segunda-feira, 28 de março de 2022

Romanos 7.7-25 e a Evolução no Pensamento de Agostinho de Hipona


     Um dos pensadores que mais podemos notar certa evolução na sua forma de pensar é Agostinho de Hipona. No seu menos popular trabalho autobiográfico - que dormita ao lado das "Confissões" -, as "Retratações" escancaram todo seu itinerário intelectual e traça, desde as obras redigidas em Cassicíaco (386 d.C.), onde ele escreveu sua primeira obra como cristão após o seu batismo em Milão, o mapa dessas mudanças e reviravoltas em seu pensamento, pontuando até mesmo onde deveria ter sido mais prudente e onde mudou seu parecer a respeito de certas matérias. Mas para os propósitos que me fazem escrever esse texto é interessante pontuar uma mudança importante sobre a sua interpretação de Rm 7.7-25 na sua "Carta a Simpliciano: Dois livros, questões diversas". Escrita por volta de 395/396 d.C., o livro trata, como já percebemos no título, de questões variadas, incluindo a relação entre a lei e o pecado. Nesse período sua interpretação era a de que Rm 7.7-25 não se referia ao homem sob a graça, mas sob a lei. Uma de suas argumentações é a de que apenas o homem espiritual pode amar também uma lei espiritual. É como segue:

"Ainda não libertada pela graça, a pessoa é derrotada a pesar de já saber, pela lei, que está se comportando mal e não o quer [se comportar mal]. O que se segue no texto, e diz: 'Agora, porém, já não sou eu que faço algo, mas o pecado que habita em mim é que o faz', nem por isso está dizendo que não consente em fazer o pecado, apesar de consentir com a lei em reprová-lo, pois está falando ainda como pessoa humana debaixo da lei e não ainda sob a graça"1.

    Esse não seria o último parecer de Agostinho sobre essa questão, e ao longo do tempo, em meio a certas controvérsias, um amadurecimento sobre a matéria ocorreu - possivelmente em função da longa vida como cristão, sua atividade pastoral e em função de suas controvérsias contra Pelágio e os maniqueístas. E sobre essa sua posição antiga na "Carta a Simpliciano", nas "Retratações" (427 d.C.) Agostinho comenta:

"A primeira [questão] delas é sobre o que está escrito: 'Que diremos então? Que a Lei é pecado? De modo algum! [sic] Até o lugar onde diz: Quem me libertará deste corpo de morte? Graças sejam dadas a Deus, por Cristo Jesus Senhor nosso'. Nessa questão, as palavras do Apóstolo: 'A Lei é espiritual, mas eu sou carnal' etc., com as quais se demonstra que a carne luta contra o espírito, expliquei como se falasse do homem estabelecido ainda sob a Lei, ainda não sob a graça. Mas, muito depois, percebi que essas palavras percebi que essas palavras [mais provavelmente] [sic] podem referir-se também ao homem espiritual"2.

    Notem que 32 ou 33 anos separam as "Retratações" da "Carta a Simpliciano", e uma obra muito importante, que não consta nas "Retratações", possivelmente pelo mesmo motivo pela qual não consta também o seu "Comentário aos Salmos", que é o "Tratados sobre o Evangelho de João", escritos na época já do seu bispado - pois tratam-se de sermões -, já evidencia muito desse pensamento maduro de Agostinho. No tratado XLI, discorrendo sobre a distinção entre a liberdade relativa do cristão em contraposição à liberdade absoluta da eternidade, Agostinho trabalha justamente nas passagens de Rm 7 que antes comentou em sua Carta a Simpliciano, como se segue:

"Quando o homem principia a estar limpo desses crimes [adultério, homicídio, fornicação, furto, fraude etc.] (todo cristão deve estar), principia a erguer a cabeça em ordem à liberdade". Mas esta é a liberdade inicial, não é a liberdade perfeita. Dir-se-á: Porque não é liberdade perfeita? A resposta é dada pelo Apóstolo: "Eu vejo outra lei nos meus membros, que repugna à lei do meu espírito, e que me cativa na lei do pecado, que está nos meus membros. Não faço o bem que quero, mas faço o mal que não quero [...].

Em parte, é a liberdade e em parte é a escravidão. Ainda não há liberdade total, pura, plena, porque ainda não entramos na eternidade. Em parte, temos enfermidade, em parte recebemos [pela graça] liberdade. Todos os pecados cometidos por nós forma já destruídos no batismo. Mas, pelo fato de ter sido destruída a iniquidade, já não resta enfermidade? Se assim fosse, viveríamos no mundo sem pecado. Quem se atreve a dizer isso, a não ser o soberbo, o indigno da misericórdia do libertador, o que quer enganar-se a si mesmo, aquele em quem não se encontra a verdade? Porque ficaram restos da enfermidade, eu ouso dizer que, na medida em que servimos a Deus, somos livres, e na medida em que servimos à lei do pecado, ainda somos escravos"3.

    Essa citação já nos coloca diante de uma outra compreensão que anteriormente na Carta a Simpliciano Agostinho tinha apresentado. Contrário à sentença relativa à afirmação de que o homem que diz que quando peca, não é ele quem o faz e sim o pecado que nele habita, está sob a Lei e não sob a graça, Agostinho esclarece que o homem sob a graça é distinguido entre o "homem interior" e o "homem sob o pecado", não como dois eus que venham de princípios distintos, mas sim um mesmo homem com tendências distintas, como se segue:

"O Apóstolo já se sentia livre na parte superior do seu ser, pelo que dizia: 'Deleito-me na lei de Deus, segundo o homem interior'. Deleita-me a lei, deleita-me o que a lei ordena, deleita-me a própria justiça. 'Porém vejo outra lei nos meus membros (eis a enfermidade que ficou) que repugna à lei do meu espírito, e me cativa na lei do pecado que está nos meus membros'. Desta parte sente, o cativeiro. Nele não se realizou ainda por completo a justiça. [...] O mesmo apóstolo que falava, levantou os olhos para o Senhor e dizia: "infeliz homem que sou: quem me livrará do corpo desta morte? A graça de Deus por Jesus Cristo Nosso Senhor' [sic] [...]. Finalmente o apóstolo conclui: 'Por isso, eu mesmo sirvo a lei de Deus com o espírito e dirvo a lei do pecado com a carne'. 'Eu mesmo', diz. Não somos dois que venham de princípios diversos, com inclinações contrárias entre si. Mas 'eu mesmo sirvo a lei de Deus com o espírito, e sirvo a lei do pecado com a carne', enquanto a enfermidade lutar contra a salvação"4.

'    Notem que Agostinho que antes negava que a passagem referente a Rm 7 dizia respeito ao homem sob a graça, agora confessa que se trata do drama do próprio Apóstolo e de todo cristão. Anteriormente a essas considerações Agostinho ainda no tratado XLI discorreu sobre a qualificação dos presbíteros e diáconos (cf. 1Tm 3.10 e Tt 1.7), e relembra que esses deveriam estar isento de crime. Contudo entende que isso não se refere a "estar isento de pecados". É como segue: "A primeira liberdade é estar limpo de crimes. Por isso o apóstolo Paulo, quando escolhe candidatos a presbíteros ou a diáconos, ou qualquer ordinato para presidir à Igreja, não diz: Se alguém está sem pecado... Se o dissesse, todo homem seria rejeitado"5.

    Para quem entende da questão sabe que a distinção que o hiponense aqui faz entre iniquidade ou crimes e pecado exige a distinção entre pecados veniais, que não ocorrem com o concurso da intenção, e pecados mortais, os quais são cometidos conscientemente. Assim, para Agostinho, aqui, pecado é o mesmo que concupiscência, ou, como os escolásticos viriam a chamar, a fomes peccati, ou o que, com suas devidas distinções, para os reformadores de segunda geração para frente ficou conhecido como depravação total. Na tradição católica a distinção entre pecados veniais e pecados mortais conduziu à afirmação de que, por si mesmo, a consupiscência não é pecado, mesmo que fonte de todos os outros pecados. Já na tradição luterana, onde a distinção entre pecados mortais e veniais ainda subsiste, é feita a consideração de que aqueles que estão sob a graça (já que para aqueles que estão fora da graça todos os pecados são mortais), a concupiscência mesmo que pecado, e pecado como a forma de existência do ser humano neste mundo, ainda não rompe com a graça, ao contrário dos pecados mortais que quebram o vínculo do cristão com a graça6.

    Mas é importante salientar que em Rm 7.9, o mesmo despertar da concupiscência frente à consciência do conteúdo da lei não cobiçarás - considerando que aqui não está envolvido o ato para o qual conduz a cobiça, mas só a cobiça mesmo - é suficiente para matar; e se Agostinho manteve essa posição, convenhamos que a posição luterana (que fundamenta o sola fide) é muito mais razoável nesse caso do que a posição que ganhou terreno entre os escolásticos católicos, nominalistas ou tomista, sendo a posição romana aquela a que Agostinho por vezes mais se inclinava, mesmo que encontremos variações no seu pensamento quanto a isso em outras obras.

    E ainda podemos fazer uma última citação para colocar ainda mais às claras a posição madura de Agostinho, quando ele distingue a mera presença do pecado do reinado do pecado, como segue:

"No entanto, se serves com a carne a lei do pecado, procede em harmonia com o conselho do Apóstolo: 'Que não reine, pois, o pecado no vosso corpo mortal, de forma que obedeçais às suas concupiscências, e nem entregueis os vossos membros ao pecado, como instrumento de iniquidade'. O Apóstolo não disse: 'Não haja', mas: Não reine. Enquanto é inevitável a existência do pecado nos teus membros, ao menos tire-lhe o poder de reinar, não se faça o que ele manda"7. [...]; e assim continua: Que desejava o justo que servia à lei de Deus com o espírito, se não que nada houvesse de refrear? Todo aquele que aspira à perfeição deve procurar que a concupiscência desprovida de membros que lhe obedeçam, vá diminuindo todos os dias em si. [...] Não ter concupiscência absolutamente nenhuma é perfeição do bem, porque é o extermínio do mal. O Apóstolo dizia: 'Não há em mim prática perfeita do bem', porque não podia [enquanto apóstolo] evitar a concupiscência. Tinha apenas o poder de refrear a concupiscência, de modo a não conseguir nela nem a entregar os membros ao serviço da mesma concupiscência. 'Eu não tenho, pois, o poder de fazer o bem com perfeição'; não posso cumprir o preceito que se enuncia assim: 'Não terás concupiscência'8".     

    Com esse texto acima fica evidentemente claro a completa revolução no pensamento de Agostinho, de maneira que se antes ele afirmava que os ataques da concupiscência não convinham ao homem sob a graça, posteriormente ele afirmava que mesmo sob a graça o homem não pode cumprir o preceito de "não cobiçarás", entendendo ser essa a confissão do próprio Apóstolo, compreendendo que apenas após o revestimento do que é mortal - o corpo - pela imortalidade, após a ressurreição, que conseguiremos nos ver livres das pancadas da concupiscência9.

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[1] AGOSTINHO. Carta a Simpliciano: Dois livros, várias questões. Coleção Patrística, Vol. 41. Ed. Paulus, São Paulo-SP, 1ª ed., 2019. p. 25.

[2] _________. Retratações 2.1.1. Coleção Patrística, Vol. 43. Ed. Paulus, São Paulo-SP, 1ª ed., 2019. p. 119.

[3] _________. Comentários Sobre o Evangelho de João e ao Apocalipse, Tomo II, XLI.10. Ed. Cultor de Livros, São Paulo-SP, 2017. p. 116.

[4] _________. Idem. XLI.11 p. 117.

[5] _________. Idem. XLI.10 p. 115, 116.

[6] A título de esclarecimento, minha posição a respeito da matéria é que mais coerente ainda do que a posição luterana está a posição reformada, que embora não difira substancialmente desta na questão de a concupiscência ser por si razão formal para a condenação, ainda assim é desta distinta na afirmação de que aos eleitos é impossível uma ruptura real com a graça, já que nada pode matar no regenerado a intencionalidade maior por Deus e por seu Reino, ou seja, a perda da salvação, vista pelo ângulo do dom da perseverança dos santos, é algo formalmente impossível.

[7] AGOSTINHO. Comentários Sobre o Evangelho de João e ao Apocalipse, Tomo II. XLI.12 p. 117, 118.

[8] _________. Idem. XLI.12 p. 119.

[9] _________. Idem. XLI.13 p. 119. p. 119, 120. Segue aqui, para não carregarmos demais o texto, a citação onde fica evidente a posição do hiponense de que se livrar das picadas da concupiscência é matéria escatológica, não para os dias de hoje, muito embora refrear a concupiscência seja tarefa para hoje: "Que é, pois, a plena e perfeita liberdade no Senhor Jesus que disse: Se o 'Filho vos libertar, sereis verdadeiramente livres'? Quando haverá plena e perfeita liberdade? Quando não houver inimizades, quando for destruída a última inimiga, a morte".