que pela retenção das imagens seu culto voltou gradualmente, e a superstição se introduziu sorrateira e paulatinamente, isso prevaleceu tanto no oriente quanto no ocidente. Os imperadores elaboraram vários decretos concernentes à remoção das imagens: por Leão III, o Isauro, no ano 726; por Constantino VI Caballinus, chamado Copronymus; seu filho que (reunindo-se em Constantinopla 338 bispos do oriente, no Sétimo Concílio Ecumênico) tinha passado um decreto contra o culto às imagens no ano 754; por Christophorus e Nicephorus, imperadores, no ano 775; por Leão IV, no ano 780. Não obstante, embora Irene, esposa de Leão IV, governando sobre o oriente, diligenciou em restaurar, por meio de seu jovem filho, as imagens nas quais ela grandemente se aprazia, no Concílio geral de Nicéia, o qual sancionou seu culto em 787 contrariando o de Constantinopla, contudo houve muitos imperadores no oriente que não cessaram de se opor a ele - Nicephonis I e Stauratius em 810; Leão V, o Armênio, em 814; Miguel II, Balbus e Theophilus em 824,829,830,832; Miguel III, Porphyrogenitus, em 866. Ver Decreta Imperialia concernente ao culto às imagens.

    XVI. Mais especialmente no ocidente, porém, Carlos, o Grande, ficou tão indignado com o decreto do Segundo Concílio Niceno, que não só num tratado especial (bem recentemente reproduzido) intitulado Capitulare de Imaginibus (PL 98.989-1248) (que este é o verdadeiro e genuíno produto do autor, não importa o que Baronius e Belarmino aleguem em contrário, até o testemunho único de Hincmar, arcebispo de Rheims [cf. “Opuscula ct Hpistolae ... ad causam Hincmarii Laudunensis” PL 126.360; cf. PL 98.997,998], e a prolixa carta do papa Adriano [Epistola Adriani Papae ad beatum Carolum Regem De Imaginibus, PL 98.1247-1292] a Carlos, em resposta, sobejamente o demonstram), impugnou com muita erudição o culto às imagens contra o falso Sínodo de Nicéia, mas também reuniu um concílio em Frankfurt no ano 794 o qual condenou o Niceno e promulgou um decreto severo contra o culto às imagens. Que desde esse tempo os presidentes da igreja ocidental repudiaram constante e inteiramente toda veneração das imagens é tão evidente que Baronius e os editores da Biblioteca dos Pais (Patrum Bibliothecam) confessam (embora a contragosto) que os escritores mais eminentes daquela época sustentavam esta opinião, entre os quais estão Agobard, bispo de Lyons; Claudius de Turin; Jonas de Aurélia (Orleans) que de fato repreende Claudius por seu zelo imoderado em remover as imagens, porém concorda com ele em que de forma alguma deviam ser adoradas (De Cultu Imagimtm 1 [PL 106.305-342]; cf. Walafridus Strabo, De Ecclesiasticarum rerum exordiis et incrementis (PL 114.919-966). Isto foi mais fortemente confirmado no Sínodo de Paris por Luiz I (o Pio), filho de Carlos, reunido no ano 825, no qual o culto às imagens foi novamente condenado. Daí Pithou: “De fato, se desejarmos seriamente a verdade, nossos homens” [refere-se aos franceses] “muito recentemente começaram a afeiçoar-se às imagens” (“Praefatio”, Historia Miscellae a Paulo Aquilegiensi Diácono [1569], p. [16]). Não obstante, quantas e quão grandes comoções foram incitadas desde o século 8º acerca da produção e do culto às imagens entre os destruidores de imagens e os adoradores de imagens, tanto no oriente quanto no ocidente, e foram narradas pelos ilustres Plessaeus, em Mysterium iniquitatis seu historia papatus (1611), e Forbes, em Instructiones Historico-theologicae 7.12 (1645), pp. 563 [363]-356 [368]. O segundo, numa narração histórica concernente às imagens, mostra a constância dos franceses e dos alemães, mesmo naquela época, em rejeitar as imagens (cf. também Daille, De hnaginibus [ 1642].

    XVII. Antes do Concílio de Trento, muitos dentre os papistas censuraram a veneração das imagens e os notórios abusos oriundos de seu uso, como William Durand, bispo de Mimatum, John Billet (um teólogo parasiense), Gerson, Biel entre outros. Sim, enquanto o Concílio era estabelecido, Sebastian, eleitor de Mainz, reuniu um concílio provincial no qual foi decretado que as imagens deveriam ser postas nos templos, não para adoração ou para que lhes fosse prestado culto, mas somente para evocarem e fazerem lembrar aquelas coisas que devem ser adoradas (cf. Sarpi, Historie ofthe Council of Trent 3 [ 1620], p.296). Igualmente Catarina de Médici, rainha da França, no ano 1561 enviou uma carta a Pio IV, na qual entre outras coisas busca “que o uso de imagens proibido por Deus e condenado pelo santificado Gregório fosse removido imediatamente do lugar de adoração” (cf. Thuanus, Historiarum sui temporis 28 [1625], p. 563). No ano 1562, por seu mandado, Valcntinus e Sagiensis (bispos), Butillerius, Espensaeus e Picherellus foram escolhidos para se consultarem sobre o plano de travar união com os protestantes. Entre outras coisas, isto foi proposto: “que as representações da Santíssima Trindade fossem removidas dos templos, que as coroas e vestes não fossem postas nas imagens, votos e oferendas não lhes fossem feitos, e que não fossem levadas ao redor com súplicas; que o sinal da cruz não seja mais adorado”. Não obstante, desde aquele tempo (após a sanção do Concílio) o culto às imagens prevalece em toda parte na igreja romana. Contudo, sempre houve alguns (e ainda são muito á entre eles) que se envergonhavam de idolatria tão grosseira. Daí tantas distinções, pretextos e dissimulações são engendrados com o fim de disfarçar essa superstição e remover a ofensa de tão grande crime (argumentos com os quais nem eles mesmos conseguem satisfazer-se). Sim, Belarmino admite: “Se tratarmos da coisa em si, [admite-se] que as imagens podem ser adoradas impropriamente e por acidente com o mesmo tipo de culto com que o modelo é cultuado; mas, quanto à maneira de falar ao povo, não se deve dizer que alguma imagem deve ser adorada com latria” (“De Reliquiis et Imaginibus Sanctorum”, 22,23 em Opera [1857], 2. p. 500,501). Como se fosse errôneo dizer o que, não obstante, é correto fazer.

    XVIII. Quinto, as divergências dos papistas, e suas opiniões diversas e incertas (sim, inextricáveis) concernentes à adoração das imagens provam suficientemente a falsidade da doutrina. Enquanto alguns afirmam que as imagens devem receber o mesmo culto que o modelo (ou seja, as imagens de Deus, de Cristo e da cruz, o culto de latria; as imagens da bendita virgem, o de hiperdulia; e as dos santos, o de dulia - como Tomás de Aquino, com seus seguidores e muitos dos escolásticos), outros, contudo, designam um culto inferior ao do modelo (como Belarmino e outros); alguns opinam que devem ser adoradas propriamente e por si mesmas; outros, apenas por acidente, analógica e relativamente ao modelo. Portanto, visto que não há concordância nem mesmo entre os adoradores de imagens (quanto a se devem real e propriamente ser adoradas e com que tipo de culto), tal culto é falsamente prescrito ao povo, tendendo a introduzi-lo no mais iminente e constante perigo de idolatria. Pois quem há entre o povo (sim, mesmo entre as pessoas cultas) que entenda tais distinções ou possa corretamente aplicá-las quando entendidas, de modo que, por uma abstração mental, enquanto se curva diante da imagem, não lhe rende culto próprio, mas apenas um culto relativo e analógico, ou um culto apenas inferior ao seu protótipo? Quem, em contrapartida, não percebe que na prática as distinções teóricas engendradas pelos teólogos com o fim de escapar a tão terrível idolomania são confusas? De fato Belarmino não pôde ocultar isto e, falando da distinção entre “latria relativa e absoluta”, diz: “Aqueles que afirmam que as imagens devem ser adoradas com latria se vêem compelidos a usar as mais sutis distinções, as quais dificilmente eles mesmos entendem, muito menos o povo inculto” (ibid., 22, p. 500).1 ________________________________ [1] TURRETINI, Francis. Compêndio de Teologia Apologética. Ed. Cultura Cristã. São Paulo. 2011. p. 83-87.

Turrentini e a Crítica à Idolatria Papal

Pois, embora aqui, como em outras partes, falem hesitante e ambiguamente, querendo satisfazer quanto possível cada uma das partes discordantes, contudo desvendam suficientemente seu significado, quando apelam para o Segundo Concílio Niceno e aprovam tudo quanto foi nele sancionado concernente ao culto às imagens. As palavras estão na Sessão 25, onde aos bispos se ordena que “ensinem a invocação dos santos, honrem as relíquias e usem as imagens, e denunciem os que ensinam de outra forma, com pensamentos ímpios sobre aquilo que foi sancionado contra os opositores das imagens pelos decretos dos concílios, especialmente do Segundo Concílio Niceno” (Schroeder, pp. 215,216). Ora, todos sabem que este concílio (reunido no ano 787 e considerado por eles como sendo ecumênico) sancionou expressamente a adoração das imagens. Daí ele amaldiçoar os que, mesmo por um momento, duvidam que as imagens devem ser adoradas. “Cremos que as imagens dos anjos c dos santos gloriosos devem ser adoradas. Se alguém, contudo, não tiver essa disposição, porém labuta e hesita quanto à adoração das imagens dignas de adoração, o santo e venerável sínodo o anatematiza" (Segundo Concílio de Nicéia, Actione 7, em Mansi, 13:743). Não obstante, visto que para alguns a palavra “adoração” poderia parecer um tanto forte e se dispusessem a dizer em termos mais suaves “que as imagens devem ser reverenciadas”, o sínodo age pesado contra os mesmos: “Todos os que professam venerar as imagens sagradas, porém recusam adoração, o santo pai Atanásio prova que são hipócritas”; e ele diz que “desonram os santos” (Actione 4, Mansi, 13:597). Portanto, visto que o Concílio de Trento aprova tudo quanto foi sancionado naquele sínodo, é evidente que sua opinião era a mesma. [...]

E para que ninguém presuma que apenas o povo peca nessa prática, enquanto os principais doutores pensam diferentemente, não é difícil demonstrar que seus pontos de vista correspondem a esta prática. Daí Tomás de Aquino desejar que o culto de latreia seja rendido à cruz de Cristo, não menos que a Cristo mesmo. "Portanto, visto que Cristo deve ser adorado com a adoração de latreia, segue-se que sua imagem deve ser adorada com a mesma adoração” (ST, III, Q. 25, Art. 3*, p. 2155). Como de costume, Cajetano o segue, bem como Gabriel Biel - “Se há imagens de Cristo, elas devem ser adoradas com o mesmo gênero de adoração que é dada a Cristo, ou seja, a de latreia” (Canonis Misse Expositio 49 [org. H. Oberman e W. Courtenay, 1965], 2:264). A maioria dos doutores abraça esta opinião: Alexander [de Hales], Boaventura, Richard [de Middleton], Paludanus, Capreolus, Castro, Canisius, Turrianus e muitos outros, os quais, na conta de Vasquez, chegam a trinta (De Culiii Adorationis, Bk. 2, Disp. 8.3 [1594], p. 133). Aliás, ele contende com a maior energia que todas as coisas inanimadas podem ser adoradas com o culto de latreia - sim, mesmo a palha os raios solares, sob os quais o Diabo jaz oculto (ibid., Bk. 3, Disp. 1.2,3, pp. 183-189). Belarmino deseja que as imagens sejam adoradas não só em virtude do protótipo (ou da coisa significada), mas também em virtude de si mesmas, de modo que a veneração seja concluída na imagem (“De Reliquiis et Imaginibus Sanctorum”, 21 Opera [1857], 2:499-500). Pertinente aqui o fato de que, num culto solene e público, a própria cruz é invocada no hino entoado em sua adoração na quarta-feira da páscoa; pois, enquanto descobre a cruz, o sacerdote diz: “Eis o madeiro da cruz”: o coral responde: “Vinde, adoremos”; dirige-se a ela a oração: “Salve, ó Cruz, nossa única esperança neste tempo de Paixão, aumenta a justiça dos piedosos e outorga perdão ao culpado”. E para que ninguém presuma que isto é dito metonimicamente do crucifixo, imediata e expressamente é feita distinção dela: “somente tu és digna de pagar o preço do mundo”. Assim consta em Pontificale Romanum'. “A cruz do legado apostólico estará à mão direita, porque a ela se deve latreia, e a espada do imperador à esquerda” (Ordo ad recipiendum Imperatorem”, Pontificale Romanum Clemente VIII [1700], p. 645).

I. Confesso que esta opinião não agrada a alguns dentre os papistas, os quais afirmam que não se deve prestar nenhum culto às imagens de Deus, mas que devem só ser estimadas pela história e pela memória das coisas passadas. Não que a imagem mesma deva ser adorada, mas somente o modelo anterior à imagem. Esta era a opinião de Gregório, o Grande, o qual louva Serenus, bispo de Marselha, por condenar o culto às imagens, porem o culpa por quebrá-las: “Louvamos-te plenamente por haveres proibido sua adoração, porém te culpamos por as haveres quebrado; uma coisa è adorar um quadro; outra é aprender pela história de um quadro o que se deve adorar” (Letter 13, “To Serenus”, [NPNF2, 13:53; PL 77.1128]). Com ele concordam [William] Durand, bispo de Mimatum {Rationale [1481], Bk. IV. Quart. Canonis, fo. 64), Gerson, Chanceler de Paris (“Declaratio defectum Virorum Ecclesiasticorum”, n. 67 em Opera Omnia [1987 reimpr.], 2:318), Holchot, Tostatus entre outros sobre Deuteronômio 4 (“Preclarum... super Deuteronomium”, em Opera [ 1507-1531 ], pp. 11- 15). Tampouco merece dúvida que o mais devotado e perspicaz dentre os papistas se incline a esta opinião. Mas que não pode ser considerada como sendo a opinião legada pela igreja romana vê-se não somente com base em Belarmino e outros que energicamente a rejeitam como temerária e heretica, sendo que Baronius (no ano 794) diz que era insano quem assim pensasse (Annales Ecclesiastici [1868], Annus 794, 13:255-279) e Sirmondus a denomina “heresia dos gauleses” (cf. Concilia Antiqua Galliae [1629/1970], 2:191,192); mas especialmente no Concílio de Trento, o qual expressamente sanciona o culto às imagens.1 _______________________________________________________
[1] TURRRETINI, Francis. Compêndio de Teologia Apologética. Ed. Cultura Cristã. São Paulo, 2011. p. 78, 79.

quinta-feira, 20 de maio de 2021

Para Além da Questão Sexual; Ou: A Suécia e a "Igreja Trans"

    O recente caso da Igreja da Suécia levantou uma questão que deve ser ponderada para que seja possível uma resposta cristã à altura do desafio suscitado após a Igreja da Suécia abertamente ter se declarado uma "igreja trans". Muita gente aponta para alvos errados nessa questão que, no fundo, está muito para além do simples moralismo ou da questão da sexualidade, pois sempre que questões assim são levantadas há certa consideração a respeito da salvação, e como a igreja poderia incluir mais tipos de pessoas, ou mesmo que Deus é amor e que a igreja não pode condenar nenhum forma de amor etc. Todas essas questões implicam em julgamentos fundados mais em critérios que partem de juízos profundamente subjetivos etc. e em certa tendência que tende ver a igreja por um viés que tende a politizar todos os aspectos da vida, confundindo a questão da igreja com questões relacionadas a governos de tipo democrático etc., relação de clientela etc.

Em primeiro lugar é necessário indicar os limites da Igreja. A Igreja não é Deus e como tal não pode criar possibilidades de salvação a ninguém. Quem salva, ou melhor, quem causa a salvação é Deus, não a Igreja, sendo esta uma causa instrumental da salvação, tal como um pincel é causa instrumental de uma pintura em tela, não a causa eficiente desta pintura. Sendo assim não está na sua alçada criar possibilidades de salvação. A visão contrária a isso tem muito mais a ver com uma relação perturbada que volta e meia se desenvolve na igreja quando cristãos, ou não, veem a sua relação com a igreja como um cliente vê a sua relação com uma prestadora de serviços que está ali para oferecer produtos segundo as demandas subjetivas da clientela. O problema principal dessa visão perturbada está em que há uma nítida subversão que existe na entre o crente em Deus que está estruturada segundo as relação entre servo e Senhor. A Igreja é o lócus dessa relação entre Deus e o homem, e a Igreja só pode, nesse sentido, servir ao homem enquanto serve a Deus e à sua Palavra, não enquanto serve as disposições pessoas das pessoas, pois, entre outras coisas, são as disposições pessoais dos homens a causa dos problemas dos homem e não a solução.

Por outra, a questão da Igreja da Suécia não tem a ver simplesmente com sexualidade ou coisa do tipo, ainda que tangencie essa questão - e é oportuno lembrar que nem todo ato sexual heterossexual é aprovado pela igreja (nem mesmo entre casados). Também não tem a ver simplesmente com a questão de inclusão, levando em consideração também que toda inclusão implica em uma exclusão: a moral da igreja (radicada na Escritura) sempre defendeu um certo tipo de norma de conduta quanto à sexualidade, e a Escritura sempre prescreveu uma certa norma, o que significa dizer que incluir essa nova visão das coisas na igreja significa excluir toda uma outra forma de pensar da igreja e, por consequência, excluir todos aqueles que seguem o pensamento clássico da igreja quanto a essa questão. Avançar assim nessa matéria, ou subverter a teologia a norma da Palavra tal como registrada na Escritura Sagrada, é remontar Deus à nossa imagem e semelhança. No fundo, trata-se de feitiçaria, não de fé, já que é essencial a essa a disposição obediente diante das prescrições da Escritura, e violando a norma da Escritura a Igreja jamais poderá servir alguém.

Mas em tempo: isso não significa que os LGBTQ+ não devem ter acesso absoluto à vida da igreja, à assistência da Igreja ou ao amor da Igreja. O que se defende aqui é que tal relação deve ser mantida no mais absoluta e honesta ordem, onde não haja mútua traição e defraudação nessas relações, ou seja: onde a igreja a pretexto de serviço negue ser aquilo que é, e que gays ou LGBTQ+ também neguem ser o que não são. A Igreja, por isso, só poderá exercer o seu serviço enquanto for igreja, e quanto mais igreja for, mas serviço prestará. O que isso significa é que nesta relação não há qualquer transformação dialética por parte da igreja, pois a igreja não pode sair desta relação diferente do que ela é, ou seja, não pode deixar de ser igreja, pois não pode ser desmontada para que ela seja o que não é, sendo moldada segundo o gosto ou a questão suscitada no momento. A Igreja não possui nada que a determine de forma absoluta desde fora, e não está nem mesmo a mercê do desejo de quem a frequenta -, a Igreja serve à Palavra de Deus e a constituição desta é irreformável, pois é o princípio e a causa final de toda reforma possível. A Palavra (ou Logos divino) não é, em absoluto, determinada pela vontade ou pela necessidade nem mesmo dos que se declaram cristãos; Deus está acima da nossa vontade e é só por isso, por essa imutabilidade e invariação constitutivas da Palavra, é que somos salvos, pois esta salvação é estabelecida estritamente pela vontade de Deus e não contra esta vontade.

Mas isso não significa ausência de empatia ou mesmo simpatia, Todos nós temos, como qualquer trans, gay etc., nossos pathos pessoal, ou seja: necessidades, temores e ansiedades quanto às questões do presente ou quanto às questões do porvir. A nossa humanidade é, enquanto tal, o nosso fundamento comum, o nosso universal. Mas a questão de fundo ainda permanece: os temores, angústias e sofrimentos enquanto questões humanas não são fundamentos objetivos da fé, ainda que a fé a tudo isso responda. Isso é aqui pois do contrário a Igreja careceria de fundamentos objetivos e firmes, já que cada um de nós tem medos, anseios e carências distintas, e por vezes conflitantes entre si. A fé, ao contrário, só poderá fornecer uma resposta segura, se seguira ela for - e a segurança só pode ter a eternidade por fundamento. Fazer o contrário disso é cair em um subjetivismo enlouquecedor, fazendo de Deus, no fundo, os nossos anseios pessoais, os quais são contraditórios e conflitantes entre si. Nesse sentido a fé não poderia ser um ponto de chegada, ou seria um mal ponto de chegada já sua configuração seria a colisão de interesses e, no fim, o niilismo seria o Reino de Deus, abrindo caminho para a consideração de que a prescrição de conduta está no domínio do quem grita mais alto, ou de quem é brutalmente o mais forte entre nós. Muitos não percebem que ao defender coisas assim o único lugar para onde podemos está apontar é para o reino da tirania, assim como da arbitrariedade. A Palavra, ao contrário, estabelece um império de leis a que não está sujeita ao nosso arbítrio, estabelecendo regras claras, seja para o mais fraco, seja para o mais forte.

Ao abdicar da autoridade da Palavra a Igreja da Suécia só pode desembocar na arbitrariedade, na ausência clara de critérios de conduta, abrindo ao mundo não o Reino de Deus, mas sim pavimentando o caminho para a mais absoluta tirania, lá onde se cai não nas mãos de Deus, onde há infinitas misericórdias, mas nas mãos dos homens, os quais não estão capacitados conceder a misericórdia adequada e suficiente aos próprios homens.

quarta-feira, 19 de maio de 2021

A Crítica de Gregório de Nazianzeno à Teoria do Resgate

    Agora devemos examinar outro fato e dogma, negligenciado pela maioria das pessoas, mas, em meu julgamento, vale a pena investigar. Para quem foi aquele sangue oferecido que foi derramado para nós, e por que foi derramado? Refiro-me ao precioso e famoso Sangue do nosso Deus e Sumo Sacerdote e sacrifício. Fomos detidos em cativeiro pelo Maligno, vendidos sob o pecado, e recebemos o prazer iníquo em troca de maldade. Agora, uma vez que o resgate pertence apenas àquele que mantém em cativeiro, eu pergunto a quem isso foi oferecido, e por que causa? Se para o Maligno, que vergonha se o ladrão recebe resgate, não só por parte de Deus, mas um resgate que consiste no próprio Deus, e tem um pagamento tão ilustre por sua tirania, um pagamento pelo qual ele teria nos deixado em paz. Mas se o resgate fosse ao Pai, eu pergunto primeiro, como? Pois não era por ele que éramos oprimidos; e em seguida, em que princípio o Sangue de Seu Filho Unigênito deleita o Pai, Aquele não receberia nem mesmo o sangue de Isaac, quando estava sendo oferecido por seu Pai, mas mudou o sacrifício, colocando um carneiro no lugar da vítima humana? O Pai aceita esse sacrifício, mas não o pediu nem exigiu; mas por causa do Encarnação, e porque a Humanidade deve ser santificada pela Humanidade de Deus, e que o Pai pôde nos libertar e vencer o tirano, nos atraindo para si pela mediação de Seu Filho, que também providenciou isso para a honra do Pai, a quem é manifesto que Ele obedece em todas as coisas? Muito temos falado de Cristo; a maior parte do que falamos pode ser reverenciada com silêncio. Mas aquela serpente de bronze foi pendurada como um remédio para as serpentes mordedoras, não como um tipo daquele que sofreu por nós, mas como um contraste; e salvou aqueles que olharam para ela, não porque acreditavam que ela vivia, mas porque ela foi morta e morto com ele os poderes que estavam sujeitos a ela, sendo destruído como merecia. E qual é o epitáfio adequado para isso de nós? “Ó morte, onde está o teu aguilhão? Ó túmulo, onde é a tua vitória?" Tu és derrubado pela Cruz; tu estás morto por Aquele que é o Doador de vida; tu estás sem fôlego, morto, sem movimento, embora tu manteres o forma de uma serpente levantada no alto de um poste.[1] _____________________________________________________

[1] NAZIANZENO, Gregório de. Oratio 45.22.

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Assumiu a Pena que estava sobre Mim: 30 Citações sobre a Expiação Penal: De Cipriano de Cartago a João Calvino

    O texto que se segue trata-se de uma coletânea de citações não comentadas mas que faz parte de um projeto maior que está sendo desenvolvido e que visa discorrer sobre a a teologia da expiação na história da Igreja, enfatizando não a aplicação da expiação no homem, mas sim a expiação realizada na cruz, assim como discorrer especificamente sobre a compreensão dos reformadores acerca da expiação na cruz. No mais, este texto não necessita de maiores explicação.     Seguem as citações:

    Cipriano de Cartago (? - 249 d.C.)

Que ninguém se engane, que ninguém se engane. Só o Senhor pode ter misericórdia. Só ele pode conceder perdão por pecados que foram cometidos contra si mesmo, que desnudam nossos pecados, que nos entusiasmaram, a quem Deus entregou por nossos pecados. O homem não pode ser maior do que Deus, nem um servo pode se comprometer ou renunciar por sua indulgência o que foi cometido por um crime maior contra o Senhor, para que a pessoa não tenha sido adicionada ao seu pecado, se ele for ignorante que seja declarado, Amaldiçoado é o homem que coloca sua esperança no homem. O Senhor deve ser invocado com súplicas. O Senhor deve ser apaziguado por nossa expiação, que disse, que aquele que o nega Ele negará, que sozinho recebeu todo o julgamento de Seu Pai.[1]

Eusébio de Cesaréia (264 - 339 d.C.)

Mas desde que estava à semelhança da carne pecaminosa Ele condenou o pecado na carne, as palavras citadas são justamente usadas. E nisso Ele fez nossos pecados Seu próprio amor e benevolência em relação a nós, Ele diz estas palavras, acrescentando mais adiante no mesmo Salmo: "O Senhor me protegeu por causa da minha inocência", claramente declarando a impecabilidade do Cordeiro de Deus. E como Pode Ele fazer nossos pecados Seus próprios, e ser dito para suportar nossas iniquidades, exceto por sermos considerados como Seu corpo, de acordo com o apóstolo, que diz: "Agora vós são o corpo de Cristo, e vários membros"? E pela regra de que "se um membro sofre com todos os membros sofrem com isso", então quando muitos membros sofrem e pecam, Ele também pelas leis da simpatia (uma vez que a Palavra de Deus teve o prazer de tomar a forma de um escravo e ser perfurado no tabernáculo comum de todos nós) leva em si mesmo os trabalhos dos membros que sofrem , e faz de nossas doenças Sua, e sofre todas as nossas aflições e trabalhos pelas leis do amor. E o Cordeiro de Deus não só fez isso, mas foi castigado em nosso nome, e sofreu uma penalidade que Ele não devia, mas que devemos por causa da multidão de nossos pecados; e assim Ele se tornou a causa do perdão de nossos pecados, porque Ele recebeu a morte por nós, e transferiu para si mesmo o flagelo, os insultos e a desonra, que eram devidos a nós, e desceu sobre si mesmo a maldição repartida, sendo feito uma maldição para nós.[2]

[Moisés] diz claramente que o sangue das vítimas mortas é uma propiciação no lugar da vida humana. E a lei sobre os sacrifícios sugere que isso deve ser respeitado, se for considerado cuidadosamente. Pois, é necessário que aquele que está sacrificando sempre coloque suas mãos sobre a cabeça da vítima, e leve o animal ao sacerdote seguro por sua cabeça, como quem oferece um sacrifício em seu nome. Assim, ele diz em cada caso: “Ele o trará perante o Senhor e porá as mãos sobre a cabeça da oferta.” Esse é o ritual em todos os casos, nenhum sacrifício é feito de outra forma. E então o raciocínio sustenta que as vítimas são trazidas no lugar das vidas daqueles que as trazem.[3]

Atanásio de Alexandria (296 - 373 d.C.)

E os Salmos 88 e 69, novamente falando na própria pessoa do Senhor, dizem-nos ainda que Ele sofreu estas coisas, não para o Seu próprio bem mas para o nosso. Fizeste repousar sobre mim a Tua ira, diz um; e o outro acrescenta, paguei-lhes coisas que nunca tomei. Pois Ele não morreu como sendo Ele próprio sujeito à morte. Ele sofreu por nós, e suportou em Si mesmo a ira que foi a pena da nossa transgressão, mesmo como diz Isaías, Ele próprio suportou as nossas fraquezas.[4]

Visto que aqui também o ministério por meio dele se tornou melhor, naquilo que a Lei não podia fazer por ser fraca pela carne. Deus enviou Seu próprio Filho em semelhança de carne pecaminosa, e por causa do pecado condenou o pecado na carne "livrando-o da transgressão, na qual, sendo continuamente mantido cativo, ele não admitia a mente Divina". E tendo tornado a carne capaz da Palavra, Ele nos fez andar, não mais segundo a carne, mas segundo o Espírito, e dizer repetidamente: "Não estamos na carne, mas no Espírito" e "Pois o Filho de Deus veio ao mundo, não para julga-lo, mas para redimir todos os homens, e para que o mundo fosse salvo por ele". Anteriormente, o mundo, como culpado, estava sob o julgamento da Lei; mas agora a Palavra tomou sobre si mesmo o julgamento e, tendo sofrido no corpo por todos, concedeu a salvação a todos. Em vista disso, João exclamou: A lei foi dada por Moisés, mas a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo.[5]

Desta maneira, uma vez que todos nele morrem, a sentença de corrupção proferida contra os homens será ab-rogada, após ter sido inteiramente consumada no corpo do Senhor. De agora em diante não mais maltratará os homens, seus semelhantes. Ele reconduzirá à incorruptibilidade os homens que se haviam voltado à corrupção, vivificá-los-á, tirando-os da morte. Pela apropriação de corpo humano e pela graça da ressurreição, fará desaparecer, longe deles, a morte, qual palha no fogo.[6]

     Cirilo de Jerusalém (313 - 386 d.C.)

Agora o Gólgota é interpretado, o lugar de um crânio. Quem eram eles então, que profeticamente nomearam este local de Gólgota, no qual Cristo, a verdadeira Cabeça, suportou a Cruz? Como diz o Apóstolo, "Que é a Imagem do Deus Invisível"; e um pouco depois, "Ele é a Cabeça do corpo, a Igreja". E, novamente, "a cabeça de cada homem é Cristo"; e, novamente, "Que é o Chefe de todo o principado e poder". A cabeça sofreu no lugar do crânio.[7]

Essas coisas que o Salvador suportou, e fizeram as pazes através do sangue de Sua Cruz, para as coisas no céu, e as coisas na terra. Porque éramos inimigos de Deus através do pecado, e Deus tinha nomeado o pecador para morrer. Deve haver, portanto, necessidades ter acontecido uma das duas coisas; ou que Deus, em Sua verdade, deve destruir todos os homens, ou que em Sua bondade amorosa Ele deve cancelar a sentença. Mas eis a sabedoria de Deus; Ele preservou tanto a verdade de Sua sentença, quanto o exercício de Sua bondade amorosa. Cristo levou nossos pecados em Seu corpo na árvore, para que nós, por Sua morte, possamos morrer para o pecado, e viver até a justiça.[8]

    E não admira que o mundo inteiro tenha sido resgatado; pois não era um mero homem, mas o Filho unigênito de Deus, que morreu em seu lugar. Além disso, o pecado de um homem, mesmo o de Adão, teve poder de trazer morte ao mundo; mas se pela transgressão de uma morte reinou sobre o mundo, como não deve a vida reinar muito mais pela justiça do Um? E se por causa do fruto da árvore eles foram então expulsos do paraíso, os crentes agora não entrarão mais facilmente no paraíso por causa da Árvore [cruz] de Jesus? Se o primeiro homem formado da terra trouxe a morte universal, Aquele que o formou da terra não trará vida eterna, sendo Ele mesmo a Vida? Se Finéias, quando ele se tornou zeloso e matou o malfeitor, reprimiu a ira de Deus, Jesus não, que não matou outro, mas se entregou por um resgate, afastar a ira que está contra humanidade?[9]

Gregório de Nazianzeno (329 - 390 d.C.)

Tome, no próximo lugar, a sujeição pela qual você submete o Filho ao Pai. O que, você diz, Ele não é agora sujeito, ou, se Ele é Deus, está sujeito a Deus? Você está modelando seu argumento como se se ocupasse de algum ladrão, ou de alguma didade hostil. Mas olhe para ele desta maneira: que, como para o meu bem, ele foi chamado de maldição, que destruiu a minha maldição; e pecado, que tira o pecado do mundo; e se tornou um novo Adão para tomar o lugar do velho, só para que Ele faça a minha desobediência Sua própria como Chefe de todo o corpo.[10]

Ambrósio de Milão (340 - 397 d.C.)

Jesus assumiu a carne de modo a destruir a maldição da carne pecaminosa, e tomou-Se maldição em nosso lugar para que a maldição desaparecesse devido à bênção... Ele também assumiu a morte sobre Si para que a sentença fosse executada, de maneira que cumprisse o julgamento de que a carne pecadora deve ser amaldiçoada até a morte. De modo que nada se fez contrário à sentença divina, visto que tais estipulações foram cumpridas.[11]

Adão está no deserto, no deserto está Cristo: pois ele sabia onde encontrar o condenado para dissipar sua distração e trazê-lo de volta ao paraíso; mas como ele não poderia voltar a ele coberto com os despojos deste mundo, como ninguém pode ser um residente do céu sem ser privado de toda culpa, ele deixou o velho [re]vestido com o novo: assim, como os decretos divinos não podem ser revogados, haveria mudança de pessoa ao invés de comutação de sentença.[12]

Então você aprendeu que Ele ofereceu o sacrifício a partir da nossa natureza. Qual foi a causa da Encarnação exceto que a carne que pecou pode ser redimida por meio em si?[13]

Agostinho de Hipona (354 - 430 d.C.)

A casta união conjugal não é culpada, mas o pecado original acarreta a merecida pena. O marido não é mortal enquanto tal, mas devido ao pecado. O Senhor também era mortal, mas não por causa de algum pecado. Aceitou a pena que merecíamos, e assim apagou a nossa culpa. Com razão, portanto, todos morrem em Adão, mas em Cristo todos são vivificados (cf. 1Co 15,22)[14].

Se fez maldição por nós', como não teme dizer: por todos. Este que morreu é o mesmo que se fez maldição; porque a mesma morte parte da maldição e maldição é todo pecado, tanto aquele do qual se segue o castigo, como o próprio castigo [morte], que com outro nome se nomeia pecado, que procede do pecado. Cristo tomou sobre si, sem culpa, o nosso castigo, para apagar a nossa culpa e para por fim ao nosso castigo.[15]

Se lemos: "Maldito por Deus é todo aquele que está pendurado no madeiro", o acréscimo das palavras "de Deus" não cria nenhuma dificuldade. Pois, se Deus não tivesse odiado o pecado e nossa morte, Ele não teria enviado Seu Filho para suporta-los e aboli-los. E não há nada de estranho em Deus amaldiçoar o que Ele odeia, pois Sua prontidão em nos dar a imortalidade que obteremos na vinda de Cristo é proporcional à compaixão com que Ele odiou nossa morte quando ela foi pendurada na cruz na morte de Cristo. E se Moisés amaldiçoa todo aquele que está pendurado em uma árvore, certamente não é porque ele não previu que os homens justos seriam crucificados, mas sim porque Ele previu que os hereges negariam que a morte do Senhor fosse real, e tentariam refutar a aplicação desta maldição a Cristo, a fim de que eles possam refutar a realidade de Sua morte.

[...] Maldito todo aquele que é pendurado no madeiro; não este ou aquele, mas absolutamente todos. O que! O filho de Deus? Sim, com certeza. É exatamente a isso que você se opõe e da qual está tão ansioso para escapar. Você não vai permitir que Ele foi amaldiçoado por nós, porque você não vai permitir que Ele morreu por nós. A isenção da maldição de Adão implica a isenção de sua morte. Mas, como Cristo suportou a morte como homem e pelo homem; assim também, Filho de Deus como Ele era, sempre vivendo em Sua própria justiça, mas morrendo por nossas ofensas, Ele se submeteu como homem, e pelo homem, para suportar a maldição que acompanha a morte. E como Ele morreu na carne que Ele recebeu ao suportar nossa punição, assim também, enquanto sempre abençoado em Sua própria justiça, Ele foi amaldiçoado por nossas ofensas, na morte que Ele sofreu ao suportar nossa punição.

[...[ O crente na verdadeira doutrina do evangelho compreenderá que Cristo não é reprovado por Moisés quando fala Dele como amaldiçoado, não em Sua majestade divina, mas pendurado na árvore como nosso substituto, suportando nosso castigo [...] Agora, o castigo do pecado não pode ser abençoado, ou então seria algo a ser desejado. A maldição é pronunciada pela justiça divina, e será bom para nós se formos redimidos dela. Confesse então que Cristo morreu, e você pode confessar que Ele carregou a maldição por nós [...] Então ele exclama: Amaldiçoado; significando que Ele realmente morreu. Ele sabia que a morte do homem pecador, que Cristo, embora sem pecado, suportou, veio daquela maldição: “Se você tocar nela, certamente morrerá”.[16]

    Cirilo de Alexandria (376 - 444 d.C.)

A cruz, então, que Cristo carregou, não foi pelos seus próprios méritos, mas foi a cruz que nos esperava, e nos era devida, por meio de nossa condenação pela lei. Pois assim como Ele foi contado entre os mortos, não por Si mesmo, mas por nós, para que pudéssemos encontrar Nele, o Autor da vida eterna, subjugando por Si mesmo o poder da morte; assim também, Ele tomou sobre Si a Cruz que nos era devida, transmitindo sobre Si a condenação da Lei, para que a boca de toda iniquidade pudesse doravante ser calada, de acordo com a palavra do Salmista; o Imaculado tendo sofrido condenação pelo pecado de todos.[17]

E o título continha um escrito contra nós: a maldição que, pela Lei Divina, pair asobre os transgressores, e a sentença que foi contra todos os que erraram contra essas antigas portarias da Lei, como a maldição de Adão, que foi contra toda a humanidade, na qual todos quebraram os decretos de Deus. Pois a ira de Deus não cessou com a queda de Adão, mas Ele também foi provocado por aqueles que depois dele desonraram o decreto do Criador; e a denúncia da Lei contra transgressores foi estendida continuamente sobre todos. Estávamos, então, amaldiçoados e condenados, pela sentença de Deus, através da transgressão de Adão, e através da violação da Lei estabelecida depois dele; mas o Salvador aniquilou o escrito contra nós, pregando o título de Sua Cruz, que claramente apontou para a morte sobre a Cruz que Ele sofreu para a salvação dos homens, que estavam sob condenação. Para nosso bem, ele pagou a pena pelos nossos pecados. Pois embora fosse aquele que sofreu, estava muito acima de qualquer criatura, como Deus, e mais era precioso do que a vida de todos. Portanto, como diz o salmista, a boca de toda foi interrompida, e a língua do pecado foi silenciada, incapaz de falar mais contra os pecadores. Pois estamos justificados, agora que Cristo pagou a pena para nós; pois por Suas pisaduras estamos curados, de acordo com as Escrituras.[18]

    Gregório Magno (540 - 604 d.C.)

    Mas devemos considerar como Ele é justo e ordena todas as coisas com justiça, mesmo quando condena aquele que não merece ser punido. Pois, o nosso mediador não merecia ser punido por si mesmo, porque Ele nunca foi culpado de qualquer contaminação do pecado. Porém, se Ele não tivesse sofrido uma morte que não lhe fosse devida, nunca teria nos libertado de uma morte que era devida com justiça a nós. E assim, enquanto 'O Pai é justo', ao punir um homem justo, 'Ele ordena todas as coisas justamente’. É por estes meios Ele justifica todas as coisas, tendo em vista que por causa dos pecadores, Ele condena aquele que não tem pecado para que todos os eleitos pudessem ser elevados a altura da justiça, na mesma proporção que Ele que, acima de todos, sofreu as punições de nossas injustiças. O que então está naquele lugar chamado de 'ser condenado sem merecimento', é aqui referido como sendo 'condenado sem causa’. No entanto, embora a respeito de si mesmo Ele tenha sido 'afligido sem causa', em relação aos nossos atos não foi 'sem causa. Pois a ferrugem do pecado não poderia ser removida, a não ser pelo fogo do tormento. Ele então veio sem pecado, e deveria se submeter voluntariamente ao tormento, para que os castigos devidos à nossa maldade pudessem com justiça perder as partes detestáveis, visto que injustamente haviam mantido Ele, que estava livre delas. Assim, foi ambos – com causa e sem causa - que Ele foi afligido, pois realmente ele mesmo não cometeu crimes, mas limpou com seu sangue a mancha de nossa culpa.[19]

Portanto, deixe o homem santo se lembrar de onde a raça humana escapou, deixe-o olhar para as desgraças da morte eterna, sendo claro que a justiça humana nunca poderia resistir. Deixe-o ver quão perversamente o homem tem ofendido, deixe-o ver quão severamente a ira do Criador é dirigida contra o homem, e que ele clame pelo Mediador entre Deus e o homem [...] Pois o Redentor da Humanidade foi feito Mediador entre Deus e o Homem através da carne, porque só Ele apareceu justo entre os homens. Ainda que sem pecado, Ele veio para suportar a punição do pecado [...] Ele deu exemplos de inocência quando levou sobre Si o castigo devido à maldade. Assim, pelo seu sofrimento, Ele convenceu a Um e a outro, pois ele tanto repreendeu o pecado do homem infundindo-lhe a justiça como abrandou a ira do Juiz através de sua morte. Ele impôs Sua mão sobre ambos, uma vez que Ele deu exemplos aos homens que eles poderiam imitar, e exibiu em Si mesmo aquelas obras para Deus, pelas quais Ele poderia ser reconciliado com os homens. [...] Assim, Ele impôs Sua mão sobre ambos, pois pelos mesmos passos ensinou as boas obras aos culpados, e também apaziguou o indignado Juiz.[20]

Martinho Lutero (1483 - 1546 d.C.)

    Desse conhecimento de Cristo e dessa consolação tão agradável de que Cristo foi feito maldição em nosso lugar para nos resgatar da maldição, privam-nos os sofistas, quando separam Cristo dos pecados e dos pecadores e o apresentam apenas como exemplo que deve ser imitado por nós. Desse modo, não apenas tornam Cristo inútil para nós, mas, também, o constituem como juiz e tirano, que se irrita com os pecados e condena os pecadores.

    Mas nós devemos envolver Cristo em nossa carne e sangue e reconhecer que, da mesma maneira como ele está envolto na carne e no sangue, também o é nos pecados, na maldição, na morte e em todos os nossos males. Mas, na opinião deles, é um grande absurdo e uma afronta chamar o Filho de Deus de pecador e de maldição. Se queres negar que ele é um pecador e uma maldição, nega também que ele sofreu, foi crucificado e morreu. Pois não é menos absurdo dizer que o Filho de Deus, como nosso Credo confessa e ora, foi crucificado, suportou as penas do pecado e da morte, do que dizer que ele é um pecador e uma maldição. No entanto, se não é um absurdo confessar e crer que Cristo foi crucificado entre ladrões, também não é um absurdo dizer que ele foi uma maldição e um pecador dos pecadores. Certamente, não são inúteis as palavras de Paulo: "Cristo foi feito maldição em nosso lugar" e: "Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus".

    Da mesma forma, João Batista o chama de "Cordeiro de Deus", etc. Ele, com efeito, é inocente, porque é o Cordeiro imaculado e incontaminado de Deus. No entanto, como carrega os pecados do mundo, a sua inocência é suprimida com os pecados e a culpa de todo o mundo. Quaisquer pecados que eu, tu e nós todos cometemos e, no futuro, cometeremos, são de tal modo os pecados de Cristo como se ele mesmo os tivesse cometido. Em poucas palavras, importa que o nosso pecado se torne o próprio pecado de Cristo, do contrário, pereceremos eternamente. Esse conhecimento verdadeiro de Cristo, que nos transmitiram Paulo e os profetas, os ímpios sofistas obscureceram.[21]

    E este é o nosso supremo consolo de revestir-nos de Cristo e envolvê-lo em meus, em teus e nos pecados de todo o mundo, vendo-o carregar todos os nossos pecados. Se é visto desse modo, ele, facilmente, remove as opiniões fanáticas dos adversários a respeito da justificação por obras. Pois os papistas sonham com uma fé formada pelo amor por cujo intermédio querem remover os pecados e ser justificados. Isso é despir inteiramente a Cristo, desembaraçá-lo dos pecados, fazê-lo inocente e carregar e esmagar-nos a nós mesmos com nossos próprios pecados, encarando-os não em Cristo, mas em nós mesmos. Isso é, verdadeiramente, abolir a Cristo e torná-lo inútil. Pois, se é verdade que abolimos o pecado pelas obras da lei e pelo amor, então, não é Cristo que os tira, mas nós. Mas, se ele é, verdadeiramente, o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo, foi feito maldição em nosso lugar e foi envolvido em nossos pecados, então, necessariamente, conclui-se que não podemos ser justificados e tirar os pecados pelo amor, pois Deus não colocou os pecados sobre nós, mas sobre Cristo, seu Filho. Se eles são tirados por ele, não podem ser tirados por nós. Isso toda a Escritura afirma e nós confessamos e oramos o mesmo no Credo, quando dizemos: "Creio em Jesus Cristo, o Filho de Deus, que padeceu, foi crucificado e morto por nós".

    Essa é a mais agradável de todas as doutrinas e a mais plena de consolo, que ensina que temos essa inefável e inestimável misericórdia e esse amor de Deus. Quando o Pai misericordioso viu que estávamos sendo oprimidos pela lei e sujeitos à maldição e nada nos poderia libertar dessa situação, ele enviou, por esse motivo, seu Filho ao mundo, sobre o qual lançou todos os pecados de todos os homens e disse a ele: "Tu és Pedro, que te negou; tu és Paulo, o perseguidor, blasfemador e homem violento; tu és Davi, o adúltero; tu és o pecador que comeu o fruto no paraíso; tu és o ladrão na cruz. Numa palavra, tu és a pessoa de todos os homens que cometeu os pecados de todos os homens. Pensa, pois, como os pagarás e farás satisfação por eles". Nesse momento vem a lei e diz: "Considero esse homem um pecador que assumiu sobre si os pecados de todos os homens e, além disso, não vejo nenhum pecado, a não ser os que estão sobre ele. Que morra, portanto, na cruz!" E, assim, ela o ataca e mata. Por esse feito, todo o mundo é purificado e remido de todos os pecados e, portanto, também Libertado da morte e de todos os males. Uma vez abolidos o pecado e a morte, por esse homem singular, Deus não gostaria de ver nada mais, em todo o mundo, sobretudo se cresse, a não ser mera purificação e justiça. E, se permanecessem alguns restos de pecado, Deus não os consideraria por causa desse sol, que é Cristo.

    Assim, pois, devemos exaltar o artigo da justiça cristã em oposição à justiça da lei e das obras, ainda que não haja palavra alguma nem eloquência que possa concebê-lo dignamente, muito menos, exprimir sua grandeza. É, por isso, o argumento do qual Paulo trata aqui, o mais poderoso e o mais elevado de todos contra todas as justiças da carne, pois contém essa invencível e irrefutável antítese, a saber: Se os pecados de todo o mundo estão sobre esse único homem, Jesus Cristo, então, não estão sobre o mundo. Mas, se não estão sobre ele, estão, ainda, sobre o mundo. Da mesma forma: Se Cristo mesmo é feito culpado por todos os pecados que nós todos cometemos, então somos absolvidos de todos os pecados, mas não por causa de nós mesmos, ou por causa de nossas obras ou méritos, mas por causa dele. Se, contudo, é inocente e não carrega os nossos pecados, então nós os carregamos e neles morreremos e seremos condenados. "Mas, graças a Deus, que nos dá a vitória por intermédio de nosso Senhor Jesus Cristo" [Co 15.57]. Amém.[22]

    Recebamos, pois, com ações de graça e com inabalável confiança essa doutrina tão suave e tão plena de consolo que ensina que Cristo foi feito maldição por nós, isto é, pecador culpado da ira de Deus e que revestiu-se de nossa pessoa e colocou em seus ombros os nossos pecados e disse: "Eu cometi os pecados que todos os homens cometeram". Por isso, ele, verdadeiramente, tornou-se amaldiçoado, não por causa de si mesmo, mas, como diz Paulo: yper ernon [por nós]. Pois, se ele não tivesse recebido em si mesmo os meus, os teus e os pecados de todo o mundo, a lei não teria tido nenhum direito sobre ele, porque condena e mantém sob a maldição, apenas, (sic) os pecadores. Por isso, jamais poderia ter se tornado um amaldiçoado nem ser morto se a causa da morte e da maldição fosse o pecado do qual era imune. Mas, porque assumiu os nossos pecados, não porque fosse coagido, mas voluntariamente, era preciso que ele suportasse o castigo e a ira de Deus, não pela sua pessoa que era justa e invencível e, por isso, não podia tomar-se culpada, mas por causa de nossa pessoa.[23]

    Assim, por meio de uma feliz permuta conosco, recebeu nossa pessoa pecaminosa e nos deu a sua inocente e vitoriosa pessoa. Por ela, cobertos e vestidos, somos libertados da maldição da lei, porque o próprio Cristo tomou-se maldição em nosso lugar, dizendo: "Eu, por causa de minha pessoa humana e divina, sou abençoado e não careço de absolutamente nada, mas me esvaziarei, assumirei a vossa vestimenta e máscara e, nela, andarei e sofrerei a morte, a fim de que vos liberte da morte. E, como carregasse, dessa maneira, o pecado de todo o mundo em nossa máscara, ele foi preso, crucificado, morto e feito maldição em nosso lugar. Mas, porque ele era uma pessoa eterna e divina. foi impossível que a morte o retivesse. Ressuscitou, portanto, da morte no terceiro dia e, agora, vive eternamente e não mais se encontram nele o pecado, a morte e a nossa máscara. mas pura justiça, vida e bênção eternas[24].

    A fé une a alma com Cristo como uma noiva é unida com seu noivo [...]. Assim, segue-se que tudo que eles têm é comum aos dois, seja bom ou mau. Dessa maneira, o crente pode se gabar e se gloriar em qualquer coisa que Cristo possui, como se fosse seu; e o que quer que o crente tenha, Cristo reivindica como seu. Vejamos como isso funciona e como isso nos beneficia. Cristo é cheio de graça, vida e salvação. A alma humana é cheia de pecado, morte e danação. Agora deixe a fé intervir entre eles. Pecado, morte e danação passam a ser de Cristo; e graça, vida e salvação passam a ser do crente.[25]

João Calvino (1509 - 1564 d.C.)

    Consideremos agora o contraste entre justiça e pecado. Como é possível que nos tornemos justos diante de Deus? Da mesma forma como Cristo se fez pecador. Porque ele assumiu, por assim dizer, nossa pessoa, de modo que ele pôde ser o infrator em nosso lugar e, assim, ser considerado pecador, não em razão de suas próprias ofensas, mas em razão das ofensas alheias, visto que, pessoalmente, Ele era puro e livre de toda e qualquer mancha e cancelou a penalidade que era nossa, e não dEle próprio.[26]

    O outro requisito de nossa reconciliação com Deus era este: que o homem, que se havia perdido por sua desobediência, à guisa de remédio contrapusesse a obediência, satisfizesse ao juízo de Deus, pagasse integralmente as penalidades do pecado. Portanto, nosso Senhor adiantou-se como verdadeiro homem, revestiu-se da pessoa de Adão, assumiu-lhe o nome, para que, em obedecendo-lhe, fizesse as vezes do Pai, para que apresentasse nossa carne como o preço de satisfação ao justo juízo de Deus, e na mesma carne pagasse completamente a pena que havíamos merecido. Uma vez que, afinal, nem podia, como somente Deus, sentir a morte, nem como somente homem podia superá-la, associou a natureza humana com a divina, para que sujeitasse à morte a fraqueza de uma, no afã de expiar pecados; e, sustentando luta com a morte pelo poder da outra, nos adquirisse a vitória. Logo, aqueles que despojam a Cristo ou de sua divindade, ou de sua humanidade, na realidade lhe diminuem tanto a majestade quanto a glória, obscurecem igualmente sua bondade. Mas, por outro lado, não menos detrimento causam aos homens, cuja fé assim abalam e subvertem, a qual não pode permanecer firme a não ser neste fundamento.[27]

    Mas, visto que só no sacrifício e na ablução com que se expiam os pecados as consciências aterrorizadas acham descanso, somos, com razão, para aí dirigidos, e então na morte de Cristo se nos depara a essência da vida. Todavia, visto que ante o tribunal celeste de Deus permanecia nossa maldição resultante da culposidade, menciona-se, em primeiro lugar, a condenação perante o procurador da Judéia, Pôncio Pilatos, para que saibamos que a pena a que havíamos de sujeitar-nos fora infligida ao Justo. Não podíamos fugir ao horrível juízo de Deus. Para que daí nos livrasse, Cristo se deixou condenar diante de um homem mortal, aliás, até mesmo ímpio e profano. Pois, o nome do procurador é expresso não só para confirmar a fidedignidade da história, mas ainda para que aprendamos o que Isaías ensina: “Sobre ele esteve o castigo de nossa paz, e por sua pisadura fomos curados” [Is 53.5]. Ora, nem era bastante que, a fim de tolher-nos a condenação, arrostasse ele qualquer modalidade de morte. Pelo contrário, para que nos satisfizesse à redenção, foi-lhe imposto escolher um gênero de morte em que, não só transferisse para si a condenação, mas também tomasse sobre si a expiação, e de uma e outra nos livrasse. Se Cristo tivesse sido degolado por assaltantes ou tumultuariamente morto em uma sedição do poviléu, em morte desse tipo nenhuma espécie de satisfação teria subsistido. Quando, porém, é ele colocado diante do tribunal como réu, é acusado e é premido de testemunhos contrários, é sentenciado à morte pela boca do próprio juiz. Com essas provas compreendemos que ele assumiu a pessoa de um criminoso e malfeitor.[28]

    Além disso, a própria forma da morte de Cristo não carece de grande mistério. A cruz era maldita não apenas na opinião humana, mas também por decreto da lei divina [Dt 21.23]. Logo, enquanto é nela alçado, Cristo se faz sujeito à maldição. E se impôs agir assim para que, enquanto ela é transferida para ele, eximidos fôssemos de toda maldição, a qual, em conseqüência de nossas iniqüidades, nos estava reservada, ou, antes, pendia sobre nós. Isto fora prefigurado até mesmo na lei. Pois as vítimas oferecidas pelos pecados e no Antigo Testamento eram expiatórias, as chamavam ASCHAMOT, vocábulo com que, com propriedade, se designa o próprio pecado. Com esta aplicação do termo, o Espírito quis indicar que elas equivaliam a καθαµάτων [katharmáton – sacrifícios ou ritos de purificação], que tomariam sobre si e susteriam a maldição devida às transgressões. O que, porém, fora representado figurativamente nos sacrifícios mosaicos, isso se exibe em Cristo, atualizado no arquétipo. Portanto, para que levasse a efeito a justa expiação, ofereceu ele a própria vida como um ascham, isto é, um sacrifício expiatório do pecado, como o diz o Profeta [Is 53.10], sobre o qual lançada, de certa maneira, a mancha e a pena, para que deixe de ser-nos ele imputado. Mais explicitamente, isto mesmo testifica o Apóstolo, quando ensina que “Aquele que não conhecera pecado, foi pelo Pai feito pecado por nós, para que nele fôssemos feitos justiça de Deus” [2Co 5.21]. Ora, o Filho de Deus, absolutamente limpo de toda mácula, revestiu-se, entretanto, do opróbrio e da ignomínia de nossas iniqüidades, e por seu turno nos cobriu de sua pureza. O mesmo parece ter Paulo contemplado quando, em referência ao pecado, ensina ter sido o mesmo condenado em sua carne [Rm 8.3]. Pois, de fato, o Pai anulou o poder do pecado, quando a maldição foi transferida para a carne de Cristo. Indica-se, portanto, com esta afirmação, que em sua morte Cristo foi imolado ao Pai como vítima expiatória, para que, efetuada propiciação por seu sacrifício, não mais nos apavoremos com a ira de Deus.[29]

    Cristo foi pendurado. Com toda certeza, porém, ele não sofreu tal castigo por sua própria culpa. Segue-se, pois, ou que ele foi crucificado em vão, ou que a nossa maldição foi lançada sobre ele para que pudéssemos ficar livre dela. Ora, o apóstolo não diz que Cristo era maldito, porém algo mais, a saber: que ele se fez maldição, significando que a maldição de todos nós foi lançada sobre ele. Se isso parece abrupto a alguém, que o tal também se envergonhe da cruz de Cristo, em cuja confissão nos gloriamos. Deus não ignorava o tipo de morte que seu filho morreria, quando pronunciou: "Maldito todo aquele que for pendurado no madeiro".

    Mas, como é possível, que o Bem-Amado Filho fosse amaldiçoado por seu Pai? Minha resposta é que há duas coisas a serem consideradas, não só na pessoa de Cristo, mas também em sua natureza humana. Uma é que ele era o imaculado Filho de Deus, cheio de benção e graça. Outra é que ele assumiu o nosso lugar, e assim se tornou um pecador sujeito à maldição, não em si mesmo, mas em nós; toda via de tal maneira que lhe era indispensável agir em nosso nome. Ele não podia estar fora da graça de Deus, e no entanto suportou a sua ira. Pois como poderia reconciliar-nos consigo se considerasse o Pai um inimigo e fosse odiado por Ele? Portanto, a vontade do Pai sempre repousou sobre ele. Além disso, como poderia ele ter-nos livrado da ira de Deus se não a houvesse transferido para si próprio?[30]

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[1] CIPRIANO DE CARTAGO. De Lapsis. 17.

[2] EUSÉBIO DE CESARÉIA. Demonstratio Evangelica. Lib. 10.1.

[3] Ibidem. 1.10.

[4] ATANÁSIO DE ALEXANDRIA. Carta a Marcelino.

[5] Idem. Oratio Contra Arianos. 1.60.

[6] Idem. A Encarnação do Verbo. 8.4. Ed. Paulus 2015. P. 135
[7] CIRILO DE JERUSALÉM. Orações Catequéticas. 13.23.

[8] Ibidem. 13.33.

[9] Ibidem. 13.2.

[10] NAZIANENO, Gregório de. Oração. Quarta Oração Teológica. 30.5.

[11] AMBRÓSIO. De Fuga Saeculi. 44. apud. KELLY, J. N. D. A Patrística. Ed. Vida Nova 2009. p. 295, 296.

[12] Idem. Expositio evangelii Lucas. 4.7

[13] Idem. The Sacrament of the Incarnation of Our Lord. 56. Ed. The Catholic University of America Press 1963. p. 268 – tradução feita por mim.

[14] AGOSTINHO. Comentário aos Salmos: Salmos 1-50. Salmo 50.10.7. Patrística 9/1. Ed. Paulus 1ª ed. 1997. 4ª reimp. 2017. p. 909.

[15] Idem. Contra Faustum Manichaeum Libri Triginta Tres. 14.4.

[16] Ibidem. 14.6, 7.

[17] CIRILO DE ALEXANDRIA. Comentários sobre João. Livro 12. João 19.16.

[18] Ibidem. João 19.19.

[19] MAGNO, Gregório. Morals on the Book of Job. Vol I. Part 1 and 2. Oxford 1844. 3.27. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=jfAXAAAAYAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=onepage&q&f=false

[20] Ibidem. 9.61.

[21] LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas Vol. 10. Comentário à Epístola aos Gálatas. Gálatas 3.13. Ed. Sinodal. 2008. p. 267, 268.

[22] Ibidem. p. 269, 270.

[23] Ibidem. p. 272, 273.

[24] Ibidem. p. 273

[25] Idem. Weimarer Ausgabe.7.25-6

[26] ​CALVINO, João. Comentário à Segunda Carta aos Coríntios. Ed. Fiel
2008. p. 16

[27] Idem. Institutas da Religião Cristã Vol. 2. Cap. XII.3 Ed. Casa
Editora Presbiteriana 1985. p.232.

[28] ​Ibidem. cap. XVI.5. p. 274.

[29] ​Ibidem. cap. XVI.6. p. 275, 276.

[30] Idem, Gálatas. 3.13. Edições Pracletos 1998. p. 94, 95.