quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

O Homem Ante a Divina Majestade - Do Terror Numinoso

   Daqui esse terror e espanto com que, a cada passo, apregoa a Escritura haverem sido tocados e afligidos os santos, quantas vezes sentiam a presença de Deus. Quando, pois, vemos aqueles que, em Lhe não considerada a presença, seguros firmes se mostravam, mas, em manifestando Ele Sua glória, tão abalados e aterrados se quedavam, como que a prostrá-los o pavor da morte, mais até, a tragá-los, e quase aniquilados, é de construir-se daí que o homem não é jamais tangido e afetados suficientemente pelo senso de sua indignidade, senão depois que se comparou com a majestade de Deus.
   E desta consternação numerosos exemplos os temos, tanto em Juízes quanto nos Profetas. Tanto assim, que essa expressão se veio a tornar costumeira entre o povo de Deus: "Morreremos, pois que nos apareceu o Senhor". De igual modo, também a história de Jó, com o fito de quebrantar os homens pelo reconhecimento de sua estultícia, fraqueza e corruptibilidade, sempre o mais importante argumento extrai da descrição da divina sabedoria, poder e pureza [Jó 38.1-40.5]. E nem seu causa, pois vemos como Abraão melhor se reconhece terra e pó desde que mais próximo se chegou à contemplação da glória do Senhor [Gn 18.27].; como Elias Lhe não ousa de face descoberta atentar à manifestação [I Rs 19.13], tanto de terror Lhe há na presença.
   E que haja de fazer o homem, podridão [Jó 13.28] e verme que é [Jó 5.7; Sl 22.6], quando até mesmo os próprio Querubins deviam velar o rosto, movidos desse pavor? [Is 6.2 - na verdade se fala aqui de Serafins]. É isto, com efeito o que diz o profeta Isaías: "Enrubescer-se-á [se envergonhará] o sol e confundir-se-á a lua, quando o Senhor dos Exércitos vier reinar" [Is 24.23], isto é, quando revelar Seu fulgor, e mais perto o trouxer, diante dele de trevas se obscurecerá o que quer que seja que mais de esplendífero haja [Is 2.10, 19].

João Calvino - Institutas da Religião Cristã. cap. I.3

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Lutero e a Ideia de Deus

   A ideia de Deus nos escritos de Lutero é uma das mais importantes na história do pensamento humano e cristão. Não se trata de um Deus ao lado de outros; só o encontramos por meio de contrastes. O que se oculta de Deus se vê no mundo, e o que se oculta no mundo se vê em Deus.
   "Quais são as virtudes (isto é, poderes de ser) de Deus? Enfermidade, paixão, cruz e perseguição: são as armas de Deus". "O poder humano esvazia-se na cruz, mas na fraqueza da cruz o poder divino se faz presente". Sobre o estado dos seres humanos Lutero dizia: "Ser humano significa não-ser; vir a ser e ser. Significa estar em falta, em possibilidade, em ação. Significa viver sempre em pecado, em justificação e em justiça. Significa sempre ser pecador, penitente e justo". Com esse modo paradoxal de falar, Lutero expressava a sua ideia de Deus. Deus só podia ser visto por meio de contrastes.
   Negava tudo o que pudesse dar a ideia de finidade em Deus ou de que Deus fosse um ser entre outros. "Entre as coisas menores, Deus é ainda menor. Entre as maiores, maior. É indizível, acima e fora de tudo o que podemos nomear e pensar. Quem sabe o que é Deus? Situa-se além do corpo e do espírito e de tudo o que podemos dizer, ouvir e pensar". Afirmava que Deus estava mais próximo de nós do que nós mesmos. "Deus descobriu o modo de estar presente completamente em todas as criaturas, e em cada uma especialmente, com mais profundidade, mais internamente do que a própria criatura se acha presente a si mesma. Mas não está localizado em nenhum lugar e não pode ser compreendido por ninguém, de tal maneira que tudo abrange e está no âmago de todas as coisas. Deus está ao mesmo tempo totalmente em cada grão de areia e, não obstante, em todos ele, acima deles e fora de todas as criaturas". Nessas fórmulas resolve-se o antigo conflito entre as tendências teístas e panteístas a respeito de Deus; demonstram a grandeza de Deus, sua presença constante e, ao mesmo tempo, sua absoluta transcendência. Eu direi de maneira bastante dogmática que qualquer doutrina de Deus que deixe de lado um desses elementos, não fala realmente de Deus, mas de algo bem menor do que ele.
   A mesma coisa aparece na doutrina de Lutero sobre a onipotência. "Chamo de onipotência de Deus não o poder pela qual ele não faz as coisas que poderia fazer, mas o poder pelo qual, na verdade, ele potencialmente faz tudo em todas as coisas". Queria dizer que Deus não fica à margem do mundo, contemplando-o de fora, mas está sempre agindo em todas as coisas, A onipotência é isso. Lutero descarta a ideia absurda de um Deus que precisa decidir primeiramente se ele deve fazer o que poderia fazer. Deus é poder criador.
   Lutero se refere às criaturas como "mascaras de Deus"; Deus se esconde por detrás das criaturas. "Todas as criaturas são máscaras e véus de Deus para que possam agir ajudando-o a criar muitas coisas". Assim, todas as ordens e instituições naturais se plenificam com a presença de Deus, e assim, também, o processo histórico. Desse modo ele trata todos os nossos problemas acerca da interpretação da história, os Anibals, os Alexandres e os Napoleões - acrescentaria hoje os Hitlers, ou os godos, os vândalos, os turcos -acrescentando os nazistas e comunistas - são conduzidos por Deus para atacar e destruir, de tal maneira que Deus nos fala por meio deles. Eles são a palavra de Deus para nós e até mesmo para a igreja. As pessoas heróicas em particular saem fora das leis ordinárias da vida. São armadas por Deus. Deus as chama e as força, concedendo-lhes a sua hora, e eu diria, o seu 'kairos'; Fora desse 'kairos' nada podem fazer, aliás, ninguém pode fazer nada fora desse momento certo. Nessa hora certa não há quem resista aos que agem. Entretanto, apesar de Deus agir em tudo o que acontece na história, ela é a luta entre Deus e Satanás e entre seus domínios diferentes. Lutero fazia essas afirmações porque Deus agia criativamente até mesmo nas forças demônicas.
   Essas forças demônicas não teriam ser se não dependessem de Deus como fundamento de seu ser e como o poder criador do ser presente nelas em todos os momentos. Deus possibilita que Satanás seja o sedutor, mas também, ao mesmo tempo, torna possível a derrota de Satanás.

Paul Tillich - História do Pensamento Cristão; ed. Aste. p. 245-247.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

O Conhecimento de Deus Conduz-nos a Conhecer-nos A Nós Mesmos

   Por outro lado, é notório que jamais chega o homem ao puro conhecimento de si mesmo até que haja antes contemplado a face de Deus e da visão dEle desça a examinar-se a si próprio. Ora, orgulho que nos é a todos ingênito, sempre a nós mesmos nos parecemos justos, e íntegros, e sábios, e santos, a menos que, mercê de provas evidentes, convencido sejamos de nossa injustiça, indignidade, insipiência e depravação. Não somos, porém, assim convencidos, se atentamos apenas para nós mesmos e não também para o Senhor, Que é o estalão único porque é de aferir-se este juízo. Pois, uma vez que à hipocrisia somos todos propensos de natureza, por isso, qualquer vã aparência de justiça amplamente nos satisfaz em lugar da real justiça. E, porque dentro de nós ou ao nosso derredor nada se vê que não seja contaminado por crassa impureza, por todo tempo que confinamos nossa mente aos limites da depravação humana, aquilo que é um pouco menos torpe a nós nos sorri como coisa da mais refinada pureza. Exatamente como se dá com o olho diante do qual nada se põe de outras que não da cor preta: julga ser alvíssimo o que, entretanto, é de brancura um tanto esfumada, ou até mesmo tisnado de certa tonalidade fosca.
   Ademais, dos próprios sentidos do corpo possível nos é discernir ainda mais de perto quanto nos enganamos ao avaliarmos os poderes da alma. Ora, se em pleno dia ou baixarmos a vista ao solo, ou fitamos as coisas que em torno de nós se patenteiam ao olhar, parecemo-nos dotados de mui poderosa e penetrante acuidade. Quando, porém, alcançamos os olhos para com o sol e o miramos diretamente, esse poder de visão que sobre a terra ingente se fazia de pronto se oblitera e confunde com fulgor tão intenso, de sorte que sejamos forçados a confessar que esse nosso acúmen em contemplar as coisas terrenas, quando para com o sol se voltou, é mera ofuscação.
   Assim também se dá aos estimarmos nossos recursos espirituais. Pois, por tanto tempo quanto não lançamos a vista além da terra, mui blandiciosamente nos lisonjeamos a nós mesmos, de todo satisfeitos com nossa própria justiça, sabedoria, virtude e pouco menos que semideuses nos imaginamos. Mas, se uma vez que seja, para com Deus hajamos começado a elevar o pensamento e ponderar que é Ele, o quão completa a perfeição de Sua justiça, sabedoria e poder, a cujo estalão nos importa conformar-nos, aquilo que antes em nós sorria sob a aparência ilusória de justiça, logo como suma iniquidade se enxovalhará; aquilo que mirificamente se impunha sob o título de sabedoria tresandará como extremada estultícia; aquilo que se mascarava de poder arguir-se-á ser a mais deplorável fraqueza.
Por tanto, longe está de à divina pureza conformar-se o que em nós se afigura como que absolutamente perfeito.

João Calvino - Institutas da Religião Cristã. cap. I, 2

Lutero e a Depravação Total

   
   Lutero considerava a vida corrompida em sua totalidade, incluindo sua natureza e substância. Vamos considerar agora a expressão "depravação total" que tanto ouvimos. Não significa que não haja nada bom no ser humano; nenhum reformador nem neo-reformador jamais fez essa afirmação. Quer dizer, isso sim, que não há parte alguma do ser humano isenta dessa deformação existencial. Esse conceito, traduzido em termos de psicologia moderna, significa que o homem "depravado" está em conflito consigo mesmo bem no centro de sua vida pessoal. Tudo se inclui nessa deformação, e era essa a ideia de Lutero. Se a "depravação total" fosse entendida de modo absoluto, seria então impossível a sua afirmação [seria outra coisa, não depravação]. O ser humano totalmente depravado seria incapaz de dizer que era totalmente depravado. Mesmo a afirmação de que somos pecadores pressupõe em nós algo além do pecado [pois o pecado não é natureza]. O que podemos dizer é que não há no ser humano o que não seja tocado por autocontradição, tanto o intelecto como tudo mais. O mal é mal poque não cumpre o mandamento de amar a Deus. A base do pecado é essa falta de amor a Deus. Poderíamos dizer, em outras palavras, que é a falta de fé. Lutero afirmava as duas coisas.

Paul Tillich - História do Pensamento Cristão. ed. Aste. p. 243, 244

O Conhecimento de Nós Mesmos Conduz-nos a Conhecer a Deus

   A soma quase toda de nosso conhecimento, que, de fato, como verdadeiro e sólido conhecimento se deva julgar, consta de duas partes: do conhecimento de Deus e do conhecimento de nós mesmos. Como, porém, de muitos elos se entrelaçam, qual, entretanto, precedo ao outo, e ao outro origina, não é fácil de discernir.
   Em primeiro lugar, porque ninguém se pode seque a só próprio mirar sem, de pronto, o pensamento volver à contemplação de Deus, em Quem vive e se move [At 17.28], porquanto longe de obscuro é que os dotes com que somos prodigamente investidos de modo algum de nós provém. Mais até, nem é o nosso próprio existir, na verdade, outra coisa senão subsistência no Deus único.
   Em segundo lugar, porque estar mercês [graças] que do céu, gota a gota, sobre nós se destilam, somos, como por pequeninos regatos, conduzidos à fonte. Já de nossa própria carência, realmente, melhor se evidencia aquela infinidade de recursos que reside em Deus. Particularmente, esta desventurada ruína em que nos lançou a defecção do primeiro homem nos compele a alçar os olhos para o Alto, não apenas porque, jejunos [sem comer] e famintos, daí roguemos o que nos falta, mas ainda para que, despertados por temor, aprendamos a humildade.
   Ora, como no homem se depara um como que mundo de todas as misérias e, desde que fomos despojados do divino adereço [vestimentas], nossa vergonhosa nudez põe a descoberto mole imensa de torpezas, do senso da própria infelicidade deve necessariamente cada e qualquer um ser espicaçado a que venha pelo menos algum conhecimento de Deus.
   Destarte, da consciência de nossa ignorância, fatuidade, penúria, fraqueza, enfim, de nossa própria depravação e corrupção, reconhecemos que em nenhuma outra parte senão no Senhor se situam a verdadeira luz da sabedoria, a sólida virtude, a plena abundância de tudo o que é bom, a pureza da justiça, e, daí, somos de nossos próprios males instigados à consideração das excelências de Deus. Nem podemos a Ele com seriedade aspirar antes que hajamos começado a descontentar-nos de nós mesmos. Pois quem dos homens há que em si prazerosamente não descanse, que, na verdade, assim não descansa, por quanto tempo é a si mesmo desconhecido, isto é, por quanto tempo está contente com seus dotes e insciente ou esquecido de sua miséria?
   Consequentemente, pelo conhecimento de si mesmo é cada um não apenas aguilhoado a buscar a Deus, mas até como que pela mão conduzido a achá-lO.

João Calvino - Institutas da Religião Cristã. Cap. I, 1.

A Ideia Clássica de Deus por Paul Tillich

[...] A ideia medieval de Deus tem três níveis.
   1. O primeiro e fundamental nível é a ideia de Deus como 'primum esse', primeiro ser, ou primeira causa, causa primeira. A palavra "causa", neste contexto, não tem o mesmo sentido de "causa e efeito" na experiência finita. E a palavra 'prima' não quer dizer "primeira" em sentido temporal, mas no sentido [lógico] de "fundamento" de todas as causas. O termo "causa", então, é utilizado mais simbólica do que literalmente. Deus é o fundamento criador de todas as coisas, 'creatrix universalium substantia", substância criadora de tudo o que é. É a primeira afirmação a respeito de Deus. Deus é o fundamento do ser, como eu gosto de dizer, o próprio ser, ou a causa primeira; todos esses termos querem dizer a mesma coisa.
   2. Essa substância não pode ser entendida em termos de matéria inorgânica - como fogo, água segundo os antigos físicos [gregos] - nem dentro do campo biológico como o processo da vida. Deve ser entendida como intelecto. A primeira qualidade de Deus, enquanto fundamento do ser, é intelecto. Intelecto não é inteligência. Significa o momento em que Deus é para si mesmo sujeito e objeto, ao mesmo tempo [obs: tempo lógico]. Significa o conhecimento que Deus tem de si mesmo e do mundo como realidade fora de si. O fundamento do ser ou, em outras palavras, a substância criadora, é portadora de sentido. Em consequência, o mundo é significativo; pode ser entendido por meio de palavras que fazem sentido. O 'logos', a palavra, pode apreendê-lo. Para entendermos a realidade precisamos pressupor que ela é compreensível. Ela é compreensível porque o seu fundamento divino tem características de intelecto. O conhecimento é possível apenas porque o intelecto divino é o fundamento de todas as coisas.
   3. Em terceiro lugar, Deus é vontade. Essa ideia vem da tradição cristã agostiniana, enquanto a ênfase no intelecto vem da grega aristotélica. Quando se aplica a Deus e ao mundo o conceito de vontade, ele se refere ao fundamento dinâmico da realidade, e não à função psicológica observada em nós. A vontade é o poder produtor do fundamento do ser. Essa vontade tem a natureza do amor - na boa tradição agostiniana. A substância criadora do mundo tem significado e amor; é intelecto e vontade, simbolicamente falando. Assim como dizíamos que Deus se conhece a si mesmo, dizemos agora que Deus quer a si mesmo e se ama como bem absoluto e, na verdade, como o fim [telos] de todas as coisas. E ama as criaturas ao lhes dar gradualmente o bem que ele mesmo fundamenta. Por tanto, todas as criaturas esperam por ele; ele é o objeto de seu amor em todos os seres que vislumbram o bem supremo.

*Paul Tillich - História do Pensamento Cristão. p. 193, 194.

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OBS: Vocês poderão perceber que, na verdade, o que se está tratando no texto é justamente a estrutura trinitária de Deus.
Então percebemos o seguinte: em ordem se fala no item 1 de Deus Pai [Fundamento Criador], no 2 do Deus Filho [Fundamento Intelectivo], no 3 do Deus Espírito Santo [Fundamento Dinâmico, a Vontade e o Amor]. Tal estrutura - fundamento, intelecto e vontade - vocês poderão ver mais profundamente na obra "De Trinitate" (Trindade) de Santo Agostinho, onde o santo se serve da estrutura da alma humana (memória, intelecto e vontade) como analogia para explicar a realidade trinitária da substância divina.

Tomás de Aquino e a Oração

   Deve-se também considerar que, assim como a imobilidade [divina] não impõe necessidade às coisas predispostas, também não exclui a necessidade da oração. Porque a oração não é dirigida a Deus para mudar o que está disposto pela providência eterna, o que, aliás, seria impossível, mas para que a pessoa consiga de Deus o que deseja.
   Com efeito, é razoável que Deus consinta nos piedosos desejos da criatura racional, não como se os nossos desejos movessem a Deus, que é imutável [e pleno em todas a perfeições], mas porque da sua bondade procede a realização oportuna do que foi desejado. Pois, como todas as coisas naturalmente desejam o bem [...], pertence à super-eminência da bondade divina distribuir com certa ordem a todos o 'ser' e o 'bem'. A consequência disto é que Deus cumpra com sua bondade os piedosos desejos expostos na oração.
Além disso, pertence ao movente conduzir para o fim o movido, razão por que [sic] pela mesma natureza uma coisa é conduzida para o fim, o alcança e nele repousa. Ora, todo desejo é um certo movimento para um fim, o qual não pode vir para as coisas senão de Deus, Deus que é bom por essência e fonte da bondade. Com efeito, ao mover todas as coisas, move-as para algo semelhante a si. Logo, pertence a Deus, segundo a sua bondade, levar para os efeitos convenientes os desejos convenientes expostos em oração. [...]
   Além disso, é da natureza da amizade que o amante queira realizar o desejo do amado, enquanto quer o bem e a perfeição dele, razão por que é dito que é próprio dos amigos terem o mesmo querer. Ora, foi acima demonstrado que Deus ama a sua criatura, e tanto mais ama cada uma delas, quanto mais esta participa da sua bondade, que é o que Deus ama por primeiro e principalmente. Por isso, Deus quer satisfazer os desejos da criatura racional, a qual participa da bondade divina máxima e mais perfeitamente entre as demais criaturas. Ora, sua vontade dá a perfeição às coisas, por elas Deus é causa das coisas [...]. Logo, pertence à vontade divina satisfazer os desejos da criatura racional apresentados na oração.
   Além disso, o bem da criatura racional é derivado da bondade divina, segundo uma certa semelhança. Ora, verifica-se entre os homens que é sobretudo estimável o que não rejeita os pedidos aos que lhes fazem coisas justas e, por isso, são chamados de liberais, misericordiosos e pios. Por isso, pertence acima de tudo à bondade divina ouvir orações piedosas.
   Donde ser dito no Salmo: 'Faz as vontades dos que o temem, ouve-lhes as orações e os salva' (Sl 144,19); e em Mateus: 'Todo aquele que pede, recebe; o que procura, encontra; e ao que bate, abrir-se-lhe-á' (Mt 7,8).

Tomás de Aquino - Suma Contra os Gentios. p. 495,496

Ortodoxia e Escolasticismo Protestante por Paul Tillich

   Precisamos distinguir entre ortodoxia e fundamentalismo. O período ortodoxo no protestantismo tem muito pouco a ver com o que se chama de fundamentalismo nos Estados Unidos. Refere-se, antes, à época escolástica da história protestante. Houve grandes escolásticos na história do protestantismo, alguns deles tão grandes como os escolásticos medievais. Entre eles se destaca Johann Gerhard (1582-1637) que em sua obra monumental discorreu com profundidade sobre tantos problemas como os escolásticos medievais do século treze e quatorze. Obras desse fôlego nunca foram escritas pelos fundamentalistas norte-americanos. A ortodoxia protestante era construtiva. Não havia nada semelhante às bases pietistas e avivalistas do fundamentalismo americano. Os teólogos ortodoxos trabalhavam objetiva e construtivamente, procurando apresentar a doutrina pura e completa de Deus, do homem e do mundo. [...]
   A ortodoxia clássica era diferente. Por tanto, é pena que tantas vezes se confunda essa ortodoxia com o fundamentalismo. Uma das grandes conquistas da ortodoxia clássica nos fins do século dezesseis e no dezessete foi ter-se mantido em discussão com todos os séculos do pensamento cristão. Os teólogos ortodoxos não eram leigos em teologia, ignorantes do que queriam dizer os conceitos que empregavam na interpretação bíblica. Sabiam muito bem o seu significado ao longo dos quinze séculos de história da igreja já passados. Conheciam também a história da filosofia e a teologia da Reforma. O fato de permanecerem na tradição dos reformadores não os impediu de conhecer profundamente a teologia escolástica [medieval], de discuti-la, refutá-la, e até mesmo de aceitá-la quando era o caso. [...]
    A ortodoxia é a representação mais objetiva que existe da teologia protestante. [...] A ortodoxia procurava ser tão objetiva quanto possível, muito embora nem sempre tenha conseguido alcançar plenamente o intento. Não conseguia, em primeiro lugar, eliminar certos elementos subjetivos pertencentes ao protestantismo, como, por exemplo, a experiência pessoal de Lutero, ou a de Calvino, ou Zwínglio. Esses três reformadores superaram o objetivismo da Igreja Romana. E, assim, sua atitude entrou para o próprio sistema ortodoxo. Esse fato se torna mais claro quando examinamos a presença de dois elementos principais na ortodoxia: o princípio material e o princípio formal.
   O princípio material da Reforma é a doutrina da justificação pela fé, ou melhor, pela graça por meio da fé. Desculpem-me por este deslize. Nunca digam o que eu disse por engano, mas insistam sempre afirmando a justificação 'pela' graça 'por meio' da fé. O poder justificador é a graça divina; o canal por meio do qual as pessoas recebem essa graça é a fé. A fé não é jamais a causa, mas apenas o canal. No momento em que a fé fosse entendida como causa da justificação ela teria se transformado na obra humana pior do que qualquer obra do catolicismo romano. [...] Por tanto, sempre que vocês estiverem tratando de teologia protestante, abandonem para sempre essa deformação da fé - [a deformação da ] 'sola fide' em latim - que a vê como causa em vez de canal. Lutero não se cansou de repetir com clareza que fé é sempre ato receptor e nada mais; ela nada produz. Certamente [e isso é sumamente importante], não produz a boa vontade de Deus. [...]
   Temos ainda outro princípio, o "formal", sobre o qual se construiu o sistema ortodoxo. É o princípio das Escrituras que se tornou fixo e rígido. [...] A Bíblia contém o relato dos eventos que se passaram tanto no Antigo como no Novo Testamento. [...] Essa atitude [se de valer do princípio formal] é bem mais evidente em Calvino. Segundo Calvino a Bíblia não diz nada a ninguém, sejam teólogos ou leitores piedosos, sem o Espírito Divino. O Espírito Divino é o poder criador com quem se envolve o nosso espírito pessoal, transcendendo-nos. [...]
   Há ainda um outro elemento [...]. É a imagem do seu universo em dois andares. O andar de baixo chama-se "teologia natural" trabalhando com a razão, e o de cima, [a] "teologia revelada". Os teólogos sempre acharam difícil determinar o que pertencia a cada um desses andares. Naturalmente doutrinas como trindade e a encarnação cabiam melhor no andar de cima, mas não se sabia muito bem onde situar doutrinas como criação e a providência [que no sistema escolástico geralmente ficavam no andar de baixo, ou nas coisas passíveis de serem alcançadas pela razão, tal como se via nas obras de Aristóteles, por exemplo, que eram utilizados na escolástica medieval para de analisar as coisas pertencentes ao nível da razão, mas não o nível da graça]. Onde caberia, afinal? Preocupado com isso, Johan Gerhard, de quem já falamos, distinguia entre doutrinas puras e mistas (doctrinae purae et mixtae). As doutrinas puras são as dedutíveis da revelação divina. As doutrinas mistas vêm em parte da razão e em parte da revelação.
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*] Paul Tillich. Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e XX. p. 43-48.

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OBS: Suprimi alguns trechos do texto do Tillich por duas razões: 1º) O texto iria ficar longo demais; 2º) existem porções críticas de Tillich à ortodoxia que não julguei conveniente colocar aqui - já que Tillich, ainda que tivesse integrado partes desse sistema ao seu, negava alguns pontos da ortodoxia escolástica por causa do seu método teológico que criticava o supranaturalismo, supranaturalismo esse que é constitutivo da visão da realidade dividia em dois pisos: o piso "natural" e "sobrenatural" (o que, sem fazer juízos aqui, Dooyeweerd também questionava) -, o que iria prejudicar a apresentação da ortodoxia protestante, que era a minha intenção com esta publicação.

Fanatismo Juvenil e Tirania por Emil Cioran

E não é que você não tenha a nostalgia da fantasia e da desordem, mas não conheço espírito mais refratário que o seu às superstições da "democracia". Houve uma época, é verdade, em que eu também as detestava, até mias do que você: era um jovem e não podia admitir outras verdades que não as minhas, nem conceder ao adversário o direito de ter as suas, de gabar-se delas ou de impô-las. Que os partidos pudessem enfrentar-se sem aniquilar-se era algo que ultrapassava minhas possibilidades de compreensão. Vergonha da Espécie, símbolo de uma humanidade exausta, sem paixão nem convicções, inapta ao absoluto, privada de futuro, limitada em todos os sentidos, incapaz de elevar-se a essa alta sabedoria que me ensinava que o objetivo parlamentar era pulverizar o opositor: era assim que eu via o regime parlamentar. Por outro lado, os sistemas que queriam eliminá-lo para tomar seu lugar me pareciam belos sem exceção, afinados com o movimento da vida, minha divindade na época. Não sei se devo admirar ou desprezar aquele que, antes dos trinta anos, não sofreu o fascínio de todas as formas de extremismo, ou se devo considerá-lo como um santo ou um cadáver. [...] Viver verdadeiramente é recusar os outros; para aceitá-los, é necessário saber renunciar, violentar-se, agir contra a sua própria natureza, enfraquecer-se; só se concebe a liberdade para si mesmo: ao próximo só a concedemos a duras penas; daí a precariedade do liberalismo, desafio a nossos instintos, êxito breve e miraculoso, estado de exceção oposto a nossos imperativos profundos. Somos naturalmente inadequados para ele: só a deterioração de nossas forças nos dá acesso a ele. Miséria de uma raça que deve rebaixar-se por um lado para enobrecer-se pelo outro, e na qual nenhum representante, a menos que seja de uma decrepitude precoce, se dedica a princípios "humanos". Função de um ardor extinto, de um desequilíbrio, não por excessos, mas por falta de energia, a tolerância não pode seduzir os jovens. [...] Dê aos jovens a esperança ou ocasião de um massacre e eles lhe seguirão cegamente. No final da adolescência, se é fanático por definição; eu também o fui, e até o ridículo.

Emil Cioran - História e Utopia. p. 12-14.

Tomás de Aquino, a Soberania de Deus e a Eleição de Deus em Graça

   Consequentemente, visto ter sido demonstrado que a operação divina dirige alguns para o último fim mediante o auxílio da graça, e que outros, por serem desprovidos do auxílio da graça, afastam-se do último fim, e como todas as coisas feitas por Deus foram predestinadas e ordenas, desde toda eternidade, pela sabedoria divina, como acima oi demonstrado: é necessário que a acima referida distinção entre os homens tenha sido ordenada por Deus desde a eternidade. [...]

   Do exposto se depreende que a predestinação, a eleição e a reprovação são partes da providência divina, segundo a qual os homens são ordenados para o último fim pela mesma providência. [...]
Pode-se, ainda, demonstrar que a predestinação e a eleição não são causadas por alguns méritos humanos, não só porque a graça divina, que é efeito da predestinação, não é posterior aos méritos humanos, como acima foi demonstrado, mas também se pode demonstrar pelo fato que a vontade divina e a providência divina são a causa primeira das coisas que são feitas e de que nada pode ser causa da vontade da providência divinas [...]
   Diz, por fim, o Apóstolo: "Quem pois antes lhe deu algo, para ser retribuído? Porque dele, nele e por ele são todas as coisas. A ele honra e glória pelos séculos dos séculos. Amém (Rm 11,35-36).

Tomás de Aquino. Suma Contra os Gentios, Livro III, cap. CLXIII, ed. Ecclesiae p. 595, 596