segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Mudança de Discurso?

    O gyordanismo, se podemos chamar assim o fenômeno teológico recente, agora cobra os resultados de uma profecia auto-realizável, ao dizer que negamos na substituição penal a questão da "pena exata" em seu sentido fenomênico meramente exterior, e que isso se dá em razão de uma instabilidade constitutiva da teologia da substituição penal que faz seus proponentes fatalmente "retornarem a Anselmo".

    Agora duas coisas importantes a serem pontuadas sobre a acusação:

    1) Antes de mais nada a profecia auto-realizável é aquela acusação que você faz, com espanto e perplexidade, de que uma coisa será aquilo que ela é. É como se alguém dissesse: "aposto que se plantar bananeira, você ficará com as duas mãos no chão". Em quê essa ilustração se encaixa na questão aqui discutida é como segue:

    O rev. Gyordano diz que a teologia da substituição penal não pode ser "substitutiva" em sentido estrito porque "nem todos" (como se os "nem todos" constituíssem casos raríssimos) os proponentes dessa teologia afirmam que duas penas aos perdidos se encontraram em Cristo: a separação eterna do Pai e a morte espiritual (as duas são uma só, no fim). Nesse sentido não há "sofrimento no lugar", "substituição" etc. A questão é que ele tem uma noção de substituição que já funciona como uma carta marcada no discurso, e com notas que jamais foram defendidas pelos proponentes da teologia da substituição penal. Então se alguém se defende dizendo que não é assim, logo vem a cartada: "então não é substituição". Truco!!! Ele parece decidir o que é e o que não é a substituição penal.

    Prestem bem atenção na questão fulcral que determina todo o entendimento sobre a substituição penal a partir das seguintes notas: 1) Cristo é homem impecável; 2) Logo seu ser não é fracionado, como é o ser dos condenados; 3) Cristo recebe todo o peso dos pecados da humanidade em si, em seu ser imaculado, e nisso ele recebe a ira divina como se os pecados dos homens fossem confessados sobre ele, satisfazendo e fazendo a reparação diante da justiça de Deus; 4) A pena devida é qualitativa no sentido da intensidade do esmagamento com o qual ele foi esmagado na Cruz; 5) Jesus recebe não todas as espécies de penas (já que elas são contraditórias entre si - e isso foi um argumento conhecido na idade média), mas algo proporcional que axiologicamente (valorativamente) está radicado na exigência da justiça. Aqui não é impossível entender que Jesus suportou toda a maldição da lei quando, na morte cruenta na cruz, se fez realmente maldição; 6) Há substituição evidentemente porque os pecados não são meros atos exteriores - nem no direito se julga um crime como mero ato exterior fora do seu significado próprio recebido do contexto do crime (nem todo assassinato é igual segundo a sua constituição valorativa, embora os atos exteriores dos assassinatos às vezes sejam idênticos) -, mas infrações das quais a justiça divina demanda reparações segundo a ordem estabelecida, e aqui não estou me detendo no fato de que Jesus cumpriu ativamente (e não apenas passivamente na cruz) a lei no nosso lugar, o que é constitutivo da doutrina da expiação e justificação; 7) Jesus não pode sofrer a pena como o demônio e o condenado, pois se o condenado ou o demônio sofressem a pena na mesma intensidade, eles sofreriam destruição eterna - a qualidade do ser impecável de Jesus demarca toda essa questão.

    2) Por várias razões aqueles que defendem a teologia da substituição penal (como ela é, e como foi concebida) jamais retornaram a Anselmo. Eis aqui algumas delas: 1) Anselmo não entende que na satisfação Deus é o agente da pena, como afirma a teologia reformada com base na Escritura (Is 53:5,10); 2) Em certo sentido Anselmo liga a cristologia à teologia da expiação na questão do sofrimento de valor infinito que só o Deus encarnado pode ter, mas não se segue daí que isso se dá da mesma forma que a teologia reformada concebe a questão, principalmente na especificação da aplicação dos benefícios angariados pela morte de Cristo na cruz; 3) Anselmo não explica a necessidade de uma união mística na aplicação dos benefícios da redenção - e Tomás de Aquino até crítica Anselmo porque sua teologia não explica qual a relação orgânica entre a Cabeça e o Corpo nessa staurologia (o rev. Gyordano erra o alvo quando direciona essa crítica à teologia da substituição penal e não à teologia de Anselmo); 4) A obra intercessória de Cristo é o meio da aplicação dos benefícios angariados pela sua obra expiatória, e isso não existe na teologia da satisfação de Anselmo, parecendo mais uma transmissão de méritos para aqueles que são salvos que não é explicada. A teologia reformada entende que a intercessão de Cristo pelo Corpo é uma continuidade do ofício sacerdotal de Cristo, embora tal obra não seja de caráter satisfatório; 5) Anselmo não considera a obediência ativa de Cristo como parte especial da teologia da expiação, pois para Anselmo se Cristo cumpriu a lei, cumpriu apenas em benefício de si mesmo - já que isso era algo devido a Deus em função da sua condição humana. A obra superrogatória na qual Cristo nos conquista a salvação é algo realizado exclusivamente na Cruz, o que contrasta radicalmente com a teologia reformada, já que esta considera a obediência ativa de Cristo como parte constituinte da obra da redenção, e nisso Cristo também cumpre a lei vicariamente (no nosso lugar).

    Notem que nesses cinco pontos a possibilidade de um "retorno a Anselmo" é algo impossível para aqueles que fazem a horrível manobra de conduzir teologia da substituição penal de volta para aquilo que ela incrivelmente sempre foi.

    Mas aqui a baixo vai um texto longo de Herman Bavink para ilustrar a questão da "pena qualitativa" - embora em alguns pontos o endosso não seja per se absoluto para uma afirmação exata da teologia da substituição penal - que tanto confunde a cabeça de algumas pessoas acostumadas - até inconscientemente - à noção anselmiana de que a expiação de Cristo está fundamentada em uma noção meritória quantitativa. Segue o texto:

    "Segundo, o caráter substitutivo da obediência de Cristo automaticamente envolve também equivalência, porque corresponde completamente à exigência da lei. Essa equivalência, porém, foi entendida de forma diferente pela Reforma e por Roma. Duns Scotus cria que um ser humano santo ou um anjo também teria feito satisfação por nossos pecados se Deus tivesse aprovado essa substituição, pois “toda oferta criada tem tanto valor quanto Deus quer que tenha, e não mais”. Semelhantemente, os remonstrantes posteriormente ensinaram que não a justiça de Deus, mas somente a integridade (aequitas) exigiu uma satisfação e que “o mérito que Cristo pagou foi pago de acordo com a estimativa de Deus Pai”.

    Francamente em oposição a essa interpretação, Aquino disse que a paixão de Cristo foi não somente uma satisfação suficiente, mas “uma satisfação superabundante pelos pecados da raça humana”. Foi então levada em consideração a questão de se uma gota do sangue de Cristo não teria sido suficiente para fazer a expiação. Toda essa forma de observar a questão, tanto em Aquino quanto em Duns Scotus, está baseada em uma estimativa quantitativa externa do sofrimento de Cristo.

    Em princípio, a Reforma rompeu com esse sistema de avaliação. Isso fica evidente pelo fato de que ela rejeitou tanto a “aceitação” de Scotus quanto a “superabundância” de Aquino; que, além da obediência passiva, ela também incluiu a obediência ativa na obra de Cristo; que, embora considerasse o sacrifício de Cristo equivalente, ela não o considerou idêntico àquilo que seríamos obrigados a sofrer e a fazer; que ela o considerou completamente suficiente, de forma que nenhum acréscimo, por meio de nossa fé e de nossas boas obras, era necessário, seja segundo os católicos ou segundo os remonstrantes. Os reformados diziam que a obra de Cristo por si mesma era completamente suficiente para a expiação dos pecados do mundo todo, de forma que, se ele quisesse salvar um número menor, ela não poderia ser menor e, se quisesse salvar um número maior, não teria de ser aumentada.

    Os pecados, de fato, não são débitos financeiros e a satisfação não é um problema de aritmética. A transferência de nossos pecados para Cristo não foi um processo tão mecânico que os pecados de todos os eleitos tiveram de ser cuidadosamente contados e depois colocados sobre Cristo e expiados separadamente por ele. Cristo tampouco passou por todas as fases da vida humana e fez expiação separada pelos pecados de cada fase ou idade, como Irineu e outros afirmaram. Ele também não sofreu precisamente as mesmas coisas (idem) que nós, pois consciência de culpa e assim por diante não podia ocorrer nele e ele também não conheceu a morte espiritual como inclinação para o mal e não sofreu a morte eterna em forma e duração, mas apenas intensa e quantitativamente como abandono de Deus.

    Há também alguma verdade na “aceitação”, pois a estrita justiça de Deus exigia que todo ser humano devia fazer pessoalmente satisfação por si mesmo e foi sua graça que deu Cristo como o mediador de uma aliança e imputou sua justiça aos membros dessa aliança. Uma estimativa quantitativa, portanto, não se encaixa no caso da satisfação vicária. Na doutrina da satisfação, estamos tratando de fatores diferentes daqueles que podem ser medidos e pesados. O pecado é um princípio que controla e corrompe toda a criação, um poder e um reino que se expande e se organiza em numerosos pecados reais. A ira de Deus é uma fúria dirigida contra o pecado de toda a raça humana. Sua justiça é a perfeição pela qual não pode tolerar ser negado ou desonrado como Deus por suas criaturas. A satisfação vicária, portanto, significa que, como fiador e cabeça, Cristo entrou na relação com Deus - sua ira, sua justiça, sua lei - na qual a raça humana estava. Para essa humanidade, que foi dada a ele para reconciliação, ele foi feito pecado, tomou-se uma maldição e tomou sobre si sua culpa e punição. Quando os socinianos dizem que, de qualquer forma, Cristo podia fazer satisfação somente por uma pessoa, não por muitas, porque só suportou a punição do pecado uma vez, esse raciocínio é baseado na mesma estimativa quantitativa que a “aceitação” de Duns Scotus e a “superabundância” de Aquino, pois embora o pecado que entrou no mundo por meio de Adão se manifeste em uma série incalculável de pensamentos, palavras e atos pecaminosos, e embora a ira de Deus seja sentida individualmente por todo membro culpado da raça humana, foi uma lei indivisível que foi violada, a ira indivisível de Deus que foi acendida contra o pecado de toda a raça humana, a justiça indivisível de Deus que foi ofendida pelo pecado, o Deus eterno e imutável que foi afrontado pelo pecado."1

_____________________
1] BAVINK, Herman - Dogmática Reformada. vol. 3, ed. Cultura Cristã p. 406,407

Nenhum comentário:

Postar um comentário