sábado, 11 de junho de 2016

A Livre Interpretação das Escrituras e o Nazismo: Nem Tudo São Trevas


O fato da liberdade vista por si mesma é algo que não pode ser considerada nem boa e nem má. O questão se desenha no horizonte na da própria liberdade, e dos atos livres que tomamos com base em nossa responsabilidade pessoal. Tais atos sim podem ser considerados bons ou maus, mas não a própria liberdade. Como disse o filósofo luterano Friederich Schelling, a liberdade é aquilo que ocasionou a queda do homem, mas é apenas por meio da própria liberdade que podemos restaurar a unidade original que desfrutávamos juntamente com o Absoluto (ou Deus), ou seja, se por um lado é por meio da liberdade que se erra, por outro é unicamente através dela que se acerta.
Tenho por tempos criticado a maligna história da interpretação bíblica calcada unicamente na liberdade. De fato, não conheço nenhum intérprete bíblico sério de peso que tenha deixado de lado a tradição de interpretação no interior do cristianismo como critério de interpretação e de fonte de pensamento teológico fundamental - o que também fizeram teólogos luteranos, condenando o liberticídio possível gerado no interior da teologia protestante da livre interpretação. Contudo, a liberdade no protestantismo não é de todo má - mesmo para Schelling que não obstante reconheceu a potência filosófica e literária oriunda da doutrina católica -, possibilitando na história a irrupção de pontos iluminadores de liberdade individual que permitem a resistência contra a tirania do pensamento único.
A história da Alemanha no período nazista é algo que comprova esta afirmação minha, sendo possível considerar o poder de resistência baseado na liberdade individual um fator - neste período - superior até mesmo à hierarquia disciplinar do colegiados de bispos católicos no mesmo período, ainda que a ideologia do Nacional Socialismo tenha devastado tanto igrejas evangélicas quando a Igreja Católica. É assim que o filósofo germano-americano Erich Voegelin relata como ocorreram as coisas no período, tal como segue: "Nada pode ser explicado como o lugar-comum do nacional-socialismo. É um caso de fenômeno pneumopatológico de corrupção social. Deve-se estar consciente disso acima de tudo no caso das Igrejas." (VOEGELING. Hitler e os Alemães. p. 207)
Mas comecemos com a corrupção da teologia evangélica no contexto do Nacional Socialismo. Tal corrupção esteve de mãos dadas com a absorção do Zeitgeist (espírito da época) por parte das Igrejas concomitante à perda do Elã espiritual e consequentemente à perda da realidade. Como Voegeling enfatiza, a consciência humana no âmbito da vida ou das construções intelectuais só são saudáveis juntamente com a consciência da presença divina - querendo ele enfatizar a ideia de que todas as ações e pensamentos humanos devem ser iluminados por um juízo superior sobre o certo e o errado. E quando a presença divina é substituída como elemento de juízo para a consciência humana por uma ideologia política daí o homem se encontra sujeito a toda sorte de corrupções, já que eleva um movimento político à altura de Deus.
Um exemplo claro disso foi a horrorosa Confessio do professor de filosofia da Universidade de Leipzing Ernst Bermann, onde recolhemos esta pérola: "Creio no Deus da Religião alemã, o qual se manifesta na natureza, no alto espírito do homem e no poder de meu povo. E no salvador Kristo [com um 'K' para parecer mais alemão], que luta pela nobreza da alma humana. E na Alemanha, a terra onde uma nova humanidade esta sendo forjada" (BERGMANN, Ernst. apud VOEGELIN. Hitler e os Alemães. p. 217)
Outro exemplo está na frase abaixo daquele que viria a ser o Bispo de Brandeburgo, o pastor Joachim Hossefelder que representava à época o movimento dos "Cristãos Alemães". As palavras nojentas são estas:"Estamos no terreno da cristandade positiva. [Isso está no programa do partido] Confessamos uma crença afirmativa em Cristo, conforme à raça [...], de acordo com o espírito alemão de Lutero [o que longe está de Lutero] e da piedade heróica (sic) [...] Vemos na raça, Volkstum, e na nação o que Deus depositou em nós e as regras de vida confinadas a nós, para cuja preservação existe para nós a lei de Deus. Por tanto, a mistura de raças deve ser combatida [...]
[...] Rejeitamos a missão judia na Alemanha enquanto os judeus possuírem o direito de cidadania e, então, o perigo do ocultamento da raça e do abastardamento continuarem. (GOLDSCHMIDT & KRAUS, apud VOEGELING. Hitler e os Alemães. p. 17)
E por último, temos da ala mais radical à esquerda à ala mais moderada temos uma declaração teológica de Friedrich Gebhardt, como segue:" A crença em Cristo é conforme a raça na forma, conforme com Cristo no conteúdo.
[...] O Novo Testamento em si é Evangelho, [e prestem atenção às confusão teológica com cheiro forte de gnosticismo] o Velho Testamento não se torna Evangelho nem mesmo através do Novo Testamento. [Portanto, fora com o Velho Testamento]
Israel foi o povo escolhido (Volk), mas Deus o rejeitou, e deu o Evangelho a um "povo" ("Volk") que daria seu fruto. [Ou seja, os alemães] Nenhuma nação pode vindicar o Evangelho apenas para si, mas Deus, mesmo hoje, ainda pode rejeitar povos, assim como fez uma vez. [dando a entender a eleição do povo alemão para os novos tempos]
Tal decadência esteve, como disse no início, arraigada na elevação das crenças da época ao nível da revelação divina, ou seja: a fé em Deus estava conformada ao espírito da cultura da época. Não há outro nome para isso que não idolatria - e severa, violenta e odiosa idolatria, que nada mais se constituí do que colocar os ideais, a cultura da época e a visão de um povo em substituição à vontade divina.
Contudo a corrupção no interior da Igreja Evangélica teve a sua contra-parte garantida por causa da liberdade de interpretação das escrituras. Se por um lado a ideia de uma interpretação oficial e definitiva não era algo inaceitável para a tradição evangélica, por outro foi ela mesma que tanto abriu as portas para a nazificação da teologia como permitiu que outros se opusessem à mesma nazificação. Nesse contexto podemos destacar personagem como teólogos de alto calibre como Rudolf Bultmann, Dietrich Bonhoeffer (sendo este martirizado por causa de sua oposição intransigente ao Nazismo), Joachim Jeremias e Karl Barth (todos ligados à Igreja Confessante), assim como a oposição até à morte de pastores como Paul Schneider.
De Rudolf Bultmann, em reação às declarações escandalosas da faculdade Erglangen, defendeu a universalidade do evangelho em contraposição à ideologia de separação de raças no contexto do Nacional-Socialismo: "A opinião de Erlangen não diz que todos os cristão tem uma adoção comum como filhos de Deus, o que não põe termo às diferenças sociais e biológicas? Ao contrário, não esta todo cristão ligado à posição em que é chamado? Sim, com justificação completa. [Agora vem esta passagem, I Co 7:20.] Estou surpreso com a temeridade do apelo a I Cor. 7:20. Pois não há nada para se ler aqui dizendo que essas diferenças também valem para o espaço da Igreja e têm significado. [...] Ao contrário! Paulo diz que as distinções que não tem sentido para a Igreja mantém a validade no mundo. Ele opõe I Cor. 7:17-24 contra esses tolos, que querem transformar os princípios da comunidade eclesiásticas em leis do mundo, contra o desejo de emancipação dos escravos e das mulheres [Por tanto, políticas igualitárias, já que todos os homens são iguais como filhos de Deus. A referência de Bultmann é correta.] E devemos agora perpetrar a tolice oposta de transformar as leis do mundo em leis da Igreja?" (GOLDSCHMIDT & KRAUS. apoud Voegelin. Hitler e os Alemães. p. 225)
Por outro lado temos a oposição tenaz de Karl Bart, aquele teólogo que ofereceu o espírito da constituição da Igreja Confessante - que surgiu como uma reação à nazificação da Igreja Protestante (o que refuta a tese de certa ala católica radical de que a Igreja Protestante se presta à deificação incondicional do Estado) -, a Declaração Teológica de Barmen. Eis algumas passagens da declaração teológica: "Rejeitamos a falsa doutrina de que a Igreja teria o dever de reconhecer - além e aparte da Palavra de Deus - ainda outros acontecimentos e poderes, personagens e verdades como fontes da sua pregação e como revelação divina. [...]
A Igreja Cristã é a comunidade dos irmãos, na qual Jesus Cristo age atualmente como o Senhor na Palavra e nos Sacramentos através do Espírito Santo. Como Igreja formada por pecadores justificados, ela deve, num mundo pecador, testemunhar com sua fé, sua obediência, sua mensagem e sua organização que só dele ela é propriedade, que ela vive e deseja viver tão somente da sua consolação e das suas instruções na expectativa da sua vinda.
Rejeitamos a falsa doutrina de que à Igreja seria permitido substituir a forma da sua mensagem e organização, a seu bel prazer ou de acordo com as respectivas convicções ideológicas e políticas reinantes." (Declaração Teológica de Barmen, parte I e II)
É nesse espírito que uma ala importante das Igrejas Evangélicas do período Nazista conseguiram se safar da conformação acachapante a que foi submetida toda e qualquer instituição cultural alemã no período. Isso foi possível pela ausência de uma doutrina que submeta as doutrinas teológicas a uma rígida hierarquia autorizada para interpretar o Evangelho. A tragédia das igrejas católicas na época, que no período devido à busca da unidade episcopal decidiu, na Alemanha, se submeter às leis do país afim de não parecerem "subversivos", foi justamente colocar a unidade acima de uma confrontação direta com o regime, ainda que bispos aqui e ali se pronunciassem de maneira profunda contra a barbárie Nacional Socialista, e mesmo que a oposição à ideologia socialista tenha sido feita por meio de documentos muito antes da ascensão de Hitler ao poder, o que não houve pelo lado protestante - muitas vezes possível por conta do considerável background filosófico católico, superior ao backgrund filosófico protestante, ainda que esse último tenha a vantagem de possuir uma tradição de verificação científica das escrituras muito superior ao mesmo domínio científico católico.
Por fim, a questão da liberdade de interpretação, tal como desejei apresentar aqui, é algo ambíguo, tal como o é a liberdade: é algo que deve ser julgado na prática, pois se a liberdade de interpretação for tomada como um bem em si mesmo, devemos ter em mente que é unicamente por meio da liberdade de interpretação que opiniões teológicas degeneradas formam tendências destrutivas para a Igreja. Mas isso não é um mal em si, pois sem a liberdade não teríamos chance de colher interpretações saudáveis, espirituosas e profundamente significativas para a vida espiritual que enchem de vida as comunidades eclesiásticas evangélicas.

sexta-feira, 10 de junho de 2016

William Godwin: Hipocrisia, Utopia e as Ilusões de um Gnóstico

    O Britânico William Godwin figura entre os ícones do iluminismo britânico. No entanto não seria injusto também colocá-lo como um ícone marcante do hagiógrafo gnóstico-político dos tempos modernos. Seguidor de outro adepto do gnosticismo, Benjamin Franklin, Godwin levou os ensinos do seu "mestre" às últimas consequências; e embora Franklin não tivesse desejado tais consequências, tão pouco poderia ter evitado algumas delas através do seu próprio pensamento.

Mas o que é gnosticismo? O gnosticismo trata-se de uma heresia que remonta aos princípios do cristianismo. Alguns afirmam a sua origem já na época de Paulo, tendo a Epístola aos Colossenses uma certa polêmica contra alguns cristãos que endossaram pensamentos proto-gnósticos dentro da comunidade de Colosso. Mas a matéria substancial desta heresia estava em alguns princípios que poderiam ser derivados de filosofias de natureza neo-platônicas, cujo conteúdo centra-se basicamente na compreensão de que a realidade material é essencialmente má, sendo o universo do espírito essencialmente bom - o que, diziam eles, acabava por configurar a realidade corpórea como uma prisão da qual o espírito teria a necessidade de se libertar.

O grande representante do gnosticismo foi Marcião, o mesmo que afirmava que o Deus Criador do Mundo e da realidade material era um ser maluco o - o mesmo que era responsável por guerras, por derramamento de sangue, pelas privações e sofrimentos físicos -, sendo este o Deus do Antigo Testamento. Já o Deus do Novo Testamento era aquele ser bondoso que enviou o seu Logos (Jesus Cristo) e que ensinou um caminho a um grupo seleto - não os apóstolos, que eram insuficientemente sábios para apreender o seu "verdadeiro discurso" -, cuja finalidade era a libertação desta vida para uma realidade superior. Com isso Marcião não reconhecia a continuidade espiritual do Antigo e do Novo Testamento e nem mesmo concebia como possível que o Deus Pai de Jesus Cristo teria criado o mundo e a realidade material - sendo esta má em si mesma -, mas sim o espírito, de onde a salvação se alcançaria através de uma determinada gnose (que em grego significa ciência ou conhecimento) ou doutrina secreta transmitida por gurus iluminados.

De longe o gnosticismo foi a maior ameaça à Igreja Cristã. Maior do que os arianismo, adocionismo nestorianismo, patripassionismo, pneumatoquismo, modalismo, monofisismo, monotelismo etc. E não estranhamente, ele é a própria plataforma cognitiva e afetiva de vários movimentos políticos seculares, notavelmente aqueles movimentos messiânicos que procuram instaurar os céus na terra. Por mais incrível que possa parecer, Erich Voegelin trata deste assunto de forma incrível no livro "A Nova Ciência Política", onde demonstra traços do gnosticismo inerente em várias correntes de pensamento, notavelmente no movimento Nazista, Comunista e nos milenaristas modernos - que transferem a esperança das religiões tradicionais a ser consumada na eternidade para o terreno da imanência, sendo a política o instrumento de transfiguração do mundo em um paraíso por excelência.

Mas quais os traços da doutrina gnóstica de William Godwin? Godwin, que era ateu, nutria uma esperança profunda na razão humana. Mas não qualquer esperança, pois acreditava que através do aperfeiçoamento infinito da razão o homem poderia alcançar a perfeição de espírito, o que transmutaria a realidade corpórea (sendo tragada pela realidade do espírito) e faria desaparecer o desejo sexual, os apetites, o sono, a fome, tornando o homem aperfeiçoado imune a doenças, ao cansaço e outras paixões humanas (lembre-se de doutrinas que afirmam que a vontade pode transmutar a ordem da realidade e anulá-la, e a consideração da realidade material como má e inútil). Também levou a doutrina da perfeição humana consequentemente para o terreno da política, pois segundo ele, na medida em que a humanidade fosse aperfeiçoada ela não haveria a necessidade de governo, pois não haveria mais desníveis e os homens sábios. Todas as classes seriam abolidas e a propriedade privada seria extinta. Da mesma forma os contratos não seriam necessários e a instituição do casamento ("a instituição odiosa", segundo Godwin) haveria de cessar, pois ela não caberia na mente de homens verdadeiramente livres. Desta liberdade total seguiria o verdadeiro paraíso humano neste mundo agora transfigurado pelos plenos poderes da razão.

Mas a "má matéria" sempre nos pregam peças, e, como dizia o filósofo Horácio, quando lançamos a natureza para fora da casa pela porta ela volta com o dobro da força pelas janelas. Aos 40 anos de idade - como relata Gertrude Himmelfarb no seu livro "Caminhos Para a Modernidade" lançado em 2011 no Brasil pela editora É -, Godwin conheceu uma mulher de baixa reputação chamada Mary Wollstonecraft (considerada até uma matriarca do movimento feminista pelo teor de suas ideias sobre a mulher desfeminizada e racionalizada - que mais parece o homem fálico de Lacan), por quem se apaixonou e, um ano após conhece-la, casou-se. Wollstonecraft morreu pouco depois em trabalho de parto. Contudo nem por isso ele se viu livre depois que foi picado pela odiosa aranha da concupiscência: casou-se com outra mulher pouco tempo depois, e com as obrigações estabelecidas foi "obrigado" a surfar na ignomínia do livre-mercado para honrar seus compromissos, mas sem êxito. Daí em diante a vida de Godwin tornou-se uma verdadeira sátira: adorava Mary, sua filha, e desesperou-se quando ela fugiu, ao dezesseis, com um homem casado que professava segui-lo - e cujo desleixo com seu casamento não pode ser considerado como algo inconsequente com as ideias de Goldwin. Depois que a mulher deste homem morreu Godwin, traspassado por um patriarcalismo arraigado, instou para que este se casasse com sua filha. Ficou feliz com o casamento realizado, e, em suas palavras, "eu não me importo com a riqueza quanto pelo destino de minha filha", pois o homem era um barão rico, a quem, por ironia do destino, Godwin não se furtava, mesmo antes do casamento de Mary, a pedir dinheiro, tendo êxito considerável nesta empreita - e cá entre nós: nenhum racionalista gnóstico é de ferro, não é mesmo? Contudo, no fim da vida, Godwin, segundo Himmelfarb, fez de maneira relutante algumas concessões à ideia sobre a impossibilidade de materialização do seu pensamento, pois seria difícil imaginar tal futuro concretizado levando em consideração a constituição não puramente racional, mas passional, do homem.

E isso nos leva a considerar um traço característico dos radicais de hoje que insistem em expulsar a natureza pelas portas, pois muito do movimento que eram pela classe operária, em nome de uma libertação absoluta, acabou gerando uma opressão indescritível e escravização dos mesmos trabalhadores (a natureza volta dobrada pelas janelas); aqueles que consideravam uma determinada raça uma ameaça para humanidade tocaram fogo no mundo, colocando a vida de milhares em risco pelo ideal de pureza. Pessoas que lutavam pela "ética na política", gritando de maneira histérica contra os poderosos e contra a presença de ladrões do legislativo conseguiram corromper as instituições de maneira nunca antes vista, criando uma cleptocracia nunca antes existente e empreendendo roubos nunca antes pensados. Mas esta parece ser o fim de toda utopia e de todos aqueles que prometem um mundo de perfectibilidade.

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Conservação e Amor


   Há uma sentença que está no meu coração e que molda toda a minha imaginação sobre a forma com a qual busco tratar todos os problemas da minha vida. Essa ideia estava em forma seminal de um sentimento que me perseguiu em um dado momento da minha vida no qual pensei que tudo iria ruir sob os meus pés. Contava eu com 18 anos quando uma experiência muito intensa e dolorosa se abateu sobre a vida deste que vos escreve - e que levou dois anos de uma vida saudável para longe de mim.

   Sem entrar em detalhes, um dos sentimentos que mais poderosamente se apossava de mim era, em meio a todas as crises, uma saudade imensa por uma vida normal. Em meio ao caos (palavra que sempre aparece onde escrevo e que é clara para mim por causa de minhas experiências muito concretas) e confusão quase absolutos, a ânsia pela normalidade e estabilidade tanto emocional quanto mental foi algo perseguido quase como que obsessivamente, fazendo com que eu entrasse em um ciclo vicioso, já que a ansiedade na busca pela normalidade só me fazia ficar ainda mais ansioso.

   No entanto, em meio aos escombros sob os quais eu me apoiava ainda havia um vestígio de ordem - uma pequena luz que restou por causa da minha fé em Cristo (que para mim era e é a razão do bem de todas as coisas). Foi a partir deste ponto que muitas outras coisas se restauraram como que num movimento de ressurreição, onde as trevas e o movimento caótico sob o qual transitava a minha vida passou pouco a pouco para uma plano mais ameno, ensolarado e pleno de bonança - ainda vivo sob estes dias dóceis.
   
   Contudo ganhei uma aversão à desordem e ao caos, e um amor insuperável por amenidade e um desejo resoluto por ordem e pela conservação daquilo que amo - como uma vida digna e amena, e daquelas coisas que para mim muito significam - e que ficou vividamente impresso, como que sacramentado, em meu espírito. E voltando à sentença, ela é a do pensador luso João Pereira Coutinho: "Todo homem é conservador com relação àquilo que ama" - se referindo também a um estado de espírito ao lidar com todas as coisas da vida, e a uma prudência característica daquele que sabe que tudo o que é bom na vida é ganho aos poucos e, por descuido, perdido de uma vez. E nada mais verdadeiro do que isso, pois um mundo de radicalismos, antagonismos e de desagregação normativa, como diria T. S. Eliot, é incompatível com a natureza humana - sei-o bem. É justamente isso que anuncia a existência de algo para o homem como uma ordem que para ele foi criada, sendo o homem criado para esta mesma ordem - como diria Russel Kirk.

   Esta experiência de desagregação e aniquilação interior me instruiu para a compreensão de que não há um bem maior para o homem do que fazer todo o possível para manter, conservar e amar as coisas que nos dão a oportunidade de desfrutar daquela ordem, daquele bem luminoso e saudável para o qual fomos criado. E é justamente este amor pela ordem e pelo SUMMUM BONUM (o mais alto bem) que conserva as nossas vidas, e que pode lançar para fora a aniquilação destrutiva que esmaga o homem em meio àquela confusão aniquiladora e hostil a tudo aquilo que um dia foi chamado à existência.

OBS: A ilustração é da capa do livro "Crime e Castigo", da editora 34, feita por Evandro Carlos Jardim.

quarta-feira, 8 de junho de 2016

Justiça Social e Economia


   A ideia de que o pensamento social-liberal não se preocupa com pobres é uma mentira, ou resultado de má informação, ou, em último caso, de má-fé pura e simples. A questão é a seguinte: como remediar a questão da pobreza? Se for por meio do crescimento vertiginoso do Estado em prejuízo do empreendedor ou da renda familiar, resultado do aumento escandaloso de impostos - sob a desculpa de que é somente assim que se faz "distribuição de renda", ou se ajuda os pobres - então teremos o velho caminho socialista; no entanto se a questão passa pela diminuição de impostos, por se compreender que o melhor programa social possível é um emprego, e que, por tanto, incentivar o empreendedor por meio da diminuição da carga tributária e a diminuição do Estado - carregado da missão de resolver as tarefas essenciais (como policiamento, justiça, legislação etc.) -, então teremos também justiça social ao modo anglo-saxônico (o melhor programa social conhecido na história). Quem estudou um pouquinho de filosofia política e sabe o que foram os governos de Margareth Tatcher (no Reino Unido) e Ronald Reagan (nos EUA) sabe um pouco o que isso significa. Mas se para haver justiça social devemos enveredar pelos caminhos da Venezuela ou de Cuba - por achar que justiça social é o mesmo que igualdade de renda (o que é um absurdo monstro, pois não há nenhuma civilização na história que tenha conseguido isso) -, então é melhor ficar com as "injustiças" da sociedade de mercado marcada pelo liberalismo econômico.
PS: Lembrem-se deste versículo antes de pensarem, pastores vermelhos: "Quando o governo é justo, o país tem segurança; mas, quando o governo cobra impostos demais, a nação acaba na desgraça." (Provérbios 29:4)

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Calculistas Vis e o Milagre




   Quem está vivo está sujeito a cometer crimes. Nesse sentido, um ser humano, dentro do campo das possibilidades, possui tanto um potencial para o bem quando para o mal. Ele pode vir a ser um assaltante, um batedor de carteira, um ladrão, ou pode vir a ser filiado ao PT. É uma questão de possibilidades ... Também pode vir a estuprar. Mas será que para não "corrermos o risco", podemos eliminar o mal pela raiz? Um radical proporá que para evitar crimes seria necessário eliminar o homem da face de Terra. Por isso, na crista das boas intenções até o genocídio pode ser uma boa opção por um mal menor, pois o pragmático e calculista fará as contas: "se o homem continuar a viver por um milhão de anos, segundo os meus cálculos ainda cometerá uma certa quantidade de crimes e assassinatos, e tantos assassinatos cometidos em um mesmo ano, eliminando a humanidade do mundo, não será nem a milésima fração da quantidade de crimes e sofrimentos que ele provavelmente poderá vir a cometer em um milhão de anos - por tanto, para o bem, e para preservarmos o universo de tão hediondo ultraje, eliminemos o mal pela raiz". Esse é o calculo feito também pelo abortista fanático, pois ele se preocupa demais com a ideia de custo-benefício, pois jamais poderá compreender qual é a aventura de estar vivo e como é que um pequeno ato de amor no mundo pode justificar a existência humana inteira assim como a existência de todo o universo, pois isso, por si mesmo, fugindo de toda ideia de cálculo - pois o amor não é quantificável, pois sua origem é eterna -, se põe muito acima de todo o sofrimento e de todo o mal possível.

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   Milagre é, mesmo em meio a um mundo onde tudo aparentemente foi feito para dar errado, em meio a um cosmo aparentemente indiferente e até mesmo hostil à existência do homem, ver a bondade brilhando inexplicavelmente no rosto do homem. A bondade, a generosidade e o amor não são possibilidades inerentes à natureza das coisas, como que produzidas por elas mesmas. São milagres explicáveis e justificáveis somente se há uma eternidade por trás de tudo o que existe. Por tanto a bondade brilhando no rosto do homem só pode ser justificada à luz da existência de um Deus de amor eterno. Com isso, se a mente do homem estivesse em estado de lucidez, vendo claramente as coisas, não seria a existência da maldade no mundo aquilo que deveria chocá-lo. Absurdo não é, em meio a tudo, a existência do mal e do sofrimento, mas sim a existência do bem e da felicidade. E é isso, e não outra coisa, que pode nos conduzir à compreensão de um sentido para a vida, pois sem isso a razão humana entraria em agonia, pois acima de tudo, de todo o sofrimento e de todos os males que se abatem em nossa vida, a possibilidade da vida, do amor e da felicidade é algo sumariamente impossível, incompreensível, mas nem por isso irreal; é um fato que se renova todos os dias diante de nós mesmos e que, por milagre, flutua contra todas as possibilidades da razão em meio ao nada. 

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Notas Sobre o Respeito à Opinião



   Você pode respeitar o direito do outro ter uma opinião que não a sua. Mas dizer que se é obrigado a respeitar as opiniões de maneira incondicional é um truque, um negócio meio louco, e uma exigência estritamente desonesta, no fim das contas - coisa que existe apenas para Deus (que sempre está certo) e em ditaduras, onde a ideia do mais forte (o ditador) deve ser respeitada a todo custo. Essas coisas são calaras também nos seguintes casos: não podemos respeitar a ideia de um genocida; de um trapaceiro ou de um sabotador que, com ares de bondade, busca subverter as coisas por dentro se fingindo de amigo e colaborador; e muito menos devemos respeitar aquelas ideias cuja bondade está exposta apenas no enunciado da ideia, na proposição, mas que são desastrosas quando colocadas em prática. É claro, qualquer indivíduo que busca ter uma opinião - já que ter opinião para tudo é falta de bom senso - deve, para isso, estudar os fundamentos da sua própria opinião, não sendo irresponsável para divulgar a esmo aquilo que não sabe. Mas o que devemos fazer? Devemos medir o grau da coisa, e, entre outras coisas, compreender que uma opinião não é uma pessoa. Uma opinião podemos jogar no lixo; uma pessoa devemos procurar amar - e, se possível, livrar esta pessoas de ideias que irão destruí-las e destruir outros. Penso que é por aí que são consideradas as coisas.

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   Chegamos a um período de inversão louca: antes desrespeitávamos ideias, mas reconhecíamos por traz delas uma pessoa que geralmente era superior às ideias mesmas; hoje se força a respeitar a todo custo uma ideia divergente, mas em troca se desconsidera com isso em sua totalidade as pessoas. Isso ocorre porque o "respeito às ideias", sejam elas quais forem, eleva ao grau de dignidade as concepções de mundo mais loucas, foçando todos a lidarem com elas com ares de respeitabilidade, exigindo, de quebra, que todos se portem com base em um fingimento imposto pela regra do "respeito", o que, como diria C. S. Lewis, acabava por formar homens sem peito. Sou mais adepto do método de discussão ao modo dos monges medievais, os quais entravam em uma espécie de "delirium tremendum" no momento da defesa de suas teses, mas que conseguiram manter unido um continente por um período de mil anos. Foi quando as boas regras de refinamento burguês entraram em jogo que deu-se o início ao império do fingimento. Por tanto o cacoete de bom-mocismo de "respeito à opinião do outro" é puro fingimento burguês. O máximo saudável é respeitar o direito do outro de ter uma opinião, e não o de respeito irrestrito à opinião, pois no caminho dos mais entendidos há a compreensão de que é apenas o tolo que respeita incondicionalmente A opinião em si, seja a sua mesma, seja a de um outro.

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   Nenhuma opinião é desinteressante em si. Elas podem curar ou matar, fazer viver ou deixar perecer. Neste campo não existem trivialidades, pois uma ideia, por mais tola que seja (e justamente por ser tola que deve ser considerada perigosa), pode fazer errar uma vida por toda a vida. No mundo das opiniões não há reclamação de inocência. E neste campo, calar frente à incerteza é amar o próximo. Tão tolo quanto quem não sabe o que fala é quem decide disciplinar com clichês o debate com regras que militam contra a razão, sendo um destes clichês o afamado "respeito à opinião". Bem, se refletirmos bem o que significa isso chegaremos à descoberta que trata-se de uma regra imoral. A ideia de "respeito à opinião" nasce da má compreensão sobre a liberdade de expressão. É um filho bastardo e sem herança de tal ideia. No mundo ocidental, segundo o free speech, a ideia nada mais significa do que o direito garantido pela constituição de alguém não ser morto por causa de proclamar um pensamento divergente. Mas é claro que ainda assim isso não significa que eu possa pregar o genocídio de judeus, por exemplo, pois há limites claros entre o free speech e a apologia ao crime. Por tanto não se trata de "respeito à opinião", mas de resguardar o indivíduo que opina do rancor das massas, do grupo divergente ou daquele que pensa o contrário. Mas notem que o que se quer passar por pensamento livre com a ideia de "respeito à opinião" é o fim de toda a divergência e livre opinião, pois respeito tem-se daquilo sobre o qual concordamos e qualquer concordância é, também, uma discordância do contrário, um desrespeito - por assim dizer - daquilo sobre o qual não concordamos por concordar com outra coisa (é necessário decidir). Por isso é forçoso concluir que a própria ideia de "respeito à opinião" nada mais é do que a manifestação de uma ira contra a realidade, um desejo de eliminação da divergência – sem a qual o raciocínio para o próprio indivíduo, no processo meditativo, é impossível, pois precisa comparar ideias contrárias, confrontando-as - e algo que só pode culminar na própria destruição do pensamento e de todo o raciocínio livre, visto que se eu sou obrigado a respeitar a opinião divergente não é possível discordar, pois discordar (palavra que se relaciona com discórdia) é, no fundo, não respeitar a opinião (ainda que devamos amar os indivíduos e às vezes discordar deles por amá-los). Em fim, a má ideia sobre o "respeito à opinião" é o caminho para a destruição e supressão dos indivíduos pensantes, pois todo o pensamento está ligado inevitavelmente sobre algo que reflete.