quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Os Lamentos do Bom Selvagem II: Livres na Prisão de Ferro






   As influências da filosofia do "bom selvagem" são maiores e mais graves do que podemos perceber em um primeiro momento. E como disse no texto passado, a frase sobre o bom selvagem e o autor - Rousseau - são os responsáveis por grande parte das tribulações políticas e culturais que temos vivenciado, atingindo também áreas como educação, artes, geopolítica e políticas públicas. Mas a consideração que tentarei tecer aqui reflete sobre aquele tipo de filosofia da educação absurda que vê o mal humano a partir da compreensão de que este é causado pelas estruturas sociais. 

   A ideia que lança a culpa da miséria humana nas costas das estruturas sociais e culturais tem, não obstante, a sua justificativa, mas a reflexão unilateral sobre este aspecto pode nos ocultar outros componentes da análise sobre a miséria humana que não dependem apenas de estruturas sociais determinadas, já que compreender as coisas assim seria o mesmo que colocar o homem dentro de um universo no qual ele não desempenharia nenhuma função. Também seria absurdo crer que as estruturas existem por si só, deixando de lado a ação do próprio homem no processo de construção da máquina. Da mesma forma toda a política de destruição da própria estrutura também não faria nenhum sentido, pois o que mais vemos é a tentativa de grupos de estabelecerem políticas para eliminar as estruturas, e é lógico que tal processo teria de ser levado a capo por homens e não pela invocação de uma força impessoal frente a qual os políticos não faria nada.  Por tanto tanto o início quanto o fim do problema é o homem, e não a estrutura em si, que, considerada isoladamente, só é possível como abstração. 

   Por tanto a reflexão unilateral do mal estrutural tem a sua validade, não obstante ela parecer querer eliminar a necessidade que os homens possuem de estruturas para sobreviver, tal como procurei destacar no artigo passado. Assim também a ideia de um pessimismo antropológico puro não ajuda na medida que isso tende a retirar do homem a responsabilidade diante da vida. Mas também não ajuda o otimismo inescrupuloso que afirma que o "homem nasce livre", justificando a derrubada de tudo aquilo que ameaça esta sua "liberdade". Se nos detivermos bem em uma análise da história dos direitos no Ocidente veríamos que a possibilidade da liberdade encontra-se circunscrita dentro de uma ordem jurídica e moral determinados, construída na base de muitos sacrifícios, tornando a ideia do bom selvagem, no mínimo, uma tremenda falácia. 

   Mas esta falácia não ficou contida apenas na reflexão sobre os direitos - em nome dos quais o direito de liberdade nas mãos de determinados políticos e pensadores, se buscou a destruição de toda ordem moral e social estabelecida -, saltando para as políticas educacionais que, contra a educação diretiva, contra a ideia de educação como um sistema bancário de acumulação (nas palavras de Paulo Freire), e contra a ideia de uma hierarquia do saber, se buscou libertar alunos do fardo e da opressão corruptora da tradição e da cultura enfatizando a auto-expressão do aluno.

   Podemos até objetar com a ideia de que a cultura não é um bem perfeito, mas isso não torna verdadeira a falsa afirmação de que a cultura é um mal corruptor e que a própria ideia de alta cultura é um instrumento de dominação que os poderosos utilizam contra os pobres e os necessitados afim de manter a dominação. Também não torna verdadeira outra falsa afirmação, que, amparada na filosofia do bom selvagem, afirma que toda a cultura é boa ao seu modo. 

   Não foram poucos que afirmaram que a cultura era constituída de elementos opressivos e alienantes. Entre estes podemos citar Karl Marx, Michel Foucaut  e R. D. Laing, sendo a afirmação deste último de que os estados psiquiátricos nada mais eram do que aquilo que se constituía da negação da sociedade burguesa daqueles que eram considerados indesejados, sendo enquadrados como tais por não se encaixarem, de alguma forma, às aspirações dos mesmos burgueses. Por tanto, os estados psiquiátricos forma transformados em combustível do arraca-rabo de classes. De lá para cá, toda a crítica à "moral burguesa" serviu também como justificativa de todas os comportamentos subversivos, legitimados pelos intelectuais por, de certa maneira, contestarem a ordem. E não por acaso, todo o comportamento considerado subversivo também foi considerado como criativo, inventivo e original, sendo toda a crítica a esta originalidade considerada reacionária, burguesa e retrógrada. 

   Voltando ao tema da educação nunca a culto à auto-expressão, à originalidade e a novo, ancorados em um desprezo infinito à tradição foi tão destrutivo para as classes mais pobres. A própria ideia de que "toda a cultura é boa ao seu modo" tem a marca do dedo pesado da filosofia do bom-selvagem, aquele ser puro em seu estado pré-contratual, corrompido apenas pelo contato tradições e pela sociedade. De certa maneira, ocorreu aqui o mesmo processo que sempre ocorre quando se destrói, em nome do bem e da liberdade, as instituições que limitam a liberdade humana. O preconceito gerado contra a alta-cultura, contra a norma culta da linguagem, contra a acumulação de informações e contra a ideia de que existem uma organização hierárquica na educação e no saber, estando o professor na posição daquele que ensina e do aluno daquele que é ensinado - resultando na destruição da autoridade dos professores por causa do método sócio sócio-construtivista, que afirma que "ninguém educa ninguém, ninguém se educa sozinho, mas todos se educam juntamente mediatizados pelo mundo" -, não trouxe liberdade, mas condenou as camadas mais pobres ao confinamento no gueto cultural que poderia ser rompido com a apresentação a eles de uma cultura superior.  

   Nem é preciso entrar no mérito de o quão conveniente é este método para professores que detestam ensinar, e que não possuem nenhuma capacidade para isso. Mas o que fica evidente hoje é que nunca a cultura vulgar e pobre de espírito teve tanto espaço nas políticas públicas, nas teorias de educação e nos meios de comunicação. Tal cultura tende a endossar a infame consideração de que Shakespeare e Machado de Assis podem ser nivelados ao funk carioca, pois se que todas as culturas e auto-expressões são boas ao seu modo, o que é que as diferencia? Não seria a legitimação burguesa aquela que estabeleceria a odiosa discriminação contra os pobres e oprimidos?

   Não é preciso lembrar a ruína do gosto, das artes e a ruína moral (que desejo tratar no próximo texto) que disso se seguiu, e aqui teríamos dados o suficiente para considerar, no mínimo, criminosas as investidas que o ministério da cultura vem praticando no âmbito da educação pública. A pluralidade é um dado cultural, mas jamais um valor definido, já que mesmo no gênero cultura existem hierarquias sem as quais a palavra cultura não faria nenhum sentido, já que a cultura é a transmissão de juízos, pois sem esta função não haveria razão nenhuma para comunicar a cultura de uma geração para outra. 

   Também é necessário enfatizar o quão egoísta pode soar a ideia de "originalidade" e da "auto-expressão" quando consideradas bem em si mesmas. Aqui caímos novamente na armadilha do solipsismo que tende a considerar qualquer expressão do "eu" como algo que pode ser colocado acima do "nós", e que constitui o esforço conjunto de homens que, ao longo dos tempos, formaram a civilização humana cujos bens nos são evidentes por si mesmos. O nivelamento do bem universal ao "eu" isolado do mundo, este provincianismo pseudo-filosófico e pseudo-humanista ignorante, tende a fomentar uma cultura de ruptura com a sociedade pretérita, e com as tradições e reflexões da "comunidade de almas" (constituída por aqueles que existem, que existiram, em prol daqueles que ainda existirão), fazendo com que os bens herdados e aquela ordem duradoura sem a qual homem algum é, sejam considerados como frutos do acaso e não bens conquistados na base de imensos sacrifícios. Por tanto o nivelamento do universo ao eu, a cultura de gueto e o culto ao novo e à originalidade não podem fazer, ao contrário do que afirma, o homem avançar, mas regredir a um estado onde o isolamento na limitação das percepções e dos sentidos acabam ganhando um status de cultura universal, de uma cultura reduzida ao mínimo de seu poder, já que desraigada do melhor do pensamento de da cultura que a humanidade já produziu. 

   Se levarmos em conta a afirmação do filósofo britânico Roger Scruton de que a cultura é o hábito de transmitir juízos, então teremos motivos o suficiente para amá-la e para promovê-la, ainda que tal cultura, em sua totalidade, seja um bem não acessível a todos, não obstante devendo ser admirada e venerada por todos. Assim também, teríamos que ter por infame e desprezível a crítica de Paulo Freire contra a concepção "bancária" de educação, já que, por sua própria definição, aluno e professor não podem jamais serem vistos no mesmo nível. 
    

    A existência de uma sociedade saudável, com isso, é totalmente dependente da existência de uma cultura saudável cujo poder é grande o bastante para destruir a prisão de ferro dos guetos culturais legitimados pelos promotores da "liberdade". E tal cultura não pode considerar toda expressão artística ou cultural como que existindo em um mesmo nível, mas se valendo de juízos e de críticas, pode e deve separar aquilo que é daquilo que não é, o superior do inferior, o bom do ruim, o belo do não belo, o eficaz do ineficaz, o completo do incompleto, o que é possível somente através da apropriação de juízos aperfeiçoados ao longo dos tempos. Assim podemos entender que toda a possibilidade de cultura reside no poder exercido pela faculdade do juízo, faculdade esta que vem sendo constantemente deslegitimada e destruída incessantemente pelos defensores da filosofia do "bom selvagem". 

Os Lamentos do Bom Selvagem I: A Miséria em Meio ao Nada



   Logo no início do livro "Do Contrato Social" de Jean Jacques-Rousseau temos a seguinte sentença de inspiração romântica: "O homem nasceu livre, porém, por toda parte, encontra-se sob os grilhões." Temos aqui a frase e o autor das grandes tribulações políticas e culturais que se arrastam desde, pelo menos, o século XVIII. E digo isso pois a frase e o autor se assentam em um erro de compreensão antropológica fundamental, um feitiço, que poderia ser desfeito com um pouco mais de crédito na experiência nossa de cada dia.

   Existe aqui implícita neste pequeno parágrafo uma das razões fundamentais que separam os dois iluminismo que conhecemos, que são o francês e o britânico. Ambos se fundam em interpretações distintas do ser humano, e isso explica, também, as diferenças fundamentais entre as duas culturas e os rumos que estas nações tomaram ao longo da história. Aqui o empreendimento comum de considerar ambas as revoluções sob uma mesma ótica só é possível às custas de um tremendo sacrifício da razão.   

   Podemos afirmar que entre as diferenças se encontram, do lado britânico, um esclarecimento permeado de um ceticismo que descreve de maneira mais empírica a condição humana, levando em consideração suas inclinações, paixões e erros fundamentais - a limitação dos poderes dos reis durante a Revolução Gloriosa em 1688 objetiva bem este espírito cético -, enquanto que, do lado francês, um romantismo mais deslumbrado com a razão e com a possibilidade da libertação do julgo das instituições, levou a um otimismo infinito que,  no fim do dia, resultou em perda de liberdade e em cabeças rolando.

   A intenção de Rousseau em afirmar a natureza intrinsecamente boa do homem primitivo - aquele existente antes da sociedade -, junto com a ideia de que a sociedade a corrompia, estava voltada à afirmação de que o mal da humanidade era resultante das "imposições da sociedade", imposições que vinham nas formas do costume, da Igreja, da monarquia e das instituições criadas ao longo dos séculos, o que acabava por hierarquizar a sociedade e, consequentemente, oprimi-la. É óbvio que as relações entre causa e efeito estabelecidas aqui são forçadas por aquele costume arraigado de julgar as partes pelo todo, já que a França pré-revolução não era propriamente uma França feliz - com aumentos arbitrários de impostos empreendidos pelo rei, um histórico recente de absolutismo monárquico, abrandado sim na segunda metade do século XVIII. No entanto tão pouco oferecia Rousseau um alento à miséria com a sua doutrina; fato é que sob o impulso da doutrina do "bom selvagem" a miséria foi profundamente agravada.   

   O pensamento conservador britânico, na pessoa de Edmund Burke - que chamava Rousseau de "o filósofo da vaidade" - detectou muito bem os pontos falhos da Revolução Francesa através de uma percepção profundamente clara do momento - digamos até que possuída de uma intuição divinatória -, por ver na eliminação brutal dos potos de referência culturais e na abolição das instituições a destruição das barreiras de contenção que impediam a invasão da barbárie. Tais barreiras eram tanto barreiras físicas, como não físicas; visíveis e invisíveis; escritas e não escritas. Entre estas barreiras encontramos a tradição e o "guarda-roupa da imaginação moral", a partir do qual podemos acessar todo um conjunto de experiências obtidas nas gerações anteriores cujas reflexões, costumes e tradições são fundamentais para a própria compreensão do "nós", assim como permeadas de esquemas de ação e até mesmo de fracassos que oferecem um norte para soluções a serem apresentadas diante de problemas presentes. Assim a recorrência ao "guarda-roupa da imaginação moral" seria um depósito de informações e costumes, como a confissão de uma superioridade do poder e sabedoria do "nós" em detrimento de uma atitude solipsista que tenderia a nivelar toda a realidade ao universo limitado do "eu". 

   Contudo a imaginação idílica roussoniana que estava voltada para a abolição dos costumes gerou o vício intelectual que consiste em considerar que um mundo bom é um mundo sem passado, sem experiência, sem algo a ser conservado, dando lugar às falaciosas utopias que buscam destruir o mundo presente em nome de um paraíso futuro. Mas este "pensamento de ruptura" é algo que tende, ao contrário do que afirma, não destruir a tradição, mas apenas substitui-la por uma tradição de rupturas onde o imperativo categórico que se estabelece cria algo como um "segundo homem", alguém cuja mudança e a impermanência tornam-se, antes de tudo, a postura mental que confessa que a única coisa a permanecer é a mudança e a impermanência, levando o revolucionário a saltar de revolução em revolução tal como faria um tradicional heraclitiano convicto. Contudo a dinâmica do processo, que é excitante porque centrada em um solipsismo dinâmico do eu, ignora as bases próprias em que uma sociedade encontra-se assentada; bases estas cuja subtração levaria apenas à criação de um inferno indescritível. E é justamente aqui que entramos nas consideração da natureza humana ignoradas por Rousseau. 

   Chegamos neste ponto ao cume de um processo de reflexão que não pode ser ignorado para quem quer que deseja considerar a dinâmica da história ou mesmo o processo de formação e transformação das sociedades e da civilização. Tal reflexão demanda a compreensão de que a possibilidade da sobrevivência humana jamais pode se dar sobre uma base solipsista, já que, primeiramente, a continuidade da raça humana só é possível mediante associações entre "eus", sendo a primeira delas a associação entre um homem e uma mulher, e, também - o que é de fundamental importância -, na limitação da liberdade demandada por necessidades de sobrevivência. Ou seja: o solipsismo é o contrário de sociedade e humanidade; ainda mais: o solipsismo é a anti-sociedade e anti-humanidade. 

   Todas essas coisas saltam aos olhos ao considerar a complexidade de formação de sociedade, apesar de serem negadas pelos românticos que estabelecem uma relação estritamente sentimental com o mundo. É óbvio que nas bases de qualquer sociedade importante encontraremos leis, costumes, religiões, limitações, hierarquias de comando e de produção, exércitos, produtores, intelectuais, sacerdotes, sistemas de governo, governadores, família etc. A existência dessas coisas que chamamos de instituições eram e são fundamentais para a fundação, manutenção, existência e permanência de uma sociedade, e, consequentemente, dos indivíduos dentro dela, desempenhando cada qual, ao seu modo, o seu sacerdócio em favor dos "eus" em benefício também de si mesmos. 

   A tendência do pensamento contemporâneo na camada dos "bem pensantes", costumeiramente ignora que uma sociedade não se origina como geração espontânea, e que nem se trata de um dado evidente da natureza biológica, e nem mesmo é algo que sempre esteve aí. Não! A sociedade é o resultado de confissões, sacrifícios e de uma lenta  construção fundada em valores, e seus modelos são possíveis por causa de um determinado estado de espírito, ao contrário do surgimento de uma colméia, cujas possibilidades estão incrustadas na natureza das abelhas. Por isso podemos compreender que a sociedade é, antes de tudo, um cultivo do espírito e uma tentativa de supressão de vários dados da natureza, e a harmonização sintética dela às nossas necessidades.  Contudo quando se diz "necessidades" não se evidencia de maneira plena o que queremos dizer ao falar da sociedades, já que por "necessidades" não nos referimos somente às necessidades físicas, mas também à permanência da vida que, entre outras coisas, depende da limitação dos desejos, ainda que os meios de alçar objetivos determinados mudem de um tipo de sociedade para outra. 

   A limitação dos desejos é a base fundamental do convívio humano. O exemplo disso é que não há sociedade humana que não possuam tabus relacionados à sexualidade, principalmente o tabu do incesto - como nos afirma Freud e Lévi-Strauss. Também estendemos a outras áreas a ideia de limitação dos desejos, como nas relações de propriedade, já que as limitações do desejo de posses materiais são fundamentais para o convívio humano, limitação que se destina à proteção integral da propriedade, não dando margens para a legitimação do roubo. As limitações da ira, que possibilitam a estabilidade social e o convívio sem o qual tudo degeneraria perseguições, carnificinas e no estabelecimento do poder indefensável e cruel do mais forte. Também a limitação da preguiça, o que, atuante na cultura como um código moral, traz a tona a compreensão de que todo o trabalho é, mesmo que inconscientemente, a realização de uma saudável cooperação social - principalmente e imediatamente familiar -, sem a qual teríamos o estabelecimento geral da ideia de tirania sobre o trabalho alheio; por isso a ética do trabalho e a limitação do desejo do gozo do descanso correspondem a uma compreensão de justiça e da constatação de que a sobrevivência é um bem obtido através do esforço e do sacrifício. 

   Não é por menos do que a tentativa de limitação dos desejos - o que consequentemente resulta em uma limitação da liberdade - que as várias instituições existem, o que nos leva a outra conclusão, a conclusão de que o que fundamenta a existência das instituições e hierarquias é a sobrevivência da sociedade, cujas possibilidades estão no livre curso das relações justas. Tal consciência está estampada como um memorial na literatura, na história, nas tradições, nas leis, na religião, e que permanecem como bastiões contra a corrosão liderada pelos bárbaros, já que as sociedades, a justiça e as tradições que fomentam a sociedade não existem senão por causa de um exercício constante de reflexão e acão para manter vivos tais valores. E é justamente aqui, onde vemos a complexidade das relações humanas, que a sentença infame de Rousseau - romântica e abstratista por todos os lados - cai como um fruto podre da árvore dos tempos sombrios. 

   Não foi por acaso que movimentos revolucionários - cuja inspiração se encontra na tradição francesa influenciada por Rousseau -, apregoando a liberdade dos homens os fez amargar sob o julgo de ditaduras sangrentas, já que com o ímpeto demolidor dos revolucionário as instituições, a religião, as leis, os governos estabelecidos e todos aqueles limitadores da liberdade acabaram na lata do lixo da história, resultando em uma concentração de poder ilimitado daqueles grupos mais organizados e com maior poder de controle da sociedade, que, invariavelmente, eram formados por aqueles que apregoavam a ideologia infame do "bom-selvagem" - assim é a história da revolução francesa, da revolução blochevique, da revolução nazista, maoísta e da revolução iraniana. Nenhuma destas revoluções se furtaram do otimismo antropológico de Rousseau, e nem mesmo constituem em exceções a esta regra, já que cada um desses grupos acreditavam em forças, grupos e instituições que impediam a chegada de um futuro utópico onde reinaria a paz e a justiça no próprio mundo - e consequentemente nomeavam também os bodes expiatórios contras os quais toda a culpa da não chagada do futuro utópico desaguava, sejam eles os burgueses, os kulács, os judeus, os imperialistas, a classe-média etc. 

   Com isso, quanto mais liberdades, quanto mais instituições destruídas, quanto mais a moral era substituída pela ideologia, quanto mais as religiões iam perdendo a sua influência e quanto mais as instâncias que limitavam as liberdade desapareciam, mais o povo ia se aproximando de um futuro tenebroso, onde o voluntarismo, a arbitrariedade, a seleção de bodes expiatórios se estabeleciam desenfreadamente, provando a capacidade de felicidade que um bom selvagem poderia adquirir na medida em que ia se livrando de suas opressões mediadas por essas mesmíssimas instituições.

OBS: Na imagem o famoso quadro símbolo da revolução francesa onde a liberdade guia o povo - para onde, a história já nos mostrou. 

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Cavalheiros de Cavalaria Ausentes


   Em meio a essa onda de jihadismo, é interessante notar que hoje em dia alguns cristãos não possuem a mínima capacidade de serem cavalheiros, de proteger as suas amadas, filhos, amigos etc. Por que isso? Porque eles confundiram a possibilidade de entregar a sua vida como um sacrifício pessoal a Cristo, com o entregar a vida de seus irmãos, suas mulheres e seus filhos ao sacrifício. Ao invés de ele dar a sua face para bater como um direito a um culto, ele oferece a dos outros - o que é insensatez. Entregar a sua própria vida à causa de Cristo é um direito. No entanto defender a vida do seu irmão, de sua esposa e filhos é um dever que deve ser seriamente considerado até à morte.

   Mas com relação a um suposto pacifismo que - reitero - não tem nada de cristão, eu imagino uma cena muito possível: um assaltante entra em uma casa, rende o marido, a mulher e os filhos. Logo depois ele começa a dar bofetadas na mulher, molestá-la e abusar dos filhos. De certo o marido rendido tem a possibilidade de render o assaltante utilizando a força para apagá-lo de algum modo. No entanto ele não age, pois sua alma cristianíssima não que pecar, com medo de dar uns bons chutes no traseiro do indivíduo. No fim das contas temos mulheres e filhos espancados, e ou mortos, mas uma alma em potencial e um homem "realizado" em sua "fé".

   Isso que está aí em cima é tudo, menos cristão, pois no Novo Testamento, mais especificamente no Sermão da Montanha, a ideia de dar a outra face quando a primeira foi ferida está fundamentalmente ligada à proteção pessoal da vida que os discípulos deveriam colocar em primeiro lugar, pois ninguém seria louco o suficiente para enfrentar o poderio invencível do Império Romano. O Império Romano é o contexto do texto de Mateus 5:38-41, e ele serve, na verdade, para que possamos considerar as prioridades em detrimento de tentarmos lutar em uma luta já perdida. Estar vivo para prover a família e a comunidade é mais útil do que teimar com o Império Romano, da mesma forma que Jeremias exortava os judeus a todos os reinos a se submeterem a Nabucodonosor, rei da Babilônia, e deixarem de lado os seus apelos nacionalistas para que disso escapassem com vida (Jeremias 27:1-8).

   Hoje o que vemos é o contrário, pois na capacidade de servirmos ao nosso próximo, tal como era o ideal da cavalaria na Idade Média, à nossa comunidade, aos filhos e filhas, existe uma espécie de letargia geral gerada pela má interpretação do Sermão da Montanha. Pensemos bem: se o Novo Testamento condenasse tanto assim o serviço da Espada (Romanos 13), será que ele não teria condenado os exércitos, ao invés de aconselhar aos soldados o contento com o soldo? (Lucas 13), reconhecendo que amar o próximo é também protegê-lo de terceiros? No entanto a interpretação amadora do Novo Testamento - que é assim porque como protestantes não damos valor à tradição interpretativa - fez com que esquecêssemos que proteger o irmão, a esposa e a família está justamente relacionada amar o nosso próximo como a nós mesmos - o que Lutero afirmou categoricamente em suas reflexões sobre o governo. Mas amar é amá-lo de verdade, nem que, para isso, como disse anteriormente, devamos dar umas boas bofetadas em um assaltante!

   Existe, também - e a Bíblia confirma isso -, uma diferença imensa entre matar e assassinar (e a ética da Lei no Antigo Testamento nos confirma isso - e negá-la seria afirmar a heresia do gnosticismo, que não reconhece nenhum ato de justiça por parte do homem neste mundo). A segunda destrói totalmente a ordem, mas a possibilidade da primeira e a sua efetivação como juízo é aquilo que a mantém. Lançar a ordem às favas em nome do pacifismo é dar a possibilidade para a criação de um inferno indescritível. Isso jamais foi cristianismo, e a história nos mostra muito bem isso, já que a grande massa de convertidos no período do império Romano era de soldados, o que não foi condenado pela Igreja, que reconhecia no exército um elemento essencial para a manutenção da ordem sem a qual a vida é impossível - o que é sabido com a existência das Cruzadas. Todo ato de sacrifício está relacionado a um bem maior, no entanto o pacifismo tende a deformar as comunidades e as sociedades, corrompendo o juízo desde o foro íntimo até às instâncias públicas, não sendo, por tanto, nenhum bem.

   E lembremos bem: mesmo na teologia do sacrifício de Cristo, em sua entrega total, está um elemento de destruição muito mais radical do que um simples ferimento: está a condenação eterna do Diabo para que fosse possível justamente a destruição do seu poder corruptor e destrutivo, pois - e Jesus já sabia -, pecado e pecador são uma coisa só, não sendo possível a separação. Pecado não é um universal, como o é a verdade, mas é o estado de corrupção da natureza, e esta é inseparável de indivíduos. Proteger as pessoas do investimento do maligno é necessário, e existem várias formas de fazer isso: uma delas é convencendo o pecador antes do seu próprio desastre; a outra é estar do lado dos inocentes, demonstrando amor através da proteção. Mas hoje somos um povo com cavalheiros de cavalaria ausentes.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Sobre a Questão da Igualdade


   No mundo moderno, muitos enxergam na "igualdade" a maior das possibilidades e virtudes da cultura, alçada à categoria de elemento redentor da humanidade. 

   Se, por um lado, aquilo que compreendemos por igualdade comporta em si uma virtude necessária na área jurídica (todos são iguais perante a lei), por outro lado, compreendida na esfera cultural, ela se põe como o princípio da destruição da hierarquia dos valores, assim como da alta cultura e, por isso mesmo, em si, a igualdade aqui existe como o princípio do esfacelamento das conquistas civilizacionais, o que é a maior das ameaças para os homens.

   Na esfera cultural, a política que visa em nome de uma suposta "aproximação dos homens", e da diminuição das diferenças intelectuais entre grupos ou indivíduos, não se põe, de fato, a universalizar o bem, pois essa política opera através de um nivelamento por baixo, ou por meio da distribuição universal da mediocridade. 

   Segue um trecho do romance de Dostoiévski acerca do fenômeno descrito em "Os Demônios": 

   "Chigalióv é um homem genial! Sabe, é um gênio como Fouier, mais forte que Fouier; vou cuidar dele. Ele inventou a 'igualdade'! No esquema dele cada membro da sociedade vigia o outro e é obrigado a delatar. Cada um pertence a todos, e todos a cada um. Todos são escravos e iguais na escravidão. Nos casos extremos recorre-se à calúnia e ao assassinato, mas o princípio é a igualdade. A primeira coisa que fazem é rebaixar o nível da educação, das ciências e dos talentos. O nível elevado das ciências e das aptidões só é acessível aos talentos superiores, e os talentos superiores são dispensáveis! Os talentos superiores sempre tomam o poder e formam déspotas, sempre trouxeram mais depravação do que utilidade; eles serão expulsos ou executados. A um Cícero corta-se a língua, a um Copérnico furam-se os olhos, um Shakespeare mata-se a pedradas - eis o chigaliovismo. Ha, ha, ha, está achando estranho? Sou a favor do chigaliovismo." (DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os Demônios) 

P.S. Para quem acha que esse logos igualitário nunca foi encarnado na história, ainda não sabe o que foi o violento programa de "Revolução Cultural" empreendido por Mao Tsé-Tung na China, que visava a eliminação da distinção entre "alta cultura" e "cultura popular". Essa Revolução resultou no maior massacre humano já ocorrido na história.

Uma Pequena Comparação


   Existem diferenças tão profundas entre cristianismo e islamismo que querer atribuir a maldade a um e a outro por causa da "religiosidade" - palavra tão injustamente maltratada nos dias de hoje -, é, ou desconhecimento, ou malícia premeditada. 
   Descrevo abaixo algumas diferenças:
   01) O Cristianismo começou com a morte de uma pessoa, e seguiu por quase três séculos com a morte ininterrupta de pessoas, a ponto de Tertuliano cunhar a famosa declaração: "o sangue dos mártires é a semente da Igreja"; o Islamismo, na solidão do deserto, começou empunhando cimitarras e matando pessoas, quando na invasão de Medina. Isso é incomparável com a instituição chamada Inquisição, que era um expediente interno, e não externo da Igreja Católica, não julgando os de fora, por tanto, mas os fiéis batizados. Toda força utilizada pela Igreja Católica na Idade Média, assim como por príncipes católicos, e, posteriormente, por príncipes protestantes e por líderes protestantes, não se comparam, jamais, à violência jihadista - e a produção do Estado de Direito e dos regimes constitucionais no Ocidente, permitindo a pluralidade e o pensamento divergente, é a prova que encerra toda dúvida.   
   02) Enquanto o islamismo seguia com seu ímpeto, conquistando espaços anteriormente cristianizados no norte da África, chegando à conquista do sul da França, da Espanha e de Portugal, tendo iniciado o processo em meados do século VII, o cristianismo iniciou as cruzadas para recuperar territórios europeus anteriormente conquistados no século XI, afim de não padecer o que sofre hoje uma grande massa de cristãos no Oriente Médio e na África Central com degolas, estupros - sim o Islã permite o estupro de infiéis - e escravização, já que o Islã é o responsável pela maior corrente cultural e política escravocrata da história da humanidade, algo abolido sumariamente pelos ingleses no século XVIII. 
   03) Enquanto na história do cristianismo se deu a possibilidade de a religião viver separada do Estado - sendo a fusão entre ambos algo ocorrido na história, não obstante inessencial para a fé -, institucionalizando as diferença religiosas em um mesmo Estado de Direito, o islamismo desconhece esta hipótese quando pode ser a maioria dominante. Existe uma exigência absoluta de islamização de um território por todos os meios possíveis, não sendo descartado a morte de infiéis. Matar ou morrer em nome do Islã e do Profeta é missão sagrada e que garantem a bem-aventurança eterna. 
   04) Enquanto o cristianismo foi quem carregou no colo a Europa após o desmoronamento do Império Romano, fazendo com que ela resistisse à debacle, lançando-a, após a transmutação da barbárie em graça, como uma luz no mundo moderno, tendo conquistado culturalmente o continente principalmente por meio da influência espiritual de reis e da população em geral, o Islã nunca se desfez da espada. O Irã veio a ser o país que é por meio da revolução armada; a Arábia Saudita veio a ser o que é por casa da guerrilha; a grande massa da África Central sucumbiu e sucumbe, hoje, à Jihad. 
   05) A grande parte dos conhecimentos científicos e tecnológicos tem a sua origem no depósito cultural que o cristianismo criou no mundo europeu por causa da sua doutrina que permite a assimilação entre espírito e natureza, o que levou a uma harmonização entre Sócrates e Jesus Cristo, entre ciência e religião - que apesar da falsa oposição propagandeada hoje, está plenamente de acordo com a doutrina da encarnação do Verbo, onde a eternidade se funde com a temporalidade. E é aqui mesmo que se explica a estagnação científica e cultural no Islã , que, ainda que tenha tido gênios no reino da matemática e filosofia no período da Idade Média, sofreu com que uma amputação em seu espírito quando, no século XVI, o xeque ul-Islam Kadizade, um clérigo ancião do Império Otomano, declarou que  a intromissão no segredo dos céus - no caso a astronomia -  era uma blasfêmia. É aqui que o mundo científico do islamismo sucumbiu, perdendo o seu poder intelectual virtuosíssimo acumulado pelas mãos de intelectuais realmente brilhantes como Averróis e Ibn Arabi.  
   Não estou dizendo que não houve e não há virtudes individuais nos adeptos do islamismo (e pensar que não existem é uma heresia mesmo para o pensamento cristão tradicional), pois eu mesmo tenho amigos virtuoso que seguem a fé islâmica. Também na história de nossa nação vemos indivíduos muçulmanos empreendedores, e que cresceram uma enormidade em seus empreendimentos. Da mesma forma, vemos que a história do Ocidente dá testemunhos evidentes de alienação, de perda da liberdade, já que o problema fundamental nosso é a imbecilização em massa. No caso do Brasil vemos a letargia e a incapacidade de se ver fora do campo dualista do pensamento - pouco a pouco superado - predominante justamente pelo desprezo olímpico ao estudo ou pela simples leitura, o que nos faz escravos de uns três ou quatro veículos de informação, sendo em muitos aspectos semelhantes no conteúdo, dividindo a cabeça dos brasileiros entre a informação hegemônica e tudo aquilo que não é ela. 
   No entanto aqui eu faço uma comparação de alguns pontos, apenas. E nesta comparação eu poderia falar mais sobre mulheres, democracia, inventividade, liberdade de pensamento, reconhecimento da individualidade, ou mesmo da exigência de fé e de retidão moral como pilares do cristianismo que faltam ao islamismo. Contudo eu creio que por hora estas distinções já falam alto contra o pensamento politicamente correto que, em prejuízo da realidade, prega a validação da fantasia e de um mundo abstrato que inexiste como mundo concreto. E este é justamente o mal do pensamento arrumadinho que não permite a análise e a comparação sensatas entre duas crenças que por semelhança só tem a palavra "religião". Por tanto o que temos descartando isso é a ruína do poder da cultura, que é a ruína da faculdade do juízo. E é isso que, para nossa ruína, nos impede de contemplar o mundo como ele é.

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Estado Laico


         Existem alguns pensamentos que só são possíveis na abstração, mas que jamais podem ser concretos no mundo real. Uma destas ideias esta na compreensão equivocada de Estado Laico. Em sua origem a ideia de laicidade só quer dizer uma coisa: Estado Não-Confessional, jamais a-religioso. No entanto a própria ideia de Estado Não-Confessional também é pura abstração, já que a sociedade ou suas tradições e moral, por terem também fundamentos na religião, formam um depósito que acaba por permear todas as Leis de Estado. Um exemplo claro disso é a ideia de casamento monogâmico, que só é o que é por causa do depósito moral e espiritual de nossa civilização cristã.

   A moral – ou os costumes -, que possui o seu fundamento preferencial na religião, é FUNDAMENTAL para a construção, por exemplo, da doutrina jurídica, já que esta não é totalmente criada à luz de uma racionalidade pura, mas sim por causa dos costumes, mesclados com uma justificação pautada na razão. Um exemplo disso é a ideia de maioridade. Ter dezoito anos não significa ter responsabilidade (e podemos concordar que uma lei que exige algo que pessoas não possuem, ou a lei determinar até que ponto alguma pessoa é imputável ou não, é algo não tão razoável), mas este limite precisa ser posto como um referencial através da autoridade em nome de uma ordem, o que torna a lei sensata e legítima à luz dos fatos e à luz da razão sadia.

   Aqui temos uma prática de concepção de leis que tanto pode ter a sua origem nos costumes assim como pode gera-los. Por tanto fazer com que a lei reivindique para si a pura racionalidade é loucura, já que ela funciona também quando fundada na autoridade, uma autoridade que sabemos ser razoável, ainda que tal razão jamais se aproxime do núcleo que justifica a própria existência da autoridade como algo legítimo e real. A questão filosófica aqui é profunda, já que o fato histórico da autoridade é a única coisa que justifica a própria autoridade, o que não pode fazer a razão, pois o que é a autoridade? Ela é palpável, possui corpo físico, chora, adoece? E se ela é algo imaterial, como ela é percebida por nossa mente como um ente – uma coisa? E se ela não é um ente (e não é mesmo, sendo a autoridade apenas simbolizada como tal pela imaginação, para que seja possível concebê-la), como é que ela possui um poder a ponto de subjugar um país inteiro?

   Uma resposta que é possível quando experimentamos a história e os fatos é que a autoridade está em pessoas, na cultura, na moral, na língua, família, pais, nas leis etc., mas jamais possui um corpo independente; sendo imaterial, não obstante, ela é plenamente necessária e reconhecível como necessária apenas por meio da consciência individual que capta a estrutura da realidade, compreendendo a necessidade da autoridade para a manutenção da sociedade tal como a conhecemos. É óbvio que compreender isto não é possível por via de um pensamento materialista – laicista, digamos -, mas é possível para o ser humano que se encontra no pleno gozo do seu espírito, ou quando ele pode testemunhar a realidade como algo que se dá, e que se justifica a si mesma neste dar-se e nesta presença, que é a presença de tudo aquilo que existe – a realidade é revelação constante e eterna, portanto. A realidade – e mesmo gradação inferior da realidade que é a realidade material – possui um fundamento não fundamentado do qual não podemos nos desfazer – o que é impossível – sem o prejuízo do tudo ser reduzido ao nada.

   Aqui vemos o quanto a razão não pode justificar algo tão necessário como a autoridade, já que não pode justificar, por exemplo, um Fundamento Eterno. Por tanto a via da abstração pura – aquela que busca justificar a autoridade por meio da racionalização -, é impossível, já que esta, quando divorciada do Ser (aquele Fundamento não Fundamentado) é, em seus fins, inteiramente niilista. A autoridade, para ser o que é, necessita de um Fundo-Não-Fundamentado, que ainda que não seja justificável racionalmente pode ser testemunhável como algo absolutamente necessário para as nossas vidas. A Ideia do Fundamento-Não-Fundamentado, se raciocinado profundamente pode levar tanto ao niilismo ou à contemplação deste Fundamento; e é aqui nós esbarramos na intuição suprema da religião: o Ser, ou Fundamento não Fundamentado.

   A intuição suprema da Religião é a Ideia de Eternidade, do poder que traspassa a tudo e que a tudo justifica e que a tudo depõe, podendo dar sustentação ou não às coisas. A intuição individual/histórica do Fundamento da Religião é algo que confere um sentido absoluto à vida individual concreta, que é passageira e perecível no âmbito material. O sentimento religioso leva o homem à contemplação de um mistério insondável que é intuído na Ordem de todas as coisas, e que leva o homem a refletir em sua finitude, frente ao Eterno que permanece. Não é por acaso que a Bíblia comece na mitologia de Gênesis com a criação e ordenação de tudo aquilo que existe. É tal ordem, no campo do real, que funda a ordenação da alma individual, assim como convence o homem de sua finitude, o que o leva à contemplação da infinitude que é a Base-Eterna-de-Tudo e a Ordem Suprema de todas as coisas. O senso religioso, por isso, antecede qualquer civilização, pois se a civilização pretende organizar a alma humana é necessário compreender que homens de alma organizada é que fundaram civilizações, leis etc. Em tal “a priori místico”, ou seja, na percepção e contemplação da antecedência da Ordem – a partir de onde podemos organizar nossas vidas – é onde se encontra a fundamentação da moral, cultura, costumes etc.

   Mas como isso é necessário? Bem, deve ter ficado claro que se na esfera do racionalismo puro a razão e a autoridade não podem ser justificados, a moral, a cultura, a autoridade dos pais sobre os filhos, a autoridade do Estado, do Partido, das associações, dos homens ou do homem, também não podem. Mas com isso nem a própria realidade pode existir, já que a sua dinâmica é constituída de hierarquias. Assim – e caminhei par chegar justamente aqui – nem mesmo o Estado Laico pode ter uma autoridade legítima por si mesmo, pois seria necessário a investigação e justificação dos seus fundamentos – que, obviamente, só podem subsistir mediante uma autoridade absoluta a fundamenta-los. Compreender o contrário, afirmando que o Estado Laico possui uma justificação auto-evidente, sendo ele mesmo a base de sua própria autoridade, seria o mesmo que divinizá-lo – ou torná-lo Deus -, já que no pleno poder de exercer autoridade sobre tudo, arbitrar sobre tudo, sendo o padrão de julgamento até do bem o do mal. E é aqui que está o germe dos Estados Totalitários do século XX – o Nazismo e, principalmente, o Comunismo. A filosofia da divinização do Estado é, em todos os sentidos, a filosofia do Anti-Cristo, já que aqui prevalece a absolutização e divinização da vontade arbitrária do homem, sem uma autoridade superior a julga-la. 

   É aqui que a religião está um degrau acima da filosofia e das ciências: ela reconhece a existência do Fundamento sem o qual as ciências e a Filosofia nada são. Mas vamos à estrutura mitológica de uma religião verdadeira, pois o seu Fundamento, o infinito se manifesta no finito de maneira definitiva nos milagres. Tais milagres, na religião, em sua essência, antecedem a moral, as virtudes individuais, a razão e tudo o que é existente, conferindo, não obstante, um fundamento e sentido sem os quais nada destas coisas são o que são. E por que isso? No Novo Testamento vemos que a prova da ressurreição de Jesus e da veracidade das suas palavras estavam não em um argumento doutrinário ou racional, mas sim na distribuição liberal dos milagres, ou nas várias manifestações do Espírito Santo, sendo estes as testemunhas supremas da Ressurreição (Hebreus 2:2-4), os quais poderiam ser reconhecidos objetivamente unicamente através da consciência individual. Vemos aqui, por tanto, aquela eterna lei filosófica que afirma que a ordem do Ser (a própria realidade) é anterior à ordem do conhecer; e a ordem do conhecer (da razão e dos seus produtos) é posterior à ordem do Ser - já que se pensássemos a realidade sem vivenciarmos ela estaríamos, na verdade, fantasiando a mesma. Deus, em Cristo, testemunhou a si mesmo revelando o seu Ser, seu Poder e aquilo que Ele é, antes de haver uma doutrina formal sobre o cristianismo. A Palavra (O Cristo Eterno), por exemplo, é anterior às Palavras (a Bíblia). Esta é a ordem da realidade e a estrutura da Religião.

   Por tanto a ideia de legitimidade no campo da política ou dos costumes é fundamentalmente complicada, e mesmo a proposta de um Estado Laico é apenas um arranjo que busca estabelecer regras de convívio, mas este jamais pode ser considerado uma fonte da verdade. Um Estado pode ser Laico, mas seu fundamento é o povo – o poder constituinte -, que, por sua vez, possui uma moral, sem a qual o próprio Estado é impossível. Mais precisamente, o fundamento do Estado é o Homem, o Homem repleto de moral, de razões, de sentidos. A Religião ou a Igreja são matrizes fundamentais de moral (costumes) e de sentido; e ambos em suas estruturas penetram em uma realidade superior à esfera do Estado – vão além da esfera da razão e penetram na esfera do Ser. O Estado vive por causa da moral (que o sustenta), mas é a Religião quem justifica a moral, como procurei demonstrar. Aqui vemos uma fonte do Estado, já que este não pode ser separado do homem, dos seus costumes, de seu sentido sem a destruição do próprio homem. Também não se pode separar homens do Estado, pois isso o aniquilaria.

   Foi a própria civilização cristã que, permeada de seu senso de justiça e da concepção de não destruir aquele que não partilha de sua forma de compreender Deus, que possibilitou a criação do Estado Laico. Portanto existe, na própria razão de existência do Estado Laico, um sentimento cristão que compreende que salvar vidas é preferível a matá-las (Lucas 9:56). Por tanto, deixar o Estado Laico viver por si só seria levá-lo à auto-destruição, pois nem separado de sua origem (que é cristã) ele consegue se justificar, e nem de si mesmo pode viver.

sábado, 14 de novembro de 2015

Fundamentalismo e Laicismo



      O mal-caratismo de alguns “iluminados” não tem limites. É óbvio que este pessoal, ignorando tudo a respeito daquilo que falam – ou fingindo ignorar -, desejam colocar na conta do Cristianismo, seja ele Católico ou Evangélico – e neste momento no Brasil, mais Evangélico do que Católico -, o terrorismo islâmico, tudo com base no abracadabra. E o abracadabra é a palavra fundamentalismo, que hoje já é confundido propositadamente com o levar uma vida religiosa a sério.

   Este pessoal que só aprendeu a raciocinar na base do jargão, e que ensina a pensar também nesta base, emburrecendo os seus leitores – ou fazendo alguns outros rirem muito -, lançam contra as comunidades religiosas o ônus da loucura de um grupo. Um raciocínio fácil e vilmente pobre.

   Mas a tática é antiga, pois fundada no puro fingimento, já que fingem ignorar – ou ignoram completamente mesmo -, por exemplo, que o início, meio e fins macabros da Revolução Francesa – a revolução que em nome da racionalidade e de uma condenação mais indolor inventou a guilhotina – foi uma investida principalmente contra o cristianismo católico, contra as tradições e contra os costumes. Tudo em nome de um Estado racional e a-religioso.

   Isso foi algo que o parlamentar irlandês, anglicano e tido como o pai da tradição política conservadora, Edmund Burke, lamentou muito, pois via que o idealismo dos revolucionários, que buscavam uma sociedade perfeita e sem desigualdades, era algo tão mortífero que, em nome do “bem”, tal revolução acabou por destruir os costumes as pessoas reais em nome do “novo homem”. Resultado: mais de 2.000.000 mortos, e uma ditadura napoleônica no fim do processo.

   Tal vez esta visão não seja tão diferente daquela que vemos com os islâmicos, que tem uma longa relação com os ideais revolucionários, existencialistas, cujo modus operandi foi visto de maneira inquestionável na revolução iraniana, onde o governo vigente foi derrubado pelo e para o “povo”, para os “trabalhadores” e para os “injustiçados” – com a ajuda da URSS -, mas acabou mesmo por instaurar uma teocracia rígida que dura até hoje, e que não da nenhum sinal de que irá acabar.

   Táticas de guerrilha foram vistas também na Primavera Árabe – a mãe revolucionária de tudo aquilo que vem acontecendo hoje na França -, e tudo porque alguns inocentes ocidentais, como os obamistas, laicistas e democratófilos, desejaram por um fim às ditaduras antigas – como a de Muamar Kadafi na Líbia -, que, ainda que não sendo anjos de luz, quando subtraídas, acabou dando lugar a um vácuo que poderia ser ocupado somente pelo grupo mais organizado e violento. Este grupo foi o Estado Islâmico.

   O senso de unidade histórica, a compreensão de que nada assim cai da árvore dos acontecimentos por meio de um puro fundamentalismo, a compreensão de que a estrutura de tais elementos não é o famoso preto no branco, não deixa margem para a compreensão de que não é o simples “fundamentalismo” a raiz dos males, mas sim uma forma muito típica de Fundamentalismo – que tem eliminado à média de 100.000 cristãos por ano – que, não levando em conta a ideia de imperfectibilidade ou pluralidade humana, se põe julgar o mundo e as pessoas em nome de uma suposta ideia superior alcançável na destruição de todos os valores.

   Assim também algumas pessoas não compreenderam que o laicismo radical – que tende a destruir os valores – é a única coisa que tem contribuído de maneira decisiva para o terrorismo islâmico, já que o esvaziamento espiritual do cristianismo no Ocidente deixou um buraco a ser tapado – e nada é tão sintomático disso quanto a aderência de jovens ocidentais à causa do terrorismo islâmico. A prostituição e embriaguez e o vazio espiritual do Ocidente tem feito dele um alvo fácil, pois a natureza abomina vácuo e este vácuo tende a ser preenchido por quem mantém a noção de que a vida só vale ser vivida quando guiada por valores sagrados.

   Como disse Schelling no século XIX, o espírito da cultura ocidental moderna é, em todos os seus ideias, e em todas as suas realizações, um espirito totalmente auto-destrutivo que visa implodir a própria base cultural e espiritual pelo êxito a que se propôs alcançar. O totalitarismo islâmico, por outro lado, possui um enorme projeto sacro de poder, não se furtando à destruição em nome de uma nova construção. Encontramos, por tanto, um casamento perfeito: o Ocidente quer morrer, e o totalitarismo islâmico quer matar.

terça-feira, 10 de novembro de 2015

O Espírito e a Vida



   A ruína material de um povo é precedida, também, de uma ruína moral (seja do povo, seja daqueles que o afligem), mas, antes de tudo, a ruína moral tem por base uma ruína espiritual: trata-se de uma degeneração de valores e princípios que afeta desde a esfera privada, estabelecendo seus tentáculos nos mais variados setores da vida pública.

   Não estou aqui como quem faz um prosélito ou como quem se aproveita de sua situação (sou pastor batista) para lançar apelos conversionistas, como quem tira vantagem da ruína moral e material do momento para indicar um caminho, por exemplo, em direção à Igreja que pastoreio. Aquilo que pretendo discorrer aqui tem validação na vida prática e mesmo nas reflexões filosóficas, além de teológicas, e em várias outras ciências. Tendo explicado isso, sigamos ao que interessa.

   Quando falamos sobre o campo do espírito, estamos a falar de coisas profundas e fundamentais da vida humana, pois é no espírito humano onde reside uma estrutura cujo fundamento só pode ser real quando concreto, e ser concreto é ser fundamental, assim como verdadeiramente real. Falamos de sentido, significado, destino e razão: coisas alheias à vida moderna que ficou cerrada no campo do materialismo, não conseguindo acessar outros campos da existência além daquilo que é percebido pelos cinco sentidos. Por isso a vida moderna, no intuito de oferecer liberdade para a humanidade, com o seu materialismo brutal, furtou, ao mesmo tempo, o campo do espírito, fazendo com que a vida fosse cerrada em um círculo onde a liberdade humana tornou-se uma mera ilusão da mente. Segundo expressões da teologia Hindu, fomos cerrados na dimensão de Maya (a ilusão da existência), sendo impossível romper o Samsara (a dimensão da vida dominada pelas relações de causa e efeito, o mundo da existência visível), perdendo a dimensão de Brahmam (O Deus Criador onde inexistem as relação de causa e efeito, por ser ele mesmo, o Brahmam, o Absoluto, a perfeita realidade e em quem, por meio da participação, entramos na vida Absoluta livre das confusões e ilusões desta vida). Nas terminologias da teologia cristã, fomos cerrados na vida regida pela carne (sarx, no grego - Romanos 7), onde, isolada do seu sentido espiritual, tende a terrestrializar o pensamento humano, fomentando a ilusão de que a dimensão visível é a única dimensão possível, o que acaba, por consequência, por transformar o homem em uma besta feroz e inimiga de Deus (Apocalipse 12 e 18), já que afastada do seu sentido último que é o Deus Criador dos Céus e da Terra (Atos dos Apóstolos 17:28) e que é a vida de todas as coisas. O homem carnal, ou o indivíduo que vive preso ao Samsara,  por tanto, é regido pelo império da morte, desespero, tendo que suportar o peso enlouquecedor de toda existência em suas costas sem nenhum apoio divino.

   É aqui que, desde as questões mínimas da vida, as tradições filosóficas e teológicas mais antigas buscaram traduzir aquilo que podemos chamar de nosso sentido da vida. Digo coisas mínimas porque Deus como o Sentido Último da vida é reconhecido desde o senso comum, quando, por exemplo, se fala do bem e o mal, da verdade e da mentira, de coisas, em suma, que não seriam o que são senão acompanhadas por um sentido eterno, tal como o amor, a eternidade, o desejo por uma resposta definitiva para a vida, a vontade e necessidade de certezas - e estar certo em um momento é gravar para sempre o sentido definitivo e eterno de uma verdade -, o desejo de conter tribulações corriqueiras, substituindo-as por uma paz definitiva e duradoura, o desejo de superar, de uma ver por todas, alguma dificuldade. Tal vez não percebamos, mas o senso de eternidade é algo que nos acompanha dia-a-dia, como diz o pregador no livro de Eclesiastes (3:11), afirmando que Deus colocou a eternidade no coração dos homens. Aqui podemos falar que a eternidade implantada no coração do homem é justamente o seu desejo por ordem, por felicidade, por uma vida perfeita, pela Verdade, pela permanência daquilo que é bom e pela aniquilação daquilo que é mal, ou a própria vontade de potência ou abundância, coroadas pelo assentamento destas vontades em bases justas ou corretas. Trata-se de um desejo humano natural por uma Ordem superior e transcendente que foi feita para ele, sendo o homem também feito para esta Ordem (como diria Russel Kirk); e uma vez não satisfeito este desejo por ordem o homem tende a mergulhar em uma apatia e tédio absolutos, uma ruína e fracasso de manter a vida ligada ao significado eterno que é a razão de todas as coisas e da nossa própria permanência. Fora disso, podemos dizer, o homem perde a razão de sua existência e a compreensão de seu lugar no cosmos e na vida, se sentindo um ser estranho a eles.

   Na tradição cristã a este tédio foi dado o nome de acídia, o terrível pecado que está fundado na ausência de esperança, na indiferença a tudo, o que leva o homem a um estado de letargia onde nada mais faz sentido, entregando-se, em busca de um sentido, aos deleites desta vida, por ter lançado fora a esperança o sentido superior e o assentamento da vida em uma razão espiritual. Após o tédio, abominando a natureza humana a falta de sentido, o espírito do homem tende a ser terrestrializado, e o que uma hora foi uma esperança e fé inabaláveis no Deus Criador de Tudo, nesta razão espiritual que está acima das circunstâncias, das tentações, das paixões e da mesquinhez, torna-se um impulso incontrolável de fabricar ídolos afim de preencher o vazio espiritual de sentido, onde o dinheiro, a política, os círculos de amizades, as convenções, a moral, a ciência, o raciocínio humano divorciados da Base Esterna da Realidade, os poderes desta vida, as pessoas, as tradições mortas, o casamento, os filhos e tudo quanto, servem como substitutos ao Deus que tudo Criou, rebaixando o homem a um servilismo idolátrico a coisas que, em si mesmas, longe do Deus ou o Sentido Absoluto, são insuficientes para qualquer pessoa. O homem fica preso ao ciclo desta existência (o Samsara) do qual não consegue romper, sendo impossível a experiência, também, de liberdade, a qual é possível apenas por meio da participação em Brahman, ou o Absoluto Deus.

   É por isso que a vida moderna, tendo se focado obsessivamente na vida material do homem, entendendo que é daqui que se deve partir se se deseja preencher o vazio da existência, chegando a raciocinar que os êxitos materiais são os êxitos supremos, entendendo até que a moralidade ou imoralidade são reflexos do aceso ou não às riquezas, e não o reflexo da situação do universo de significado de um, da riqueza ou pobreza da vida espiritual ou moral, não pode oferecer um antídoto para a falta de sentido que é como um vácuo que tende a destruir tudo. Na verdade a vida moderna não é uma solução, mas um sintoma de desespero, do desespero gerado pelo vácuo espiritual que uma vez foi gerado quando Deus, ou as leis eternas foram expulsos da vida pública e privada. Vemos com o declínio da vida espiritual na Inglaterra a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, por exemplo, não por mera coincidência, inteiramente relacionado com o declínio dos valores matrimoniais; a explosão dos números de filhos ilegítimos; o relativismo cultural que prende a camada mais pobre da sociedade em seu próprio gueto culturalmente limitado - já que tudo é válido culturalmente -, não dando acesso para esta camada a alta cultura que daria possibilidades para ver além das limitações do gueto; a degeneração do gosto; das artes; da educação; das políticas públicas que em nome do "não preconceito", já deixou de emitir juízos de valores na hora de acusar algum estrangeiro ou negro, ou de um branco pobre e viciado em drogas, de uma violências que eles, de fato, estavam praticando, afim de não fazer pesar o fardo sobre os oprimidos etc.

   É por isso que a desordem social, antes de tudo, trata-se de uma desordem das almas, de um afastamento da razão espiritual do homem que poderia dar acesso a ele ao sentido da vida, das relações humanas, das instituições, do trabalho e de todas aquelas coisas praticadas pelos homens para os homens. Isso tudo paira acima das suspeitas niilistas para as quais é o homem isolado em seu próprio universo mental que cria o sentido das vida. Só que experimentou a enfadonha tarefa de ter que criar um sentido para as coisas, dispensado a herança das gerações passadas, como se o ontem nada valesse, sabe o quão terrível, sofrível e ingrata é a tarefa de ter que criar algo a partir do nada, para que depois descubramos que o ponto de chegada é justamente aquele negado no início da emancipação ou da negação das tradições. A criação absoluta - já diz a sabedoria bíblica - é algo possível somente a Deus. Ter que criar uma ordem e um sentido permanente para a vida - e não participar de uma ordem criada - é uma contradição de termos, e uma impossibilidade pura e simples, pois se homens com base em suas autoridades limitada devem criar uma ordem, porque ela deve ser obedecida por um homem com igual capacidade de também criar uma outra ordem? Não seria o reconhecimento comum de uma lei eterna e justa por si só - acima ou além do homem - que fariam os homens se sujeitarem como quem se sujeita a algo verdadeiro, ou como quem faz isso, ainda que a lei trate-se de uma lei humana, em nome de um Bem Maior que beneficiaria todos os homens?

   Por tanto as verdades permanentes, o sentido transcendental a reger a vida pública e privada são elementos fundamentais que possibilitam a ordem das almas, e com isso a ordem pública. Se as pessoas não descobriram que um mero contrato ou um mero aglutinado de opiniões e de consensos não podem guiar a alma humana, é porque não entendem muito bem o que é uma verdade, muito menos um contrato, e menos ainda a validade de uma opinião, tendo que entender que um contrato é apenas o resultado de uma disposição espiritual interior entre duas pessoas, cujo comprometimento poderia levar às mais insanas bizarrices se algo invisível e eterno não estivesse regendo as consciências e os espíritos no universo do bem e do mal, do certo e do errado, do sim e do não, da validade do comprometimento e do não comprometimento, da verdade e da mentira, de coisas que não são deduzidas da matéria pela matéria, mas que, sendo invisíveis, pertencem a um universo de compreensão superior, acessíveis à consciência individual e que, reconhecidos, podem ordenar as nossas vidas e toda a realidade material, e que não reconhecidas pode podem levá-las ao caos - e o nosso mundo nos fornece provas disso o tempo todo.

   Por isso, no campo do real a vida ética, moral, política, familiar, do trabalho necessitam de, digamos, um fundamento não fundamentado, de uma base não embasada, de um princípio absoluto cuja existência é a própria prova de sua existência, e que prova para todos nós que dele necessitamos, já que o homem e a vida, isolados em si mesmos nada podem vislumbrar no horizonte, já que tudo aquilo que, na perspectiva humana, existe no horizonte é pó, o pó que só através do Espírito Eterno e Santo pode ser convertido em vida.