quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Kierkegaard, o Hábito e a Eternidade

   O hábito é a mais triste das mudanças, e por outro lado com qualquer mudança a gente pode habituar-se; é só o eterno, e por tanto aquilo que se submeteu à transformação da eternidade em se transformando em dever, constitui o imutável, mas o imutável justamente não pode transformar-se em hábito. Por mais firmemente que um hábito se estabeleça, jamais se torna imutável, mesmo se o homem se tornasse incorrigível; pois o hábito é sempre aquilo que 'deveria ser modificado', e o imutável, ao contrário, é aquilo que 'nem pode e nem deve ser modificado'. Mas o eterno jamais envelhece e jamais se torna um hábito rotineiro.

S. A. Kierkegaard - As Obras do Amor; ed. Vozes. p. 55

Fascismo Cult e o Culto da Barbárie

   Antes de falar de fascismo algumas pessoas deveria pegar um livro. Dizer que o fascismo é caracterizado pelo "pensamento retrógrado" é uma asneira mal explicada. A década de 20 e 30 do século passado sofreu um surto fascista depois da desestabilização das potências européias após a Primeira Guerra.
   Mas o fascismo, ao contrário do que se pensa, era um movimento cult celebrado pelo "beautifull people" enfileirado entre artistas, intelectuais e poetas influentes, como no caso de Bernard Shaw. Na vanguarda do movimento fascista estavam a escola futurista e também o movimento da arquitetura moderna brutalista liderada por gente como Le Corbusier (um antissemita fanático que desejava destruir o centro parisiense com sua arquitetura antiga e não funcional e adaptá-la aos novos tempos com auto-estradas gigantes e prédios quadrados e sem personalidade feitos de concreto, ferro e vidro).
   Havia também a tara iluminista pelo planejamento central da economia liderada por intelectuais, o que tinha um apelo enorme entre os ilustrados marxistas e socialistas, os mesmos que desdenhavam de forma cínica da sabedoria prática dispersa entre a população - como faz a massa de jornalistas lotada nas redações de jornais influentes no Brasil.
   Havia também como característica marcante dos movimentos de vanguarda o desprezo pelo senso comum e pela democracia representativa. Bernard Shaw, o poeta britânico badalado na Europa, dizia que tirava sua férias tranquilo na África sabendo que Hitler deixou as coisas bem assentadas na Europa, desdenhando ao mesmo tempo do medo dos ingleses e americanos dos modelos ditatoriais, pois preferiam, nas palavras de Bernard Shaw, a bagunça dos modelos representativos de governo.
Mas não que o modelo fascista não fosse reacionário. Antes ele rejeitou a alta diferenciação conquistada pelo desenvolvimento histórico do mundo Ocidental, voltando a modelos que tendiam a absolutizar determinados aspectos da realidade: o tribalismo no caso do nazismo e a centralização absolutista naquela espécie de "pater familias" romano que foi o Dulce italiano (Musolini).
   Mas quem disse que o cheiro de tribalismo bárbaro não está ao redor da "gente moderna"? Quem não conhece o apelo naturalista da nossa sociedade contemporânea refletido em movimentos que pregam o "equilíbrio com a natureza", o "fim do consumo de carne animal", o "culto às energias", a divinização do sexo como algo a ser praticado indiscriminadamente sem qualquer resquício de culpa, a naturalização do consumo das drogas etc?
   E quem duvida que essa gente, libérrima em seus costumes e ao mesmo tempo autoritária nas suas ideias, não sejam intelectuais descolados e divertidos que de forma inconsequente pregam um mundo que, depois de construído, se recusarão a reconhecer como obra de suas mãos? Esses, por causa de um coração insano, são os adoráveis reacionários da história.

PS: É amplamente conhecido que Mussolini foi o primeiro "sex symbol" do Ocidente. E quando eu vejo a Márcio Tiburi dizendo que qualquer mulher "quer" o Lula, eu vejo algumas similaridades entre uma intoxicação política e outra... E a similaridade mais gritante ainda se dá pelo fato de que a feiúra ali nos dois é um negócio presente demais para se deixar enganar, sendo apenas a força do fanatismo algo suficiente para fazer sentir o contrário disso. Para essa gente até o universo estético passa pelo filtro político.

Tomás de Aquino e a "Autonomia da Razão"

   A pretensa defesa da "razão autônoma", deixada a si mesma para buscar a verdade acessível pela "razão natural", feita por Tomás de Aquino ocultou a verdade de que todo o pensamento humano é guiado por um motivo básico religioso.
   Isso ocultou do Ocidente, por exemplo, os motivos pagãos do moderno naturalismo cientificista e humanismo que se desenvolveram de forma "autônoma", ou melhor: se desenvolveram ao destacar uma esfera da realidade "natural" para seguir o seu caminho independente até extrapolarem o seu raio de influência para outras esferas onde não eram competentes, como a esfera da fé.
   A razão disso está na subdivisão "natureza e graça" advogada por Aquino e na desconsideração da corrupção total a que fica sujeita a natureza humana quando afastada da sua raiz transcendente, e a ausência da percepção de que um motivo básico religioso grego/pagão está acomodado a um motivo religioso cristão em sua teologia, motivos esses que são absolutamente irreconciliáveis.

A Justificação pela Graça, Mediante a Fé, X A Ideia de Natureza e Sobrenatureza

   A Reforma, com a sua ênfase na "justificação pela fé", contestou a ideia escolástica da distinção entre "natureza e sobrenatureza" (ou natureza e graça). Nessa ideia escolástica a "autonomia da razão" desempenhava um papel preparatório para a recepção da graça por meio de determinadas disciplinas (a preambula fidei). Nesse sentido a natureza deveria estar previamente apta para que pudesse receber a iluminação e a graça do Espírito Santo; por tanto a recepção do Espírito deveria, na esfera temporal, ser precedida pelo reto ajuste da alma através das obras. Contudo essa pré-paração contrasta radicalmente com o sentido bíblico da graça que afirma que é Deus quem opera em nós tanto o querer como o efetuar (Fl 2.13). Não há "preparação natural para a recepção da graça", pois a graça ou vem ou não vem, e pode vir em nosso pior estado, como foi o caso do Apóstolo Paulo que recebeu a visitação de Jesus "ainda respirando ares de morte contra a Igreja". E isso nos livra da ideia farisaica dos "aptos", pois a moralidade bíblica é explicita em relação aos agraciados: "as prostitutas e os publicanos vos antecedem no reino de Deus"; e sabemos que ao inclinar os nossos corações para o arrependimento Deus nos conduz, pela graça, a despeito do nosso estado, a uma relação ordenada para com ele. Nesse sentido, na compreensão da Reforma, não é a obra que nos conduz à graça, mas é a graça que nos conduz às obras (Ef 2.10).

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

A Grandeza da Filosofia Reformacional de H. Dooyeweerd

   A leitura do filósofo reformado H. Dooyeweerd foi a mais profícua que fiz este ano, mais do que a leitura de "A Era Ecumênica" do Eric Voegelin, que nem por isso deixou de ser notória na intuição básica de que as deformações do pensamento teorético e político tem uma raiz no desespero que, consequentemente, desemboca em uma vontade satânica de domínio sobre a própria realidade.
   Contudo a ideia desenvolvida por Dooyeweerd da "soberania das esferas" é uma coisa de gênio, e, ao meu ver, a única compreensão possível da estrutura da realidade para um cristão.
  Basicamente ele afirma que o pensamento apóstata e desligado da sua raiz espiritual transcendente tende a destacar uma aspecto da realidade e divinizá-lo. O motivo básico do pensamento grego, por exemplo, é fundado no dualismo "matéria e forma", sendo a matéria regida pelo princípio da "Anake" (o destino cego e irracional da matéria) e a forma pela razão teorética ou contemplativa (representada pela religião apolínea da cultura e das formas racionais que domam o caos disforme).
   Por causa desse dualismo a religião grega não consegue afirmar uma raiz espiritual transcendente da totalidade da realidade, como o faz o cristianismo, o que por sua vez desemboca em uma base de motivos irreconciliáveis, tal como pode ser visto nas tragédias gregas, onde o heroísmo trágico não é capaz de sobrepujar a necessidade, sendo esmagado nas mãos da Moira (o destino).
   O cristianismo não parte desse dualismo, mas enxerga uma unidade original na totalidade da criação, já que tudo o que veio a ser veio a ser pela vontade de Deus, incluindo a matéria e a forma. Isso de cara não parece implicar muita coisa, mas os motivos básicos da religião grega, por exemplo, não permitiam enxergar todos os seres humanos como seres humanos, já que aqueles que não participassem da forma racional do estado estavam entregue ao destino disforme e cego da necessidade, o que implicava que aqueles que não estavam ligados à pólis não diferiam dos animais.
   A religião grega, ao destacar um aspecto da realidade e absolutizá-lo fazia com que a humanidade fosse descaracterizada, acabando também como consequência por gerar um estado totalitário. Da mesma forma o romantismo alemão, ao enfatizar o aspecto do sentimento e as forças vitais e dinâmicas da história como reação ao racionalismo abstrato do iluminismo, acabou por absolutizar o aspecto irracional, o histórico e o "destino do povo", de maneira que isso também contribuiu indiretamente para a ascensão de um movimento brutal e vitalista que acabou fundamentando o nacional-socialismo.
   Contudo já não é assim com a visão bíblica da raiz transcendente da criação em Cristo, onde todas as esferas que compõem o todo da realidade são afirmadas em suas características próprias de forma soberana. Tanto a esfera da Igreja, como a do Estado, a da Arte, a Família, a Biologia, a Física, a Matemática, a Simbólica, a Legal são afirmadas em si mesmas, existindo em harmonia umas com as outras e encontrado a sua raiz comum e transcendente como Criação em Cristo.
   Uma das consequências diretas desse pensamento é que uma esfera da realidade não é afirmada em prejuízo da outra e nem um aspecto é destacado e divinizado como o foi a razão para o iluminismo, a alma racional para o pensamento grego, nem o sentimento como o foi para o romantismo, a história para o historicismo, nem a realidade material fenomênica como foi para os positivistas e nem as relações econômicas como foi para os marxistas.
   Todas essas escolas se ajoelham diante de uma abstração ou divinizam de forma idólatra um aspecto da realidade. Para o pensamento cristão isso é impossível, já que Cristo é a raiz transcendente da totalidade dos aspectos da realidade. Isso se traduz em vários mecanismos de defesa e implica várias consequências para a liberdade e consciência humanas. Essa é a grandeza da compreensão da realidade da filosofia cristã de H. Dooyeweerd.