sexta-feira, 7 de maio de 2021

João Crisóstomo e a Expiação Substitutiva na Cruz

    Ao contrários de outros temas da teologia como a encarnação, a unidade das naturezas divina e humana em uma hipóstase, ou mesmo as teologias trinitária e pneumática, a teologia da expiação não recebeu um desenvolvimento teórico robusto até o início da idade média. Anselmo de Cantuária (1033 - 1109 d.C.) desenvolveu a sua famosa teoria da expiação em sua obra Cur Deus Homo chamada teoria da satisfação, trabalho até então sem precedentes e que seria incrivelmente aperfeiçoada por Tomás de Aquino (1225 - 1274 d.C.), exercendo posteriormente uma influência marcante na teologia da expiação dos reformadores Martinho Lutero (1483 - 1546 d.C.) e João Calvino (1509 - 1564 d.C.). Contudo, isso não significa que não há nada de realmente sistemático no pensamento dos primeiros pais, ou mesmo que não existam certos tópicos que uma vez sedimentados viriam a tomar um corpo robusto na teologia posterior.
    Várias ênfases teológicas, nem por isso incongruentes, apareceram entre teólogos patrísticos; entre elas podemos enumerar a redenção operada pelo ensino da imortalidade e pela concessão da vida, ou o Cristo Pedago (Didaquê, Hermas, Clemente de Alexandria, Orígenes); a teoria da recapitulação, ou a teoria física que coloca o acento na encarnação de Cristo como processo de cura da humanidade (Irineu de Lyon, Hipólito, Metódio, Atanásio, Hilário, Gregório de Nissa, Basílio, Ambrósio); a teoria do resgate onde Cristo se oferece como moeda de troca a Satanás para a libertação do homem (Irineu de Lyon, Orígenes, Gregório de Nissa, Agostinho); e a teoria realista ou substitutiva/representativa, onde Cristo se oferece como um sacrifício que faz cumprir em si uma justa demanda da lei de Deus, ou em certas versões que também afirmam que esse sacrifício propicia a Deus, aplacando a Sua ira (Orígenes, Cipriano, Atanásio, Eusébio, Gregório de Nazianzeno, Ambrósio, Agostinho, João Crisóstomo). Como podemos ver na listas dos representantes das teorias listadas, nem sempre um teólogo assume unilateralmente uma teoria da redenção apenas, podendo abraçar várias delas, como é o caso de Orígenes, Gregório de Nissa, Ambrósio, Agostinho etc.     Mas para o que é proposto para esse pequeno artigo, cujo tema já está sendo expandido em uma obra maior, iremos abordar a teoria da expiação em S. João Crisóstomo (347 - 407 d.C.), eminente patriarca de Constantinopla martirizado em 407 d.C., célebre pela sua poderosa oratória - provavelmente a mais notável da história da Igreja - e também célebre pela sua teologia eminentemente bíblica, caudatária da escola de Antioquia a qual se destaca por um maior apreço pelo sentido literal ou mais direto do texto, como é possível ver nos seus famosos comentários bíblico e homilias baseadas nas cartas paulinas e nos evangelhos. João Crisóstomo é, no contexto que apresentamos, evidente partidário da escola realista ou substitutiva/representativa, além de apresentar certa versão mais sóbria da teoria do regate, visão influenciada pela crítica devastadora à visão da expiação de corte origenista ou gregoriano (de Nissa) feita por Gregório de Nazianzeno. Como veremos, a teologia da expiação de Crisóstomo é dotada de várias camadas de significados, constituindo uma complexa e rica visão da obra redentora de Cristo, e todos comentários seus escolhidos aqui tem a vantagem de ser comentários a passagens da Escritura, o que afasta a suspeita de serem posicionamentos teológicos absolutamente especulativos.
    
    A primeira citação abaixo é um comentário a Colossenses 2.14, e como dito acima, ela apresenta uma visão mais sóbria da teoria do resgate. É importante ressaltar que Crisóstomo alia a teoria do resgate a uma visão realista onde Cristo é punido na Cruz, assumindo em si a maldição contraída pelo homem por causa do seu pecado e desta maneira abole o título da dívida que se encontrava no poder de Satanás. É como segue abaixo:

Por conseguinte, morrendo, livrou da morte os que deviam morrer, e também assumindo em si a maldição, dela libertou. Vês quanta diligência empregou em descrever a abolição do título? Na verdade, éramos todos sujeitos ao pecado e à pena. Ele próprio, sendo punido, solveu o pecado e a pena; pois fora punido na cruz. Lá, por conseguinte, pregou o título; em seguida, com autoridade (cf. Mt 7,29) rasgou-o. Qual título? Ou dizia o mesmo que os israelitas disseram a Moisés: “Nós observaremos todas as palavras ditas pelo Senhor” (Ex 24,3); ou, se não foi isso, que devemos obediência a Deus; ou se não, que o diabo detinha o título, que Deus exarou contra Adão, dizendo: “No dia em que dela comeres, hás de morrer” (Gn 2,17). Esse título estava em poder do diabo. Nem este Cristo nos devolveu, mas ele próprio o rasgou; sinal de que com alegria saldou a dívida.2

    Vemos na citação acima alguns dados interessantes: 1) Cristo liberta o homem da maldição ao assumi-la em si mesmo; 2) Assumir a maldição no contexto em questão é o mesmo que morrer na Cruz; 3) Morrer na Cruz é ser punido; 4) Ao ser punido Cristo em favor do homem sujeito ao pecado e à pena solve o pecado e abole a pena; 5) Assim, a lei exigia a obediência - e essa relação entre Cristo, o homem e a lei ficará mais claro na próxima citação; 6) Em função da desobediência à lei, o homem estava em poder do diabo que lançava contra o homem o título da dívida; 7) Ao Cristo ser punido na Cruz, cumpre o requisito da lei por saldar a dívida, destruindo o o poder do diabo ligado à nossa desobediência e assim triunfa sobre os principados e potestades, resgatando o homem do seu poder. Com isso podemos ver que tanto o sentido penal da crucificação assim com o sentido vicário/substitutivo estão presentes, já que Cristo em sua morte na Cruz - sendo esta morte uma pena - abole a pena e o pecado, assim como a sua sujeição ao diabo e, por fim, a condenação.     A próxima citação lida de forma mais estreita ainda com a relação entre a maldição assumida por Cristo e a Lei e como Jesus Cristo abole a condenação da Lei que pesa sobre o homem por meio daquilo que Crisóstomo chama de substituição de maldição. Além do mais, Crisóstomo fala explicitamente do realidade substitutiva da penalidade sofrida por Cristo na Cruz quando faz a seguinte digressão: "Imaginemos que houvesse um condenado à morte, mas um inocente quisesse morrer voluntariamente em lugar dele" (cf. citação abaixo). Trata-se de um comentário à passagem de Gálatas 3.13. É como segue:

Cristo nos remiu da maldição da Lei tornando-se maldição por nós, porque está escrito: Maldito todo aquele que é suspenso no madeiro (Dt 21,23), Na verdade, o povo foi sujeito a outra maldição, isto é: “Maldito seja aquele que não mantém as palavras escritas no livro desta Lei, pondo-as em prática!” (Dt 27,26) E por que isso? Com efeito, o povo era sujeito a isso, porque não praticara a Lei, nem havia quem cumprisse toda a Lei; ora, Cristo alterou esta maldição, a saber: “Maldito todo aquele que é suspenso no madeiro”. Uma vez, portanto, que tanto é maldito quem é suspenso no madeiro quanto é maldito quem transgride a Lei, não podia aquele que haveria de abolir esta maldição, estar sujeito à mesma maldição. Com efeito, assumiu outra maldição em vez daquela, e com isso aboliu uma pela outra. Imaginemos que houvesse um condenado à morte, mas um inocente quisesse morrer voluntariamente em lugar dele, e o livrasse da pena. Foi assim que agiu Cristo. Pois, como Cristo não estava sujeito à maldição da transgressão, assumiu-a substituindo-a, a fim de libertar a todos: “Se bem que não tivesse praticado pecado nem tivesse havido engano em sua boca” (Is 53,9).

Por conseguinte, morrendo, livrou da morte os que deviam morrer, e também assumindo em si a maldição, dela libertou.3

    O texto, para ser inteligível, deve ter suas informações postas em ordem, pois aqui Crisóstomo discorre sobre conceitos sem nomeá-los, tornando o processo de compreensão algo mais complexo. No texto acima, comentando Gl 3.13, Crisóstomo fala tanto de uma substituição de maldição como também do fato de que Cristo não estava sujeito a uma determinada maldição e em razão disso trocou uma pela outra. Mas o que isso significa? Ora, Crisóstomo identifica uma dupla maldição no livro de Dt 21.23 (o texto mais completo é 21.22,23). A passagem completa a que ele se refere, e a que se remete Gl 3.13, é a seguinte: "Quando também em alguém houver pecado, digno do juízo de morte, e for morto, e o pendurares num madeiro. O seu cadáver não permanecerá no madeiro, mas certamente o enterrarás no mesmo dia; porquanto o pendurado é maldito de Deus; assim não contaminarás a tua terra, que o Senhor teu Deus te dá em herança". Mas essa é uma das maldições; a outra é esta: Maldita seja toda pessoa que não puser em prática as palavras desta Lei! (Dt 27.26a). Vemos que o santo identifica uma dupla maldição: uma ligada ao ser pendurado no madeiro e a outra de não pratica as palavras da Lei. Ora, Jesus não era sujeita à maldição da desobediência à Lei, já nós sim éramos. Então Crisóstomo prossegue: "não podia aquele que haveria de abolir esta maldição, estar sujeito à mesma maldição" (cf. citação supra), ou seja: Cristo, que havia de abolir a maldição, não podia estar sujeito à maldição da desobediência, e assim assumou outra maldição, a saber: "Maldito todo aquele que for suspenso no madeiro". Crisóstomo entende que ao Cristo assumir uma maldição que era possível no seu caso, aboliu aquela maldição à qual o povo estava sujeito em função da sua própria desobediência, pois ao seu entender o próprio ato do pecado é destrutivo em si mesmo e sujeita a pessoa transgressora à pena, como ele discorre na 13ª Carta a Olímpia:

Porque as vagas não abalam o rochedo, mas com quanto maior impetuosidade elas se quebram, tanto mais se desfazem. Foi isto que aconteceu nessas circunstâncias e ainda sucederá e muito mais. Os vagalhões, de fato, não racham o rochedo; quanto a vós, não somente não vos partiram, mas ainda vos fortaleceram. Assim a maldade, assim a virtude: uma [a maldade], ao atacar, destrói-se a si mesma; a outra [a virtude], combatida, brilha com maior fulgor. E esta recebe os prêmios não apenas depois dos combates, mas até no meio deles, e a peleja é para ela um galardão. A outra, ao alcançar a vitória, sente maior vergonha, é punida, saciada de imenso desprezo, e com o castigo que lhe é reservado, é fustigada na própria ação e não apenas depois dela.4     Entendida a questão da maldição à qual o transgressor está sujeito, podemos discorrer sobre uma concreção de sua ideia que torna transparente como se dá para ele a expiação dos pecados. Eis a citação: "Imaginemos que houvesse um condenado à morte, mas um inocente quisesse morrer voluntariamente em lugar dele, e o livrasse da pena. Foi assim que agiu Cristo" (cf. citação 3 supra). Por tanto, assumir a maldição não é apenas assumir a maldição que paira sobre o pecador, ou as defecções deletérias que causam o envilecimento da alma em razão do ato transgressor, carregando-os na Cruz; trata-se, mais concretamente, de uma punição que Cristo assumiu, punição esta que só tem razão de ser em virtude do pecado, punição que era requerida pela justa exigência da Lei. Cristo, assim, assumiu uma punição que não era sua, mas nossa, e ao assumir a punição, dela nos livrou, dando-se assim a expiação dos pecados. Obviamente o santo tem em mente uma punição substitutiva que redunda em expiação, pois a punição que assumiu nos livra da pena e da condenação. É justamente por isso que ele complementa: "Por conseguinte, morrendo, livrou da morte os que deviam morrer, e também assumindo em si a maldição, dela libertou" (cf. citação 3 supra) .     Na próxima citação Crisóstomo se serve de uma anedota, relatando um esforço por parte do Filho para convencer o Pai a nosso respeito, irritado que estava contra o nosso pecado. Assim, o Filho se põe como mediador entre o Pai e nós e o convence, e encarnando trouxe a mensagem divina e executou seu próprio sacrifício, substituindo a sua morte sacrificial pela nossa, abolindo a nossa morte e por isso a justa condenação que pesava sobre nós. Assim, Crisóstomo lembra novamente da nossa condenação sob a Lei de Deus e que se não fosse Cristo e seu sacrifício não poderíamos nos salvar. Eis a citação:
O Pai não queria deixar-nos esta herança, mas contra nós estava severamente irritado, como se fôssemos estranhos. O Filho fez-se mediador entre nós e ele e convenceu-o. E vê de que modo foi mediador; levou e trouxe as palavras que o Pai estava para nos transmitir, e acrescentou a morte. Havíamos ofendido e devíamos morrer; ele morreu por nós e fez-nos dignos do testamento. Trata-se de um testamento firme, porque feito em favor de pessoas que não eram mais indignas. Aliás, no início fez um testamento de Pai a filhos; mas como nos tornáramos indignos, não era caso de um testamento, mas de um castigo. Por que, diz ele, gloriar-te a respeito da Lei? O pecado nos reduziu a tal ponto que jamais nos salvaríamos; se nosso Senhor não tivesse morrido por nós, a Lei de forma alguma poderia nos salvar, pois era fraca.5     Percebemos nitidamente que a expiação se dá por meio de uma real substituição, pois: "Havíamos ofendido e devíamos morrer; ele morreu por nós e fez-nos dignos do testamento" (cf. citação 5 supra). Se devíamos morrer em função da ofensa, a morte de Cristo restaura a nossa dignidade, nos tornando aptos para o testamento. Alguns podem objetar que isso é forçar a linguagem; confrontamos essa objeção dizendo que é impossível pensar de outro modo no contexto geral do pensamento do santo. Além do mais, acrescentamos que, como Orígenes, em sua teoria realista João Crisóstomo afirma que a morte de Cristo propicia o Pai. E para uma afirmação mais contundente sobre o caráter substitutivo da teologia da expiação de João Crisóstomo, a citação que se segue não pode ser mais contundente:

E no intuito de perceberes a gravidade do mal, atende ao que digo. Se um rei visse um ladrão e criminoso ser torturado, e entregasse à morte o filho amado, unigênito, genuíno, e além da morte transferisse a responsabilidade do crime para o filho, incapaz de tal crime, a fim de salvar o réu e livrá-lo da infâmia, e após o elevasse a uma grande dignidade e lhe concedesse a salvação e imensa glória, entretanto por aquele, ao qual conferiu tantos benefícios, for ultrajado; se for dotado de bom senso, não há de preferir mil vezes a morte do que parecer responsável de tamanha ingratidão?6

    Crisóstomo faz uma das afirmações mais contundente e claras a respeito do seu pensamento sobre a expiação nesta passagem acima. Note que ele não se limita a falar que houve, literalmente, uma transferência de pena dos pecadores para o filho unigênito do rei, mas também uma transferência de culpa. Assim, a morte do filho unigênito não abole apenas a pena do criminoso, como também a culpa. Crisóstomo tem em vista aqui neste comentário a 2Co 5.21 a restauração plena do pecador à sua dignidade plena, acrescendo à restauração o recebimento da salvação e da glória, e isso por meio da morte infamante de Cristo na cruz, lá onde Cristo assume tanto a culpa como também a pena. Trata-se evidentemente de um conceito de expiação substitutiva impossível de ser contestada, mesmo que essa teologia careça de um aprofundamento sistemático mais profundo, muito embora seja uma exposição brilhante e surpreendentemente talhada se comparada às demais teologias da expiação correntes em sua época.

_____________________________________________________ 1] KELLY, J. N. D. A Patrística. Ed. Vida Nova. 1994. Para saber mais detalhes sobre este tema, consultar os capítulos 7 e 14 desta obra.
2] CRISÓSTOMO, S. João. Comentário às Cartas de São Paulo 3. Patrística, Vol. 27/3. Colossenses 2.14. Ed. Paulus. 2013. p. 596, 597

3] Idem. Comentário às Cartas de São Paulo 1. Patrística, Vol. 27/1. Gálatas 3.13. Ed. Paulus. 2010. p. 605, 606.

4] Idem. Da Incompreensibilidade de Deus, Da Providência de Deus, Cartas a Olímpia. Patrística, Vol. 23. Cartas à Olímpia 14.3. Ed. Paulus. 2007. p. 290, 291. 5] Idem. Comentário às Cartas de São Paulo 3. Patrística, Vol. 27/3. Hebreus 9.18. Ed. Paulus. 2013. p. 1.068, 1.069.
6] Idem. Comentário às Cartas de São Paulo 2. Patrística, Vol. 27/2. 2 Coríntios 5.21. Ed. Paulus. 2010. p. 773.


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