quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Calvino e a Lei Natural

   Resta a consideração daquele terceiro elemento quando a conhecer-se a regra de dirigir a vida probamente, a que chamamos, com razão, de conhecimento das obras da justiça, onde a mente humana parece ser algum tanto mais aguda do que nas coisas superiores, pois que testifica o Apóstolo [Rm 2.14-15] que os Gentios, que não tem Lei, quando praticam as obra da Lei, são por Lei para si e mostram a obra da Lei escrita em seu coração, dando-lhes testemunho a própria consciência e entre si acusando-os ou excusando-os os pensamentos diante do julgamento de Deus. Se os Gentios têm a justiça da Lei de natureza gravada na mente, por certo que não os diremos inteiramente cegos na maneira de conduzir a vida. E nada mais é generalizado que ser o homem suficientemente assistido para com a reta norma da vida pela lei natural, de que o Apóstolo aqui fala,
   Consideremos, porém, para que propósito este conhecimento da Lei há sido infundido aos homens. Então, evidenciar-se-á de pronto até onde conduzi-los-á à meta da razão e da verdade. Isto, se alguém lhes observa a sequência, faz-se claro também das palavras de Paulo. Havia ele dito pouco antes que aqueles que sob a Lei pecaram, segundo a Lei são julgados, os que sem lei pecaram, sem a Lei perecem, Porquanto isto poderia ser absurdo, que os Gentios pereçam sem qualquer julgamento prévio, acrescenta imediatamente que sua consciência está no lugar da Lei e, por isso, lhes é suficientemente justa para a condenação.
   Portanto, a finalidade da lei natural é tornar o homem inexcusável. Nem será ela mal definida desta maneira: que seja a apreensão da consciência a suficientemente discernir entre o justo e o injusto, de sorte a alijar aos homens o pretexto de ignorância, enquanto são incriminados pelo seu próprio testemunho. Esta é a auto-indulgência do homem: que, em perpetrando o mal, até onde é permissível, sempre de bom grado aparte a mente do senso de pecado. Razão pela qual, Platão, no PROTÁGORAS, parece haver parece haver sido impelido a pensar que se não peca senão por ignorância. Isto, sem dúvida, teria sido por ele dito com propriedade, se a hipocrisia humana tanto avultasse em encobrir os vícios que a mente não se fizesse cônscia de sua culpabilidade diante de Deus. Como, porém, esquivando-se o pecados ao julgamento do bem e do mal em si impresso, é para com ele constantemente recambiado, nem se lhe permite sequer assim cerrar as pálpebras que não seja obrigado, queira ou não, a abrir por vezes os olhos, diz-se falsamente que ele peca pela só ignorância.
CALVINO - Institutas. Tomo II. II.22

All Hallowes; Ou: A Vitória de Todos os Santos

   Datas celebrativas são em geral problemáticas no meio protestante de uma vertente mais linha dura. Tecnicamente tal vertente evangelical mais purista é geralmente aliada a um pensamento mais anabatista ou puritano. Refratários ao desenvolvimento teológico, tais alas em seu desenvolvimento mais radical tendem a manifestar tendências semelhantes àquelas que vemos em grupos como os Amish, que ao fraudar o princípio do Sola Scriptura, confundem esse princípio reformador que serviria como ferramenta de juízo a tudo aquilo que se diz Cristão para defender uma aberrante "Scriptura Solus", negando o desenvolvimento lógico da revelação. Grupos como os Amish, por exemplo, afirmam ser pecado a utilização de luz elétrica, ou equipamentos eletrônicos, já que não há evidência nas Escrituras de que o povo de Deus se servia de tais coisas - ainda que hoje hajam grupos de Amish mais abertos a isso. E, seguindo essa lógica confusa, eles entendem que aquilo que a Escritura não permite explicitamente o uso, logo é proibido. Isso é um estreitamento grotesco da vida e de todo o potencial humano que nos foram instilados por Deus. Mas sigamos!
   O princípio do Sola Scriptura é um princípio epistemológico, e não serve para a negação da tradição, do desenvolvimento teológico ou litúrgico. Se, por tanto, não serve para a negação em um primeiro plano, isso significa que o princípio da Sola Scriptura serve para a afirmação de todo o desenvolvimento teológico compatível com o espírito da Escritura, e isso significa que o desenvolvimento que é aliado da Escritura é positivamente aprovado por ela, e é bom compreendermos isso para sermos introduzidos ao assunto a que nos propomos por hora.
   Particularmente não pensei que a frase que escrevi sobre a ideia de o Halloween ser bíblico causaria uma celeuma e ataques puristas tão absurdos. Mas vamos aos elementos históricos que atestam os elementos cristãos dessa data afim de que nos desembaracemos de notórios erros quanto a essa data.
   A palavra Halloween, como é de conhecimento de muitos, é uma contração das palavras "All Hallows'Eve", e quer dizer "Véspera de Todos os Santos", que é uma dada em que se rememora todos os cristãos que já partiram deste mundo. Há controvérsias quanto à origem dessa data, se ela é uma capitulação de uma festa pagã no seio de uma cultura religiosa cristã - e existe evidências fortes de não ser esse o caso, já que os mártires eram celebrados desde o século IV d. C. É interessante que a expressão "All Hallows'Eve" é semelhante à expressão "Hallowed be Try name" que é a expressão em inglês do Pai nosso que afirma "santificado seja o vosso nome". O Halloween, portanto, é a data que antecede o dia 1º de Novembro, data em que se comemora o "All Hallows" (Allhallowtide), e se assemelha à festividade de Véspera de Natal, sendo a véspera do Dia de Todos os Santos, a data em que historicamente cristãos antigos lembravam aqueles mortos - mas que estão vivos em Cristo - salvos pela graça de Cristo. Trata-se de uma comemoração da salvação.
   Historicamente o dia 31 de Outubro também se liga ao início da Reforma Religiosa do Ocidente, dia em que Martinho Lutero pregou na Catedral de Wittenberg as 95 Teses redigidas para polemizar contra o abuso das indulgências. A catedral de Wittenberg (Schlosskirche) também é chamada de "Catedral de Todos os Santos", e é muito provável que Lutero tenha escolhido esse dia de caso pensado, já que se esperava que a essa catedral em especial afluísse a população para a celebração da véspera do "Dia de Todos os Santos", angariando mais atenção às suas teses. Essa é a razão pela qual o Halloween é celebrado no mesmíssimo dia em que se comemora a Reforma Protestante.
   Mas antes de prosseguirmos, atentemos para a razão da celebração dessa festa. Como escreveu J. B. Jordan, texto postado no site "Lecionário", a festa nos lembra justamente o fato de que uma hora escatológica desponta em que Cristo efetivará a consumação da destruição do mal já operada suficientemente na Cruz. Mas a forma dessa consumação muito nos interessa para os nossos propósitos: A "Hora Final" é o drama escatológico em que se dará uma vitória que Cristo realiza, também, como diria Agostinho, na alma dos seus santos. Mais especificamente, na interpretação do Salmo 2.3, Agostinho afirma: "'Rir-se-á deles o que habita nos céus. Deles zombará o Senhor'. É repetição. Ao invés de dizer 'o que habita nos céus', da segunda vez encontra-se 'o Senhor". Em lugar de 'rir-se-á' temos 'zombará'. Não se tomem carnalmente essas expressões, como se Deus se risse, ou zombasse, torcendo a boca ou o nariz. Mas, hão de ser entendidas no sentido da força concedida por Deus a seus santos. Estes, olhando o futuro, isto é, o nome de Cristo e o seu domínio estendido aos vindouros e alcançando todas as gentes, compreendam que aqueles tramaram em vão. Tal capacidade de previsão constitui a irrisão e zombaria da parte de Deus. 'Rir-se-á deles o que habita nos céus". Se os céus são as almas santas, por meio delas, Deus, que conhece o futuro, rir-se-á e zombará deles" (AGOSTINHO - Comentário aos Slamos. Slamo 2.3).
   Contudo, como diria o J. B. Jordan: "O conceito, conforme dramatizado no costume cristão, é bastante simples: em 31 de Outubro, o reino demoníaco tenta uma última vez alcançar a vitória, mas é banido pela alegria do Reino.
   Qual é o meio pelo qual o reino demoníaco é vencido? Em uma palavra: zombaria. O grande pecado de Satanás (e nosso grande pecado) é o orgulho. Assim, para afastar Satanás de nós, nós o ridicularizamos. É por isso que surgiu o costume de retratar Satanás em um ridículo traje vermelho com chifres e cauda. Ninguém pensa que o diabo realmente se parece com isso; a Bíblia ensina que ele é o Anjo caído. Portanto, a ideia é ridicularizá-lo porque ele perdeu a batalha contra Jesus e não tem mais poder sobre nós".
   Aqui tocamos em um ponto sensível por causa da estética absoluta, na verdade anti-histórica, que constitui o puritanismo cujo ethos perfaz grande parte do evangelicalismo do Brasil. Mas é necessário frisar que todas as dramatizações teatrais em que se encenam em muitas Igrejas é utilizado fantasias em que Satanás é representado por cristãos. O espírito do Halloween, que é uma festa popular, é buscar uma dramatização lúdica ligada à zombaria, já que os cristãos não temem o poder diabólico, nem aquele poder que se mostrará no momento que antecede o fim, no dia de irrupção da última maldade.
   Obviamente muito daquilo que entendemos por Halloween não vem da nossa cultura, e é algo estranho a ela. Obviamente, pouco se sabe da razão pela qual crianças pedem doces de casa em casa nesse dia, dizendo: "trick or treat" (travessuras ou gostosuras) - e se diz que essa festa ganhou as configurações atuais no século XIX. É lógico, no entanto, que não seria demonstração de bom senso fazer uma defesa ou uma condenação com base na nossa sensação imediata da questão. Julgamentos puramente estéticos tendem a ser julgamentos pobres. Muitos evangélicos ignoram ou acham estranha tal celebração - o que é perfeitamente compreensível. Contudo condenações como a de que se trata de uma festa que celebra "satanismo" é algo absurdo.
Enfim, a palavra "Halloween", como foi demonstrado, tem origem eminentemente cristã, e nas configurações atuais trata-se de uma festa que precede a festa de Todos os Santos, ou seja, a festa daqueles que venceram em Cristo, ou melhor, daqueles através dos quais Cristo vence, zombando, todos os poderes das trevas que dominam esse mundo. Não temamos os poderes das trevas! Mas nos alegremos acima de todos eles.

Eric Voegelin e o Docetismo; Parte II: De Kierkegaard a Schelling

   Continuando a reflexão a que me propus sobre Eric Voegelin, me estenderei aqui sobre a influência de Kierkegaard e depois passarei para a influência de Schelling, autor que é extremamente fundamental para a noção de Voegelin sobre a estrutura do desenvolvimento da história geral e da história política em específico.

   Mas para assinalar essa transição de Kierkegaard a Schelling será importante compreendermos que Voegelin adere de forma fundamental à tese de Kierkegaard de que "a verdade é subjetividade" - e é necessário que tenhamos cuidado ao interpretar a palavra 'subjetividade' evitando identificar essa palavra com arbitrariedade ou irracionalismo. Isso esclarece a crítica voegeliniana avassaladora à tentativas de hipostasiar experiências de iluminação em dogmas e doutrinas objetivas, desidratando e descaracterizando a realidade própria da experiência primária. Para Voegelin tais realidades passíveis de objetificação se mantém no nível dos fenômenos físicos, universo em que é legítima a dissecação científica e positivista, onde encontramos objetos da operação da consciência comumente nomeada de intencionalidade. A esse tipo de realidade objetificável Voegelin denominou de 'realidade-coisa'. Contudo a consciência e as experiências de participação não são passíveis de objetificação, mas são experimentadas como realidades tencionais entre os polos humano e divino, e é justamente no entremeio tensional (aquilo que Voegelin chamou de metaxis) onde surgem os símbolos das experiências de transcendência, sendo a linguagem preferencial para a descrição desse tipo de experiência não a linguagem metafísica ou positivista (que em certo sentido, para Voegelin, são deformações desse tipo de experiência primária), mas a linguagem mitopoética - linguagem característica da Bíblia e dos mitos platônicos. É no campo tensional divino-humano onde a consciência se abre para a sua própria luminosidade, vislumbrando sua participação na comunidade do ser. Esse é o universo que Voegelin denominou de 'realidade-Isso', âmbito não passível de objetificação, realidade que só é perceptível no polo subjetivo da consciência e que se situa para além do fenomenismo de tipo materialista e positivista, universo de entes objetificáveis. É justamente aqui que percebemos a influência de Kant, mas também de Schelling e, em um certo grau, a crítica ao neotomismo - e o seu apego à objetividade - empreendida por Voegelin.

   Compreendidas essas influências de Kierkegaard, passemos às ideias de Schelling que estruturaram o pensamento de Voegelin. Mas de antemão destaco a dificuldade de discorrer sobre esse tipo de filosofia que é desconhecida, mas que encontra grande eco no pensamento voegeliniano, principalmente na obra Ordem e História. De Schelling podemos derivar as categorias modernas do desenvolvimento histórico, do inconsciente nas chamadas "psicologias do profundo", da filosofia da arte e dos estudos de religião comparada. Da mesma forma a oposição mais elaborada ao pensamento hegeliano se encontra justamente em Schelling e nele o início do pensamento existencial que marcou de forma vasta e profunda todo o século XX - lembremos de Santayana, H. Bergson, Coleridge, W. Schluz, C. Jung e a escola da psicologia analítica, Tillich, Mircea Eliade, Vicente Ferreira da Silva, M. Buber, Heidegger etc.

   De Schelling, como dissemos, Voegelin herda a oposição hegeliana. De fato, o terceiro Schelling, autor da 'filosofia positiva', asseverava uma ruptura na unidade entre essência e existência tão acentuada por Hegel. Não negava, porém, a unidade da Substância Absoluta que anima todo o cosmos. Nem negava o essencialismo a partir do qual podemos conhecer a estrutura da própria realidade. Isso tinha em comum com Hegel. Descobriu, porém, ao lado da filosofia negativa (idealista), a filosofia positiva (a filosofia da existência), ou a filosofia do desdobramento das coisas na própria realidade. Se opunha ao idealismo objetivo de Hegel que afirmava ter exaurido ou manifestado a Ideia Absoluta em sua própria filosofia (ou em sua mente). À toada objetivante de Hegel, cujo símbolo mais representativo é a expressão de que "tudo o que é real é racional", se opunha Schelling por identificar na realidade campos metalógicos não objetificáveis mas apenas participáveis. No contexto da antropologia afirmou a inexauribilidade e inefabilidade do inconsciente em oposição à filosofia da consciência de Hegel - e é daqui que surge a noção romântica de inconsciente que muitos pensam ter surgido em Freud. No contexto da natureza contestou uma identidade entre método e realidade, de maneira que estabeleceu a avassaladora crítica ao cientificismo iluminista e ao conceito de res extensa cartesiano; em Hegel abominou a ideia de que a natureza segue um desdobramento lógico-dialético da Ideia Absoluta, o que acaba idealizando, por assim dizer, a natureza. No contexto da Teologia afirmou a distinção infinita entre a situação humana e a bem-aventurança do ser divino, interpondo uma ruptura trágica entre Deus e o homem - em virtude da alienação do pecado - e entre a fé e a razão, somente passíveis de serem sanadas pela intervenção do próprio Deus pela graça.

   Também importante é, para Schelling, a filosofia da liberdade, liberdade que para ele esta fundamentada em Deus e que está sujeita à auto-contradição. Afirmada aí é a ideia de pecado. No fundamento obscuro da vida (ungrund), sustentado ao lado do fundamento luminoso (como está escrito no Idades do Mundo - Weltalter) jaz a possibilidade de revolta e auto-contradição. Aplicada a revolta a história do retorno a Deus por parte da humanidade começa. Essa é a história da religião expressa nas mitologias. Voegelin via com especial apreço essa intuição existencialista sobre a liberdade de Schelling e no "Ordem e História" afirma que é justamente sob o fundo do 'nada' (o ungrund schellinguiano) que as distorções espirituais/ideológicas - ou pneumopatológicas -, geradas pela ansiedade da existência para reter o fluxo da realidade, começam. A filosofia de Hegel é a expressão moderna dessa pneumopatologia gerada por esse tipo de ansiedade sob o fundamento obscuro, já que ela busca reter o fluxo da história com a sua síntese absoluta - e é bom percebermos que Hegel experimentou a devastação civilizacional napoleônica. Mas uma distorção clássica e equivalente à de Hegel é aquela que Voegelin chamou de "Historiogênese", onde os simbolistas imperiais traçaram uma linha genética dos imperadores ou reis até o início do cosmos, como se os reis ou imperadores, sendo os "filhos dos deuses", e unidos ao propósito do cosmos, pudessem estabeleceu uma base firme para domar o fundamento caótico e indomável (ungrund) da história política, tal como Hegel que buscou parar a história no contexto da devastação napoleônica. A segunda distorção é o gnosticismo que afirma malignidade congênita do mundo concluída a partir das experiências de devastação civilizacional e do avanço dos impérios ecumênicos. Tais devastações geram por sua vez a devastação psíquica perceptível na degradação dos sistemas gnósticos. Mas tais distorções também provém de uma perturbação da liberdade em relação não somente ao 'fundamento obscuro', mas também em relação ao 'fundamento luminoso', pois em Hegel o essencialismo metafísico é tão acentuado que engole as condições da existência (o fundamento obscuro e selvagem). Os fundamentos se contradizem aqui. Disso também provém as distorções metastáticas e apocalípticas daqueles que realmente tiveram uma teofania divina (fundamento luminoso), mas que ficaram obcecados por essa iluminação, e por força dessa iluminação passaram a conceber, na linguagem de Anaximandro, uma 'gênesis' (nascimento) sem 'phtora' (perecimento). As experiências teofânicas podem ser desequilibradoras, e com a iluminação trazida pela teofania de que a estrutura da realidade se move para além de si mesma em uma direção escatológica e aponta para uma realidade livre das perturbações da existência, começam a pulular movimentos metastáticos que apostam na transfiguração da realidade temporal em um paraíso sem sofrimento. Entram em crítica aqui os quiliastas (milenaristas) antigos e modernos, sendo os milenaristas antigos os montanistas, Joaquim de Fiori e seus discípulos e os franciscanos radicais; do período moderno temos os socialistas, comunistas, positivistas comteanos, nazistas, nacionalistas chauvinistas e ultra-liberais - todos aqueles que prometem um paraíso de gênesis sem phtora. É importante notar, no entanto, que para Schelling tanto o fundamento luminoso como o fundamento obscuro se encontram em perfeita coesão no campo do Absoluto (Deus), mas se encontram em ampla contradição - como é evidente nas perturbações destacadas - no campo da história (a descrição da estruturação coesa desses fundamentos está absolutamente clara nas últimas três páginas do 'A Era Ecumênica', e reflete a filosofia das três potências elaborada no 'As Idades do Mundo' de Schelling). E é justamente aqui que se encontra o pensamento existencialista de Schelling, que é o pensamento que reconhece o fato da ruptura entre essência e existência no campo da história, e que marca o pensamento de Voegelin.

Eric Voegelin e o Docetismo; Parte I: A Influência de Kierkegaard na Filosofia de Eric Voegelin

   Eric Voegelin é um filósofo muito mais famoso pelo uso panfletário de determinados aspectos do seu pensamento do que, de fato, por ser alguém estudado de forma integral. É interessante o uso que muitos apologistas católicos fazem de trechos de sua obra, especialmente do livro IV do História das Ideias Políticas - na parte em que ele trata da Reforma (A Grande Confusão) -, partes do livro V e do "Nova Ciência Política", em especial o uso polêmico - e não compreendido em todos os seus aspectos - do termo gnosticismo. Escamoteada é a crítica duríssima de Voegelin ao pensamento neotomista (nem citadas são por aqui as oposições entre Voegelin e Lonergam, conforme são retratadas por Eugene Webb no livro "Filósofos da Consciência"), as críticas que ele faz de Francisco de Assis (como o promotor no Ocidente dos movimentos de massa), de Thomas More (que ele afirmava ser um santo sem fé), e de que o papado foi quem promoveu a primeira estrutura totalitária do Ocidente (já que o papa assumiu a figura do Paráclito que fez desaparecer a totalidade da Igreja na sua pessoa, transformando-a em uma estrutura piramidal ao moldes das seitas gnósticas). É incrível que muitos católicos achem em Voegelin um ativo à sua causa - a não ser que façam cherry picking ao lidar com sua obra; coisa que qualquer protestante poderia fazer também, ao lidar de forma temerária com a obra dele.

   No mais, a obra do filósofo alemão é constituída fundamentalmente por influência de autores protestantes de vertente luterana, além da influência de K. Jaspers e dos filósofos gregos, sobretudo Platão. Tragamos à mente a influência de Kierkegaard e de Schelling à sua obra.

   De Kierkegaard Voegelin herda a distinção entre fé eminente e de fé no sentido comum, assim como elabora com base em Kierkegaard a sua noção de "Salto no Ser". A fé em seu sentido comum é fundada, por sua vez, em uma compreensão anti-iluminista - e mesmo anti-hegeliana - da operação da razão sobre os dados da história, dados para os quais não há nenhuma possibilidade de dissecação absoluta, mas apenas lacunar - o que é uma percepção anti-iluminista tipicamente alemã e romântica que foi teorizada já por Hamman, o "Mago do Norte".

   A fé no sentido eminente, por sua vez, trata-se daquela fé sobrenatural que surge do encontro do homem com Deus. Tal encontro não está sujeito à crítica histórica, pois o "evento da fé" é, em sentido próprio, "meta-histórico", embora paradoxalmente o cristão fundamente em uma ocorrência histórica a sua felicidade eterna. Um dos escritos mais elucidativos de Kierkegaard a esse respeito está no "Pós-Escrito às Migalhas Filosóficas", lá onde ele discorre a validade da bíblia para a fé e o "parênteses" do criticismo histórico - parênteses que se abre e que coloca a fé em suspeita até tudo ser resolvido pela ciência histórica. Kierkegaard diz que seria inútil para a fé alguém esperar pela investigação positivista da Bíblia para a validação de algum dado da fé, já que em relação à fé nem o homem e nem a fé podem esperar. A Bíblia é válida no contexto próprio da fé e não precisa do auxílio do positivismo histórico para validar a si mesma. É interessante que mais tarde essa perspectiva de Kierkegaard, junto com a perspectiva da escola de Erlangen, iria criar a teoria da distinção entre Geschichte (história pragmática) e Heilsgeschichte (história sagrada) em escolas como a de Rudolf Bultmann, cuja estrutura Voegelin usaria para fazer a distinção entre "História Paragmática" e "História Pradigmática" na obra Ordem e História - e que correspondem também à teorização voegeliniana sobre a 'realidade Coisa' e a 'realidade Isso', com as quais se relacionam, em ordem, as operações da consciência chamadas intencionalidade e luminosidade (mas discorreremos mais à frente sobre esses termos).

   O noção de Salto no Ser também possui influências kierkegaardianas, já que Kierkegaard é aquele que teoriza sobre a ideia do "Salto na Fé", que é uma postulação polêmica anti-hegeliana que se volta contra o conceito de mediação. Se percebermos o significado da ideia de "Salto no Ser" também perceberemos a forte oposição de Voegelin ao conceito hegeliano de História, pois para Hegel a história é uma elaboração da Ideia Absoluta que se apresenta como um circuito logicamente estruturado, se desdobrando dialeticamente. Para Voegelin o "Salto no Ser" é constituído por eventos teofânicos que deram ocasião para o surgimento da filosofia platônica-aristotélica, assim como da revelação israelita/mosaica e cristã, as quais romperam com uma compreensão compacta do cosmos, revelando aos alvos da teofania a transcendência supracósmica, não seguindo, como Hegel pensava, uma sequência lógica, já que eventos teofânicos ou se dão ou não se dão. Nisso Voegelin não seguia apenas Kierkegaard, mas também Schelling, de quem Kierkegaard herdou certa estrutura de pensamento em sua filosofia.

A Vida no Espírito Entre o Cume e os Pés do Monte Tabor

   Nos evangelhos sinóticos (Mt 17, Mc 9, Lc 9) são narrados o evento da transfiguração de Cristo, e em todos eles vemos uma estrutura única de significado.
   Quando os discípulos Pedro, Tiago e João subiram com Cristo ao monte Tabor e lá vislubraram sua glória divina, a primeira coisa que fizeram foi tentar conter a glória fundanto ali três tabernáculos, um para Jesus outro para Moisés e Elias, que foram vistos nessa manifestação de glória. O intuito dos três discípulos com a construção do tabernáculo era viver em glória triunfante sem as perturbações em que viviam - intuito ou preocupação que ainda reverberaria em At 1.6,7, quando eles perguntaram sobre o quando da restauração de Israel. Da nuvem de glória saiu a voz da advertência divina sobre a loucura desse empreendimento. Aterrados com advertência celeste logo foram socorridos por Cristo que disse: não temais!
   Com exceção do Ev. Lucas, os livros de Mateus e Marcos relatam que após a transfiguração se seguiu, em virtude da visão, o questionamento sobre a vinda de Elias, que era a ansiada vinda que antecederia o triunfo messiânico de Israel, como está registrado na última profecia de Malaquias, o que atesta o desejo pela restauração última de Israel. É óbvia a intenção da fundação de um "Império Messiânico" até em beneficio deles mesmos.
   Contudo, após essas coisas um evento relatado nos três evangelhos sinóticos assenta um significado importante para o entendimento desses eventos, e que é expresso pela luta contra um demônio que despedaçava a vida de um menino. Aos pés do monte, em cujo topo Cristo realizara a transfiguração, um pai rogou a Cristo que expulsasse esse demônio que os discípulos que não subiram ao monte não conseguiam expulsar. Após a visão da realidade da glória os discípulos foram apresentados à realidade do mundo e ali Cristo manifestou novamente o pode de Deus, expulsando o demônio.
   A tensão entre a glória divina e a realidade humana são cabalmente expressas nessa passagem e nos adverte com o ensino de que: 1) As experiência no Espírito não nos livram do mundo, mas nos possibilitam lutar nele; 2) Não há espiritualidade escapista que não seja detestada por Deus; 3) A manifestação plena do Reino de Deus é esperança cuja realidade efetiva não vem senão antes da luta e do sofrimento; 4) Não há fé que não esteja, ao mesmo tempo, arraigada de forma plena nos conflitos e contrariedades desta vida, pois é justamente assumindo as dores e conflitos dessa vida que podemos, de forma efetiva, se estivermos na fé, ver o Reino de Deus.