quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Contra os que Sustentam que não Há Bondade nas Obras de Deus, ou Então que as Regras de Bondade e Beleza São Arbitrárias

    Assim, afasto-me da opinião dos que sustentam que não há quaisquer regras de bondade e de perfeição na natureza das coisas ou nas idéias que Deus tem delas, e que as obras divinas são boas apenas pela razão formal que Deus as fez. Se assim fosse, Deus, que bem sabe ser seu autor, não precisaria contemplá-las e depois achá-las boas, como testemunha a Sagrada Escritura, que parece ter recorrido a essa antropologia apenas para nos mostrar que se conhece sua excelência olhando-as nelas mesmas, mesmo quando não se faça reflexão alguma sobre essa pura denominação extrínseca que as refere à sua causa [ou seja: mesmo quando não se faça reflexão sobre a sua bondade como originada em Deus]. Isto é tanto mais verdadeiro quanto é pela consideração das obras que se pode descobrir o operário. Portanto, é preciso que estas obras tragam em si o caráter de Deus. Confesso que a opinião contrária me parece extremamente perigosa e bastante semelhante à dos últimos inovadores, cuja opinião é a beleza do universo e a bondade atribuída por nós às obras de Deus não passarem de quimeras dos homens que concebem Deus à sua maneira. Também me parece que afirmando que as coisas são boas tão-só por vontade divina e não por regra de bondade destrói-se, sem pensar, todo amor de Deus e sua glória. Pois, para que louvá-lo pelo que fez, se seria igualmente louvável se fizesse precisamente o contrário? Onde, pois, sua justiça e sabedoria, se afinal apenas restasse determinado poder despótico, se a vontade substituísse a razão e se, conforma a definição dos tiranos, o que agrada ao mais forte fosse por isso mesmo justo? Ademais, parece que toda vontade supõe alguma razão de querer, razão esta anterior à vontade. Eis por que me parece inteiramente estranha a expressão de alguns outros filósofos que consideram simples efeitos da vontade de Deus as verdades eternas da metafísica e da geometria e, por conseguinte, também as regras da bondade, da justiça e da perfeição. A mim, pelo contrário, me parece tão somente consequências de seu entendimento, o qual seguramente em nada depende da sua vontade, assim como a sua essência também dela não depende*.

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*] LEIBNIZ, G. W. - Discursos de Metafísica. II

Picco dela Mirandola, a Metamorfose Espiritual e a Dialética Simbólica

    Até mesmo a mais secreta teologia hebraica, de facto, transforma ora Enoch santo no anjo da divindade, ora outros noutros espíritos divinos. E os pitagóricos transformam os celerados em bestas e, a acreditar em Empócledes, até mesmo em plantas. Imitando isto, Maomé repetia várias vezes e com razão: "quem se afasta da lei divina se transforma em uma besta". De fato, não é a casca que faz a planta, mas a sua natureza entorpecida e insensível; não é o couro que faz a jumenta, mas a alma bruta e sensual; não é a forma circular que faz o céu, mas a recta razão; nem é a separação do corpo que faz o anjo, mas a inteligência espiritual. Por isso, se virmos alguém dedicado ao ventre rastejar por terra como serpente, não é homem o que vê, mas planta; se alguém cego; se alguém cego, como calipso, por vãs miragens da fantasia, seduzido por sensuais engodos, , escravo dos sentidos, é uma besta o que vemos, não é um homem. Se é um filósofo que discerne com reta razão todas as coisas, venerá-lo-emos, é animal celeste, não terreno. Se é um puro ser contemplante, ignaro do corpo, todo embrenhado no âmago da mente, este não é animal terreno, nem mesmo celeste: é um espírito mais elevado, revestido de carne humana. Quem pois não admirará o homem? Que não por acaso nos textos mosaicos e cristãos é chamado ora com o nome de cada ser de carne, ora com o de cada criatura, precisamente porque se forja, modela e transforma a si mesmo segundo o aspecto de cada ser e a sua índole segundo a natureza de cada criatura*.

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*] GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA - Discurso sobre a Dignidade do Homem; ed. 70. p. 61

Eric Voegeli, Karl Barth e o Argumento Ontológico

     Mais admirado do que compreendido, Karl Barth tem sido mais sovado a partir de dentro - pelos protestantes (em sua maior parte pelos reformados) - do que por aqueles a quem se contrapõe de forma dura, como é o caso daqueles que pertencem à tradição católica romana - que, por uma coincidência irônica, tem oferecido mais recensões generosa aos seu trabalho, como é o caso das considerações de Hans Hur von Balthasar.

    Mas também não deve ser desconsiderado o reconhecimento do pensamento de Barth vindo de pessoas como Eric Voegelin, que foi duro em sua crítica aos movimentos de Reforma do séc. XVI, relacionando um certo "imanentismo constitutivo" do protestantismo ao "princípio protestante" de Hegel, pois, segundo Hegel, o novum do protestantismo foi ter abolido o estranhamento entre o infinito e o finito, ou, em linguagem religiosa, da distância entre Deus e o Homem, mediante o reconhecimento da unidade substancial entre uma coisa e outra, de forma a estabelecer a identidade absoluta entre Deus e o Homem no Eu (Ich). É sintomática a asserção de Hegel de que no protestantismo o homem compreende a realidade do estar no Espírito como um estar diante de Si. Da semelhança entre o eu e Deus afirmada e reafirmada na teologia cristã, Hegel ousa dar um passo além, afirmando não a semelhança, mas a identidade substancial. É isso que ele compreende como "princípio protestante".

    Mas para os equívocos grotescos sempre sobra um espaço de reparação, e em uma resposta a uma recensão feita pelo professor Altizer, o "teólogo da morte de Deus", ao "A Nova Ciência Política", Voegelin, discorrendo a razão de sua oposição cruel a Hegel, reflete sobre o uso do Argumento Ontológico do 'Proslogion' de Anselmo de Cantuária, onde também cita Barth. Este é o trecho que, para os propósitos deste texto, nos interessa:

"Deve-se notar que na seção sobre Anselmo de Cantuária, em sua Geschichte der Philosophie, Hegel trata considerável e competentemente da prova ontológica, mas não menciona a segunda parte do Proslogion com sua exploração analógica da luz divina para além da razão humana. Esta negligência, entretanto, não pode ser imputada como culpa exclusiva de Hegel, pois, a seu tempo, a concentração nos méritos silogísticos e deméritos da prova ontológica, negligenciando o mistério divino para além da razão, já se tinha tornado prática padrão entre pensadores ocidentais. Colocado nesse pano de fundo, dever-se-ia, ao contrário, reconhecer a percepção filosófica de Hegel que o moveu a reconhecer a questão, deformando-a. Em nosso tempo, esta destruição bárbara das estruturas espirituais e intelectuais está em processo de reparação. Menciono apenas o bom estudo sobre 'Fides Quaerens Intellectum' (1931) de Karl Barth, que preparou o autor para a revisão de sua Dogmatik" (Voegelin - Uma Resposta ao Artigo "Uma Nova História e um Deus Novo, mas Antigo?", do Professor Altizer).

    Em tempo, colocarei em linhas gerais o argumento do Barth nesse trabalho: 1) Ele expõe o erro das interpretação de figuras como Gaunildo, Tomás de Aquino e Kant em enxergar o argumento de Anselmo no contexto puramente racionalista, como se Anselmo estivesse propondo encontrar Deus no final de um silogismo, ou de um encadeamento de raciocínios, fazendo Deus surgir na ponta extrema ao final do encadeamento; 2) Ele também expõe o erro daqueles que acham estar junto a Anselmo quando se apegam apenas à estrutura silogística da primeira parte do Proslogion, julgando achar aí uma mera "prova racional apriori da existência de Deus", tal como pretensamente fazem Descartes Lebniz, Spinoza, Hegel etc.; 3) Barth argumenta que o Proslogion não é um Monologion, ou seja, trata-se de uma obra escrita como uma oração direcionada a Alguém, não sendo um monólogo solipsista que descamba em um "cogito ergo sun"; 4) Sendo um Proslogion a oração é direcionada a Alguém que é reconhecido como existente pela fé do teólogo, o que coloca a obra no âmbito da invocação e adoração que busca manifestar as razões da fé. O silogismo é mero construto secundário diante do dado absoluto da fé e é só por isso que a fé aqui é 'Fides Quaerens Intellectum' (A fé que busca compreensão de si); trata-se, em sentido clássico, de uma zetesis, ou de uma exegese que investiga uma experiência que se dá na tensão entre um eu orante e um Deus que se revela a uma alma aberta ao seu próprio fundamento divino; 5) Deus não é encontrado no fim de um silogismo, mas já está aí presente antes mesmo da investigação noética que busca o logos da experiência; 6) A importância da investigação de Anselmo está em que ele reconhece que Deus está para além do poder raciocinante do teólogo, pois a luz da teologia não é a luz do teólogo - como constata Barth no fim do seu estudo -, mas sim a luz de Deus dada em graça ao teólogo convocado para a sua tarefa; 7) A percepção da graça que ilumina o teólogo, como algo para além do poder intelectual do teólogo, para Barth está proporcionada à percepção de Anselmo de que Deus é "não apenas aquilo de que não se pode conceber algo maior, mas és também maior do que aquilo que pode ser concebido".

    Diante disso se torna luminosa a afirmação de Voegelin de que: "Esta atenção renovada atribuída a um importante teólogo protestante ao equilíbrio de Anselmo entre o mistério e a razão poderia também provocar alguma reconsideração sobre se o princípio hegeliano é tão 'protestante' quanto ele pensava ser". (Idem)

Última Reflexão do Ano: Fatos de uma realidade sombria e o Cristo Vencedor

     O ano nos deixa, e com ele permanece o dever de refletir o seu legado afim de que, no mínimo, possamos saber onde estamos e, compreendido isso, para onde vamos. Seria mais do que as minhas forças me possibilitam refletir sobre a totalidade do ano que se vai, mas a fim de uma conveniência maior, faço um determinado recorte a respeito da agressividade de um evento que nos assusta no apagar das luzes de 2020. Com isso me refiro à legalização do aborto na Argentina, nosso vizinho de continente. 

    Muito se evidenciou para a contradição evidente entre a existência de um papa argentino e a aprovação do aborto. Isso não deveria assustar à luz da realizada de que na existência de papas europeus, isso nem sempre foi problema na Europa. Obviamente que em um contexto moral aparentemente mais seguro como o da América Latina, mesmo à luz da decadência visível do poder de influência da Igreja Católica Romana, uma mudança na legislação  coloca à luz do dia a violência corrosiva do ethos moderno. Sempre será percebido com um susto esse tipo de virada, principalmente no campo do direito o qual tem se tornado cada vez mais impermeável à moral cristã.

    É hora de admitir o que se perdeu, para não nos tronarmos cegos a respeito dos lugares que o cristianismo não ocupa mais. Não estou propondo aqui uma elegia, mas sim dar a entender que lá se vão os tempos em que Churchill poderia apelar, por exemplo, à necessidade de defesa de um Ocidente cristão diante da ameaça nazista. Lá se vão os tempos em que Karl Barth, na eminência da segunda guerra, compunha um texto refletindo em que medida a justificação concedida por Cristo, a paz e a justiça do Reino de Deus poderiam estabelecer um direito humano, para logo depois convocar por um raciocínio teológico a Suíça para a defesa das fronteiras contra o ataque nazista.

    Entendamos um ponto nessa questão: mesmo na Alemanha Nazista, período de notória apostasia e avassalado avivamento do paganismo, mesmo ali era necessário um apelo quase alucinante à heresia. Em 1933 a questão do "bispo do Reich" virou assunto do ano com várias reviravoltas. O estabelecimento de uma "Igreja do Reich", que para nós parece uma abominação incompreensível, nada mais queria do que ser um processo de unificação de uma igreja nacional - algo que parecia, ao olhos da época, até bem uma preocupação espirituosa para o povo longe do centro dos eventos, já que a intervenção assídua do governo nazista nessa questão não deixou os mais avisados no engano. Mesmo discursos teológicos sinistros e aberrantes, como a exclusão dos judeus da "Igreja do Reich" era algo dissimulado, falsamente se apelando para a Escritura. Nem mesmo a aberta pregação do paganismo poderia deixar alguns teólogos mais cínicos se desperceberem do fato de que a construção de um abominável "Kristo" nacional com "K" era algo necessário. Bons tempos de heresia em que a maldade flagrante deveria ser camuflada com um cristianismo deturpado para obter a aprovação nacional. Hoje se faz tudo às claras. 

    O poder cultural do cristianismo vem esmaecendo, e mesmo o avivamento do sentimento cristão nos últimos 20 anos no Brasil não pode nos deixar confiante, pois a tentação pelo poder vem capitulando esse sentimento cristão para desvia-lo em favor do poder político que, em não poucas partes, se mostra abertamente hostil ao conteúdo da fé cristã. Nas eleições passadas todos os espectros políticos dos presidenciáveis teve que se mostrar, ao menos em parte, um pouco cristão. Mas a capitulação a esse tipo de engodo por grande parte dos evangélicos já dá certo vislumbre da degradação porvir.

    Por hora o que nos cabe é orar e celebrar a fé, mantendo certa tensão e estado de vigília, afim de que não escorreguemos, com a nossa própria anuência, e força da nossa própria negligência, para dentro da boca da besta que, ao fazer um acordo conosco, no fim das contas, tem o evidente desejo de nos direcionar a um falso paraíso que nada mais é do que um matadouro.

    Mas Cristo é o nosso Deus, ele é a nossa esperança feliz e bem-aventurada; Cristo é o Sim para nossa vida diante do pequeno não do nosso mundo. Cristo nosso Deus, o Deus-homem que se Deus para todo o homem. A fé aqui recebe a sua luz diante do nosso presente, que ainda que sombrio, envolto em luto, tem sobre si a promessa da glória que não pode ser detraída em função do clamor profano dos nossos tempos. Não são fatos como os listados acima que poderá nos deixar de sobressalto, mais do que nos conforta a esperança que nos dá o Cristo que aceitou a cruz por todos nós. Ainda que aqui eu faça à constituição dos tempos uma oposição radical e inflexível, é sempre bom conservar em mente que é das trevas que nasce a luz, e nasce não por uma qualidade especial nas trevas, mas sim porque apesar delas Deus é constante em sua realidade de Ser Deus. Nada pode ser mais pesado, poderoso, triunfante e inexorável como Deus quando opõe a sua Palavra ao nosso mundo.

    Sendo assim podemos dizer confiantemente: Sua misericórdia onipotente sobre nós triunfará!

    É aqui que me é dada a possibilidade de dizer: Feliz ano novo e um próspero 2021.

    Que Deus abençoe a todos nós.

Notas Fundamentais da Teologia Luterana da Satisfação Vicária e a Sua Conformação a Determinados Aspectos Essenciais da Teologia da Substituição Penal

    A doutrina da expiação Luterana conhecida como satisfação vicária, tem também, hoje, uma base paradigmática na Dogmática Cristã de John Theodore Mueller escrita na década de 30 do século passado. A importância dessa obra se reflete no fato de que, ainda hoje, ela é o texto base para a formação de clérigos luteranos da IELB, sendo essa ligada ao Sínodo de Missouri. E o que desejo com este texto é por em evidência a constituição da teologia da satisfação vicária luterana, assim como pontuar certa confluência entre essa teologia e a teologia da Substituição Penal reformada, em que pese o anti-calvinismo evidente de Muller.

Mas comecemos pela citação da obra de Muller. É como segue:

1) As circunstâncias da concepção e nascimento de Cristo constituem também o estado de humilhação, e tem valor propiciatório:

"Sua concepção e nascimento. Ambos esses acontecimentos pertencem ao estado de humilhação de Cristo, visto que a encarnação que, em si mesma não constitui humilhação, ocorre sob circunstâncias muito humilhantes. Pela encarnação, o Filho de Deus levou sobre si mesmo toda a miséria e desolação que o pecado fizera subverter ao ser humano caído [...]; pois por sua santa concepção e nascimento, trouxe expiação por nossa concepção e nascimento pecaminosos"1;

A concepção de Muller não destoa da concepção de Calvino, ou de outros teólogos reformados.

Calvino, nas Institutas, afirma: "Enfim, desde que Se revestiu da pessoa de servo, começou a pagar o preço de [nossa] libertação a fim de redimir-nos"2.

2) A circuncisão de Cristo faz parte do seu estado de humilhação através do qual é trazido ao homem e expiação dos pecados:

"Circuncisão, educação e vida de Cristo: Assim como todas as crianças judaicas do sexo masculino eram circuncidadas ao oitavo dia, Jesus foi sujeito à Lei divina pela corcuncisão ao oitavo dia (Lc 2.21), embora fosse Senhor da Lei. [...] Daí ser a circuncisão de Cristo, com justiça, considerada parte da obra redentora. [...]

Durante a sua permanência na terra, Cristo apareceu na forma de servo e semelhança dos seres humanos, suportando todas as aflições, perigos, tentações, vitupérios e vicissitudes comuns aos seres humanos em geral. [...] Sujeitou-se também, voluntariamente, ao governo civil [...], e aparecia publicamente como simples ser humano, de modo a ser considerado igual ou inferior aos demais"3.

A questão é que toda a vida de Jesus é redentora, e em tudo ele sofre vicariamente, ou seja, substitutivamente, cumprindo a vontade de Deus tanto ativa como passivamente. 1) Ativamente Cristo cumpre a justiça de Deus pelos homens; 2) Passivamente tanto em função dos sofrimentos, e provações a que fica submetido em seu estado de humilhação, incluindo a passio magna na Cruz. É um erro pensar que Jesus sofre e obedece vicariamente apenas na hora, ou seja, na passio magna.

Muller diz: "Para que pudesse redimir-nos mediante a sua santa obediência ( ativa Gl 4.4,5; passiva, Is 53.4-6), Cristo, desde a hora de sua concepção até a sua revivificação na sepultura, abster-se do uso completo e constante ( cheesis ) dos atributos da majestade e glória que lhe foram comunicados. [...] Durante toda a sua vida terrena [desde a concepção], até a conclusão de sua obra redentora, mostrou-se na forma de servo, tomando sobre si todas as fraquezas e enfermidades da natureza humana depois da queda e sendo sujeito à obrigação (Mt 3.15; Gl 4.4) e maldição (Gl 3.13) da Lei divina"4.

Berkhof, em sua famosa teologia sistemática, coloca a obediência passiva e ativa de Cristo nos seguintes termos:

"É costume distinguir-se entre obediência ativa e a obediência passiva de Cristo. Mas ao fazer-se discriminação entre ambas, deve-se entender distintamente que elas não podem ser separadas. As duas acompanham uma à outra em todos os pontos da vida do salvador. Há uma constante interpenetração de ambas. Uma parte da obediência ativa de Cristo era que ele se sujeitasse voluntariamente aos sofrimentos e à morte. Ele mesmo diz, referindo-se à Sua vida: 'Ninguém a tira de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a dou', Jo 10.18. Por outro lado, também era parte da obediência passiva de Cristo que ele vivesse em sujeição à lei. Seu viver de servo constituiu um importante elemento dos Seus sofrimentos. A obediência ativa e a obediência passiva de Cristo devem ser consideradas partes complementares de um todo orgânico"5.

A similaridade não é fortuita aqui, pois tanto na teologia reformada, como na teologia luterana, o modo da expiação de Cristo importa em virtude da teologia da justificação, sendo crucial que tanto a obediência passiva, assim como a obediência ativa, sejam computadas como significativas na constituição do benefício da justificação conquistada por Cristo aos homens.

3) O significado do padecimento de Cristo na Cruz se faz claro à luz da imputação:

"A agonia de Cristo de ver-se esquecido de Deus (MT 27.46), constituiu no padecimento da sua alma, da ira divina por causa dos pecados dos seres humanos, precisamente como se ele tivesse cometido as transgressões imputadas. Foi o padecimento das dores infernais (dolores infernales ), que consistem essencialmente na separação de Deus. [...]

Com muita correção, nossos dogmáticos descrevem a agonia da desertio como sensus irae divinae propter peccata hominum imputa. É antiescriturístico atribuir desespero a Cristo (desesperatio) em sua angústia extrema, uma vez que desespero é iniquidade e, por tanto, não está em acordo com seu caráter não pecaminoso"6.

Sobre essa citação, há muito o que dizer. Praticamente a conformidade entre o modo da morte de Cristo nas teologias luterana e reformada é absoluta, incluindo as nuances distintivas que evita um julgamento errôneo quanto a natureza da morte vicária de Cristo. Não estamos discutindo a questão da extensão da expiação, coisa que pode ser tratada em seu lugar próprio, mas sim a questão do modo da morte de Cristo, que é caracterizada pelas seguintes notas: 1) Cristo morre substitutivamente, levando sobre si a pena da humanidade; 2) Essa pena é entendida como a razão da passio magna de Cristo; 3) Essa passio magna é, segundo o entendimento luterano e reformado, caracterizado pelas dolores infernales; ) Tais dolores infernales é propriamente o sentimento da ira de Deus em função dos pecados dos homens.

Sobre essa questão, Calvino afirma: "E assim se impôs fazer-se, para que, enquanto para com ele se transfere [a maldição], eximidos fôssemos de toda maldição que, em consequência de nossas iniquidades, se nos reservava, ou, antes, impedia sobre nós"7.

Em outra parte Calvino afirma: "Ouça, porém, por outro lado, [o] que a Escritura ensina: haver sido alienado de Deus pelo pecado, herdeiro da ira, sujeito à maldição da morte eterna. excluído de toda esperança da salvação. alijado de toda benção de Deus, escravo de Satanás, cativo sob o julgo do pecado, destinado, afinal, a horrível exício, e já [nele] envolvido; neste ponto, haver Cristo intercedido [como seu] advogado, haver tomado sobre Si e haver pago a pena que do justo juízo de Deus ameaçava a todos os pecadores, haver expiado com o Seu sangue os maus feitos que rendiam abomináveis a Deus. com este sacrifício expiatório haver satisfeito e devidamente propiciado a Deus o Pai, mercê deste intercessor haver-lhe sido aplacada a ira, neste fundamento haver-se firmado a paz de Deus com os homens, neste vínculo conter-Lhe a benevolência para com eles"8.

Mas importa também estabelecer aqui o caminho unívoco entre as teologias luterana e reformada na questão da permanência da santidade e justiça de Cristo na provação da Cruz. E Sobre isso Calvino afirma: "Aqui, certos embusteiros, na verdade, indoutos [..] bradam que estou a fazer atroz injustiça a Cristo, por isso que teria sido mui longe de consentâneo que Ele temesse quanto à salvação da [Sua] alma"9. Para mais à frente afirmar: "Insistem que indignamente se atribui a Cristo [o] que é de si inquinável. Como se, na verdade, mais sabedoria tenham que o Espírito de Deus, Que concilia, a um tempo, essas duas [cousas]: haver sido Cristo em tudo tentado como nós [o somos] e, todavia, sem pecado. [...] Tudo quanto, porém, de livre vontade, sofreu por nós nada Lhe detrai o poder"10.

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1] MULLER, John Theodore - Dogmática Cristã. Ed. Concórdia Editora. 2004. p. 287
2] CALVINO, João - Institutas da Religião Cristã. Ed. Casa Editora Presbiteriana. 1985. vol. II. cap. XVI.5, p. 273.
3] MULLER - Ibid. p.288.
4] Ibid. p. 282.
5] BERKHOF, Louis - Teologia Sistemática. Ed. Cultura Cristã. 1ªed. 1990. p. 348.
6] MULLER - Ibid. 288, 289.
7] CALVINO - Ibid. XVI.6. p. 275.
8] CALVINO - Ibid. XVI.2. p. 270, 271.
9] CALVINO - Ibid. XVI.12. p. 282.
10] Ibid. p. 283.

Χωρὶς Θεοῦ; Ou: Hebreus 2.9, a Crítica Textual e a Morte de Cristo Sem Deus

     A crítica textual é a ciência bíblica que tem a importante tarefa de recolhimento e análise comparada dos vários códices1, papiros2, pergaminhos3 etc. dos textos bíblicos afim de promover uma verdadeira análise com a finalidade de estabelecer a confiabilidade daquele texto bíblico que você temos em mãos, já que hoje não existem aqueles textos que chamamos de autógrafos, que são os textos originais compostos pelos apóstolos e evangelistas. 
    Tendo isso em vista, podemos compreender a importante tarefa empreendida pelos copistas ao longo dos séculos, pois eles nos legaram através do difícil trabalho de compilação de textos, tudo o que temos a respeito da Escritura Sagrada. Mas nesse trabalho, e principalmente através do trabalho da critica textual, é possível ver mediante análise comparada certas variações de termos e acentos que, em certo sentido, nos dão outras interpretações possíveis que, no entanto, não são capazes de destruir o sentido teológico final daquela bíblia que geralmente temos em mãos, mas que nos dão a possibilidade de entender a mente teológica que se valia de tais variações.
     Tendo esclarecido isso, passemos para o interessante caso de Hebreus 2.9., onde há uma variante usada por vários pais e presente em unciais4, mas que foi preterida pelo Textus Receptus5, assim como pelo Texto Crítico6. O texto que comumente lemos em nossas bíblias é traduzido da seguinte passagem em grego: ὅπως χάριτι θεοῦ ὑπὲρ παντὸς γεύσηται θανάτου, e que traduzo como: para que, por graça de Deus, provasse a morte por todos [os homens]. Esse texto está presente em 46א, A, B, Ψ, a maioria dos textos bizantinos etc. Mas uma variante encontrada em alguns pais e unciais seria esta: ὅπως χωρὶς θεοῦ ὑπὲρ παντὸς γεύσηται θανάτου, e que traduzo como: para que, sem Deus, provasse a morte por todos [os homens]. Trata-se de uma leitura alternativa que podemos encontrar em 0246, 424, em um citação de um fragmento de Orígenes - cuja obra foi preservada apenas em tradução -, em Teodoro, Teodoreto, em um citação que Jerônimo faz de Ambrósio, em Virgílio Fulgêncio etc8. 
    O parecer de Roger L. Omanso em seu famoso Variantes Textuais do Novo Testamento9, sobre essa variação é que o apoio sólido vai para a variante χάριτι θεοῦ (cháriti theoû - graça de Deus), embora um número bem expressivo de pais, no Ocidente e no Oriente, assim como vários manuscritos gregos em versões antigas apoiem a variente χωρὶς θεοῦ (choris theoû - sem Deus, separado de Deus)10, lembrando que o aparato crítico presente no texto que indicamos não é exaustivo.
    Como explicação àquilo que Omanso chama de a leitura mais difícil, ele afirma que alguns pais interpretaram esse texto no sentido de que o sofrimento de Cristo se aplica à natureza humana passível, e não à natureza divina impassível - e em apoio a essa leitura ele cita Ellingworth e Huges. Um erudito moderno que apoia a variante em questão é Barth Ehrman em seu The Orthodox Corruption of Scripture p. 146-15011. 
    Em acréscimo a essa possibilidade, há ainda outras duas possibilidades citadas por Omanso, uma das quais se explica como uma confusão em função de uma possível nota marginal feita por um copista em um texto de 1Co 15.27b, e em virtude da semelhança entre os termos  χωρὶς e  χάριτι. Outra possibilidade, mais interessante, que cito aqui: Por outro lado, χωρὶς θεοῦ pode ser uma alusão às palavras de Jesus na cruz: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?"12, que a partir da versão grega do Evangelho de Mateus em Mt 27.46 seria: θεέ μου θεέ μου ἱνατί με ἐγκατέλιπες.
    Obviamente que muitos tem levado até aqui a questão da teologia da Substituição Penal ao considerar esse texto. Mas é bom lembrar que há de se ter o devido cuidado aqui, pois muitos erros podem ser cometidos em um reta consideração sobre essa teologia. Ainda que a variante χωρὶς θεοῦ se refira ao texto de Mt 27.46, ou a Mc 15.34, tenham em mente que nem mesmo a teologia da substituição penal afirma a literalidade de uma morte sem Deus de Jesus. Lembrando as palavras de Calvino: 
    Ora, ainda que é tomado de desmedida agonia, não deixa, entretanto, de chamar Deus Seu [Àquele] de Quem Se exclama desamparado13, sendo que antes havia declarado: Mas, se bem que [nEle] o divino poder do Espírito Santo se ocultou por um momento, de sorte que desse lugar à fraqueza da carne14, deve-se, não obstante que a tentação [procedente] da sensação de dor e do medo foi tal que não conflitasse com a fé15.
    Sobre esse texto, em especial sobre o ocultamento do Espírito é bom ter em mente que aqui não está implicada uma separação real entre o Filho e o Pai na cruz, já que o que deve ser visto aqui não é uma separação ontológica, mas sim uma ocultamento de certo influxo da graça no que toca a humanidade de Cristo. É bom conservar em mente que aqui não está implicado o desespero de salvação, do qual só o absolutamente separado de Deus pode sofrer. E sobre esse ocultamento é bom conservar em mente que Calvino afirma um não conflito com a fé, fé essa que é dom do Espírito. Sobre essa questão, à luz do abandono de Cristo na Cruz, Turretini explica: 
    Ora, este abandono não deve ser concebido como absoluto, total e eterno (tal como é sentido somente pelos demônios e pelos réprobos), mas temporal e relativo; não com respeito à união da natureza (a qual o Filho de Deus uma vez assumiu, e a qual ele nunca desfez); ou da união de graça e santidade, porque ele foi sempre inculpável (akakos) e puro (amiantos), dotado de imaculada santidade; ou de comunhão e proteção, porque Deus estava sempre à sua direita (SI 110.5), nem nunca ficou sozinho (Jo 16.32). Mas, no tocante à participação de alegria e felicidade, Deus, suspendendo por algum tempo a presença favorável da graça e o influxo de consolação e felicidade para que ele pudesse sofrer toda a punição a nós devida (no tocante à subtração da visão, não no tocante à dissolução da união; no tocante à ausência do senso do amor divino, interceptado pelo senso da ira divina e vingança que repousa sobre ele, não no tocante à privação ou extinção real desse amor). E, como dizem os escolásticos, no tocante à “afeição da vantagem” para que fosse destituído da inefável consolação e alegria que provêm do senso do amor paternal de Deus e da visão beatífica de seu semblante (SI 16); porém não no tocante à “afeição da justiça”, porque ele não sentia em si nada desordenado que tendesse ao desespero, impaciência ou blasfêmia contra Deus16.
    Mesmo à luz de uma fortuna crítica que concorre com essa "leitura difícil" do χωρὶς θεοῦ, como diz Omanso, há certo amparo na Escritura para o uso teológico legítimo dessa variação, muito embora o texto majoritário dê sustento suficiente para a consideração de que seja χάριτι o termo presente no texto original. E em que pese a distância semântica entre os termos, eles não são de impossível harmonização, desde que χωρὶς seja compreendido não de forma absoluta, como provavelmente queriam os nestorianos17.  
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1] Os códices são formados por um conjunto de folhas sobrepostas unidas geralmente por uma costura e uma borda. Foi popularizada por cristãos que usavam esse tipo de técnica para unir em um bloco apenas os vários escritos canônicos. Os códices certamente deram a forma para o tipo de livro que usamos hoje em dia. 
2] Os papiros eram papéis formados a partir do junco e são conhecidos por terem sido produzidos em grande escala na cidade de Biblos, no Egito. Os textos do Antigo Testamento mais antigos conhecidos estão escritos nesse tipo de material.
3] Os pergaminhos foram, provavelmente, desenvolvidos no II séc. a.C. na cidade de Pérgamo, de onde recebeu seu nome. Consistindo de peles de animais, os pergaminhos se mostraram mais duráveis do que os papiros. Cerca de 75% dos manuscritos gregos da Escritura são pergaminho.  
4] Os unciais são escritos que usam apenas letras maiúsculas. Seu uso se deveu ao fato de que eram mais fáceis de ser escritos, embora segundo H. Roberts, eram de difíceis de serem lidos. 
5] O Textus Receptus, ou o Texto Recebido, ou mais especificamente o Texto Majoritário, trata-se do texto composto a partir da família dos textos bizantinos do Novo Testamento e que foi a base para muitas traduções da Bíblia na era moderna, como o Texto de Lutero, a King James, e mesmo a tradução feita por João Ferreira de Almeida.
7] O Texto Crítico surgiu no século XIX a partir do aperfeiçoamento do Crítica Textual. Um trabalho influente na produção de um Texto Crítico foi empreendido por Wesltscot e Hort, lembrando que há não um texto crítico apenas, mas vários, como é o caso Nestlé-Aland, ou mesmo o Novo Testamento Grego produzido pelas Sociedades Bíblicas Unidas. Se baseando em certos princípios, o texto crítico apela para um fortuna textual mais variada do que o Textus Receptus, ainda que esses textos sejam minoritários. As descobertas de manuscritos mais antigos - como vários papiros, a exemplo do próprio 46, e muitos outros -, pôs em marcha uma análise crítica, que ainda permanece controvertida, mas que tem a sua importância em estabelecer textos tradicionalmente tidos como provenientes dos autógrafos.  
8] Um apanhado mais completo da presença dessas variantes você encontra no aparato crítico do Novo Testamento Grego da SBB.
9] OMANSO, Roger L. - Variantes Textuais do Novo Testamento; Sociedade Bíblica do Brasil, 2010. 
10] Ibid. p. 471
11] Ibid. p. 472
12] Ibid. p. 472
13] CALVINO, João - Institutas da Religião Cristã. Ed. Casa Editora Presbiteriana. 1985. vol. II. cap. XVI.13, p. 284. 
14] No contexto da explicação de Calvino não é lícita a interpretação de fraqueza da carne se refira ao pecado, se não que à fragilidade e à sujeição à dor da qual a divindade não está sujeita. Dado toda a argumentação de Calvino nas Institutas, a interpretação adversa a isso só pode ser concebida como tolice.
15] CALVINO, Ibid. 248
16] TURRETTINI, François - Compêndio de Teologia Apologética. vol II, Ed. Cultura Cristã. 2011 p. 429.
17] No aparato crítico do Novo Testamento Grego da SBB há evidências de que os nestorianos se valeram do χωρὶς θεοῦ.  

O Corona Vírus, a Vacina e o Fanatismo Homicida

     Existem duas informações que o brasileiro tem que cruzar para entender a calamidade do estado atual de coisas:

    1) A realidade de que cada vez mais pessoas estão vendo parentes próximos e amigos sendo infectados ou morrendo em função do Corona Vírus; 2) O governo federal não tem plano algum realmente efetivo de vacinação já formulado para combater a doença.
    Junte essas duas informações e veja o abismo da situação, a insensibilidade monstra, cruel, doentia e grotesca daqueles que tem poder para realmente fazer algo, mas adiam de maneira até criminosa a confecção de algum plano efetivo por causa de ideias verdadeiramente fanáticas sobre a vacina.
    Já perdi uma tia, e vivi uma situação pessoalmente avassaladora por causa de um amigo querido. Estou vendo de perto o luto de algumas pessoas e por graça de Deus esse amigo não partiu.
    A paixão política acaba, mas nessa diversão fanática e sinistra com ideias homicidas, uma vida de um ente querido que se foi não volta mais. E há aqueles que irracionalmente não se despertaram nem com a morte de alguém próximo.
    Que Deus tenha piedade de nós, porque da parte daqueles que dizem cuidar de nós, nada quase restou.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Ταπεινοφροσύνη; Ou: Os Pais, a Escritura e a Disposição Mental que Parte do Curvar-Se

    Em todas as ciências, saber pouco é infinitamente pior do que não saber nada. Em filosofia e teologia esse mal é realmente potencializado, sendo capaz de muito estrago. E isso não é menos verdade em relação ao conhecimento teológico daqueles que convencionalmente chamamos de "pais da igreja".

    Há, sobre a controvérsia recente, que se fazer algumas reparações e ajustes. E para ser breve, faço algumas considerações sobre isso: 1) Que os pais da Igreja escreviam como pastores para suas comunidades é uma verdade; 2) Que não eram infalíveis, outra verdade; 3) Que as obras deles podem ser tidas, a princípio, em sua intencionalidade, como o sermão de vários pastores de hoje, nisso há verdades e falsidades; 4) Que a teologia moderna hoje é mais complexa do que muitas reflexões de alguns pais, há verdade nisso; 5) Mas isso não significa que gênios raríssimos como um Gregório de Nazianzeno, um Agostinho ou um Orígenes sejam coisas facilmente reproduzidas, e é até impossível nisso coloca-los no mesmo nível de "pastores locais".

    Nomes como os de Agostinho, G. de Nissa, Basílio o Grande, Orígenes, Irineu de Lyon, João Crisóstomo, Tomás de Aquino, Lutero ou Calvino continuarão, dada a sua enorme importância para a história da Igreja, a reverberar história afora, enquanto que muitos pastores, por mais que tenham desempenhado papéis importantes na vida particular de determinados cristãos, serão esquecidos pela história, para serem relembrados apenas no juízo final.

    Ademais, ainda que os pais sejam importantes por serem portadores da regula fidei (mas não tão assim ao ponto da infalibilidade - e a análise comparada das obras deles mostra diversidade teológica, longe da homogeneidade lendária sustentada apenas por ignorantes da matéria em questão), eles não se ombreiam à Escritura Sagrada (e nem desejaram isso), pois a Escritura Sagrada não é apenas um amontoado de folhas e letras, e nem um simples amontoado de letras e folhas espirituoso, mas sim o testemunho da revelação recebida e transmitida pelos apóstolos e profetas, e portanto, portadora das realidades constitutivas da Igreja. É porque a Escritura é ao registro das palavras dos apóstolos e profetas - apóstolos e profetas esses que foram os portadores e receptáculos originais da Palavra constitutiva da vida da Igreja - que a Escritura tem valor para nós. Nada mais do que isso, e nada menos também.

    Os apóstolos e os profetas não estão ao lado, nem simplesmente à frente em um plano horizontal em relação à Igreja, mas acima no posto de autoridade, atravessando verticalmente, de alto a baixo, todas as cabeças e toda a tecitura teológica possível da Igreja. Frente a eles o que nos cabe é a reverência de quem aprende, e não a soberba dos que se ombreiam. A nossa disposição de espírito frente a eles - e por isso frente à Escritura Sagrada - é a quilo que em grego chamamos de ταπεινοφροσύνην (tapeinophosine), ou a disposição mental que parte do curvar-se, o que para nós é a disposição de espírito que chamamos de humildade.

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

A Assolação da Terra e a Glória da Segunda Casa; Ou: a Fé e a Profecia do Profeta Ageu

    No livro de Ageu 2.1-9, especificamente no vs. 9, temos a tão conhecida profecia da Glória da Segunda Casa. Mas como diz um adágio muito verdadeiro, o que é conhecido não é geralmente reconhecido, e isso porque essa passagem se desenrola em um contexto em que os judeus se encontravam em frangalhos, contexto para o qual se dá pouca atenção.

    Povo de um país politicamente sem importância no Oriente Antigo não é difícil ver a realidade do desânimo do remaescente do povo judeu voltando do exílio a um país assolado. Ageu é o profeta que atua em um período de reconstrução. O templo estava em ruínas, e o país estava longe do período áureo da grande glória e riqueza do reino de Salomão, período onde o primeiro templo foi construído.
    Mas como assim a glória do segundo templo seria maior do que a glória do primeiro templo? O profeta assim se dirigia a um povo para o qual o horizonte era assolação, e para o qual estava sendo prometido uma glória superior à glória dos tempos de Salomão. Ageu agindo assim, apela para a lembrança da aliança: "meu Espírito habita entre vocês" (2.5b); portanto, "sejam fortes e trabalhem" (2.4).
    Aqui é possível enxergar o cuidado de Deus em pastorear o coração do povo. Pois ainda que fosse dada uma palavra-promessa por meio de um profeta, os mais antigos do povo, que testemunharam a glória do primeiro templo, tinham que lidar com o contraste inelutável entre aquilo que o templo era, e aquilo que eles tinham diante dos olhos. De fato, o que eles tinham diante dos olhos era um templo que "não era nada" (2.3).
    O que "resta" ao povo diante da assolação? A fé na aliança e na fidelidade de Deus. "Deus opera a partir do nada", "Deus faz o deserto se tornar um jardim" (Is 51.3), diz o profeta do exílio. E só se sustenta na assolação aquele que pela fé crê para extrair do nada a vida. Portanto, da terrível assolação nasce a luz, e do nada, da negação mais severa nasce a esperança, porque a Palavra cria a partir do nada.
    O contraste visível entre a glória da primeira casa e a pequenês da segunda não impede que se creia que a glória da última será menor. Deus enviou a sua palavra criadora ao povo; ela é a razão da esperança para um povo desvalido. Mas é pela pela fé que o trabalho não será vão, pois o Senhor inundará a segunda casa com com a sua glória (2.7), e ali ele dará ao povo a tão desejada paz (2.9).

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

De Lerins a Newman

    Uma palavra a ser dita sobre a questão dos pais e a regra de São Vicente de Lerins: vista através do pano de fundo do estado atual da doutrina católica romana, tal regra é de impensável aplicação. O mote: "o que em toda parte, sempre e por todos foi ensinado, isso é católico", não passa pelo próprio crivo patrístico, se com isso se recorre a um "consensus patrum" característico do século I a III d.C. Seria impensável apoiar Nicéia II ou o Vaticano I, por exemplo, nas bases teológicas dos séculos I a III d.C.; teríamos no máximo um esmagamento teológico, não um embasamento.

    A teoria do Cardeal Newman (ex clérigo anglicano convertido ao catolicismo romano no séc. XIX) está mais em conformidade com o estado atual de doutrina católica romana do que a própria regra de Vicente de Lerins. Felizmente Newman foi honesto o bastante para afirmar que certas doutrinas teológicas não estavam "presentes e ensinadas desde sempre". Ninguém, ao menos em sã consciência, poderia quiçá harmonizar dialeticamente Lerins e Newman - e muito porque a evidência documental tornou isso impossível.
    Mas uma última consideração: é interessante que uma noção de coisas tão tardia em relação ao evento da revelação original como é a teoria newmaniana seja adotada hoje por grande parte dos apologistas católicos romanos mais competentes. Newman superou Lerins, e, em relação à teoria de Newman, nada há de contradição nisso. A grande questão mesmo é que, à luz da história passada, se diz aqui que há teólogos que explicam mais competentemente aqueles que passaram em sua própria época do que aqueles que viveram na sua própria época explicam a si mesmos. É a teoria hermenêutica do pai do liberalismo teológico Friederich Schleiermacher (séc. XIX), que diz: "podemos entender os antigos hoje melhor do que eles entenderam a si mesmos". ______________________________________ OBS1: O século XIX foi o século mais historicista da história da humanidade; não há mera "coincidência" entre a teoria de Newman sobre o desenvolvimento de doutrina e o próprio historicismo - no fundo, o newmanismo é um hegelianismo "catolicizado". OBS2: Há uma verdade patente na ideia do desenvolvimento de doutrina; a questão é o quanto isso pode converter uma afirmação cristã passada em uma afirmação não cristã. Essa reviravolta doutrinária de coisas que não estão potencialmente no ensino antigo nada mais pode ser considerado senão como o resultado do desabrochar do joio plantado no campo do Senhor enquanto os superintendentes da plantação dormiam. OBS3: Quanto à teoria hermenêutica de Schleiermacher, ela não está em questão aqui. Da mesma forma que há verdades patentes na teoria do desenvolvimento de doutrina, há, em certa medida, verdades na teoria de Schleiermacher, e a obs2 se aplica aqui também. OBS4: Muito da teoria do "desenvolvimento de doutrina" tem aquele aspecto inconfundível do romantismo que tomou conta do século XIX, e que fundamentou também teorias do desenvolvimento histórico, a exemplo da ideia de que a história se desenvolve organicamente como se desenvolve a mente humana, onde essa passa do estado de inconsciência para um estado cada vez maior e mais claro de consciência. Obviamente nada disso é mais característico do séc. XIX do que esse otimismo progressivista que tomou intelectuais europeus como um arrebatamento extático toma um místico no ápice da sua meditação.

sábado, 19 de dezembro de 2020

A Filosofia Subjetivista de Hegel?


    Entre algumas acusações contra Hegel é de que a sua filosofia seria "subjetivsta" (termo que tecnicamente se distancia do termo "subjetivo" já que este indica apenas a forma da recepção da experiência), pois um dos seus pilares dela seria o "eu" (Ich). Esse tipo de juízo parte de uma ignorância fundamental sobre a sua filosofia, revelando desconhecimento do fato de que, desde Fichte, o eu (Ich) é infinitamente mais do que meramente o eu do indivíduo. Hegel, ao contrário, parte da constatação que a pessoalidade do homem é ontologicamente maior do que a impessoalidade da pedra e que, por tanto, o Eu é a forma própria da verdade. Aqui Hegel está mais perto da verdade cristã para quem a verdade é um Deus pessoal do que das religiões orientais para as quais Deus é um ser impessoal - o nirvana, o ápice da realização espiritual no budismo, é justamente a diluição da personalidade no absoluto.
    Mas vamos para certas considerações: para Hegel não é o "eu" que cria a verdade, tanto é que o idealismo de tipo hegeliano não é o "idealismo subjetivista" (pois é estranho ao idealismo a própria noção de "relativismo"); não se trata meramente de um filosofia em que cada eu tem uma "verdade para si". Hegel criticou o aspecto subjetivista do romantismo alemão, embora tovesse feito parte dele. Paul Tillich diz: "Fora fortemente romântico, no início, dependendo de Schelling. Mas, por causa da sua mente sóbria, logo se separou de muitos elementos emocionais do romantismo e até mesmo o criticou na maior de suas obras publicadas, a Fenomenologia do Espírito"1Hegel mesmo afirma, contra o romantismo, que à religião é o pensamento que importa, e não o sentimento2. Hegel leva a sério a constituição una e objetiva da realidade. É verdade que a filosofia hegeliana entende que a verdade "não está pronta" (na mente do homem), e entende que a realidade vai aprofundando a sua verdade na medida em que marcha historicamente. Mas esse é o Geist, e uma vez que o espírito adquire o seu "caráter absoluto" ele obriga, e obriga objetivamente a todos. O Eu aqui é apenas o elemento sintetizador que vai agregando a si perfeições. No entanto ele não "produz" realidades meramente subjetivas, tanto é que um elemento produzido e sintetizado desse Eu é o Estado que obriga os outros "eus" menores.
    Hegel é tão anti-subjetivista que tem aquela famosa frase no "Grundrise": "O que é racional é real e o que é real é racional"3, discutindo em outras obras a realidade de uma filosofia apenas diante da acusação de a filosofia ser múltipla, pois diante do fato da multiplicidade de escolas filosóficas é fácil cair na conclusão de que a filosofia é inútil para alcançar a verdade. A grande questão é que, segundo Hegel afirma no "Introdução à História da Filosofia", a constatação da multiplicidade das escolas filosóficas evoca dialeticamente a ideia da unidade da verdade, e isso torna todas as filosofias com símbolos através dos quais, pela multiplicidade das filosofias múltiplas, podemos vislumbrar a realidade da filosofia una, o que é condizente com a exigência da razão4. Aqui o idealismo não é subjetivo, mas objetivo, entendendo o idealismo objetivo aquele que diluindo o real no pensável e, como diz Vicente Ferreira da Silva, "constituindo uma ciência universal e totalizante das coisas", para complementar, "A verdadeira figura na qual a verdade existe - para Hegel - é o sistema científico da verdade"5.
    Aqui é importante captarmos um elemento da estrutura da filosofia de Hegel, que é dialética. Por desenvolvimento dialético Hegel entende o próprio movimento de desdobramento da realidade e do "Geist", cujo "aumento" advém da confluência do trabalho de vários "eus" ou "espíritos" menores (homens individuais) ao longo da história. Hegel tem em mente aqui o desenvolvimento da cultura levado a cabo por cada pequeno esforço, e busca tanto superar os unilateralismos das várias escolas filosóficas, como agregar em um sistema maior os vários pontos de verdade de todas as filosofias, assim como das contribuições da política e da religião. Por tanto, o subjetivismo constitui um dos momentos da verdade do Espírito Absoluto, ou do Sistema do Espírito Absoluto. Diante disso, se há subjetividade em Hegel, isso é apenas um momento dialético, sendo apenas um dos parágrafos do desenvolvimento da própria filosofia, ou do sistema hegeliano, e não a base desse sistema.
    Mais interessante é que Eugene Weeb, amigo de Voegelin, no livro "Os Filósofos da Consciência" ao discorrer sobre Bernard Lonegam, padre tomistas canadense, diz que Lonergam se identifica com Hegel porque afirma que Hegel está na classe dos intelectualistas, assim como Tomás de Aquino - sendo essa a razão pela qual Voegelin se opõe à filosofia altamente objetiva de Lonergam6. Entenda aqui que esse intelectualismo comum a Hegel e a Santo Tomás requer assentimento absoluto da nossa razão; não que estejamos igualando a filosofia do santo à filosofia de Hegel (mesmo levando em consideração que tanto Santo Tomás quanto Hegel se tinham como discípulos de Aristóteles), mas sim destacando uma certa estrutura comum que, evidentemente, possui um tônus otimista em relação ao homem como capaz de Razão. E eu posso ousar dizer que esse otimismo é maior em Hegel do que é em Santo Tomás.
    Vale lembrar, para fins comprobatórios sobre a fisionomia objetivista da filosofia de Hegel, que a exaltação do pessoalidade, da subjetividade e individualidade foi algo que Kierkegaard aos protestos opôs justamente ao idealismo objetivo (considerado por Kierkegaard como desumanizante) de Hegel. Vicente Ferreira da Silva afirma a impressão de Kierkegaard sobre a filosofia de Hegel: "Kierkegaard vê no hegelianismo a manifestação máxima da coerção da objetividade despótica aos apelos da vida individual"7Podemos dizer que, para Kierkegaard, a filosofia de Hegel ao desnudar totalmente os arcanos do eu, expondo-o objetivamente no mundo, acaba por destruir a constituição de inexauribilidade do próprio eu - ou, como diria Voegelin, Hegel eclipsa o eu.

    Eric Voegelin se opôs à toada totalitária de Hegel em uma perspectiva semelhante à de Kierkegaard, exaltando a iluminação da consciência individual resgatando o conceito da "metaxis" platônica, tentanto fugir do sistema totalitário e objetivante de Hegel. Para Voegelin, a filosofia extremamente objetivante de Hegel acaba por exaurir o centro misterioso da realidade, diluindo a infinitude inefável do mistério divino, propondo, na verdade, um reducionismo do mistério divino à razão histórica do homem; ou seja, Hegel terrestrializa a realidade infinita e eterna de Deus destruindo tudo aquilo que diz respeito à humanidade do homem e à divindade de Deus, por tentar enquandrar a liberdade e a infinitude em um certo sistema. Dessa atitude, segundo Voegelin, seguiu-se os sistemas totalitário e reducionistas das políticas modernas "totalizantes", como o fanatismo nacionalista, o comunismo e mesmo as ideologias positivistas (seja nas ciências ou no direito) que grassam a cultura ocidental desde o século XIX.

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1] TILLICH, Paul - Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e XX. Ed. Aste. 2010, p. 136
2] HEGEL, W. G. F. - Enciclopédia das Ciências Filosóficas: 1: A Ciência da Lógica. Ed. Loyola. 2012, p. 39-41
3] HEGEL, W. G. F. - Princípios da Filosofia do Direito. Martins Fontes. 2007, p. XXXVI.
4] HEGEL, W. G. F. - Introdução à História da Filosofia. Ed. 70. 2018, p. 26-36.
5] SILVA, Vicente Ferreira da - A Transcendência do Mundo; Notas sobre Kierkegaard. Ed. É Realizações. 2010, p. 420.
6] WEBB, Eugene - Filósofos da Consciência. Ed. É Realizações. 2013. p. 36.
7] SILVA, Vicente Ferreira da - A Transcendência do Mundo; Notas sobre Kierkegaard. Ed. É Realizações. 2010, p. 420.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Teologia do Auto-Golpe (Texto de 27/08/2020)

    Na prolongada questão relativa à teologia da expiação, a teologia reformada possui duas vertentes: uma que afirma que haviam outros modos de expiação que não a expiação penal substitutiva (Calvino, Twise, Zanchius, Vermigli etc.) e outra que afirma que não havia outro modo de expiação que não aquela realizada por Cristo (Owen, Turrentini, Bavink, Berkhof etc.). Não é desconhecido que me enquadro na primeira vertente que é característica à primeira geração dos reformadores. No entanto, há uma certa acusação sobre a crueldade de Deus em eleger esse modo de expiação que alguns afirmam ser indigno de Cristo, e ofensivo à majestade divina.

    Vamos estabelecer a seguinte questão segundo a própria posição do oponente. Ora, é sabido que segundo a potência absoluta afirmamos que Deus poderia eleger outros modos de realizar a expiação dos pecados; mas afirmamos que Deus, segundo a potência ordenada, decretou tal modo de operar a salvação. Há de se perguntar se aqueles que também afirmam isso, afirmando também que a Cruz é o meio pelo qual Deus salva o homem, o libertando do poder das trevas e da morte, se esquecem que havia em Deus Pai a possibilidade de livrar os homens sem fazer padecer o seu Filho. Se havia, por qual razão e qual o real ganho do Pai ter feito Cristo sofrer na Cruz, se isso não era absolutamente necessário? Qual a razão de ser de o justo sofrer pelo injusto, se Cristo era de todo inocente, havendo o Pai outros meios, e meios não cruentos, de libertar a humanidade? Aqui hão de torcer o assunto e de agir com desconversa, mas as objeções que estes põem sobre as nossas costas cai com peso semelhante, agravado pela acusação feita a outros, nas costas deles mesmos.
    Dito isso, uma nota sobre esse modo de fazer oposição a adversários: Nesse tônus quase persecutório de fazer oposição à teologia alheia, salta aos olhos que essa obsessão mórbida em querer derrubar uma determinada vertente da teologia cristã traz em si determinadas marcas distintivas, uma das quais é a cegueira para enxergar os próprios pressupostos. É como se para espancar a teologia alheia alguém arrancasse a pilastra do seu próprio edifício teológico afim de forjar uma arma. Obviamente esse procedimento tende a ganhar contornos de irracionalidade. E aqui estes se põe à distância eterna da bem-aventurança que ensinou o Apóstolo Paulo: "Bem-aventurado é o homem que não se condena naquilo mesmo que aprova" (Rm 14:22).