domingo, 30 de janeiro de 2022

O Servo Peregrino

    Se em Caim temos o princípio mundano do estabelecimento dos povos ligados à terra, e por isso à concentração do poder e do império, em Abel temos o pai espiritual dos povos nômades não ligados à terra. Abel é o pai espiritual dos peregrinos. Abraão - filho de Héber (in Gn 11.14ss, de onde os israelitas recebem o nome de hebreus), e filho de Sem, o mais abençoado dos filhos de Noé – foi o pastor chamado por Deus com a promessa de herdar uma terra específica. Aqui, como encontramos em Gn 12, temos o início de Israel, a nação oráculo que veio a ser a voz divina no mundo para orientar todos os homens no caminho do Senhor. Assim como Abel, Enoque e Noé, ficamos sabendo que Abraão, antes Abrão, ouviu a Deus, e assim o seguiu. Seria muito difícil seguir por esse caminho se Abraão fosse alguém ligado à terra, aos bens etc., não dispondo da liberdade necessária para obedecer a Deus.

    Aqui temos o sentido da necessidade da liberdade para obedecermos, pois na ausência dela cumprir o que quer que seja da palavra de Deus é algo sumamente impossível. É exatamente nesse sentido que Jesus condena o amor às riquezas, pois elas aumentam a nossa gravidade que nos prende a esse mundo, sendo que o amor a elas nos impede de ouvir a Deus. As riquezas não são um mal em si. Mas aqui pode surgir uma dúvida: não foi a Abraão prometida justamente uma terra? Também aqui se impõe uma distinção: Abraão é filho de um tempo em que a humanidade já havia alcançado grande parte do mundo terra. O grande problema de Babel, foi antecipar um bem futuro, o possuir uma cidade. Ao tentar meter o carro na frente dos bois Ninrode e Babel, em sua ganância desenfreada atrapalharam o fluxo natural das coisas, perturbando a ordem divina – pela qual foram justamente castigados.

    É significativo que o início da peregrinação de Abraão se desse justamente a partir da terra de Babilônia, pois é de lá, da terra da revolta e da confusão, que também nós iniciamos a nossa peregrinação em direção à terra que nos foi prometida por Deus, a terra da graça e da liberdade estabelecida pela vontade santa do Senhor, e não pelo egoísmo do nosso pecado. Toda caminhada e toda a peregrinação da alma em direção ao Senhor começam simbolicamente em Babel e terminam em Jerusalém, a Cidade de Deus. Agostinho esclarece a dinâmica disso na interpretação do Salmo nº 64.2: Começa a sair quem começa a amar. Pois muitos saem ocultamente, e os pés dos que saem são os afetos do coração; e saem da Babilônia. O que significa: Babilônia? Da confusão. Como se sai de Babilônia, isto é, da confusão? Os que antes eram confundidos, devido à semelhança nas ambições, começam a se distinguir [ou destacar] pelo amor; já distintos não são mais confundidos.

Império e Transgressão

    A história da Torre de Babel é a história do primeiro levante grave contra Deus cometido pela humanidade após o Dilúvio. A ordem divina de crescer e multiplicar assim como povoar a terra é significativa para entendermos a ira de Deus sobre Babel. A narrativa cobre Gn 11.1-9 e descreve que partindo do lado oriental homens se estabeleceram na planície do Sinal, e intentaram queimar tijolos e usar piche betuminoso para construir uma torre que tocasse os céus. A finalidade deles eram duas: 1) fazer o nome grande; 2) não serem espalhados pela terra. Ao ouvirmos essas duas coisas nos lembramos de duas outras: 1) que os filhos das mulheres que coabitaram com os anjos no período pré-diluviano eram famosos (Gn 6.4); 2) que ao não quererem ser espalhados pelo mundo eles transgrediam a ordem frontal de Deus de povoar a terra (Gn 9.7).

    Temos em Babel a primeira tentativa de concentração de poder do mundo antigo. E entre os seus podemos contar com a presença de Ninrode, o descendente de Cam que foi chamado de o poderoso caçador diante do Senhor (Gn 10.8,9). Alguns, como Lutero, identificaram Ninrode como o líder do empreendimento da Torre de Babel, porque ele foi nomeado como o rei de Babel (de onde viria a Babilônia). Isso é muito possível, e como o primeiro homem destacado e poderoso do mundo pós-diluviano ele foi também o primeiro a organizar o primeiro levante contra os céus, buscando construir uma torre que tocasse a morada de Deus. Isso nos faz lembrar a profecia de Isaías, proferida séculos mais tarde contra o rei de Babilônia Nabucodonosor: Como caíste do céu, ó estrela da manhã, filha da alva [...] E tu dizias no teu coração: Eu subirei ao céu, e, acima das estrelas de Deus, exaltarei o meu trono, [...] Subirei acima das mais altas nuvens e serei semelhante ao Altíssimo (Is 14.12-14).

    O projeto da Torre de Babel era, portanto, um projeto imperial, a primeira tentativa de concentração de poder, e por isso de estabelecimento de controle sobre as pessoas do mundo pós-diluviano. É sob essa luz que devemos entender a narrativa, e é interessante notar que todos os impérios antigos se seguiram de Cam, pai de Ninrode: o império egípcio (Mizrain – Gn 10.6), o assírio (Nínive, cf. 10.11), o babilônico e os reinos cananitas (10.6), os quais lutaram duramente contra Israel. Aqui entendemos tanto a maldição de Cam, filho de Noé, como a razão do juízo sobre Babel, pois para que fosse destruída a intenção má os construtores foram confundidos em suas línguas. O importante é notar que o império da transgressão é destruído por dentro, já que o vício pecaminoso faz com que cada um em seu egoísmo fale apenas sua língua. Babel (que vem de בָּבֶל), cuja raiz significa desordem, confusão, é o oposto do pentecostes, pois em pentecostes mesmo em línguas diferentes todos se entendiam porque guiados não pelo pecado e revolta, mas pela amizade e pelo Espírito do Senhor (At 2.5,6).

A Benção e a Maldição

     Após o Dilúvio Noé e sua família, como os únicos da espécie humana, receberam uma aliança divina, uma benção que possuía as famosas duas partes de benção/direitos e deveres. Entre as bênçãos/direitos estavam: a fecundidade, o domínio sobre os animais e o direito de se alimentar de toda erva e carne. Entre do deveres estavam: a proibição de comer o sangue e a proibição do assassinato sob pena da morte do assassino. Esse último dever desenha algo importante sobre o valor do sangue no Antigo Testamento como o portador da vida, e já explica os ritos de expiação dos pecados que se tornarão determinantes no Antigo Testamento. Assim, a pena pelo derramamento do sangue seria o derramamento do sangue como permuta satisfatória do esvaziamento da vida do assassino em razão do ato do assassinato. Também explica a razão pela qual o autor de Hebreus assevera: sem derramamento não há remissão (Hb 9.22), onde o sangue de Jesus é dado por nós em substituição do derramamento do nosso sangue.

    Como sinal da aliança Deus criou o arco celeste, ou o arco-íris como promessa que jamais iria fazer perecer o mundo sob as águas. Essa narrativa é interessante porque ela quebra com os mitos do antigo-oriente dos caos cíclico, como o mito babilônico que compreendia que de tempos em tempos a história se repetia, se iniciando após um caos diluviano e perecendo também pelo dilúvio, repetindo esse processo infinitamente. A fé do Antigo Testamento destrói com a percepção cíclica da história, estabelecendo no seu lugar uma visão progressiva de história. Para a fé cristã o dilúvio é uma etapa da história após o qual seguirá o seu curso, sendo consumada com a segunda vinda de Jesus, sem que esse processo seja repedido, ou seja, a história não se repete, mas avança para um fim. A mesma coisa com a salvação: a salvação não é a restauração da vida adâmica pré-lapsária (antes da queda), mas o avanço a uma realidade melhor pela recepção de um corpo espiritual.

Após isso a família de Noé saiu da arca, e Noé, como agricultor, plantou uma vinha e bebeu do seu fruto. Embriagado deitou nu na sua tenda e Cam, seu filho mais novo, relatou aos seus irmãos, Sem e Jafé, os quais entraram de costas com uma capa e a deitaram sobre seu pai. Noé ardendo em fúria amaldiçoou Cam, que foi pai de Canaã, a terra que seria conquistada pelos descendentes de Sem, ou seja, os filhos de Israel. Nesse ponto a história das bênçãos e maldições, ou seja, a de que Cam seria servo tanto de Sem e Jafé nos parece dar uma explicação da história. Mas seria muito reducionista dizer que Israel destruiu Canaã em suas incursões de conquista apenas por causa da maldição de Noé sobre seu filho, pois mesmo que Cam fosse desonroso com seu pai, a terra de Canaã, com a sua multidão de injustiça, foi responsável pela sua queda. A maldição de Noé sobre Cam é apenas uma síntese simbólica da maldição que o povo de Canaã trouxe sobre si mediante a sua rebelião contra Deus, pois como Cam se rebelou contra o seu pai, assim Canaã se revoltou contra Deus, trazendo o mal sobre si.

A Natureza da Regeneração

    A palavra regeneração é profundamente importante para a vida cristã, embora ela pareça possuir inúmeros significados na Escritura. Por regeneração podemos entender, segundo a escritura, três coisas: 1) A ressurreição após o retorno de Cristo, como está em Mt 19.28, onde Jesus disse que aqueles que o seguirem, i.e, os apóstolos, na regeneração, se assentarão em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel; 2) A santificação, como em Tt 3.5, onde o apóstolo diz: Não pelas obras de justiça que houvéssemos feito, mas segundo a sua misericórdia, nos salvou pela lavagem da regeneração e da renovação do Espírito Santo, pois fica evidente que a noção de renovação está atrelada a um poder transformador na concessão efetiva de uma nova vida; 3) Ou pode ser entendido como justificação, como em Ef 2.1-10, onde é dito que Deus nos deu vida estando mortos em delitos e pecados – nesse sentido fé é pura receptividade da graça.

    Mas também entendemos, por uma lógica demandada pela ordem dos fatos, que certa graça vem antes, sendo a regeneração um dom divino que nos alcança, transformando-nos. Mas veja bem: fora a ressurreição, os dois significados de regeneração, principalmente o último, não comportam a noção de perfeição absoluta da vida. Por justificação entendemos uma mudança de relação de Deus conosco, não uma mudança da nossa natureza. Assim, Deus nos trata como justos por causa de Cristo, não pela nossa perfeição pessoal. Fato é que Paulo, se dirigindo à comunidade de Colossos, em Cl 3.5ss, ainda exorta aos cristãos que mortifiquem os resquícios viciados da velha natureza. Ora, uma natureza que precisa modificar velhos vícios, resquícios de pecados, ainda não é uma natureza perfeita, conformada absolutamente com a justiça divina. Aqui somos considerados filhos não porque fomos transformados em justos, mas sim para que venhamos a ser justos.

Assim, a natureza da regeneração não nos informa, sob nenhuma hipótese, algo como a presença de uma natureza humana transformada tão radicalmente a ponto de termos alcançado a dignidade intrínseca na qual somos vistos perfeitos por sermos perfeitos. Antes somos vistos como filhos por sermos visualizados em Cristo, pois pelos seus méritos somos dignificados como filhos de Deus, nos assentando juntamente com Cristo nos lugares celestiais, ou seja, como aqueles que foram reconciliados com Deus. A partir desse ponto caminhamos em direção à perfeição no segundo sentido da palavra regeneração, pois é na santificação que vamos mortificando a velha natureza. Aqui nós entramos no campo daquilo que foi chamado tradicionalmente de luta contra o pecado, ou conformação com a morte de Cristo (Fp 3.10), na própria área do discipulado, que é o sinal vivo e verdadeiro da recepção da fé que atua pelo amor (Gl 5.6), já que onde houve regeneração e justificação, necessariamente há discipulado e santificação.

O Velho Mundo e o Novo Mundo

     O Velho Mundo e o Novo Mundo são duas grandezas bíblicas que indicam para nós dois modos de ser, duas realidades que guardam em comum o fato de serem ambas possibilidades – e mesmo realidades – para nós, e separadas por indicarem elementos irreconciliáveis entre si. Como vimos na devocional anterior, Noé é o ponto de transição do velho para o novo mundo, é alguém que está no novo mundo ao mesmo tempo como continuidade e novidade em relação ao velho. Noé habitava um velho mundo marcado pela maldade, corrupção e pela rebelião contra Deus, ao mesmo tempo em que estando lá era um sinal da novidade porvir inaugurada após o justo juízo de Deus. Podemos significar o mundo velho pela rebelião o novo mundo pela amizade com Deus. Jesus disse no Evangelho de João: Em verdade, em verdade vos asseguro: quem ouve a minha Palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna, não entra em juízo, mas passou da morte para a vida (Jo 5.24).

É justamente aqui que temos o sentido e a realidade máxima do batismo, o qual tem no dilúvio a sua imagem (1Pe 3.21), pois nele temos a figura do sepultamento do velho homem no imergir nas águas, e a ressurreição do novo homem no emergir das águas (Cl 2.12). Mas Noé era a figura dessa divisa, a sombra, sendo a realidade Cristo, pois nele temos a promessa de um novo ainda mais radical, e assim mesmo o sepultamento ainda mais radical do velho mundo que subsistiu em Noé. Não nos enganemos: se a catástrofe cósmica que pôs um fim ao velho mundo em Noé se deu poderosamente, ela ainda não foi capaz de pôr um fim ao pecado do homem, pois Deus disso é testemunha no que disse após o sacrifício de Noé: Não tornarei a ferir a terra por causa do homem, pois é má a imaginação do seu coração desde a sua meninice (Gn 8.21b), se referindo à humanidade na qual Noé está incluso.
Da mesa forma é o nosso batismo: mesmo que tenhamos rompido e realizado um juízo sob o nosso velho mundo o deixado para trás mediante a fé – como foi Noé que pela fé condenou o velho mundo (Hb 11.7) –, ainda há em nós certos resquícios do pecado que ainda vivem em nós e contra os quais ainda devemos lutar – tal como Noé que foi contado com aqueles cuja imaginação e as pulsões do coração não são perfeitas. Mas tanto o batismo como o dilúvio apontam para uma realidade maior, para vinda de Cristo na consumação dos séculos. Pela fé hoje já tornamos presente, parcialmente, aquilo que se dará no fim de todas as coisas, e aguardamos, na fé, a manifestação da justiça salvadora de Deus, lá onde o novo mundo da amizade com o Senhor se sagrará vencedor contra o velho mundo da rebelião contra Deus, findando assim com o poder do pecado e da morte em nós mesmos, inaugurado o novo mundo da justiça e da alegria na terra que não será mais amaldiçoada pelo pecado humano.

O Justo Diante de Deus

    Nos dias anteriores ao Dilúvio a escritura relata a escalada alucinante da corrupção humana. O clímax dessa corrupção é narrado em Gn 6.1,2, e ali se diz que os filhos de Deus coabitaram com as filhas dos homens, nascendo assim heróis. Dificilmente é possível defender que se trata da mistura da linhagem espiritual de Sete e a linhagem “mundana” de Caim, mas sim que os anjos coabitaram com as mulheres porque eles as consideraram belas. Uma tradição judaica afirma que esse período é ta terrível porque a união entre as mulheres e anjos nada mais era do que um efeito da prática de magia e feitiçaria. Assim a corrupção chegou à esfera do espírito de uma forma insuportável para Deus, pois dessa união nasceram os poderosos do mundo (possivelmente corruptores, homens só de guerra etc.), e isso para o desgosto de Deus que reduziu a vitalidade do homem em função dessa escalada da maldade dizendo que os anos do homem passariam a ser 120 anos, prometendo apagar a vida na terra.

    No contexto do alastramento da perversidade, Noé é descrito como um homem que achou graça (misericórdia) aos olhos de Deus, assim como era um homem justo e íntegro. O nome Noé vem de נֹחַ (nōah), ou Nôa, cujo significado é tanto descanso ou repouso – como indica a profecia de Lameque, seu pai, que disse que em Noé haveria descanso para os trabalhos e fadigas causadas pela maldição da terra -, como também permanecer ou continuar – o que é sugestivo pois é de Noé de onde flui a raça humana que foi destruída no período do Dilúvio, podendo com justiça concluirmos que ele cumpre um papel semelhante a Adão, fazendo dele o cabeça do novo mundo. Em Noé, dado tudo isso, temos como que uma figura de Cristo, pois ao ser um pregador da justiça Noé desempenha uma função salvadora, construindo uma arca – como figura da Igreja –, onde ele livra a humanidade e também a criação como obra de Deus do juízo do próprio Deus.

    Assim como seu antecessor Enoque, Noé ouvia a Deus, e andava com Deus (Gn 6.9b) e seu ouvir e andar não foram inócuos. Como Enoque, que foi obra da graça, também Noé o foi, pois achou misericórdia aos olhos do Senhor (Gn 6.8). Assim, Noé não achou misericórdia por ser justo, mas porque achou misericórdia Noé era justo, caso contrário dizer que Noé achou misericórdia e graça nem mesmo fará sentido. O apóstolo Paulo afirma de Deus: terei misericórdia de quem me aprouver ter misericórdia (Rm 9.15). É importante percebermos isso para nunca partirmos da compreensão de que foi o ato pessoal de Noé que atraiu a graça de Deus; Deus não é causado pela justiça do homem, mas é quem causa toda justiça no homem. Então sendo um ouvinte agraciado por Deus, pregador da justiça divina, homem espiritual, Noé foi o salvador do mundo antigo, livrando a ele e mais sete pessoas do juízo, e parte da criação. Noé é o sinal do Evangelho, é o homem do dilúvio como sinal do batismo, pois no batismo morremos para a maldade do velho mundo e ressuscitamos para a justiça Deus.

Aquele que já não Era

    O tronco genealógico de Noé contém certas características dignas de nota. Enoque, o sétimo depois de Adão pelo tronco de Sete, é, sem dúvidas, seu membro mais ilustre, ou um dos três mais ilustres ao lado do próprio Noé e Adão. Seu nome, חֲנוֺךְ (hanôq), significa iniciado, ou até mesmo preparado no sentido de consagrado. Todos esses significados para seu nome são pertinentes, e o mais importante é que eles iluminam o que sobre Enoque é dito em Gn 5.21-24. Como já foi dito em outro lugar nessa devocional, a linhagem de Sete (o terceiro filho de Adão) se distingue da linhagem de Caim por certo fator decisivo, pois, ao contrário da linhagem de Caim, a linhagem de Sete não desenvolveu técnicas como a pecuária desenvolvida por Jabal (Gn 4.20), ou mesmo a música por Jubal (Gn 4.21), ou a metalurgia desenvolvida por Tubalcaim (Gn 4.22a), antes, suas contribuições parecem caminhar na direção do desenvolvimento da espiritualidade, e Enoque ou Noé parecem ser disso o maior exemplo.

    O relato de Gênesis 5.21-24 nos traz algumas poucas informações sobre Enoque, mas mesmo poucas elas são suficientes para percebermos o tamanho da sua grandeza, fazendo dele um dos maiores personagens de destaque da Escritura. E aquilo que confirma a grandeza do pré-diluviano são dois testemunhos: 1) Que Enoque andou com Deus e já não era; 2) Que Deus o tomou para si. Podemos listar ao longo da Escritura três personagens com os quais isso (o arrebatamento) certamente ocorreu, que são Enoque, Elias e Jesus, e um que possivelmente ocorreu, ou seja, Moisés. Na LXX (texto grego do Antigo Testamento) a palavra usada para dizer que Enoque já não era é ουχ ηυρισκετο, que quer dizer não foi achado, e na bíblia hebraica o termo usado é אֵינֶ֕נּוּ, que quer dizer algo como ele era nada. A última forma de expressar o arrebatamento de Enoque é a mais forte das duas, e podemos entender que Enoque só era nada, ou que ele desapareceu, porque Deus era o todo dele, e isso como consequência direta do fato de que andou com Deus.
    No Novo Testamento Enoque é citado no livro de Judas (Jd 1.14,15), o penúltimo da bíblia, onde uma profecia, a da Vinda do Senhor com os seus santos e o juízo, é creditada a ele. O que alguns não sabem é que essa profecia é retirada do apócrifo Livro de Enoque, um livro imenso que relata várias profecias, assim como conversas com anjos por parte do patriarca. Não se trata de um livro inspirado (não é decisivo para a fé), mas foi recepcionado parcialmente por Judas, o que mostra o apreço apostólico pelo grande patriarca. Mas o fato é que Enoque foi tomado por Deus porque andou com Ele. Não viu a morte, como o grande profeta Elias. Assim Enoque é visualizado como uma grande obra da graça, um padrão de espiritualidade que carrega em si uma grande promessa, que é a de se andarmos com Deus, Deus tudo será e nós e não seremos colhidos pela morte ou pelo mundo.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

As Dores Infernais de Cristo e a Refutação de Arianismo e Nestorianismo na Teologia da Expiação Luterana e Reformada

    Uma das mentiras influentes contra a teologia da substituição penal é que se levada às últimas consequências ela implicaria em arianismo ou nestorianismo. Volta e meia essa mentira, como um cadáver que ainda anda, volta a circular. Turretini, já no século XVII, havia dado resposta a esse tipo de acusação, falando da natureza do abandono de Cristo na cruz, abandono que mesmo que afirmado na Escritura os detratores dessa teologia insistem em negar:

"Ora, este abandono não deve ser concebido como absoluto, total e eterno (tal como é sentido somente pelos demônios e pelos réprobos), mas temporal e relativo; não com respeito à união da natureza (a qual o Filho de Deus uma vez assumiu, e a qual ele nunca desfez); ou da união de graça e santidade, porque ele foi sempre inculpável (akakos) e puro (amiantos), dotado de imaculada santidade; ou de comunhão e proteção, porque Deus estava sempre à sua direita (SI 110.5), nem nunca ficou sozinho (Jo 16.32)1.

    Todas os destaques do texto acima negam coisas importantes a serem pontuadas aqui: 1) Em relação ao destaque que diz "este abandono não deve ser concebido como absoluto, total e eterno", devemos entender que a natureza intacta de Cristo para Turretini reduz a zero a possibilidade de ele ser destruído pela pena a ele infligida, o levando ao desespero de salvação. Assim, não existe possibilidade de arianismo ou nestorianismo porque a pena é relativa à natureza humana, não à natureza divina, que embora sejam hipostaticamente unidas, podem ser concebidas em suas propriedade próprias, já que uma pena "temporal e relativa" não afeta a eternidade da natureza divina, tal como a fome diz respeito apenas à natureza humana.

    Então podemos também afirma que: 2) Em relação ao destaque que diz: "não com respeito à união da natureza", não há possibilidade de nestorianismo. A pena aplicada a Cristo - assim entendem os teólogos reformados -, não implica na diluição da união entre as naturezas humana e divina em Cristo, a qual, como confessa a fé cristã, uma vez consumada permanecerá assim para toda eternidade. E tendo em vista, como dissemos, que a pena é, em sua constituição temporal e relativa, diz respeito à natureza humana, e não na dissociação de naturezas.

    Também podemos afirmar que: 3) Em relação ao destaque que diz: "ou da união de graça e santidade", Turretini assevera em Cristo a ausência completa daquela maldade característa da perda da graça, ou do bem devido. Assim a pena que Jesus padece não é semelhante, nesse sentido, à pena dos condenados, pois essa pertence àquele que realiza o ato mal, ato que não pode ser localizado em Cristo. E mesmo que Turretini assevere uma privação (privatio), não se trata de uma privação cuja "presença" torça a justiça e a santidade de Cristo.

    Também podemos afirmar que: 4) Em relação ao destaque que diz: "nem nunca ficou sozinho", isso diz respeito à unidade fundamental que subjaz a consubstancialidade eterna entre o Pai e o Filho. Como a natureza de Cristo contém unidas em si a natureza divina e humana de forma substancial, tal separação ontológica é impossível, pois o abandono, ainda que radical, diz respeito à perda da "afeição de vantagem", e ao "senso da ira divina", pois tal afeição de vantagem é uma graça criada na alma do justo cuja ausência não implica na destruição da ordem da alma de Cristo. Assim a pena, não é a pena própria do pecador como sofrida por ele se esse fosse submetido ao mesmo esmagamento que Cristo. É a pena do pecador que cai sobre Cristo, mas não a pena do pecador tal como ele o sofresse em sua condição própria de quem cometeu o pecado - já que a fraqueza da sua alma pecadora desabaria eternamente sob o mesmo peso.

    Assim, depois de fazer as distinções pela via negativa, explicando o que não é a recepção da pena em Cristo, Turretini se aplica a fazer as distinções pela via positiva, afirmando aquilo que é a recepção da pena em Cristo:

"Mas, no tocante à participação de alegria e felicidade, Deus, suspendendo por algum tempo a presença favorável da graça e o influxo de consolação e felicidade para que ele pudesse sofrer toda a punição a nós devida (no tocante à subtração da visão, não no tocante à dissolução da união; no tocante à ausência do senso do amor divino, interceptado pelo senso da ira divina e vingança que repousa sobre ele, não no tocante à privação ou extinção real desse amor). E, como dizem os escolásticos, no tocante à “afeição da vantagem” para que fosse destituído da inefável consolação e alegria que provêm do senso do amor paternal de Deus e da visão beatífica de seu semblante (SI 16); porém não no tocante à “afeição da justiça”, porque ele não sentia em si nada desordenado que tendesse ao desespero, impaciência ou blasfêmia contra Deus"2.

    Aqui Herman Bavink ilustra que aquilo que eu quero dizer quando afirmo que "não há uma fratura no ser de Cristo", e que por isso ele não pôde padecer a pena do pecado como sofre um condenado ou o diabo:

"Autoacusação, pesar, remorso e confissão pessoal de pecados não podem ocorrer no caso de Cristo e ele tampouco estava sujeito à morte espiritual, à inabilidade de fazer algum bem e à inclinação ao mal. Precisamente para ser capaz de levar os pecados de outros e fazer satisfação por eles, ele não podia ser um pecador. A “substituição de pessoas” que aconteceu entre Cristo e os que lhe pertencem não deve ser entendida em um sentido físico-panteísta, mas tem caráter legal: Cristo voluntariamente entrou na mesma relação com a lei e suas exigências em que estamos como resultado de nossa transgressão"3.

    Agora fazendo referência à teologia luterana, John Theodore Mueller, no "Dogmática Cristã" - que é o texto padrão para o ensino de Teologia Sistemática na formação de ministros da IELB -, afirma que a doutrina da expiação luterana confessa a imputação da culpa e da pena a Cristo, daí decorrendo o significado e o peso da pena aplicada a Cristo na Cruz. Muller também afirma a noção de "separação na Cruz", não implicando, não obstante, naquilo que pode ser chamado de "separação ontológica", mas sim no entendimento que afirma a pena sofrida cuja noção é modulada pela afirmação de que não há "desespero de salvação" em Cristo, enquadrando a teologia luterana na categoria daquelas que negam veementemente o arianismo ou o nestorianismo, tal como na teologia reformada.

    Segue o texto de Mueller:

"A agonia de Cristo de ver-se esquecido de Deus (MT 27.46), constituiu no padecimento da sua alma, da ira divina por causa dos pecados dos seres humanos, precisamente como se ele tivesse cometido as transgressões imputadas. Foi o padecimento das dores infernais (dolores infernales ), que consistem essencialmente na separação de Deus. [...]

    Com muita correção, nossos dogmáticos descrevem a agonia da desertio como sensus irae divinae propter peccata hominum imputa. É antiescriturístico atribuir desespero a Cristo (desesperatio) em sua angústia extrema, uma vez que desespero é iniquidade e, por tanto, não está em acordo com seu caráter não pecaminoso"4.

    Mueller é categórico em afirmar que Jesus sofreu em sua alma o senso da ira divina, como se ele fosse culpado pessoalmente pelos atos de transgressão contra Deus. Também há a presença da afirmação radical da separação de Deus. No entanto cabe uma modulação da noção de separação aqui, e essa modulação está em que Mueller confessa, junto com os dogmáticos, que não há desespero de salvação em Cristo. Ora, essa é a exata explicação que dá Turretini, embora o teólogo genebrino o faça de forma mais detalhada e Mueller de forma mais resumida. Em essência não há contraste nas afirmações, cabendo à explicação de Mueller o mesmo teor semântico do que vai explicado no texto de Turretini e mesmo naquilo que vai escrito no texto de Bavink aqui citado.

    E por fim, é evidente que a acusação de que a Teologia da Substituição Penal tanto nos dogmáticos representativos da escola reformada, como no dogmático da escola luterana, e com isso nas teologias representativas da fé reformada e luterana, desemboca em nestorianismo ou arianismo. Essas são especulações que repugnam a lógica teológica que extrai exatamente de uma leitura atenta as conclusões necessárias das premissas teológicas de tais escolas, tal como essas premissas foram abraçadas ao longo de mais de quatro séculos.

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[1] TURRETTINI, François Compêndio de Teologia Apologética, Vol II. Ed. Cultura Cristã, São Paulo-SP. 1ª Edição, 2011. p. 429

[2] Idem.

[3] BAVINK, Herman. Dogmática Reformada Vol. III. Editora Cultura Cristã, São Paulo-SP. 1ª Edição, 2012. p. 405

[4] MULLER, John Theodore - Dogmática Cristã. Editora Concórdia. Porto Alegre-Rs. 4ª Edição, 2004. p. 288, 289.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

O Fundador Imperial

    Conta a narrativa da Escritura que Caim foi o primeiro filho do primeiro casal (Gn 4.1). Segundo a lei mosaica ele seria o primogênito da família, o herdeiro por excelência. Mas por certo desígnio da providência divina, a eleição caiu sobre Abel – curiosa disposição divina essa que em Gênesis parece, por graça ou gracejo, preterir os filhos mais velhos nos grandes empreendimentos de redenção e eleger os mais novos (com certas exceções) – e unido isso à não sensibilidade de Caim em relação ao plano divino acabou o enchendo de ódio (4.4-6). Devemos olhar para Caim e contemplar a calamidade de uma alma quebrada. Mesmo ali em seu estado de ódio ele ouvia a voz divina: Se, todavia, procederes mal, o pecado jaz à porta; e o seu desejo será contra ti, mas te cabe domina-lo (Gn 4.7.bss) A questão é que da trágica Queda nasce o primeiro assassinato que já desponta em sua versão mais cruel, ou seja, o fratricídio (assassinato de irmãos).

Narra Gênesis que após o assassinato de Abel Caim fugiu para leste do Éden, fugindo da face do Senhor desejando a morte pelo peso de uma culpa que ele não pôde suportar, e ainda assim fundou um modelo de vida criando a primeira cidade do mundo. Sua relação com a terra, ao que parece, o obrigava a isso, diferentemente do modo peregrino de vida exigida por uma atividade pastoril incipiente. Aqui não precisamos cair na tolice de achar cidades algo essencialmente mal, mas a princípio, para o cumprimento do desígnio divino de espalhar a humanidade sobre a terra, isso parecia ser um empecilho. Se olharmos firmemente para Gn 4 em diante veremos que da descendência de Caim pareceu surgir todo tipo de técnica industrial, musical, equitativa e mesmo bélica, ao passo que a descendência de Sete, Enos, teve o feito notável de fazer com que em seus dias se começasse a invocar o nome do Senhor. Aparentemente enquanto que a descendência de Caim se aperfeiçoou na mundanidade, a descendência de Sete, da qual veio Noé, se aperfeiçoou na espiritualidade.

Como dissemos acima, em Caim e Abel se dividem dois povos, e de Caim seguiriam os descendentes espirituais feridos na consciência (Gn 3.15) que fariam do poder do mundo o fim almejado, ao passo que do legado espiritual de Abel (e não físico) seguiriam os descendentes cuja marca é a peregrinação espiritual e a busca por Deus, fim absoluto posto a todo homem neste mundo e nesta vida. E entendamos que essa leitura simbólica de Gn 4 é pertinente aos interesses do Evangelho, não para criar a ilusão de uma satanização das cidades do mundo, pois visualizamos uma cidade que desce dos céus, (Ap 21.2-4), e nem para demonizarmos as ciências, mas sim para nos atentarmos para o sentido espiritual do perigo de quem usa da pátria terrena a ponto de esquecer da pátria celeste, já que nos é ensinado a nos servirmos do mundo como se dele não usássemos (1Co 7.31), o que nos previne de fazermos do transitório o permanente e do relativo o absoluto, deformando a nossa alma e nos esquecendo de Deus.

Abel e o Sinal da Graça

    Quando afirmamos que a humanidade foi abandonada por um justo juízo ao poder das trevas, tal afirmação só pode vir acompanhada com as mais firmes e duras aspas, e isso é já claro, como dissemos mais acima na penúltima devocional, em Gn 3 onde Deus promete uma descendência humana vencedora contra a descendência, também humana, da serpente. Mas avançando para além do primeiro casal vemos já em Abel um sinal claro e concreto da esperança, além ficar evidente no mesmo Abel que a relação entre a humanidade e Deus não havia padecido ainda de uma brutal e completa ruptura, como se esperaria da exata pena merecida pela transgressão do primeiro casal. Abel assim é, mesmo que alheio à técnica da oração que haveria de ser aplicada na época Enos, o neto de Adão, a mensagem da comunicabilidade divina ao homem, comunicabilidade responsável por transmitir graça e misericórdia. Abel é um sinal da fidelidade divina presente apesar da infidelidade humana.

    Abel surge na narrativa de Gênesis como um símbolo que concentra significados importantes. Seu nome (הָבֶל = hāvel) significa vapor, sopro e como uma névoa que logo se dissipa com o calor do sol assim foi a brevidade da sua vida, ceifada em função da inveja assassina do seu irmão. Lamento semelhante é possível fazer a respeito do tempo da vida de Cristo, pois: E quem pode falar dos seus descendentes? Pois ele foi ceifado da terra dos viventes (Is 53.8b), versículo que indica a morte das possibilidades ocasionada por uma partida prematura. Abel é símbolo do bem que padece. Mas também Abel simboliza o espírito da profecia, pois levou diante do Senhor as primícias do rebanho e gordura deste, ao passo que, sendo lavrador, Caim trouxe uma oferta dos primeiros frutos da terra. Mas Abel antecipa nesse ato, ao qual Caim não foi sensível, todo sentido do sacrifício e da expiação de pecados que seriam realizados por Cristo. Também vemos aqui a separação espiritual de dois tipos de povos, o povo da terra simbolizado por Caim e o povo peregrino sinalizado por Abel.

Sobre esses dois últimos elementos há muito o que dizer, e se analisarmos bem Abel e Caim fazem o par dualista do qual seguem os dualismo entre Deus e a serpente, a morte a e vida, o Egito e Israel. Sendo constituído de povos ligados à terra, parece que a princípio a Escritura abomina aqueles que constroem impérios – como veremos mais adiante –, ao passo que elege um povo pastoril ligado à prática de peregrinação (Abraão, Isaque e Jacó), prática que é incompatível com a posse de terra. Vemos essa mentalidade ainda em Gênesis, onde os egípcios, o povo da serpente, império agrícola cujo exercício de poder foi anti-divino, abominam pastores (Gn 43.32), ou os povos peregrinos. Nesse sentido é interessante que a Escritura defina os cristãos como peregrinos e forasteiros (1Pe 2.11), povo que tem por modelo a Jesus, alguém que não tinha onde reclinar a cabeça, ao contrários dos pássaros e raposas que possuem seus ninhos e covis (Lc 9.58). A questão é que a espiritualidade do Filho de Deus evidenciada por Abel abraça a liberdade em relação ao mundo, sendo sensível à voz do Espírito; e não sendo de forma fundamental preso à terra, faz com que a sua alma se desprenda deste éon (século), pelo Espírito, em direção à eternidade.

Paraíso: Saudade ou Esperança?

    O Éden é algo que desperta nossa imaginação em função do poder que a noção do estado paradisíaco exerce sobre nós. Assim, pensamos no Éden como o espaço físico ímpar que sediou a existência do homem dotado de perfeição e de posse da justiça original que nos abandonou em função da primeira transgressão da raça. É bem claro à vista disso que não somente localizamos o Éden atrás de nós, mas também o antepomos ao nosso futuro, não tendo dele consideração apenas por aquilo que foi, mas, acima de tudo, visando seu significado, aquilo que ainda pode ser para nós, como um fim superior acima do nosso decaído estado presente. O Éden nesse sentido é também um símbolo que condensa as nossas mais altas esperanças, e exatamente por isso ele vem a ser para nós uma tela de fundo que projeta uma luz pela qual enxergamos o estado presente da nossa vida. Quando nos referimos à Queda, assinalamos, mesmo inconscientemente, uma vida superior que não é presença, mas que é saudade e ao mesmo tempo esperança.

Aparecendo na Escritura pela primeira vez em Gn 2.8, a palavra Éden provém do termo hebraico עֵדֶן (‘ēden) significa prazer ou deleite, indicando que o lugar que comportava esse estado de perfeição do homem era um lugar aprazível, agradável e prazeroso. Fica clara a noção de que o local rescendia humanidade, como uma casa agradável que ignora qualquer espécie de fratura, brutalidade, sofrimento ou dor. Assim, quanto mais vamos revirando o significado do estado paradisíaco, o Éden de Gênesis, mais vamos nos encontrando com a nossa máxima esperança, e toda a experiência atual que temos do estado da presente vida nos faz imaginar o quão poderoso é o desejo pela perfeição que não temos, algo que fica muito mais impressionante quando contemplando o próprio sofrimento pelo reflexo da perfeição, já que o sofrimento sequer faz sentido sem um desejo pela perfeição, pois toda a dor é o profundo lamento de um estado agradável que já não possuímos mais. Aquele que está doente quer de volta a saúde que possuía, qualquer triste quer uma felicidade que já não tem.

Nesse sentido, a dor nos sinaliza a ausência de algo que outrora foi presente, nos remete a uma saudade e a uma esperança, indicando que sentimos saudades de uma perfeição agora ausente. Contudo, apesar de o Éden suscitar saudade esperança, a revelação da Escritura não nos promete uma simples restauração do paraíso edênico. Não existe restauração na bíblia, pois a revelação divina não conhece uma história que se repete, mas que avança para um destino melhor, e maior, pois assim como Adão é menor do que Cristo, o Éden é menor do que Jerusalém. Não estamos voltamos simplesmente a um início bom, mas avançando para um futuro melhor. É justamente por isso que não podemos conhecer a constituição das muralhas de Jerusalém analisando nosso próprio coração, nem o coração mais íntegro, pois lá será posto aquilo que olho jamais viu, o que jamais subiu ao coração do homem (1Co 2.9), pois essa realidade só pode ser comunicada pelo Espírito, que é o Espírito da Nova Criação, o que não impede que ela seja compreensível pela nossa saudade do paraíso.

Agnus Dei: A Promessa da Esperança

  Gn 3 é uma coleção surpreendente de informações que constituem, na verdade, a ossatura de toda a mensagem divina da escritura sagrada. É impressionante como em tão pouco espaço pode haver em um só núcleo uma mensagem com potencial de desdobramento em outras mensagens tão distintas e variadas, sem, contudo, comportar qualquer contradição entre elas. De Gn 3 podemos falar toda uma vida e não esgotaremos a sua mensagem, nem mesmo será desgastada a sua verdade ao longo de toda a existência do nosso mundo como ele é hoje. Entre essas informações de Gn 3 encontramos aquela figura misteriosa, tão poderosamente carregada de promessas e esperanças, mas ao mesmo tempo reveladora a respeito do preço da redenção do homem, que é a figura das vestes dadas por Deus para cobrir Adão e Eva da nudez da qual se tornaram cientes a partir do momento em que transgrediram contra Deus.

O animal do qual proveio a pele que serviu de vestimenta a Adão e Eva não é especificado. Mas é sugestivo que as “peles” que vieram desse animal tenham servido justamente para remediar uma situação criada depois da queda. É evidentemente provável que tenha havido um sacrifício, pois o termo “pele” (עוֺר) tem relação com a pele animal, humana ou não, e a questão se torna mais interessante pois o termo עוֺר (‘or) tem relação com a “nudez”, sendo empregado nesse sentido em Hc 2.15, indicando que, como uma troca, a pele do animal foi usada para cobrir a pele dos homens. E se a morte do animal não é a informação fundamental do texto, certamente o tipo de uso que permitiu que esse animal viesse a ser útil para remediar a situação do primeiro casal não deixou de ser o sacrifício. Nesse ponto é importante atentar para o sentido da palavra expiação. No texto original essa palavra é kipper (כִּפֶּר) e significa essencialmente “cobrir”, como evidencia seu uso para sinalizar o ato de Noé de cobrir de piche a arca (Gn 6.14), embora o termo “vestir” em Gn 3.21 seja distinto de kipper.

Como foi dito acima, não é possível precisar exatamente o animal sacrificado para cobrir a nudez de Adão e Eva. Mas é certo que a associação de Cristo ao cordeiro, algo que remonta à interpretação cristã de Isaías 53.7, remonta ao animal sacrificado para expiar, i.e, cobrir o nosso pecado, trocando a sua pele, i.e., seu corpo e a sua vida, pelo nosso corpo e pela nossa vida. Assim, podemos localizar a expiação entre um dos temas de Gn 3, além do pecado, das consequências advindas do pecado e da promessa da libertação; e unindo isso à profecia messiânica da descendência que esmagará a cabeça da serpente presente também em Gn 3, é visível que o quadro da promessa da salvação vai ficando muito mais completo, pois além de prover a expiação Deus ali também promete a destruição do império das trevas ao qual o homem foi justamente abandonado. E nesse sentido temos aqui a profecia divina que prometeu ao homem transgressor a misericórdia, misericórdia alcançada e efetivada mediante o Agnus Dei, o Cordeiro de Deus que expia, cobre e retira todo o pecado do mundo.

O Devorador do Pó

  Uma das três maldições que se seguiram à transgressão de Eva, de Adão e da Serpente foi aquela na qual Deus condenou a serpente a tanto rastejar sobre o seu ventre como a comer por toda a sua vida o pó da terra. Essas figuras apresentadas em Gn 3 serviram de material especulativo para os cristãos ao longo dos séculos, e no contexto da igreja nascente, nos primeiros séculos, em que a interpretação alegórica (ou mística) dos textos sagrados era algo muito comum, muita reflexão criativa a respeito da narrativa de Gênesis ganhou espaço entre os cristãos para que, por meio de interpretação dessas figuras, ensinos morais e espirituais se tornassem padrão de orientação para os homens que buscavam uma vida ajustada à vontade de Deus, ajudando-os assim a compreender a realidade circundante na qual estavam inseridos e pela qual, de certa forma, eles estavam determinados.

Entre essas interpretações, uma muito interessante que busca colher o significado da maldição da serpente, especificamente no seu rastejar sobre o ventre e no comer o pó por todos os dias. A interpretação se funda na conhecida maldição que entende ser a soberba, o orgulho, a mãe de todos os pecados. O orgulho doentio da serpente foi o de se por a rivalizar com Deus, querendo, semelhantemente à ilusão que propôs para Eva, ser deus para si mesmo. O querer ser Deus para si mesmo a serpente fez de si mesma o centro do seu mundo. Para ilustrar essa questão, a acusação de Paulo contra os inimigos da Cruz em Fp 3.19 é que esses tem por deus o seu próprio ventre, sendo contrários à Cruz e ao amor de Cristo. Não seria esses homens aqueles que rastejam sobre o seu ventre? Não seriam esses aqueles que teriam o seu umbigo como o centro do mundo? A analogia é criativa, pois ela ilustra o fato de que rastejar sobre si, se perder sobre si mesmo, é necessariamente o destino do homem sem Deus.

Uma segunda figura da narrativa da maldição da serpente é aquela que afirma que a sua condenação seria comer o pó da terra. Irineu de Lyon, cristão do século (130-207 d.C.), foi um dos primeiros a especular sobre a inveja da serpente sobre o homem que ele disse ser cumulado de bens por Deus. Assim, nessa inveja arruinou a si mesmo ao buscar arrasar o homem feito à semelhança de Deus. Essa, podemos dizer, foi a primeira vez que a serpente comeu o pó da terra, já que o homem viera do pó, ou melhor, é pó (Gn 3.19). Assim o demônio seria condenado a buscar o pó, ou melhor, a destruição do homem por todo o tempo que vivesse, já que o homem, por uma justa ira de Deus, foi deixado ao poder do reino das trevas (Ef 2.1-10), sendo alimento da serpente, pois essa só vive para alimentar esse seu pecado. Mas a serpente foi obrigada ao ódio, já que na redenção a destruição da raça não logrou êxito, pois ao se fazer carne Cristo nos conquistou a salvação na Cruz, e ao buscar comer o pó da carne de Cristo, ela fez jus à própria condenação, ao mesmo tempo em que Deus ali nos deu a salvação.

Levante e Supressão

  A rebelião conta a ordem divina tem certas características que podemos nomear como objetivas, pois na relação entre o ato da transgressão e a consequência, as duas estão unidas de forma tão fundamental que não podemos diferenciar ato e o castigo. Aqui é importante perceber que a revolta contra a ordem divina jamais é inócua, pois ela só pode ter uma consequência certa para todo aquele que se coloca nesse tipo de caminho ou de disposição do coração. Assim, se voltarmos nossos olhos para a narrativa de Gênesis 3 algumas coisas interessantes começam a saltar aos nossos olhos, e entre elas é visível que, mesmo antes do juízo divino proferido por Deus, certas consequências provenientes desse levante se fazem já no ato da revolta, entre elas a degradação da natureza do primeiro casal, já que após o ato o casal já trazia certo terror contra a presença divina sem que qualquer castigo tivesse sido infligido por Deus.

João Crisóstomo (347-407 d.C.), cristão que alçou o bispado de Constantinopla, em sua carta nº 14 a Olímpia – que se tornaria uma mártir mais tarde –, apresenta uma percepção importante a respeito da natureza tanto da virtude, como do pecado no quadro dessa relação objetiva que descrevemos acima. Estas são suas palavras: Assim a maldade, assim a virtude: uma [a maldade], ao atacar, destrói-se a si mesma; a outra [a virtude], combatida, brilha com maior fulgor. E esta recebe os prêmios não apenas depois dos combates, mas até no meio deles, e a peleja é para ela um galardão. A outra [a maldade], ao alcançar a vitória, sente maior vergonha, é punida, saciada de imenso desprezo, e com o castigo que lhe é reservado, é fustigada na própria ação e não apenas depois dela. Aqui João Crisóstomo caracteriza a revolta como suprimida no seu próprio ato, pois ao ser realizado o ato mal o próprio ato traz consigo de imediato a destruição de quem atua mal - atuar defectivamente é já a pena de quem assim atua.

É da nossa experiência comum a ressaca moral que se segue ao ato pecaminoso, pois o homem não foi feito para ele; é contra a nossa natureza em tudo, e Gn 3 tem a grandeza ímpar de trazer à luz esse mal-estar não como um juízo que é proferido por Deus após o ato pecaminoso, mas sim como algo junto a ele. Em Rm 1.24 nos é dito que o juízo para o homem pecador é um abandono do homem a si mesmo, à destruição que ele colhe ao seguir sua própria maldade. Entre os efeitos desse abandono Paulo nomeia o obscurecimento do entendimento (Rm 1.21, 28), pois os homens se animalizaram, entregando seus corpos à desonra entre si e se deixando levar por toda espécie de injustiça (Rm 1.26-32). Aqui temos uma flagrante contrariedade contra o plano divino de fazer o homem à sua imagem, e podemos concluir que o juízo do homem mal, entre os piores, é ele carregar as consequências imediatas do ato de revolta contra Deus, que é apagar em si a imagem divina à qual foi criado. É por isso que sua redenção é o ser renovado segundo a imagem daquele que nos criou (Cl 3.5-11).

A Fuga da Presença

    A realidade do homem pré-lapsário (do homem anterior à queda – laspso = queda) foge em muita da nossa compreensão porque ela não nos é comum. Somos homens cuja natureza, em função do pecado dos primeiros pais, está maculada pelo pecado. Mas a escritura nos fornece alguns dados a respeito disso, entre eles se diz que o homem gozava da comunhão plena com Deus, assim como o casal estava nu e disso não se envergonhava (Gn 2.25). É interessante ver as coisas desse ângulo, pois o pudor é um dos dados humanos mais comuns, sendo uma reação natural contra certa possibilidade de invasão da nossa intimidade, invasão essa que uma vez consumada nos tornaria menores. Daí o sentimento de vergonha nos ser tão comum, incluindo aí aquilo que no que diz respeito à nudez, pois ao nos cobrirmos fugimos daquela vulgarização que se constitui em uma poluição moral contra o que somos.

Nesse sentido, é possível entender o porquê de reagirmos com estranheza ao fato do primeiro casal estar nu e não se envergonhar. Essa não é a nossa experiência, e está longe de ser facilmente compreensível. Mas um dado pode nos tornar compreensível essa disposição do primeiro casal. O estado de justiça original de Adão e Eva implica necessariamente na inocência inerente. Ao que nos consta, eles nem possuíam consciência de estarem nus (Gn 3.7). Uma interpretação comum é de que eles eram transparentes uns para os outros. Contudo isso não facilita de todo a compreensão. O fato é que isso deve ser compreendido dentro do contexto de Gn 3, onde a vergonha vem na esteira do pecado. Assim, a árvore, como sendo árvore da ciência do bem e do mal nos informa que não havia no primeiro casal um conhecimento da malignidade. Vindo a comer o fruto eles conheceram o mal, mas não o mal em qualquer coisa, fora deles, mas sim o mal em neles mesmos.

A primeira disposição mental do casal que se reconheceu nu foi costurar uma roupa de folhas de figueira (Gn 3.7), assim, eles buscaram fugir deles mesmos – pois não suportaram se enxergar depois que cometeram o mal juntos -, e após isso se segue a vontade de fugir da presença do Senhor. A fuga da presença é uma fuga envergonhada, já que o homem no ato pecaminoso contraiu um mal que não pode lançar para longe de si. E não podendo ocultar o seu próprio pecado, agora eles ocultam a si mesmos. É certo que da santidade do Senhor todo mal se envergonha, não podendo se sustentar. Assim também, agora os homens fogem da malignidade dos olhos alheios. E nesse sentido temos duas disposições: 1) a de fugirmos dos olhos invasivos e maus; 2) e a de fugirmos dos olhos justos e bons que podem ver a maldade em nós. Essa parece ser as consequências da entrada do mal no mundo, assim como ter os olhos abertos para conhecermos tanto o bem quanto o mal.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Olavo de Carvalho

    Comecei a acompanhar o trabalho do Olavo de Carvalho em 2013, mas em 2012 ou 2011 eu já havia ouvido falar dele através de um primo meu que começou a acompanha-lo por meio das publicações do Mídia Sem Máscara. E posso dizer que esse encontro com o Olavo, como para muitos, a início, foi acompanhado por certo deslumbramento. Me lembro até hoje de ter lido alguns vários artigos em sua página, como "A Contemplação Amorosa", excertos do "A Nova Era e a Revolução Cultural", e também de ter lido "O Mínimo" em 2013 em menos de uma semana.

    Não cheguei sem bibliografia no trabalho do Olavo, mas, já à época, em função da minha formação em teologia, tinha várias questões a respeito da objetividade do conhecimento que encontraram ressonância com as preocupações do Olavo. É realmente verdade que o Olavo encontrou essa ressonância não apenas em mim, mas em função de um vácuo de pensamento deixado por certa hegemonia acadêmica no Brasil onde prosperavam Foucaut, Freud, Nietzeche, Sartre etc., em inúmeras outras pessoas. Certamente que dele se seguiu um interesse renovado naquela linha de reflexão filosófica que pode ser considerada realmente descendente de Platão e Aristóteles. Esse vácuo foi preenchido poderosamente por ele, e como questões desse tipo vem invariavelmente carregadas de um peso existencial, a grande massa de respostas dadas pelo Olavo a essas perguntas deixadas em aberto pelo tipo de pensamento esterilizante presente na academia fez com que o Olavo fosse recebido como uma alegre notícia, assim como abraçado com certa feição filial por muita gente que passou até mesmo a seguir seus trejeitos na escrita e na fala - o que às vezes era algo até estranho de ver.

    O Olavo foi responsável pela maior divulgação bibliográfica dos últimos anos no Brasil. Tanto editoras como grupos de estudos relevantes foram criados as por influência dele, e muito desse movimento cultural atual que ganhou força nos últimos anos, que conta em suas fileiras com a presença de jovens e adultos, é fruto de seu trabalho. Scruton, Kirk, Voegelin, Lavelle, Vicente Ferreira, Mário Ferreira, Xavier Zubiri foram um dos pensadores que ele popularizou. O Olavo era assim um homem profundamente lido, dono de um estilo de escrita formidável, e esse dom poderoso fica mais claro ainda por ele ter sido um escritor de sucesso, lido em meio a um país que não lê. Mas é certo que ele tinha também um domínio razoável de oratória, sendo bem mais conhecido por vídeos e também por pequenas postagens de facebook - coisa da qual ele reclamava por saber que em postagens de facebook sempre se escreve de forma superficial.

    Mas aqui entra um ponto importante que tem a ver com certo fascínio que ele exercia com seu comportamento iconoclasta, em sua oposição a tudo, e aqui neste ponto se insere algo que já vinha se desenhando de forma mais ou menos clara para alguns. Como muitos outros pensadores, o Olavo de Carvalho padecia de certa ambiguidade; e essa grandeza, não raro, adquiria certa face demônica (para emprestar um termo de Tillich) naquilo que ele falava ou escrevia. Certa forma de trato que ele dispensava a desafetos seus era algo dotado de certa crueldade, e as coisas incríveis - e impronunciáveis - que ele disse a respeito de sua filha (para me servir apenas de um exemplo) já deixava claro que ali alguma coisa não andava muito bem. Também certas dissonâncias em sua visão política já podiam ser vistas, quando condenava o autoritarismo e a violência de certos movimentos ao mesmo tempo que, em um giro brutal, os abraçava "pragmaticamente", ainda que não nos movimentos que condenava. Muito da obra que ajudou divulgar, e mesmo muito daquilo que escreveu, pôde mais tarde ser usado contra o que ele viria a defender quando acabou se entrincheirando em um certo movimento político. Se por um lado tudo o que publicou sobre o conservadorismo foi importante - e mesmo culturalmente determinante -, um leitor atento saberia detectar uma evidente dissonância entre muitos posicionamentos seus e os posicionamentos de autores que ele divulgou.

    É visível que muito dessa grande influência até paternal que ele exerceu sobre muitos, estabelecendo uma ligação existencial com seus seguidores, revelaria ser potencialmente danosa, pois é impossível que sob a sombra de uma influência desse peso os mais influenciados não pudessem segui-lo com adesão incondicional, mesmo em seus rompantes brutais. Em momentos assim a adesão existencial não abre espaço para o trabalho mais criterioso da razão, pois essa adesão é coisa do coração cujas razões até a própria razão desconhece. A questão é que ninguém poderia ter exercido tal façanha se não fosse dotado de uma grandeza. O feito do Olavo não é coisa de gente medíocre.

    Em idos de 2015, esse aspecto demônico do Olavo já era muito claro, quando sua influência se alastrou grandemente no meio político. Em meio ao seu crescimento certo descarrilamento já era notório, principalmente porque já se desenhava aquele horizonte de ideias desembocariam em movimentos disruptivos - e a história recente só mostra o quanto isso é verdade. Foi nesse tempo também que uma oposição à teologia e igrejas protestantes começou sua escalada formidável - mesmo que isso já fosse visível no "O Jardim das Aflições", e em função do seu próprio catolicismo romano, e em muitos posicionamentos seus no True Outspeak. De lá para cá coisas incríveis foram ditas por ele, e mesmo agora, dia 26/01/22, você pode ver o efeito disso tudo no site que ele criou, o Mídia Sem Máscara, onde há um artigo escrito não por ele cujo título traz termos como "Fraudemia", querendo indicar que uma "pandemia fake" já era uma possibilidade previstas por Machado de Assis na obra "O Alienista". Coisas assim contrastam de forma grandiloquente com a noção de conhecimento objetivo pela qual o Olavo tanto lutou e escreveu, e também sinalizam o fato de que o domínio da arte da bela escrita, e mesmo a erudição e o domínio do patrimônio cultural podem ser colocados a serviço do grotesco.

    Então duas coisas para concluir: a grandeza do Olavo de Carvalho como alguém que despertou a curiosidade e sede de estudos de muitos é algo que, a bem da verdade, não pode ser escamoteada. Talvez colocar em circulação ideias no campo da filosofia, economia e da política que antes eram desconhecidas, e junto a isso provocar uma sede de estudos dessas ideias, coisas das quais eu, em certo sentido, fui beneficiado, seja a maior obra dele. Mas sua grandeza também não pode escamotear certa feição demoníaca sua no uso de seu poder para torcer certas consciências até à doença e sua sede de que seus seguidores seguissem com fidelidade incondicional suas ideias. Em certo sentido é irônico que a acusação de E. Voegelin contra Hegel, ou seja, de que Hegel era um filósofo grandioso que padeceu de certa fratura demoníaca em sua personalidade não deixa de ser algo apropriado, ao seu modo, ao Olavo.

    Sim o Olavo de Carvalho foi grande, e foi grande a ponto de em certos momentos decisivos ser esmagado pela própria grandeza. E o fato de sua morte se dar oito dias depois de ser diagnosticado com Covid-19 ilustra não uma ironia da história, mas possivelmente uma mensagem a respeito do momento final da sua história.

Que em Sua piedade o Senhor o tenha em Seus braços.

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Imperialismo Acadêmico e Linguagem Neutra

    Ninguém deve aceitar qualquer imperialismo linguístico de gente que quer desmontar a língua que sempre aprendemos por certo capricho. A questão da imposição acadêmica da linguem neutra é absurdo enlouquecedor de quem acha que pode desmontar e remontar o patrimônio cultural à luz de um novo mundo que achou ontem lá no olho da rua - ainda que digam fazer isso montados em uma pesquisa de cunho sócio-político.

A classe acadêmica na área das ciências humanas não raro é um negócio formado por gente abstratista, sem contato com o mundo, e que fica enlouquecida achando que a realidade se traduz naquilo que ela encontra em periódicos ilegíveis para gente que vive seu dia a dia, e que é alvo, sem saber, da sanha insaciável dessa gente.

A ideia de que essa gente pode manipular a língua segundo uma visão particular de mundo é o resultado de um delírio de grandeza, de uma visão atrofiada da sua missão a níveis tão bsurdos, tão boçais e constrangedores que parece que eles não fazem ideia do quão invasiva, autoritária e apelativa é esse tipo empreita que nada mais é do que uma forma de buscar operar uma mudança no espírito das pessoas através da mutação das palavras.

Outra questão importante é a atitude um tanto quanto monstruosa de manipular um patrimônio cultural que não está à mão, que não é resultado de uma engenhoca, mas sim da cooperação humana daqueles que existem e existiram. Isso nada mais é do que um empreendimento boçal que se julga superior a tudo o que foi pensado em uma língua, ou seja, trata-se de um dos empreendimentos mais autoritários que se pode empreender contra o espírito humano - nem a união soviética foi tão longe.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

O Constitutivo do Mal

    Na devocional passada tocamos em um aspecto importante sobre o quid (quê), a razão da tentação em relação a nós. Ali vimos que a tentação estava no fato de o homem querer ser deus para si. Essa pergunta também nos leva a outra, que é: O que é o mal? Essa pergunta não tem a intenção de explorar qualquer forma de mal, como seria a perda da forma de uma coisa qualquer, o que a conduziria à destruição – ex.: uma fruta que perde a sua forma e qualidade, vindo ao apodrecimento, é destruída nessa perda de sua forma original. O mal que nos importa é aquele ligado àquilo que diz respeito àquilo que chamamos de mal moral. Não se trata apenas de um mal com aspecto negativo, como a perda da forma das coisas – no nosso caso uma laceração, uma doença ou a morte -, mas também como um aspecto positivo no sentido de uma transgressão frontal contra Deus.

Nesse sentido a Queda é causada por essa transgressão frontal em seu aspecto positivo, o que acarretou na perda do bem sobrenatural, da justiça e integridade, além da perda da imoralidade – o que configura o aspecto negativo dessa perda. Agostinho de Hipona foi um dos cristãos que primeiramente se debruçou de forma profunda sobre onde estaria a causa da Queda. No livro A Cidade de Deus ele propõe um dilema interessante, fazendo a pergunta se foi o ato de comer o fruto proibido ou se foi a intenção anterior ao ato o que constituiu a razão da Queda. Certamente que segundo o Sermão da Montanha um simples olhar com intenção impura uma mulher é comparado ao próprio adultério (Mt 5.28), assim a intenção impura já é uma forma de degradação corruptora, pois do coração procedem as fontes da vida (Pv 4.23), ou seja, se a fonte é má os atos também serão.

A intenção corruptora está no seu desejo de fazer o mal. Assim, aquilo que para nós constitui o mal pode estar bem antes do ato, se tratando de um desejo desafiador contra a ordem divina que não precisa ser visível no ato mal para ser constituído como mal em si mesmo. A justiça divina é maior e mais abrangente do que aquilo que chamamos de justiça civil, pois a justiça civil não computa como crime o mal simplesmente intencionado, visto que um tribunal humano não tem capacidade ou competência para avaliar e pesar os corações. Deus, contudo, esquadrinha o nosso interior e conhece a pureza e a impureza do nosso coração (Gn 8.21), e assim sendo ela não está alheia ao julgamento divino. Portanto o que constitui o mal já está em semente no desvio do coração em relação à vontade de Deus, e podemos concluir daí que o desejo maligno de Eva de desejar o fruto já é condenável antes do comer o próprio fruto, pois o desejo impuro é desvio e fonte da poluição humana que o inabilita à sua salvação.

Sendo assim, confiemos na graça salvadora de Deus que nos fornece uma esperança por causa de Cristo, pois é de Cristo que vem a nossa justiça e não de nós mesmos.

A Queda e a Tentação

    O tema da Queda (Gn 3 é um dos mais fascinantes e ao mesmo tempo constrangedores temas que permeiam a Escritura sagrada. Seu fascínio que exerce sobre nós está no fato de que o tema da Queda oferece uma leitura profundamente atualizada daquilo que somos hoje. As reflexões de Paulo em Romanos, especificamente em Rm 7 e Rm 5.12ss, nos indicam a situação de fragmentação atual do homem, ou seja, a situação de separação entre aquilo que entendemos como sendo bom, e que fazemos pecaminosamente em função da impotência da nossa vontade, demarcando a nossa necessidade de uma redenção que não pode vir de nós mesmos. Sendo assim, Cristo é a resposta a essa situação onde o homem se encontra como que desabado sobre si mesmo. A Queda nos fornece assim uma definição de homem que ao mesmo tempo se configura como uma pergunta pela nossa redenção, sendo o Evangelho uma resposta a essa pergunta.

Mas essa realidade da Queda é a primeira constatação que fazemos a respeito de nós mesmos, e essa realidade Che a nós como um todo. Nesse estado de coisas constatamos primeiramente tudo o que está feito à nossa frente, e isso é como olharmos a cidade que nascemos sem considerar como ela chegou a ser assim. Poucas vezes essa pergunta é feita. Sabemos o que a cidade que nascemos é, mas pouca idéia fazemos do como ela chegou a ser como hoje é. Assim, o relato da Queda não se interessa apenas em constatar o que somos hoje, em nossos pecados e faltas, mas desenha também o caminho pelo qual chegamos a ser assim. Como tudo o mais na escritura, a visualização do processo conta mais do que a história em si mesma, e a narrativa da Queda nos oferece uma interpretação que constata o básico do que veio a ser a razão da condenação e miséria humana.

E sereis como Deus. Essa é a proposta inflamada da serpente a Eva. Nela há todo um mundo de significado, de forma que podemos entender o que é tão atrativo nessa tentação à Eva e a nós. A tentação nada mais significa do que a promessa de poder sem o ônus da prestação de contas. No Sl 2.3 está o grito dos ímpios: “sacudamos de nós os seu laços, lancemos de nós suas amarras”. A intenção maligna quer ser deus para si mesma; entende a vontade de Deus como laços e amarras, pois vê no amor e na vontade de Deus a limitação da sua vontade. O maligno quer tudo sem prestar contas de nada. O pecado quer independência de Deus, ficar fora do domínio de Deus porque quer o domínio para si. Mas o homem não pode viver de si mesmo, e ao tentar ser independente de Deus ele se torna escravo de todas as coisas, não tendo capacidade de realizar a própria redenção. E aquele que começa soberbamente ansiando ser deus para si só pode terminar gritando miserável homem que sou“ (Rm 7.24).

Jardineiros do Mundo

    Na igreja é comum a velha compreensão de que a escritura seria o manual da vida cristã. Ela, de fato, traz informações que esclarecem a relação do homem e do mundo com Deus, assim como a relação entre uma pessoa e outra (ou o seu próximo) a partir do ponto de vista da razão e da revelação. Mas essa não é a única esfera de compreensão em que a nossa vida se move segundo a Escritura. Ao lado dessa, mas não menos importante, está também a esfera das relações entre o homem e o mundo, tendo Deus por mediador. A primeira compreensão explícita dessa relação entre o homem o mundo está já em Gn 2.15 onde se afirma que Deus colocou o homem no jardim para lavrá-lo e cultivá-lo. Também em Gn 2.19-20 se diz que Deus conduziu todos os animais do campo e dos céus para que o homem os nomeassem.

    Quando nos a bíblia nomeia o jardim e os animais já está composto um todo dos incluídos dentro de uma esfera de domínio do homem. Quando falamos de domínio não queremos trazer com isso a ideia de abuso, mas sim de governo, ideia que inclui aí a responsabilidade do homem no âmbito da criação. Aqui podemos nos servir de uma designação de um filósofo francês chamado Henri Bergson que definiu o homem no âmbito de sua atividade como co-criador com Deus. A definição pode ser ambígua, e até a erros se mal compreendida, mas podemos nos servir dela para iluminar um campo de atividade que não pode ser entendido a não ser como a atividade de aperfeiçoamento do mundo da qual apenas o homem é capaz. Assim, podemos contar entre as finalidades do homem o levar à perfeição a obra da criação, e isso fazemos através do aperfeiçoamento tecnológico, das construções de cidades, cultivo racional do campo etc.

Contudo não podemos perder de vista que o homem, como tal, é o homem caído. Sendo assim, podemos ver que a Queda é uma realidade que tira do homem do seu fim, invertendo o seu fim, para sermos mais claros e francos quanto à questão. Com isso em mente podemos chegar à conclusão, seja por fatos ou por pela análise das consequências da Queda que de co-criador o homem pode vir a ser o destruidor da criação. Sabemos que a Queda tem consequências tão profundas que a escritura afirma que o desligamento da amizade com Deus por parte do homem deformou a criação (Gn 3.18). Ao lado disso vemos a denúncia dos profetas de que ao lado da tirania dos reis habitava o costume de devastação da natureza (Is 14.8), sendo que a impiedade devastadora da natureza terá seu juízo diante de Deus, pois chegará a hora de destruir os que destroem a terra (Ap 11.18).

Que o Senhor nos permita participar da manifestação do Filhos ansiada pela natureza (Rm 8.19), ou seja, que, a começar por nós, possamos libertar a natureza do seu julgo de escravidão à qual ela ficou sujeita em virtude do pecado do homem que recebeu autoridade para sujeita-la. Pois se a qualidade daquele que tem autoridade é ruim, logo o exercício de sua autoridade também o será.

Criados à Imagem de Deus

    Karl Barth (1886-1968 d.C.), pastor e teólogo da Igreja Reformada Suíça, costumava dizer que a verdadeira imagem de Deus é aquela que podemos visualizar na pessoa, vida e obras de Jesus Cristo, aquele que ele nomeou de Homem Novo. Sua afirmação lança uma luz importante sobre a nossa compreensão de imagem de Deus, fazendo com que ela não se torne refém de certo tipo de reducionismo que é comum a uma leitura desatenta ou enviesada da escritura sagrada. Assim por imagem de Deus não queremos apontar meramente para o aspecto físico do homem, muito embora o corpo humano seja aquele preparado para a grandeza da função como imagem de Deus. Também não queremos nos ater apenas à espiritualidade do homem, ou seja, no fato de o homem ser dotado de uma parte imaterial que seria a sede da razão (o νους, tal como chama Paulo), das decisões (aquilo que também chamamos de coração) e assim das potências culturais pelas quais o homem realiza todas as suas obras no mundo, incluindo a religião, direito, ciência, coisas às quais só o homem é capaz.

    Nessa última caracterização, ou seja, aquela que aponta para a espiritualidade do homem, vários pensadores cristãos ancoraram a sua definição de imagem de Deus. Essa afirmação não está errada, pois a Escritura mesma afirma que Deus é espírito (Jo 4.24), no sentido bem específico que aponta a sua vida como dotada de vontade e razão (não necessariamente de um corpo, já que a nossa corporalidade é comum até mesmo aos animais, comunidade que não é verificável quando apontamos para a razão). Mas Barth quer dar um passo além, ressignificando à luz do evangelho a passagem de Gn 1.26, apontando para o que seria a verdadeira realização da imagem de Deus em sentido absoluto. Nesse sentido específico Cristo é aquele que, dentre todos os homens, porta com maior grau de excelência a imagem de Deus propriamente dita, pois quem o vê, vê Pai que o enviou (Jo 14.10).

    Orígenes (185-253 d.C.) em sua obra Contra Celso, escrita para refutar pesadas acusações contra os cristãos escritas pelo filósofo pagão que dá nome à obra, explicou que a pobreza artística do culto cristão – i.e., pobreza que significava um culto não dotado de imagens e outras artes – se devia, entrou outras coisas, ao fato de que as únicas imagens que Deus se agrada são aquelas delineadas pelo Logos (Jesus Cristo) na alma do homem, e que tais imagens eram as virtudes divinas em nós. Nesse mesmo sentido Karl Barth designa a imagem de Deus como Cristo, e podemos compreender isso em função da sua santidade, justiça, bondade, misericórdia, fidelidade e amor devotado a Deus e aos homens. Assim, lembremos que o homem foi criado santo, perdendo seu grau máximo de semelhança com Deus quando decidiu pecar contra Ele. E é Cristo, em sua obra de redenção, que pode recriar em nós, como o primogênito entre muitos irmãos, a imagem de Deus à qual nele fomos predestinados (Rm 8.30), pois em Jesus portaremos a sua imagem e realizaremos assim o verdadeiro propósito divino de Gn 1.26 de sermos criados à imagem e semelhança do Senhor.

O Examerão

  O termo “Examerão” vem do grego Ἑξαήμερος (Exaēmeros), palavra formada por dois outros termos, que são: ‘εξα (hexa = seis) + ημερα (ēmera = dia), se referindo aos Seis Dias da Criação (Gn 1-2). O termo também se refere ao gênero literário que diz respeito aos abundantes comentários a Gn 1-2 feitos pelos primeiros cristãos. Entre os comentários famosos da antiguidade estão o Examerão de Basílio Magno (330-379 d.C.), Ambrósio de Milão (340-397 d.C.), e o de Agostinho de Hipona (354-430 d.C.), sendo esse tipo de comentário famoso durante a Idade Média. Mas algo que podemos destacar nesses comentários, a exemplo de Ambrósio, é a tentativa de estabelecer uma compreensão bíblica e cristã a respeito da origem de todas as coisas em contraste com a visão dos filósofos pagãos.

As obras de pagãos como Platão ou Aristóteles exerciam imensa influência popular, mesmo que o povo não tivesse consciência disso. Mas essas obras tinham em comum a visão religiosa dos gregos, levando em consideração que o mundo antigo (no território do Império Romano onde floresceu primeiramente o cristianismo) foi dominado pela cultura grega. Nessas obras uma coisa estava bem estabelecida: a crença comum na eternidade do mundo. Ambrósio, logo no início do seu comentário ao Gênesis, indica que os platônicos criam em três princípios, todos eles eternos: a mantéria (‘υλη = ‘ylē), a forma (ειδος = eidos – também compreendida como idéia) = e o deus (Δημιουργος = Dēmiurgos). Assim o deus não é o Criador da bíblia, mas com base nas formas eternas age moldando a matéria, dando forma ao mundo como conhecemos – mundo que se desfará e tornará a ser moldado pelo deus. A diferença com o pensamento cristão é que para nós só Deus é eterno, sendo a forma das coisas algo que está em de Deus desde toda eternidade, assim como o princípio da matéria.

O novo do pensamento cristão é que aqui o mundo deixou de ser um deus ao lado de Deus, como de resto a divinização do mundo era a conclusão lógica do mundo pagão. Fazendo isso os cristãos libertavam o pensamento de várias superstições e erros sobre a nossa relação com o mundo, com os homens e com os poderes do mundo. Mas é interessante notar que esse pensamento antigo sobre a eternidade da matéria como certo princípio separado, ou mesmo da matéria atualizada como mundo, é algo análogo a várias teorias científicas modernas. Desta forma podemos concluir com o autor de eclesiastes que “nada há de novo debaixo do Sol” (Ecl 1.9), e que o que é já foi, e aquilo que há de ser também já foi (Ecl 3.15), e tal como os cristãos antigos hoje ainda proclamamos que só há um princípio eterno de todas as coisas, conhecimento esse que é um princípio da reta compreensão do homem tal como encontramos na nossa Escritura Sagrada.