sexta-feira, 28 de junho de 2019

Schelling, a Realidade e a Corrupção da Intoxicação Doutrinária


Quem não sente nada real em si e fora de si - quem em geral apenas vive de conceitos e joga com conceitos -, aquele cuja capacidade de intuir há muito foi morta pela memória, pela especulação estéril ou pela corrupção social - para quem sua existência mesma não é senão um pensamento opaco -, como pode falar sobre a realidade (assim como o cego fala de cores)?


F. W. J. von Schelling - Propedêutica da Filosofia

A Palavra de Deus como Axis Mundi


   Em momentos de grande mudança da história mundial, a consciência histórica do homem é fortemente estimulada. A relatividade de nossos padrões e opiniões tradicionais manifesta-se claramente. Aqueles que consideram a base firme de suas vidas pessoais e sociais e não vivem segundo a Palavra de Deus podem ser facilmente vitimados por um estado de desenraizamento espiritual, entregando-se a um relativismo radical e perdendo toda fé em uma verdade absoluta. 

Herman Dooyeweerd. No Crepúsculo do Pensamento Ocidental. p. 107

Hegel e a Tradição

Assim como as artes da vida exterior, a quantidade de meios e habilidades, as instituições e hábitos da convivência social e da vida política são um resultado da reflexão, da invenção, da desdita, da indigência e da esperteza da história anterior ao nosso presente, assim o que somos na ciência e mais precisamente na filosofia deve tributar-se à tradição que, através de tudo o que é mutável e o que, por conseguinte, desvaneceu, se entrelaça e uma cadeia sagrada e nos conserva e transmite o que o mundo precedente produziu.

HEGEL, G. W. F. - Introdução à História da Filosofia. p. 23

Calvino, Agostinho e a Iluminação Temporária, Ou a Fé Evanescente


   Há tempos atrás, na controvérsia entre o Yago Martins e o Olavo de Carvalho - controvérsia na qual o Bernardo Küster tomou parte, como aquele homem número zero que estava representando a onipotência do Olavo de Carvalho contra o Yago, aquele homem que era, podemos dizer, o mesmo que mil teólogos -, B. Küster colocou em pauta aquilo que declarou ser um absurdo teológico de Calvino, ou seja, a estranha ideia da iluminação temporária, ou fé evanescente.

   Contudo, estranhamente a ideia não é nova no cristianismo, tendo lastro na tradição e, mais especificamente, em Santo Agostinho. Pego aqui como exemplo a interpretação alegórica que Agostinho faz do Salmo 3, quando compara Absalão, de quem o rei Davi fugia quando escreveu o Salmo, a Judas Iscariotes, aquele que traiu o Senhor.
   Essas são as palavras de Agostinho:
   "'Salmo de Davi, quando fugia de seu filho Absalão'. A loução: 'Adormeci, caí em sono profundo. Despertei porque o Senhor me me acolherá' persuade-nos a aplicar este salmo à pessoa de Cristo. De modo mais adequado se refere à paixão e ressurreição do Senhor do que à história de Davi a fugir do filho, em guerra contra ele (2Sm 15,17). Estando escrito a respeito dos discípulos de Cristo 'os amigos do esposo não jejuam enquanto o esposo está com eles' (Mt 9.15), não é de admirar que esse filho desnaturado [Absalão] represente o discípulo impiedoso que o traiu. Embora seja possível o sentido histórico relativo à fuga de Cristo da presença do traidor, quando havendo Judas saído ele [Cristo] se apartou com os demais para o monte, no entanto, espiritualmente o Filho de Deus, isto é, a virtude e a sabedoria de Deus, abandonou o espírito de Judas e o diabo o invadiu totalmente, conforme está escrito: 'O diabo entrou em seu coração' (Jo 13.2). Com razão entende-se Cristo ter fugido dele. Não quer dizer que Cristo cedeu ao diabo, mas quando Cristo se afastou, o diabo se apossou de Judas. Penso que neste salmo deu afastamento se denomina fuga por causa da pressa com que se realizou. A palavra aparece na declaração do Senhor: "Fazei depressa o que tens de fazer" (Jo 13.27). Nós também costumamos dizer: Fugiu-me [sic], quando não nos lembramos de alguma coisa; e de um homem muito douto afirmamos: Nada lhe escapa. A verdade, por tanto, fugiu da mente de Judas, ao deixar de iluminá-lo." 1
   Esse trecho afirma muito mais do que se pode captar à primeira vista. Ao dizer, por exemplo, que a fuga não se trata de um fugir por parte de Cristo da face do diabo, mas um deliberado "retirar-se" do espírito do Judas, Agostinho ressalta, nesse contexto, a soberania de Deus. No fim do texto se afirma que: "A verdade, por tanto, fugiu da mente de Judas, ao deixar de iluminá-lo". Agostinho tem a complicada tarefa de conciliar a iluminação com a soberania de Deus ou a teologia da predestinação, e, ao que parece, ele ressalta que deliberadamente Cristo retirou-se do espírito de Judas, como nos afirma este trecho: "espiritualmente o Filho de Deus, isto é, a virtude e a sabedoria de Deus, abandonou o espírito de Judas", e como resultado dessa deliberação "o diabo o invadiu totalmente". E não é nenhum ilogismo concluir que, se Cristo se retirou de Judas, é óbvio que Cristo já esteve em Judas.
   Por tanto, ainda que não se faça aqui um juízo teológico de tal asserção, fica posto que a ideia da iluminação temporária, ou da fé evanescente, não é uma estranheza original ditada pela pena de Calvino, como nos faz acreditar B. Küster - e isso sem falar da interpretação de Calvino da parábola do semeador, onde no solo espinhoso a semente plantada parece que vigará, mas é afogada pelo espinheiro, tal como a fé temporária é apagada pelos cuidados da vida. Antes essa ideia pode até mesmo ser encontrada entre as especulações teológicas de um grande pai da Igreja como Agostinho de Hipona, .

1 AGOSTINHO DE HIPONA - Comentário aos Salmos - 1-50, vol. 1; ed. Paulus. p. 30.

A Singularidade da Invocação de Deus como 'Abba*


   O judaísmo antigo dispunha de uma grande riqueza de modos de se dirigir a Deus. A "oração" ('teffilah', mais tarde chamada de oração das dezoito [preces]), que já na época do Novo Testamento se rezava três vezes ao dia, por exemplo, termina cada benção com uma nova interpelação de Deus. A primeira benção reza em sua forma supostamente mais antiga:

"Louvado sejas, Javé,
Deus de Abraão, Deus de Isaque e Deus de Jacó (cf. Mc 12.26 par.), Deus altíssimo, 
Senhor do céu e da terra (cf. Mt 11.25 par.), nosso escudo e escudo de nossos pais. 
Louvado sejas, Javé, escodo de Abraão".
   Vê-se: a uma forma de invocar a Deus segue outra. Se quiséssemos catalogar todas as interpretações que ocorrem na antiga literatura devocional judaica, a lista seria enorme. 
   Quanto à interpelação de Deus como 'Pai', não a encontraremos em nenhuma passagem do Antigo Testamento, Com certeza lhe estão muito próximos o apelo a Deus chamando-o de 'abinu 'attah (tu és nosso pai - hebr) numa situação desesperadora, ou 'abi 'attah' (tu és meu pai - hebr), mas trata-se aí de sentenças afirmativas, e não da invocação de Deus usando do nome de Pai para ele. Na literatura pós-canônica do judaísmo, há testemunhos isolados no judaísmo da diáspora de invocação de Deus como páter [pai - greg] [Eclo 23.1,4], em que se segue simplesmente a influência do mundo grego. No meio palestinense, só nos tempos do começo do cristianismo é que encontramos duas orações que usam interpelação de Deus como pai, ambas no forma 'abinu malkenu [nosso pai, nosso rei - hebr]. Todavia é preciso observar que se trata do orações litúrgicas, nas quais Deus é invocado como pai da comunidade, e que aí se usa linguagem hebraica e que, além disso, se usa 'abinu ligado com malkenu: o pai, que a comunidade invoca, é o rei celestial do povo de Deus. Toda via, em vão procuraríamos aí a invocação pessoal individual de Deus como "meu Pai". Esta aparece (visto que o texto original de Sir. 23.1,4, que se deduz de uma paráfrase hebraica, rezava 'el 'abi, e, por isso, não se deve traduzir por "Deus, meu Pai", mas por "Deus de meu Pai") pela primeira e uma única vez no escrito surgido cerca de 974 d.C. no sul da Itália, chamado 'Seder Eliyyahu Rabba', na formulação 'abi shebashamayim' (meu pai que está nos céus - hebr); por tanto em hebraico e com complemento. Isso significa que, na literatura do judaísmo palestinense antigo, até agora ainda não se comprovou a existência de uma invocação individual de Deus por "meu Pai". Ela só iria surgir na Idade Média no sul da Itália.
   Se já era algo totalmente incomum o fato de Jesus se dirigir a Deus chamando-o de "meu Pai", isso vale tanto mais para o emprego da forma aramaica 'Abba. Ela foi transmitida expressamente apenas em Mc 14.36, mas duas outras observações falam em favor de que Jesus usava esse modo de se dirigir a Deus como 'Abba também no restante de suas orações. EM primeiro lugar, a tradição da interpelação de Deus como Pai representa uma estranha oscilação em suas formas. Encontramos, de um lado, a forma grega correta do vocativo 'páter', acompanhado do prenome pessoal em Mateus (páter mou), e, do outro lado, o nomitativo com artigo (ho patér) como vocativo. Chama especialmente a atenção que numa só e mesma oração encontramos lado a lado páter e ho patér vocativo, a saber em Mt 11.25s. par. Lc 10.21. Essa estranha oscilação aponta para um 'Abba subjacente, que no tempo de Jesus era usado tanto como interpelação omo para o 'Estado determinado ou enfático' ("o pai"), como também para a forma com o sufixo em primeira pessoa ("meu Pai, nosso Pai"). Em segundo lugar: através de Rm 8.15 e Gl 4.6 ficamos sabendo que na igreja primitiva estava espalhada a invocação operada pelo Espírito 'Abba ho patér [Abba pai], e de tal modo que Paulo não pressupõe apenas para suas próprias comunidades (Gl 4.6), mas conta também com o fato de que esse 'Abba soava também como invocação na oração de uma comunidade não fundada por ele (Rm 8.15). O caráter incomum dessa invocação de Deus comprova que ela é um eco da oração de Jesus. Temos, pois, todos os motivos para contar com o fato de que páter (mou) [meu pai] ou ho patér das orações de jesus subjaz em todo lugar um 'Abba.
   Embora haja testemunhos esporádicos da invocação de Deus como páter - se bem que sob influência grega - no campo do judaísmo helenístico, pode-se dizer com segurança que em toda vasta literatura do judaísmo antigo não se encontra em parte alguma um testemunho para a invocação de Deus com 'Abba, nem em orações litúrgicas nem em orações privadas.
   Mesmo à parte das orações, o judaísmo evita conscientemente aplicar a palavra 'Abba a Deus, como se pode estudar no Targum. Das três passagens do Antigo Testamento em que Deus é chamado de 'abi, o Targum reproduz duas com ribboni [meu Senhor] (Targ Jr 3.4,19); somente no Targ do Sl 89.27 é que o tradutor se viu obrigado pelo sentido a colocar 'Abba. No restante do Targum, aplica-se 'Abba (hebr. 'ab - pai) a Deus só mais no Targ de Ml 2.10; também aí o tradutor, por causa do conteúdo, não viu outra possibilidade de tradução. Fora do Targum, só há um lugar na literatura rabínica em que se usa 'Abba com referência a Deus. Trata-se de um ahistória a respeito de Hanin ha-Nehba, que viveu por volta do fim do século I a.C. e era tido como homem que orava eficazmente por chuva:
"Hanin ha-Nehba era filho da filha de Honi, o traçador de círculos. Quando o mundo precisava de chuva, os nossos mestres costumavam mandar a ele as crianças da escola, que agarravam a orla do seu manto e lhe diziam: /'abba, 'abba, hab lan mitra/ [Paizinho, paizinho, dá-nos chuva!] . E ele falava diante dele (Deus): 'Senhor do universo, faze-o por causa destes que ainda não sabem distinguir entre um 'Abba que pode dar chuva e um 'abba, que não pode dar chuva alguma.
   Hanin aplea à misericórdia de Deus, retomando com humor o confiante " 'abba, 'abba" que as crianças da escolha lhe gritam e designando a Deus - em contraposição a si mesmo como o " 'Abba que pode dar chuva". Pode-se considerar essa história como prelúdio a Mt 5.45, onde Deus é nomeado como o Pai celeste que dá o dom da chuva para justos e injustos sem distinção - mas elas não oferece o testemunho judaico que falta para a invocação de Deu como 'Abba. Pois, note-se bem, Hanin não se dirige a Deus com a invocação 'Abba; sua interpelação é antes "Senhor do universo".
   Com tudo isso estamos diante de um dado de fundamental importância: ao passo que não temos nenhum testemunho de que no judaísmo Deus tenha sido invocado com 'Abba, Jesus sempre o invocou assim em suas orações, sendo a única excessão o grito na cruz em Mt 15.34 par. Mat 27.46, o que se justifica pelo caráter de citação dessa passagem.
   O notável silêncio da literatura devocional judaica se explica a partir do dado linguístico: 'abba é, poe sua origem, uma forma de balbucio, motivo pelo qual não se flexiona e nem recebe nenhum sufixo [pois no hebraico os artigos que antecedem os substantivos aparecem como sufixos nos próprios substantivos]. "Somente quando uma criança experimenta o gosto do trigo (isto é, quando ela é desmamada), é que ela diz 'abba, 'imma [mãe] (ou seja, estes são os primeiros balbucios). Originalmente um balbucio, 'abba tinha ganho, já antes do Novo Testamento, ampla base no aramaico palestinense. Tinha abafado em toda linha o 'abi, aramaico puro e hebraico-bíblico, tanto como forma de interpelação como de asserção, tinha-se colocado no lugar do 'estado determinado ou enfático' 'abba e se tinha afirmado largamente como expressão para "seu pai" e "nosso pai". Nos dias de Jesus, já há muito tempo que 'Abba não mais se restringia à linguagem das criancinhas. Também os filhos adulto se dirigiam então a seu pai, chamando-o de 'Abba. Além do pai, também se interpelava pessoas adultas de respeito com a expressão 'Abba, o que é mostrado, p. ex., pela história (que se passa em período pré-cristão) de Hanin ha-Nehba. Uma fonte judaico-cristã recentemente descoberta diz que é uma propriedade da língua hebraica que "filho" pode designar um escravo fiel e probo e "pai", o senhor e dono. O Midrash confirma isso: "Assim como os alunos são chamados de filhos, assim ta,bém o mestre é chamado de pai" [Sifre Dt 34 sobre 6.7]. Na casa do rabino Gamaliel II (cerca do ano 90), até mesmo o escravo Tobi era chamado de " 'abba Tabi" [Tp. Nidda 49b 42s. Bar.].
   Tendo em vista esse Sitz in Leben [lugar vivencial, ou lugar vital] de 'abba, compreende-se porque o judaísmo palestinense não usava 'abba como interpelação de Deus: 'abba era linguagem de crianças, falar do dia-a-dia, expressão de cortesia. Para a sensibilidade dos contemporâneos de Jesus, teria parecido irreverente, até mesmo inimaginável, invocar a Deus usando essa palavra familiar.
   Jesus ousou empregar 'Abba como invocação de Deus. Esse 'Abba é ipsissima vox de Jesus.

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* Joachim Jeremias - Teologia do Novo Testamento. ed. Hagnos. p. 114-120

O Poder do Maligno e a Vitória sobre Satã

[...] Portanto, Jesus não considerava o mundo do mal como algo atomizado, mas como uma unidade. Assim, o mal perde o caráter de algo de isolado e fortuito; ele é radicalizado. Por detrás de suas várias formas fenomênicas está o extrós [inimigo - grego] por excelência, o destruidor da criação. Os seres humanos estão indefesos à mercê do seu exército de maus espíritos (Lc 10.19). Este conhecimento da realidade do mal culmina na ceteza de que o poder do mal ainda não atingiu seu ápice: Satã haverá de se levantar como Deus e exigir adoração (Mc 13.14). Só então, no fim dos dias, é que será posto abaixo o pseudodeus: tunc Zabulus finem habebit [então Zabulos terá um fim - latim] (AssMois 10.1).
   Neste mundo escravizado por Satã, Jesus entra com autoridade de Deus, não só para exercer a misericórdia, mas obretudo para assumir a luta contra o mal. O. Bauernfeind demonstrou que o Evangelho de Marcos descreve as expulsões de demônios por Jesus como lutas, como é o caso p. ex. em Mc 1.23-28. Temos aí o seguinte esquema: o possesso se aproxima com uma palavra de rejeição contra Jesus (v. 24 que deve ser lido como duas perguntas); a rejeição cresce a ponto de tornar-se um ataque e depois segue uma esconjuração feita pelo demônio contra Jesus (oidá se tís éi, ho agios tou Teou [sei quem és: o santo de Deus - grego), v. 24b). À ordem de Jesus para que se cale e se retire (v. 25) o demônio opõe uma última resistência antes de obedecer (v. 26). O mesmo esquema retorna em Mc 5.6-10. Também Jesus partilha da ideia de que as expulsões de demônios são lutas contra poderes maus, como o evidencia a paráboa do duela em Mc 3.27 pr. Lc 11.21. Emprega-se aí a figura da luta escatológica, que os textos essênios (principalmente 1QM) evidenciam como ideia corrente. Com essa parábola, Jesus interpreta suas expulsões de demônios como lutas, e, mais exatamente, como tomada dos espólios após a vitória sobre o homem forte, em que tal vez tenha servido de pano de fundo Is 53.12 ("e fará dos poderosos os seus despojos"). Em Lc 13.16 emprega a figura do romper as cadeias das vítimas de Satã, a fim de descrever a cura.
   Essas vitórias sobre o poder do mal não são apenas irrupções isoladas no reino de Satã. Significam mais. São manifestações da aurora do tempo salvífico e do começo da aniquilação de Satã (cf. Mc 1.24: apolesai [destruir - grego]). É o que afirma Lc 11.20: eidé en daktülô (Mt 12.28: pneumati) Téou ekbanlô tá daimonia, ara ephtasen eph hümas he basiléia tou Teou [se com o dedo (Mt 12.28: espírito) de Deus expulso demônios, então veio sobre vós o reinado de Deus]. Cada expulsão de um espírito mau operada por Jesus significa uma antecipação da hora em que Satã será visivelmente dominado. As vitórias sobre os seus instrumentos são prolepses [antecipações] do éschaton.
   Jesus afirma o mesmo das expulsões de demônios que os discípulos realizam por sua ordem. Ele os envia para anunciar o reino e lhe [sic] dá poder sobre as potestades do mal (Mc 3.14s.). A plenipotência sobre os espíritos retona sempre nos ditos de envio e até mesmo é característica deles (Mc 6.7 par.; Mt 10.8; Lc 10.19s, cf. Mc 6.13 par.; Mt 7.22; Lc 10.17). Trata-se de tradição antiga, pois a incumbência do envio dos missionários das origens cristãs soava diferente: tinha um teor cristológico,. A razão pela qual Jesus atribui tanta importância às expulsões de demônios pelos seus enviados evidencia-se no grito de júbilo com que ele responde à notícia dos discípulos que retornam e contam que à sua palavra os espíritos bateram em retirada: 'Eteoroun ton satanan os astrapen ek tou ouranou pesonta (Lc 10.18). Visto que nesta passagem 'piptein', como um quase-passivo semítico, deve ser traduzido como "ser expulso", então o dito significa: "Vi Satanás ser expulso do céu e cair commo um raio sobre a terra". A expulsão de Satanás do mundo celeste pressupõe uma luta prévia no céu, como a descrita em Ap 12.7-9. O grito visionário de júbilo de Jesus ultrapassa o intervalo de tempo antes da reviravolta final e vê nas expulsões de demônios pelos discípulos o início da aniquilação de Satã. Isso já está acontecendo: os espíritos maus estão impotentes, Satã está sendo aniquilado (Lc 10.18), abre-se o paraíso (v.19). os nomes dos eleitos constam no livro da vida (v. 20).
   Não se acha afirmação análoga ao judaísmo daquele tempo. Nem a sinagoga nem Qumran conhecem uma vitória sobre Satã que já esteja acontecendo no presente; Com certeza, tudo isso é dito de modo paradoxal e só é visível àquele que crê. Satã ainda exerce o seu poder. Por isso as erga [obras - grego] não oferecem nenhuma legitimação; podem até mesmo ser entendidas como obras de Satã (Mc 3.22). Mas onde os homens acreditam em Jesus, soa o grito de júbilo que perpassa todo o Novo Testamento: o poder de Satã foi quebrado! "Satana maior Cristus" [Cristo é maior do que Satanás - latim] (Lutero).

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Joachim Jeremias - Teologia do Novo Testamento. ed. Hagnos. p. 157-159.

O Pensamento Reformado e o Livre-Arbítrio

   A negação do livre-arbítrio nas confissões reformadas está localizada em lugares específicos, e são nessas confissões que devemos encontrar a razão dessa negação e não no nível da apologética popularesca. Além do mais Calvino fez essa negação em um nível específico, muito bem fundamentado, e que encontra respaldo em uma caudalosa tradição teológica cristã - e de modo algum isso significa que Deus tornou-se o tirano da humanidade. Isso também significa que o livre-arbítrio assim como a razão humana permanecem no nível das "causas segundas", ou seja: no nível do plano natural, abaixo do nível da graça, como tudo o mais na criação deve permanecer. Agora seria difícil um certo pessoal confessar que Tomás de Aquino identificou, literalmente, a fatalidade grega com a providência na Suma Contra os Gentios, e só por um preciosismo de nome é que ele, seguindo o conselho de Agostinho, diferenciou a Providência cristã da Fatalidade Trágica dos gregos, mantendo, não obstante, em um nível de semelhança a realidade de essência de uma coisa com outra. Mas essa "monstruosa negação do livre-arbítrio", que no pensamento reformado diz respeito ao bem sobrenatural - assim como em Tomás de Aquino e Agostinho -, e não a bem natural, foi designada como "determinismo" por gente bem pouco ilustrada e cheia de rancor contra o protestantismo. Só um tolo desprovido de estudo não sabe que essas coisas não são assim, como alguns apologetas mirins que vivem publicando por todos os lados a ignorância deles.

Schelling, Platão, o Espírito e a Realidade


 F. Schelling é quase um milagre em meio a filosofia alemã do séc. XIX. Ele cumpre funções análogas às de Platão em Atenas, pois, após a sua morte, segue-se uma era de epígonos e da degradação do pensamento. Podemos dizer que tanto em Platão como em Schelling o que vemos é a incrível história da acessão do espírito ao zênite luminoso do Absoluto seguido de uma decadência das sociedades históricas em que viviam. Platão tece a sua filosofia em meio aos estágios finais da degradação de Atenas. Schelling, vivendo no período da ascensão do império alemão, também assiste a degradação política européia e a secularização cavalar e corrosiva gerada pelo avanço dos ideais iluministas e da revolução francesa em todo seu resplendor luciferino. Ambos encontram forças de resistência na ascensão às regiões do espírito, encontrando na Ideia o ponto axial de sustentação da alma; ambos realizam o juízo da realidade sob o pano de fundo do Absoluto, já que por ele o mundo é visto sob a coação das imperfeições a que está sujeito tudo o que se encontra sob o domínio do tempo; em ambos o ideal é o ponto de juízo a partir do qual é possível determinar tudo aquilo que é real.

Especulação Dualista, Zoroastrismo, Política e Gnosticismo

   
   Falamos do grau mais elevado de racionalismo que caracteriza a especulação aquemênida pelo fato de ela ser influenciada pela religiosidade zoroástrica. O grau preciso desse racionalismo requer algum esclarecimento, especialmente porque as experiências religiosas que se manifestam na teologia dualista moldaram a história intelectual da humanidade até bem além da sua área siríaca de origem. A experiência do cosmo como uma luta entre forças do bem e do mal reaparece não só nas variedades de gnose antiga, mas também nos movimentos políticos ocidentais desde a alta Idade Média. E na política o simbolismo da Verdade e Mentira tornou-se predominante de uma forma geral, com o resultado de que os principais movimentos de credo político interpretam a si mesmos como os representantes da Verdade e aos outros como representantes da Mentira. O tipo de experiência descrito é hoje uma das grandes forças espirituais mundiais em rivalidade com o cristianismo e a tradição clássica.

Eric Voegelin - Ordem e HIstória, Vol I: Israel e a Revelação. p. 97

Immanuel Kant, a Razão Prática e a Fundamentação do Direito

   Uma das coisas que é possível entender lendo o "Metafísica dos Costumes" de Kant é o nível de asnice que se diz sobre o velhinho corcunda de Königsberg - aquele que pela regularidade de suas caminhadas servia de media para que as senhoras prussianas acertassem seus relógios.
   A primeira coisa que sempre que vejo alguém com tinos medievais, quase que munido com vestais de ferro, lançar contra o homem é a acusação de que a doutrina liberal dele é derivada. É correto afirmar isso, mas não no sentido daquela formulação que encontra habitat seguro nesse tipo de cabeça, aí se reproduzindo sem peias morais com outras ideias tão estranhas e assanhadas quanto, pois se busca aí derivar do "liberalismo kantiano" tudo aquilo que veio a ser mal no mundo moderno.
   Uma das coisas que vi recentemente, e que veio de um ser chamado Carlos Ramalhete, foi que a consideração da doutrina moral de Kant se referia apenas à execução de uma lei exterior, o que seria o mesmo de afirmar aquilo que dizemos por "cumprir a lei pela lei". Ao contrário disso Kant diz que todo o direito positivo, ou toda lei positivada na constituição de um país (lei empírica), é meramente oca como uma cabeça sem cérebro, se tal lei ou constituição não encontra anteparo ou sustentação em uma lei reconhecida a priori pela razão, cujos princípios devem ser reconhecidos independentemente de toda a recorrência à sensibilidade como móbile da ação - como o prazer e o desprazer (e essa irrecorrência é característa daquilo que se convencionou chamar de direito natural ou ius naturale).
   E é interessante notar que Kant deriva toda a doutrina do direito não do universo teórico, ou de uma "metafísica da ciência da natureza", mas sim do universo da razão prática que admite como postulado da moralidade tanto a imortalidade da alma como a existência de Deus.
   Antes de se achar a fundamentação do liberalismo kantiano como licença para a confecção de uma lei imoral e contrária à razão, Kant afirma categoricamente, e isso como fundamento da consideração de tudo o que pode ser determinado como direito, o seguinte: "É correta toda ação que permite, ou cuja máxima permite, à liberdade do arbítrio, de cada um coexistir com a liberdade de todos segundo uma lei universal"; ou: "A lei universal do direito - 'aja externamente de tal modo que o uso livre do seu arbítrio possa coexistir com a liberdade de cada um segundo uma lei universal' - é realmente, por tanto, uma lei que me impõe uma obrigação".

terça-feira, 11 de junho de 2019

O Monopólio da Virtude

    Independentemente do espectro político ao qual você pertença ou tenha simpatia, se esquerda ou direita, os fins jamais justificarão os meios. Acima do problema do espectro político, há também o aspecto dos costumes, ou, como afirmavam os clássicos, o problema moral. Muitos, hoje, se encontram engessados em um dogmatismo político em nome do qual a moral e a lógica são pisados, pois nesse campo de disputa e torcida tudo o que ocorre é enquadrado na realidade segundo as preferências e jamais segundo aquilo que é bom e justo. Nenhum lado do espectro político, seja a direita ou a esquerda, possui, por natureza, o monopólio da virtude. O problema é justamente quando a paixão política degenera em fanatismo e ganha contornos de adesão existencial, atando à paixão política o significado da vida. Isso é algo adoecedor para a personalidade, pois se os fatos provarem que algo do movimento político ao qual você deu a sua adesão está muito errado, é muito provável que o mais apaixonado politicamente irá jogar tudo no lixo, incluindo seus afetos e o seu caráter, se aferrando à sua posição - pois é comum que, a contrapelo dos fatos, aquele que depositou tudo de sua vida em uma ideia, irá defender até às raias do absurdo aquilo em que depositou sua confiança para não parecer um tolo - ainda que com isso não só a tolice, mas a estupidez se torne evidente. E entre parecer um tolo ou um louco fanático com aparência heroica, não há dúvida que as pessoas irão querer se parecer um louco fanático, já que tudo aí é mais enérgico e intempestivo - e não há dúvida que é mais condizente com a natureza humana que as aspirações mais altas tendam a desejar o reconhecimento no trágico ao invés do reconhecimento no cômico.