segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Ortodoxia e Escolasticismo Protestante por Paul Tillich

   Precisamos distinguir entre ortodoxia e fundamentalismo. O período ortodoxo no protestantismo tem muito pouco a ver com o que se chama de fundamentalismo nos Estados Unidos. Refere-se, antes, à época escolástica da história protestante. Houve grandes escolásticos na história do protestantismo, alguns deles tão grandes como os escolásticos medievais. Entre eles se destaca Johann Gerhard (1582-1637) que em sua obra monumental discorreu com profundidade sobre tantos problemas como os escolásticos medievais do século treze e quatorze. Obras desse fôlego nunca foram escritas pelos fundamentalistas norte-americanos. A ortodoxia protestante era construtiva. Não havia nada semelhante às bases pietistas e avivalistas do fundamentalismo americano. Os teólogos ortodoxos trabalhavam objetiva e construtivamente, procurando apresentar a doutrina pura e completa de Deus, do homem e do mundo. [...]
   A ortodoxia clássica era diferente. Por tanto, é pena que tantas vezes se confunda essa ortodoxia com o fundamentalismo. Uma das grandes conquistas da ortodoxia clássica nos fins do século dezesseis e no dezessete foi ter-se mantido em discussão com todos os séculos do pensamento cristão. Os teólogos ortodoxos não eram leigos em teologia, ignorantes do que queriam dizer os conceitos que empregavam na interpretação bíblica. Sabiam muito bem o seu significado ao longo dos quinze séculos de história da igreja já passados. Conheciam também a história da filosofia e a teologia da Reforma. O fato de permanecerem na tradição dos reformadores não os impediu de conhecer profundamente a teologia escolástica [medieval], de discuti-la, refutá-la, e até mesmo de aceitá-la quando era o caso. [...]
    A ortodoxia é a representação mais objetiva que existe da teologia protestante. [...] A ortodoxia procurava ser tão objetiva quanto possível, muito embora nem sempre tenha conseguido alcançar plenamente o intento. Não conseguia, em primeiro lugar, eliminar certos elementos subjetivos pertencentes ao protestantismo, como, por exemplo, a experiência pessoal de Lutero, ou a de Calvino, ou Zwínglio. Esses três reformadores superaram o objetivismo da Igreja Romana. E, assim, sua atitude entrou para o próprio sistema ortodoxo. Esse fato se torna mais claro quando examinamos a presença de dois elementos principais na ortodoxia: o princípio material e o princípio formal.
   O princípio material da Reforma é a doutrina da justificação pela fé, ou melhor, pela graça por meio da fé. Desculpem-me por este deslize. Nunca digam o que eu disse por engano, mas insistam sempre afirmando a justificação 'pela' graça 'por meio' da fé. O poder justificador é a graça divina; o canal por meio do qual as pessoas recebem essa graça é a fé. A fé não é jamais a causa, mas apenas o canal. No momento em que a fé fosse entendida como causa da justificação ela teria se transformado na obra humana pior do que qualquer obra do catolicismo romano. [...] Por tanto, sempre que vocês estiverem tratando de teologia protestante, abandonem para sempre essa deformação da fé - [a deformação da ] 'sola fide' em latim - que a vê como causa em vez de canal. Lutero não se cansou de repetir com clareza que fé é sempre ato receptor e nada mais; ela nada produz. Certamente [e isso é sumamente importante], não produz a boa vontade de Deus. [...]
   Temos ainda outro princípio, o "formal", sobre o qual se construiu o sistema ortodoxo. É o princípio das Escrituras que se tornou fixo e rígido. [...] A Bíblia contém o relato dos eventos que se passaram tanto no Antigo como no Novo Testamento. [...] Essa atitude [se de valer do princípio formal] é bem mais evidente em Calvino. Segundo Calvino a Bíblia não diz nada a ninguém, sejam teólogos ou leitores piedosos, sem o Espírito Divino. O Espírito Divino é o poder criador com quem se envolve o nosso espírito pessoal, transcendendo-nos. [...]
   Há ainda um outro elemento [...]. É a imagem do seu universo em dois andares. O andar de baixo chama-se "teologia natural" trabalhando com a razão, e o de cima, [a] "teologia revelada". Os teólogos sempre acharam difícil determinar o que pertencia a cada um desses andares. Naturalmente doutrinas como trindade e a encarnação cabiam melhor no andar de cima, mas não se sabia muito bem onde situar doutrinas como criação e a providência [que no sistema escolástico geralmente ficavam no andar de baixo, ou nas coisas passíveis de serem alcançadas pela razão, tal como se via nas obras de Aristóteles, por exemplo, que eram utilizados na escolástica medieval para de analisar as coisas pertencentes ao nível da razão, mas não o nível da graça]. Onde caberia, afinal? Preocupado com isso, Johan Gerhard, de quem já falamos, distinguia entre doutrinas puras e mistas (doctrinae purae et mixtae). As doutrinas puras são as dedutíveis da revelação divina. As doutrinas mistas vêm em parte da razão e em parte da revelação.
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*] Paul Tillich. Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e XX. p. 43-48.

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OBS: Suprimi alguns trechos do texto do Tillich por duas razões: 1º) O texto iria ficar longo demais; 2º) existem porções críticas de Tillich à ortodoxia que não julguei conveniente colocar aqui - já que Tillich, ainda que tivesse integrado partes desse sistema ao seu, negava alguns pontos da ortodoxia escolástica por causa do seu método teológico que criticava o supranaturalismo, supranaturalismo esse que é constitutivo da visão da realidade dividia em dois pisos: o piso "natural" e "sobrenatural" (o que, sem fazer juízos aqui, Dooyeweerd também questionava) -, o que iria prejudicar a apresentação da ortodoxia protestante, que era a minha intenção com esta publicação.

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