sábado, 30 de janeiro de 2021

Kant e a Divisão da Filosofia

    A velha filosofia  grega dividia-se em três ciências: a Física, a Ética e a Lógica. Esta divisão está perfeitamente conforme com a natureza das coisas, e nada há a corrigir nela a não se apenas acrescentar o princípio que se baseia, para destes modo, por um lado, nos assegurados da sua perfeição, e, por outro, podermos determinar exactamente (sic.) as necessárias subdivisões.
    Todo conhecimento é racional: ou material e considera qualquer objeto, ou formal e ocupa-se apenas da forma do entendimento e da razão em si mesmas e das regras universais do pensar em geral, sem distinção dos objetos. A filosofia formal chama-se Lógica; a material, porém, que se ocupa de determinados e das leis a que estão submetidos, é por sua vez dupla, pois que estas leis ou são leis da natureza ou leis da liberdade. A ciência da primeira chama-se Física, a da outra é a Ética; aquela chama-se também Teoria da Natureza, esta Teoria do Costumes.
    A Lógica não pode ter parte empírica, isto é, parte em que as leis universais e necessárias do pensar assentassem em princípios tirados da experiência, pois que então não seria Lógica, isto é, um cânone para o entendimento ou para a razão que é válido para todo o pensar e que tem de ser demonstrado. Em contraposição, tanto a filosofia natural como a filosofia moral podem cada uma ter a sua parte empírica, porque aquela tem de determinar as leis da natureza como objecto (sic.) da experiência, esta porém as da vontade do homem enquanto ela é afectada (sic. et all*) pela natureza; quer dizer, as primeiras como leis segundo as quais tudo acontece, as segundas como leis segundo as quais tudo deve acontecer, mas ponderando também as condições sob as quais muitas vezes não acontece o que deveria acontecer. 
    Pode-se chamar empírica a toda filosofia que se baseia em princípios da experiência, àquela porém cujas doutrinas se apoiam em princípios apriori chama-se filosofia pura. Esta última, quando é simplesmente formal, chama-se Lógica; mas quando se limita a determinados objetos do entendimento chama-se Metafísica
    Desta maneira surge a ideia duma dupla metafísica, uma Metafísica da Natureza e uma Metafísica dos Costumes. A Física terá portanto a sua parte empírica, mas também uma parte racional; igualmente a Ética, se bem que nesta a parte empírica se poderia chamar Antropologia prática, enquanto a racional seria a Moral propriamente dita1.
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*] O texto é escrito segundo o português de Portugal, e por isso o sic não indica um erro, e sim uma particularidade da língua.
1] KANT, Immanuel - Fundamentação da Metafísica dos Costumes. ed. 70, 2011. p. 13, 14.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Carta aos Hebreus 5.11-14: 10ª Exposição (ὀφείλοντες εἶναι διδάσκαλοι): Vocês já Deveriam Ser Mestres

Texto grego de hebreus 5.11-14
11 Περὶ οὗ πολὺς ἡµῖν ὁ λόγος καὶ δυσερµήνευτος λέγειν, ἐπεὶ νωθροὶ γεγόνατε ταῖς ἀκοαῖς. 12 καὶ γὰρ ὀφείλοντες εἶναι διδάσκαλοι διὰ τὸν χρόνον, πάλιν χρείαν ἔχετε τοῦ διδάσκειν ὑµᾶς τινὰ τὰ στοιχεῖα τῆς ἀρχῆς τῶν λογίων τοῦ θεοῦ, καὶ γεγόνατε χρείαν ἔχοντες γάλακτος, [καὶ] οὐ στερεᾶς τροφῆς. 13 πᾶς γὰρ ὁ µετέχων γάλακτος ἄπειρος λόγου δικαιοσύνης, νήπιος γάρ ἐστιν· 14 τελείων δέ ἐστιν ἡ στερεὰ τροφή, τῶν διὰ τὴν ἕξιν τὰ αἰσθητήρια γεγυµνασµένα ἐχόντων πρὸς διάκρισιν καλοῦ τε καὶ κακοῦ.
Tradução e Comentário:
11Περὶ οὗ πολὺς ἡµῖν ὁ λόγος καὶ δυσερµήνευτος λέγειν, ἐπεὶ νωθροὶ γεγόνατε ταῖς ἀκοαῖς. - "Acerca do qual muito ainda temos a dizer e de difícil explicação, visto que vocês se tornaram lerdos [ou preguiçosos] no ouvir"

    O escritor da Carta dá continuidade à sua fala após dissertar sobre a constituição sublime do sacerdócio de Cristo, constituição que é luminosa o bastante para se tronar, às vezes, indiscernível mesmo por aqueles que, em sentido estrito, deveriam mais para ela atentar, já que beneficiários dela. Não estranhamente Cristo é desconhecido pelos seus, e o pregador da Carta aos Hebreus sente aqui certa dificuldade em fazer avançar o tema, pois se encontrando limitado pelos ouvidos pesados daqueles aos quais direcionava, não rompe a gravidade, elevando a razão e espírito em direção ao conhecimento daquele que atravessou os céus (Hb 4.14), já que, por força da negligência, as mentes de muitos ouvintes ainda são densas demais para alçar tal vôo no Espírito. Essa é a realidade do ministério pastoral que tem acompanhado a Igreja desde os tempos apostólicos, sendo essa carta um pesado testemunho.

    Assim ele diz: Acerca (Περὶ) [d]o qual (οὗ) muito (πολὺ) para nós a dizer e de difícil explicação (ἡµῖν ὁ λόγος καὶ δυσερµήνευτος λέγειν), visto que vocês se tornaram preguiçosos (ἐπεὶ νωθροὶ γεγόνατε) quanto aos ouvidos, (ταῖς ἀκοαῖς.)". Havia muito ainda a ser dito sobre as realidades mais altas para o espírito a respeito da fé, mas o fato de que eles se tornaram preguiçosos (νωθροὶ γεγόνατε) impôs um óbice óbvio à prossecução do intento. Tão mais terrível é o fato de que os tolos e tardos de coração (Lc 24.25: ἀνόητοι καὶ βραδεῖς τῇ καρδίᾳ) constituem uma parcela real da igreja, parcela da qual podemos realmente fazer parte se não levamos a sério a nossa vocação. Aqui trata-se de um embotamento da mente do qual podemos ser culpados quando negligentes em relação àquilo que é proposto pela fé.     Mas aqui há um agravante que se revela tão mais pernicioso quando entendemos o contexto da fala: os destinatários da Carta estão na eminência de suportar a provação da fé, ou, em alguns casos, já haviam sofrido o dano em função dela. A leniência se torna periclitante, pois a sua periculosidade para a fé é agravada em um contexto de perseguição. A razão disso é que o conhecimento só pode deitar raízes profundas em um coração receptivo à fé, e em um coração que possui uma fé desenraizada, a apostasia é tão mais possível do que em um coração profundamente comprometido com o conhecimento de Deus. Só desejamos conhecer o que amamos, e porque amamos. O amor é o móbile que nos impulsiona em direção ao objeto do amor; no fundo, amor é desejo de participação, experimentação e, por tanto, do conhecimento. Não há conhecimento profundo sem amor profundo. E isso mostra que é lerdo de coração quem é lerdo no amor; é a ausência de amor a causa da ausência da perseverança no conhecimento de Deus. Os tardos são reprováveis não porque não conhecem necessariamente, pois quando iniciamos não sabemos todas as coisas; mas são reprováveis porque não amam, e por que não amam não conhecem o objeto do seu amor que já deveria ser conhecido razoavelmente em função do tempo decorrido desde a profissão da fé.
12καὶ γὰρ ὀφείλοντες εἶναι διδάσκαλοι διὰ τὸν χρόνον, πάλιν χρείαν ἔχετε τοῦ διδάσκειν ὑµᾶς τινὰ τὰ στοιχεῖα τῆς ἀρχῆς τῶν λογίων τοῦ θεοῦ, καὶ γεγόνατε χρείαν ἔχοντες γάλακτος, [καὶ] οὐ στερεᾶς τροφῆς. - "Pois, com efeito, devendo ser mestres em função do tempo, outra vez vocês tem necessidade de que alguém os ensine os princípios elementares dos oráculos de Deus, e vieram a ser necessitados de leite e não de sólido alimento"

    Pois, com efeito, (καὶ γὰρ) devendo ser mestres (ὀφείλοντες εἶναι διδάσκαλοι) por causa do tempo (διὰ τὸν χρόνον). Eis uma sentença que evidencia com luz solar o fato de alguns serem tardos de coração. Algumas coisas se tornam radicalmente evidentes por causa do tempo (διὰ τὸν χρόνον). É impossível que decorrido certo tempo de profissão de fé não surjam os frutos que certamente surgiriam com certo proveito da graça recebida ao longo do tempo. Há uma doença do espírito que, ainda que oculta, se torna manifesta διὰ τὸν χρόνον. Assim é a qualidade da árvore que se torna cognoscível por causa dos seus frutos. Se o pregador não consegue alcançar certo voo para discorrer sobre certas realidades da fé a um povo que já deveria ser constituído de mestres (διδάσκαλοι), eis a negligência manifesta, negligência que acusa a doença do coração - pois a possibilidade do voo está condicionado ao conhecimento, e o conhecimento está condicionado ao interesse dos ouvintes, e se no tempo determinado do voo eles ainda rastejam, algo sinaliza que são tardos e lerdos de coração, pois desinteressados por Deus.

    O trabalho retrocedeu e torna-se necessário voltar aos ensino dos princípios elementares. Mas esse ensino já foi feito, e a construção da frase torna claro o retrocesso: Outra vez (πάλιν) vocês tem a necessidade (χρείαν ἔχετε) de alguém ensinar vocês (τοῦ διδάσκειν ὑµᾶς τινὰ) os princípios elementares (τὰ στοιχεῖα τῆς ἀρχῆς) dos oráculos de Deus (τῶν λογίων τοῦ θεοῦ,). Portanto outra vez (πάλιν). A apostasia pode ser evidenciada por causas exteriores, como a perseguição e o muito sofrimento, ou até mesmo a muita bonança, mas sempre permanece um mistério residente na vontade dos homens o porquê de alguns, sob a mesma provação, perseverar e outros não. Não discorrerei aqui sobre a questão da predestinação como causa da graça que move os perseverantes. Quero me ater à realidade concreta do homem enquanto responsável pela apostasia. É por isso que identificamos como causa próxima da perseverança o amor a Deus, tal como é o amor a causa do conhecimento. Estamos lidando com uma comunidade afligida pela pressão exterior. E esse tipo de tentação pode arrebatar dos corações a semente do evangelho. É por isso que vocês tem necessidade (χρείαν ἔχετε) de alguém ensinar vocês (τοῦ διδάσκειν ὑµᾶς τινὰ). O serviço pedagógico já foi feito, mas o fato de não se poder continuar a edificação do conhecimento tornou prejudicada a base; também não negamos que o fato de eles terem se mostrado preguiçosos quanto aos ouvidos (νωθροὶ γεγόνατε ταῖς ἀκοαῖς) possa indicar algo como um costume arraigado - o que significa que eles podem ter ouvido pesadamente, não tendo o seu ouvir mesclado à (Hb 4.1,2), e por isso ouviram desinteressadamente, ficando esses para trás, e isso desde o início da caminhada. A carta constantemente alerta para o perigo da negligência, o que torna óbvio o problema de um certo arrefecimento do estado de entusiasmo que não foi aproveitado por um amor arraigado. Então eles tem necessidade de que alguém os ensine, que os reevangelize [n]os princípios elementares das Palavras de Deus (τὰ στοιχεῖα τῆς ἀρχῆς τῶν λογίων τοῦ θεοῦ). Com tal conhecimento prejudicado em sua base pela negligência dos ouvintes, não é possível avançar.

    E assim continua o pregador: e vieram a ser como tendo necessidade (καὶ γεγόνατε χρείαν ἔχοντες) de leite (γάλακτος), [e] não ([καὶ] οὐ) de alimento sólido (στερεᾶς τροφῆς). Temos como até bizarro o fenômeno dos tempos modernos de filhos que se recusam a crescer, alcançar independência e sair da casa dos pais. Esse infantilismo moral, a recusa obstinada de crescer, tomar sobre si a responsabilidade e praticar a palavra é uma realidade cuja causa já sinalizamos como a falta de amor, pois do amor só é capaz o homem maduro. A vida cristã sobre uma base prejudicada torna os negligentes como necessitado de leite, e não de alimento sólido. Mas mesmo para aquele que perdeu a primeira infância, já a ela não se pode retornar, e é por isso que o trabalho se faz ainda mais duro, tanto para o que ensina quanto para o que é ensinado. Mas para a humilhação do negligente ele não pode negar leite, pois está inabilitado a participar de alimento superior. Sim, esses já deveria ser mestres por causa do tempo, mas carregam sobre si mesmos o fardo da primeira infância, o que se constitui também e um fardo para outros, pois ainda se tratam de meninos em Cristo.
    
13πᾶς γὰρ ὁ µετέχων γάλακτος ἄπειρος λόγου δικαιοσύνης, νήπιος γάρ ἐστιν· - "Porque todos os que participam da lactação é principiante na palavra da justiça, sendo criança"

    Assim o autor da Carta explica: Porque todos (πᾶς γὰρ) o[s] que participam (ὁ µετέχων) [do] leite (γάλακτος) [é] inexperiente (ἄπειρος) [na] palavra da justiça (λόγου δικαιοσύνης,), pois [ainda] é criança (νήπιος γάρ ἐστιν). Não é criança porque toma leite, mas é necessitado de leite porque ainda é criança. À criança é característica a falta e juízo, pois é característica a inexperimentação. A razão madura vem do hábito pelo qual se exercita e se experimenta a razão, pois a razão "não nasce pronta". Podemos dizer que o homem é uma tábula rasa em relação aos conceitos e juízos, os quais só são formulados em nossa mente pelo processo que começa pela experiência dos sentidos externos. A experiência nos fornece os dados pelos sentidos, os quais imprimem imagens em nossa mente que são como a matéria prima para a realização de juízos e conceituações através daquilo que chamamos de "sentidos internos" (razão, vontade, imaginação etc.); e quanto mais esse processo é repetido - processo que chamamos de abstração -, mais vamos atingindo das coisas um conceito mais perfeito, assim como tanto mais estudamos uma matéria qualquer (algum objeto das ciências naturais ou das "ciências humanas" - história etc.), mas vamos aglutinando informações que nos fazem adquirir uma ciência mais perfeita mediante abstrações mais adequadas e aperfeiçoadas pelo exercício da razão. A Palavra de Deus, ou os oráculos de Deus, são também informações para a nossa mente, pois ao se revelar para nós Deus nos disponibiliza dados e informações pelas quais podemos formar uma noção de Deus e da sua vontade. Obviamente que pelo conhecimento das coisas podemos ir ascendendo ao conhecimento de Deus segundo as luzes da nossa razão. Se isso não fosse assim, jamais entenderíamos ou praticaríamos a rejeição ao pecado; jamais entenderíamos o que significa se o conceito de fé não fosse para ser entendido. O que não é minimamente compreendido jamais pode ser praticado. Portanto, ao compreendermos as Palavras de Deus, e praticarmos aquilo que ele nos ordena em Sua Palavra, mais vamos moldando a nós mesmos, conformando a nossa vida segundo a Forma da Palavra de Deus, ascendendo em direção à justiça na força do amor a Deus. Ora, não negamos o poder influenciador e sustentador do Espírito de Deus em todo esse processo, onde a graça infundida em nós eleva a nossa natureza; contudo esse processo acontece em nós, na nossa humanidade, e é na nossa humanidade, em unidade com o Espírito divino, que vamos ascendendo até o conhecimento de Deus. Deus amplia e desperta maximamente as nossas faculdades em direção à nossa unidade com Ele.     Assim sendo, aqueles que, por serem crianças, não são aptos à plena fruição da sua razão para o conhecimento mais profundo de Deus. Crianças não podem suportar a alimentação pesada, pois seus órgãos não suportam alimento pesado. Da mesma forma, os meninos em Cristo, não estão aptos a experimentar um peso mais intenso da Glória de Deus, pois a sua fragilidade resultaria na rebentação. Meninos em Cristo não estão prontos para suportarem a glória de Cristo, antes devem ser carregados por aios que os conduzam até poderem realizar a maturação das próprias pernas, pois nem mesmo estão aptos a decidirem por eles mesmos, e por isso não estão aptos a gozarem verdadeiramente da liberdade dos Filhos de Deus, pois tal liberdade não é necessariamente a liberdade de sermos livre do julgo do pecado, se configurando também em poder decidir o que é agradável a Deus e rejeitar aquilo que lhe desagrada, e assim somos livres da ignorância que torna lentos nossos passo. Lerdos, somos um peso, o que torna impossível sermos elevados em inteira liberdade ao Cristo que atravessou os céus.
14τελείων δέ ἐστιν ἡ στερεὰ τροφή, τῶν διὰ τὴν ἕξιν τὰ αἰσθητήρια γεγυµνασµένα ἐχόντων πρὸς διάκρισιν καλοῦ τε καὶ κακοῦ. - "Mas o sólido alimento é para os consumados [maduros], aqueles que, pela prática, tem suas faculdades exercitadas para discernir tanto o bem, quanto o mal."

    Aqui o escritor da Carta aos Hebreus fala para quem convém o alimento sólido, ou seja, os τελείων. É aos maduros (τελείων), ou consumados que convém o alimento sólido (ἡ στερεὰ τροφή). A palavra τελείων está radicada na palavra τελος, que significa propriamente o ponto de chegada ou o fim. Nesse sentido τελείων também pode significar consumado ou realizado, e nesse sentido, metaforicamente falando, maduro, no sentido do desenvolvimento que atingiu o seu auge. Por tanto falamos do auge do desenvolvimento de uma vida consumada, finalizada, ou acabada, que atingiu o seu fim supremo de forma feliz. É justamente para esse tipo de cristão que desenvolveu ao máximo a sua potencialidade que convém o alimento sólido.

    Entendamos por alimento sólido, as verdades mais profundas da fé. Portanto, para esses está reservado a verdade em sua claridade máxima; contudo, como se chega a tal τελος (télos)? O texto explica: os que, por causa da prática (τῶν διὰ τὴν ἕξιν). Há uma exercitação que reforça e aprofunda o nosso espírito em direção ao conhecimento de Deus. Obviamente tal prática é a prática dos preceitos da fé, ou a prática das palavras de Cristo, aqueles que não são apenas ouvintes, mas sim praticantes, algo comum ao homem que estabeleceu a sua casa sobre a rocha (Mt 7.24). Sendo assim, há uma consequência para a prática das Palavras de Deus: tem suas faculdades exercitadas (τὰ αἰσθητήρια γεγυµνασµένα ἐχόντων), para discernir [discriminar] (διάκρισιν) [tanto o] bem tanto quanto [o] mal (καλοῦ τε καὶ κακοῦ). Ora, o τελος se atinge mediante a prática da palavra pela qual as nossas faculdades são exercitadas. E quando se refere às faculdades, o autor usa a palavra αἰσθητήρια que se refere especificamente ao sentido interno, ou seja, ao entendimento, ao órgão de percepção, e, portanto, à faculdade da razão, ali na parte superior da nossa alma, o nosso espírito, onde portamos a imagem de Deus. É justamente nesse ponto de diferenciação que se encontra o específico da humanidade para onde se direciona a Palavra de Deus, se dirigindo às nossas faculdades a serem exercitadas para realizarmos bom juízo a respeito do bem e do mal. No fim, é o bom exercício dali que resulta a nossa habilidade de discernimento para percebermos o que é καλοῦ (kalou), assim como o que é κακοῦ (kakou), sendo καλοῦ de καλος (kalos), que é uma palavra que significa o bem, belo, honroso, apropriado, conveniente, palavra cujo significado é diametralmente oposto ao significado de αἰσχρός (aischrós), que significa deformado e carregando metaforicamente o sentido de vergonhoso, indecente, desonroso, vil. Assim, a palavra αἰσχρός é, neste texto de Hb 5.14, permutada pela palavra κακοῦ, pois tem significado análogo, incluindo aí certo recurso estético por causa de certa homofonia entre καλοῦ e κακοῦ - o que mostra cuidado literário quanto à beleza (καλος) da exposição da Palavra de Deus, convindo perfeitamente ao sentido do que é exposto no texto.

    Percebemos aqui que a elevação da mente ocasionada pela prática da Palavra é algo que confere poder de discernimento, poder que torna o homem capaz de discernir realidades éticas e também estéticas (καλος significa tanto o bem quando beleza nesse sentido moral, pois é beleza moral agradável ao espírito), pois se trata do refinamento daquele ponto em nós, lá onde nós somos imagem e semelhança de Deus, ou seja, o nosso espírito. Sendo assim, o autor clama para que os cristãos hebreus deixem de ser inexperientes, crianças, e se voltem para o τελος, para o ponto de perfeição, para a maturidade, para o auge da vida, de modo que, desta forma, eles estejam fortes o bastante para levar a vida cristã até às últimas consequência, porque, sendo mestres, eles tem poder para dar fim à tarefa do testemunho que é colocado sobre as costas de cada cristão, obrigação essa da qual só poderemos nos desincumbir quando se atingirmmos a maturidade. Amém!

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Provérbios de Salomão (מִשְׁלֵי): 4ª Meditação (Pv 1.24-33): A Vingança da Sabedoria

 Texto hebraico de Provérbios 1.24-33


יַ֣עַן ֭קָרָאתִי וַתְּמָאֵ֑נוּ נָטִ֥יתִי יָדִ֗י וְאֵ֣ין מַקְשִֽׁיב׃
וַתִּפְרְע֥וּ כָל־עֲצָתִ֑י וְתוֹכַחְתִּ֗י לֹ֣א אֲבִיתֶֽם׃
גַּם־֭אֲנִי בְּאֵידְכֶ֣ם אֶשְׂחָ֑ק אֶלְעַ֗ג בְּבֹ֣א פַחְדְּכֶֽם׃
בְּבֹ֤א כְשַׁאֲוָה כְשׁוֹאָ֨ה׀ פַּחְדְּכֶ֗ם וְֽאֵידְכֶם כְּסוּפָ֣ה יֶאֱתֶ֑ה בְּבֹ֥א עֲלֵיכֶ֗ם צָרָ֥ה וְצוּקָֽה׃
אָ֣ז יִקְרָאֻנְנִי וְלֹ֣א אֶֽעֱנֶ֑ה יְשַׁחֲרֻ֗נְנִי וְלֹ֣א יִמְצָאֻֽנְנִי׃
תַּחַת כִּי־שָׂ֣נְאוּ דָ֑עַת וְיִרְאַ֥ת יְהוָֹ֗ה לֹ֣א בָחָֽרוּ׃
לֹא־אָב֥וּ לַעֲצָתִ֑י נָאֲצ֗וּ כָּל־תּוֹכַחְתִּֽי׃
וְֽיֹאכְלוּ מִפְּרִ֣י דַרְכָּ֑ם וּֽמִמֹּעֲצֹ֖תֵיהֶ֣ם יִשְׂבָּֽעוּ׃
כִּ֤י מְשׁוּבַ֣ת פְּתָיִ֣ם תַּֽהַרְגֵ֑ם וְשַׁלְוַ֖ת כְּסִילִ֣ים תְּאַבְּדֵֽם׃
וְשֹׁמֵ֣עַֽ לִי יִשְׁכָּן־בֶּ֑טַח וְשַׁאֲנַ֗ן מִפַּ֥חַד רָעָֽה׃ פ



Tradução e Comentário:

24, 25, 26, 27)

יַ֣עַן קָרָאתִי וַתְּמָאֵ֑נוּ נָטִ֥יתִי יָדִ֗י וְאֵ֣ין מַקְשִֽׁיב׃
וַתִּפְרְע֥וּ כָל־עֲצָתִ֑י וְתוֹכַחְתִּ֗י לֹ֣א אֲבִיתֶֽם׃
גַּם־֭אֲנִי בְּאֵידְכֶ֣ם אֶשְׂחָ֑ק אֶלְעַ֗ג בְּבֹ֣א פַחְדְּכֶֽם׃
בְּבֹ֤א כְשַׁאֲוָה* כְשׁוֹאָ֨ה׀ פַּחְדְּכֶ֗ם וְֽאֵידְכֶם כְּסוּפָ֣ה יֶאֱתֶ֑ה בְּבֹ֥א עֲלֵיכֶ֗ם צָרָ֥ה וְצוּקָֽה׃

"Porque clamei e vocês recusaram, estendi a minha mão e não houve quem prestasse atenção; ignoraram todo meu conselho e a minha repreensão não acolheram; também eu na calamidade de vocês irei rir e zombarei vindo o temor de vocês; em vir como tempestade devastadora o pavor de vocês, e a calamidade de vocês como tormenta chegar; em vir sobre vocês a angústia e o aperto".

    Há juízo certo na recusa o chamado da sabedoria. A explicação inicia: Porque (יַ֣עַן) clamei (קָרָאתִי) e vocês recusaram (וַתְּמָאֵ֑נוּ), estendi (נָטִ֥יתִי) minha mão (יָדִ֗י) e não houve (וְאֵ֣ין) o que prestasse atenção (מַקְשִֽׁיב). Assim eles se portaram, sendo indiferentes à sabedoria: e ignoraram (תִּפְרְע֥וּ) todo (כָל־) meu conselho (עֲצָתִ֑י), e minha repreensão (תוֹכַחְתִּ֗י) não (לֹ֣א) aceitaram ou acolheram (אֲבִיתֶֽם). A expressão demonstra peso de certo desprezo contra o chamado da sabedoria, pois se diz: todo meu conselho (כָל־עֲצָתִ֑י). À indiferença se acrescenta aqui a maldade, porque a sabedoria não é artigo no qual possamos deitar sobre ela a nossa indiferença, antes é algo cuja grandeza nos traspassa, e nos abarca de modo absoluto. Podemos aqui formar a seguinte analogia: tal como, para o bem da nossa vida, não podemos ser indiferentes ao ar que respiramos, assim como, para a condução da nossa vida, não podemos sermos indiferentes à sabedoria. Assim, o texto apresenta a sabedoria como a arquitetônica da nossa vida, ou como o sistema da vida bem-aventurada, fora da qual não são possíveis atos felizes; e assim como o direito penal subsume os atos particulares na consideração a respeito da sua licitude ou ilicitude, assim também a sabedoria é a regra universal na qual cada ato particular deve ser conformado afim de se atingir a felicidade.     Há uma medida divina nas coisas, e é a essa medida que devemos nos conformar para a fruição do bem; longe da sabedoria, a única coisa que colhemos é o mal. É por isso que, para os rejeitantes da sabedoria e do bem, o autor continua: Também eu (גַּם־֭אֲנִי), na vossa calamidade (בְּאֵידְכֶ֣ם) rirei (אֶשְׂחָ֑ק). Da mesma forma continua: e zombarei (אֶלְעַ֗ג) vindo (בְּבֹ֣א) o temor de vocês (פַחְדְּכֶֽם). Como pode a sabedoria rir da destruição alheia? Entendamos a expressão metaforicamente, como uma analogia, porque a sabedoria não possui sentimentos humanos. Contudo, entendamos que o escarnecedor da sabedoria será pego em contradição, pois a desventura do mal e daquele que zomba contra a sabedoria é a prova da tese da própria sabedoria, e traz testemunho da ciência do saber no gozo daquele que concebe o silogismo (o encadeamento lógico), o raciocinar perfeito sobre o ato feliz. A sabedoria, para Deus, é ciência, e é a mais alta ciência, pois é a ciência do saber pelo qual Deus conhece a si mesmo. Deus, nesse sentido, é a sua própria ciência, e é nessa sua ciência que ele estabeleceu os limites da vida e da ação humana. A sabedoria é a ciência divina com a qual estabeleceu limites e a medida da vida, e ela se prova verdadeira independentemente do escárnio dos homens. O escárnio da sabedoria é um atentado contra a própria vida, vida cujos limites Deus estabeleceu em sabedoria. E como a sabedoria só pode ser tida pelo zombador como motivo de zombaria, o triunfo da sabedoria é, então, percebida pelo zombador como zombaria. Assim, a zombaria divina é mais sábia do que a sabedoria dos zombadores, porque é a sabedoria. E aqui a sabedoria "se rirá" da desventura dos maus porque para os maus a sabedoria é motivo de riso - o que é motivo de riso triunfará. Assim diz: rirei (אֶשְׂחָ֑ק), e rirá a sabedoria da calamidade porque a calamidade é a prova da realidade da destruição que a sabedoria tentou prevenir o impenitente - e assim ri a sabedoria se mostrando como sabedoria. Aquilo que foi antes zombado triunfou e o seu triunfo, para o zombador, é zombaria.

    E seguimos com o texto: em vir (בְּבֹ֤א) como tempestade devastadora (כְשׁוֹאָ֨ה) o vosso pavor (פַּחְדְּכֶ֗ם) - texto que é seguido de um paralelismo: e a calamidade ou fardo de vocês (וְֽאֵידְכֶם) como tormenta (כְּסוּפָ֣ה) chegar (יֶאֱתֶ֑ה). A intuição desta parte é que, aqueles que não são sábios serão esmagados, porque a vida tem uma arquitetura através da qual encontramos a verdadeira liberdade e felicidade, arquitetura que uma vez infringida resulta em ruína. Os loucos, ao contrário, são moídos em sua loucura, loucura que já é em si uma tempestade devastadora (שאוה), ou uma tormenta (סופה). As palavras aqui possuem peso enorme que não pode ser negligenciado. A natureza da sabedoria tem um fim no qual ela se firma absolutamente de forma inegociável e inexorável, pois aquele que nela tropeçar será feito em pedaços inapelavelmente. Não há sabedoria contra a sabedoria; e nesse sentido as palavras aqui são fortes, e mesmo escatológicas, pois Deus é a própria sabedoria, estando tudo mais arraigado nela. É por isso que fugir da sabedoria e atentar contra ela é atentar contra si mesmo. A sabedoria estilhaçará inapelavelmente a loucura, pois a loucura é a calamidade do homem que se volta contra a sabedoria, e cada qual terá, meritoriamente, da sabedoria o seu quinhão: a calamidade aos que escolheram a calamidade (porque não escolher a sabedoria é devastação e calamidade), o bem e a honra para aqueles que escolheram o bem e a honra: a vingança da sabedoria é dar a cada qual aquilo que lhe é de direito. Então na justa paga a sabedoria se regozija em sua justiça, pois na justiça a sabedoria se manifesta como justiça. E ainda diz: em vir (בְּבֹ֥א) sobre vocês (עֲלֵיכֶ֗ם) angústia (צָרָ֥ה) e aperto (וְצוּקָֽה׃). A sabedoria não se regozija do mal, e não diz rirei (אֶשְׂחָ֑ק) tendo em vista os males humanos; antes a sabedoria se compraz sempre em si mesma, pois Deus não é afetado em sua eterna bem-aventurança, já que sendo pleno de todas as perfeições, nada se lhe pode acrescentar e nem mesmo lhe subtrair. Em última instância, Deus, que é a sabedoria, em tudo se regozija de modo absoluto apenas em si mesmo, e, sendo o bem de modo absoluto, Deus se compraz absolutamente com a sua justiça, e não pode participar do mal. É por isso que se regozijando apenas no bem, não pode ser afetado pelo mal; mas se de algum modo o maligno resiste a Deus, Deus não perde a sua bem-aventurança e continua a gozar eternamente de si mesmo. Não há mal que diminua a Deus, porque nada pode força-lo a não querer o bem, mesmo que o mal insista em querer o mal. E se a paga é justa, Deus ainda é bem-aventurado, porque continua querendo o bem quando rejeita o mal, quando impõe pena por amor da justiça. Se vêm a angústia e o aperto, porque o efeito de querer o mal é angústia e aperto.

28, 29, 30)

אָ֣ז יִקְרָאֻנְנִי וְלֹ֣א אֶֽעֱנֶ֑ה יְשַׁחֲרֻ֗נְנִי וְלֹ֣א יִמְצָאֻֽנְנִי׃
תַּחַת כִּי־שָׂ֣נְאוּ דָ֑עַת וְיִרְאַ֥ת יְהוָֹ֗ה לֹ֣א בָחָֽרוּ׃
לֹא־אָב֥וּ לַעֲצָתִ֑י נָאֲצ֗וּ כָּל־תּוֹכַחְתִּֽי׃

"Então me chamarão e não responderei; me buscarão e não me encontrarão. Porque odiaram o conhecimento e não escolheram o temor do Senhor; não aceitaram meu conselho e abominaram toda minha repreensão;

    O pasmo pode dominar a nossa imaginação aqui: "Então me chamarão (אָ֣ז יִקְרָאֻנְנִי) e não responderei (וְלֹ֣א אֶֽעֱנֶ֑ה); me buscarão (יְשַׁחֲרֻ֗נְנִי) e não me encontrarão (וְלֹ֣א יִמְצָאֻֽנְנִי). O paralelismo poético acentua o teor da advertência. Aqui podemos nos perguntar: Qual a razão de a sabedoria, que poderia ser concebida meramente como uma habilidade, conceberia a sua invocação? Como o texto estabelece uma relação de identidade entre a sabedoria e Deus como algo a ser invocado? Podemos responder a questão de duas formas: 1) A sabedoria é concebida como todos os traços das palavras da profecia, ou da Palavra de Deus; também algo que, como Deus, pode ser invocado para algum benefício, tal como Deus é invocado para benefício. Na nossa primeira meditação (aqui), encontramos esse paralelo (vs. 3) entre a profecia e a literatura sapiencial, indicando que a sabedoria é a forma mesma da profecia, pois a profecia é a revelação da ciência divina. Ainda veremos que a sabedoria é coadjuntora da criação, aquela pela qual Yahweh estendeu os céus e estabeleceu todas as coisas (Pv 9.22-36). Ela possui substância divina, pois só Deus é, segundo a Escritura, algo que cria - ou a sabedoria é um atributo de Deus. 2) Ela é um dom divino pelo qual os homens se orientam; uma estrutura da realidade. Mas aqui seria difícil conceber a sabedoria algo como "secularizado", algo fora da substância divina, enquanto por ela se estabelecem os céus, mesmo como criatura, e não como criador. Há vários indícios de que a primeira alternativa é a mais sensata, já que a sabedoria tem os mesmos atributos da palavra de Deus, como já constatamos aqui.

    Mas à consternação: me buscarão e não me encontrarão. Será que estaria a sabedoria indisposta, ou haveria um limite para a sua generosidade? A dificuldade que o texto nos impõe é comum às várias negativas do Senhor àqueles que O buscam tendo as costas carregados de iniquidade (Jr 11.11; 14.12; Ez 8.18; Mq 3.4; Zc 7.13). Podemos nos perguntar se há limite na bondade divina. Certamente afirmamos limite na bondade humana. Homens são limitados no bem, como são limitados na honestidade do seu clamor. Fato é que há certa piedade de ocasião para aqueles que se vendo no aperto e na angústia, usam a piedade como modo de escapar das penas do juízo justo. Nesse sentido, para os zombadores, a misericórdia não é dom e sim mero instrumento. Se escondem atrás da bondade divina apenas para apelar à misericórdia de forma abusiva, pois esses não são transformados pela misericórdia para se converterem à bondade. Os maus usam da piedade dos bons porque sabem que os bons tem em si o critério de bondade; mas os maus malversam o bem, pois se querem livres da pena para perpetuar o seu abuso, o que evidencia que o apelo à misericórdia divina é algo simplesmente. Assim, aquele que é profundamente comovido pela misericórdia, dela faz bom uso porque através dela enxerga a bondade que ele deveria ter em si mesmo, e assim, uma vez perdoado, se converte ao bem. O mau clama querendo provocar a sua absolvição, mas trata-se de um estratagema para eles apenas serem livres e não passem pelo juízo. O critério da ação do mau não é o bem que ele poderia fruir com a misericórdia alcançada, mas sim a aquisição da liberdade de não ser punido para que ele possa fazer mais mal ainda. Mas de Deus não se escarnece, e é justamente por isso que a misericórdia é administrada pela sabedoria, para que a misericórdia não se torne um meio pelo qual se estabeleça a perpetuação da iniquidade desenfreada. Todas as obras de Deus são justiça e misericórdia (Sl 89.14), pois nem a misericórdia anula a justiça e nem a justiça anula a misericórdia, antes ambas se realizam mutuamente. Assim, se o ímpio clama impiamente, o Todo Poderoso não tem a obrigação de ouvir, e assim faz não anulando a justiça e nem a misericórdia, mas ao recusar a ouvir, estabelece ambas.

    E continua: Porque odiaram (תַּחַת כִּי־שָׂ֣נְאוּ) o conhecimento (דָ֑עַת). Aqui a razão da ruína, e a razão da justa paga. A vida sensata se orienta pelo conhecimento e, no caso, pelo conhecimento de Deus, que é o conhecimento para o agir esclarecido. Aqui podemos estabelecer um contraponto entre o conhecimento e a ignorância. Sendo assim o livro de provérbios não apela para um conhecimento neutro, mas sim àquele que, como já falamos, pressupõe a unidade entre inteligência e moral. Quando falamos da neutralidade, em relação ao conhecimento, falamos daquele tipo de compreensão de conhecimento que exclui de sua base a constituição moral do conhecimento. Assim essa sabedoria implica uma habilidade em relação à humanidade, e ao reto agir, o que pressupõe um fundamento moral, um princípio moral que serve de leme que direciona o homem quanto à retidão da sua ação, a qual é sempre realizada diante de Deus, o que implica em um juízo moral. Há certamente várias ciências instrumentais pelas quais os homens se tornam habilidosos, mas sempre há uma sabedoria, uma ciência da vida que é responsável por dirigir as demais ciências ao bem, que é o nosso fim absoluto. Por isso, a estratégia, ou a ciência da guerra, cujo objeto formal é a vitória, não estabelece se essa vitória é boa ou não. Tal guerra, mesmo que alcance êxito, nem por isso implica que se atingiu um fim moral, com a defesa dos cidadão, pois há guerra movida pela rapinagem, ou pela plenonexia (πλεονεξία), que é a avareza que visa apenas a conquista, o que significa que mesmo a vitória aqui alcançada não implica que se atingiu um fim bom (ou fim perfeito). Mas mesmo os meios são importantes, pois ainda que a vitória redunde em um aparente bem, se os meios conducentes são ímpios, ou seja, se são realizados inúmeros crimes para isso, então o fim também o será. O desenvolvimento da indústria farmacêutica pode redundar em inúmeros bens, mas a vontade humana pode instrumentalizar tal ciência para um fim mal, como o assassinato e o entorpecimento. Assim é a sabedoria, que é a ciência de Deus, que conduz todas essas ciências ao bem e as subordinando e as disciplinando, e é desse conhecimento que o homem deve se munir para se tornar sábio. Sendo assim, os maus desprezaram o conhecimento (דָ֑עַת), e despreza o conhecimento que é fundado no temor de Yahweh (וְיִרְאַ֥ת יְהוָֹ֗ה), pois deste temor e desta ciência os ímpios só possuem ignorância, ignorância que é criminosa por sua própria natureza.

    Assim se acumulam as razões de juízo: não aceitaram (לֹא־אָב֥וּ), meu conselho (לַעֲצָתִ֑י), abominaram (נָאֲצ֗וּ) toda minha repreensão (כָּל־תּוֹכַחְתִּֽי). Aqui a contradição é evidente: Como invocará a sabedoria se aquele que a invoca abomina aquilo que ela é? Não fará isso com o coração reto. A vaidade moral conduz ao comportamento hipócrita, pois o vaidoso moral quer parecer justo, e não ser justo. Mas isso é contrário à sabedoria, pois o sábio, além de parecer sábio, é sábio. E mesmo que pareça louco - pois a sabedoria é loucura para o louco - será sábio (1Co 1.19-25). Assim, o vaidoso moral abomina toda repreensão, porque para ele parecer justo é mais importante do que ser justo; sendo assim se a sabedoria expõe a contradição do vaidoso entre aquilo que ele é e aquilo que ele se diz ser, então ele rejeitará o verdadeiro conselho da sabedoria e se refugiará na loucura, acusando a sabedoria, para continuar obstinadamente a sustentar a sua imagem de justo. Loucura é buscar o bem recusando o conselho da sabedoria. A recusa de se humilhar esmagará o vaidoso.

31, 32, 33)

וְֽיֹאכְלוּ מִפְּרִ֣י דַרְכָּ֑ם וּֽמִמֹּעֲצֹ֖תֵיהֶ֣ם יִשְׂבָּֽעוּ׃
כִּ֤י מְשׁוּבַ֣ת פְּתָיִ֣ם תַּֽהַרְגֵ֑ם וְשַׁלְוַ֖ת כְּסִילִ֣ים תְּאַבְּדֵֽם׃
וְשֹׁמֵ֣עַֽ לִי יִשְׁכָּן־בֶּ֑טַח וְשַׁאֲנַ֗ן מִפַּ֥חַד רָעָֽה׃ פ

"e comerão do fruto dos caminhos seus, e dos conselhos deles se saciarão. Porque a aversão do tolo os mata e a sensação de bem-estar dos dos loucos os destruirá. Mas o que me escuta habitará seguro, e estará tranquilo, longe do temor do mal".

    Assim a justa paga se estabelece: e comerão (וְֽיֹאכְלוּ) do fruto (מִפְּרִ֣י) dos caminhos seus (דַרְכָּ֑ם), e dos conselhos deles (וּֽמִמֹּעֲצֹ֖תֵיהֶ֣ם) se fartarão (יִשְׂבָּֽעוּ). Não se colhe o bem do mal. Dos caminhos maus só ao mal se chegará. Assim, cada qual chegará ao destino que perseguiu. Também, por falta de ciência, ao acolher o conselho louco o ímpio colherá a devastação - o que convém perfeitamente à justiça, justiça que é constitutiva à sabedoria. E assim continua a explicação: Porque (כִּ֤י) a aversão dos (מְשׁוּבַ֣ת) tolos (פְּתָיִ֣ם) os mata (תַּֽהַרְגֵ֑ם). Se a sabedoria é aversiva ao paladar do tolo, o que a ele será palatável? Observe que não há meio termo nessa questão, pois a versão à sabedoria conduz à destruição, pois a justiça divina é inexorável. Assim, a aversão do tolo o aniquila, e aniquila desde a própria tolice, pois o ser tolo é, para ele, a sua própria destruição. A tolice é a constrição, o sufocamento do espírito; é ser cego e perder a visão previdente pela qual evitamos as transgressões presentes apara não resvalarmos nossos pés sobre os males futuros. É por isso que se diz: e a serenidade (וְשַׁלְוַ֖ת) dos loucos (כְּסִילִ֣ים) os conduzirá à perdição (תְּאַבְּדֵֽם). Assim, tranquilidade do ignorante, aquele que é tal qual o pássaro que não desconfia da rede de captura (Pv 1.17), não desconfia da aproximação da sua própria ruina. No louco (כסל) há um hiato entre consciência e vontade, pois pode ser que ele mesmo saiba a direção certa, mas não tem disposição para segui-lo; contudo neste livro muitas vezes ocorre que o louco é apresentado como alguém em quem esse hiato se localiza entre o seu juízo e a realidade, pois seus juízos são antagônicos à realidade fundada na sabedoria. O louco é o homem do juízo desgovernado, e a sua absoluta loucura e a sua serenidade na loucura indica que ele não está a par da ruína que irá assalta-lo como um homem armado. Sendo assim, sua tranquilidade na iminência do desastre não suscita nele a preocupação que poderia fazê-lo se preparar para a defesa contra o mal. O justo sim se prepara para o dia mal, e assim ele estará seguro, porque ouviu a sabedoria.

    É assim que termina esse versículo: E o que escuta (וְשֹׁמֵ֣עַֽ) a mim (לִי) habitará seguro (יִשְׁכָּן־בֶּ֑טַח), e estará tranquilo (וְשַׁאֲנַ֗ן) longe do temor do (מִפַּ֥חַד) mal (רָעָֽה). Assim é aquele que, como sábio e prudente, guardou a sua vida ao ouvir a sabedoria, tal como o fiel que, ao ouvir a Palavra de Deus, estará livre do mal. Vejam novamente a identidade entre a sabedoria e a Palavra de Deus, pois ambas são uma única substância. Em contraste com o louco, que é refratário à sabedoria, o sábio é humilde e, curvado a sabedoria, a acolhe com docilidade. O homem prudente é suave aos clamores da sabedoria. Mas não entendemos o acolhimento sem o milagre, pois paradoxalmente só o sábio pode acolher a sabedoria, e assim só Deus pode incoar a graça pela qual o homem vem a ser sábio. Assim, só o homem que é de Deus ouve a Deus, e só o homem que está fora de Deus, rejeita a Deus. Contudo, o conteúdo de Provérbios quer ser paradigmático, e estabelece um modelo pelo qual o homem pode se colocar sob a luz da sabedoria para ver a si mesmo. Estando na sabedoria ele está prevenido do mal. Seus atos o protegem, e não são um laço para o seu caminho. Habita seguro porque ele está conformado àquilo que ele realmente deveria ser; assim, se a sabedoria sustenta e funda o mundo e a vida, o sábio estará protegido em sua própria vida, pois está conformado à própria sabedoria que ordena todas as coisas. O sábio constrói a si mesmo segundo a arquitetônica da vida, estando unido à ciência de Deus, o Deus eterno que é o fundamento de todas as coisas. Por tanto, afirmamos aqui o que quisemos demonstrara desde o início: a unidade do sábio com a sabedoria é a unidade absoluta do homem com o próprio Deus. Essa é a nossa habitação segura, porque segura por toda eternidade, porque por toda eternidade permanece o próprio Deus.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Provérbios de Salomão (מִשְׁלֵי): 3ª Meditação (Pv 1.20-23): A Convocação Ruidosa da Sabedoria

Texto hebraico de Pv. 1.20-23:
חָכְמוֹת בַּח֣וּץ תָּרֹ֑נָּה בָּרְחֹבֹ֗ות תִּתֵּ֥ן קוֹלָֽהּ׃
בְּרֹ֥אשׁ הֹמִיֹּ֗ות תִּ֫קְרָ֥א בְּפִתְחֵ֖י שְׁעָרִ֥ים בָּעִ֗יר אֲמָרֶ֥יהָ תֹאמֵֽר׃
עַד־מָתַ֣י׀ פְּתָיִם֮ תְּֽאֵהֲב֫וּ פֶ֥תִי וְלֵצִ֗ים לָצוֹן חָמְד֣וּ לָהֶ֑ם וּכְסִילִ֗ים יִשְׂנְאוּ־דָֽעַת׃
תָּשׁ֗וּבוּ לְֽתֹ֫וכַחְתִּ֥י הִנֵּ֤ה אַבִּ֣יעָה לָכֶ֣ם רוּחִ֑י אוֹדִ֖יעָה דְבָרַ֣י אֶתְכֶֽם׃
Tradução e Comentário:

20) חָכְמוֹת בַּח֣וּץ תָּרֹ֑נָּה בָּרְחֹבֹ֗ות תִּתֵּ֥ן קוֹלָֽהּ׃: "A sabedoria grita na rua, e nas praças faz ouvir a sua voz"

    A sabedoria (חָכְמוֹת) na rua, ou na área do mercado (בַּח֣וּץ) grita ruidosamente (תָּרֹ֑נָּה). Clama com alta voz em um espaço largo (רְחֹב). Não há desculpa para não ser sábio diante do clamor constante e onipresente da sabedoria (חָכְמָה). Ela faz seu testemunho ressoar nos lugares onde sua presença é exigida, ou seja nas ruas (בַּח֣וּץ), e mesmo, como veremos, nas entradas dos (בְּפִתְחֵ֖י) portões (שְׁעָרִ֥ים) na cidade (בָּעִ֗יר), local onde se realizavam os julgamentos. Seu clamor onipresente reclama os ouvidos dos homens para que eles possam ter a reta sabedoria para o agir esclarecido (Pv 1.3).

    Para fins de esclarecimento, façamos uma breve consideração sobre a questão das rua (חוּץ). Não se trata apenas de uma via, mas sim um lugar do lado de fora da casa, não sendo apenas algo que por onde passam carros - ainda mais considerando que esse texto tinha em mente o que a rua era, em relação a nós, há três mil anos atrás. Seria mais melhor para o exato esclarecimento, que a palavra חוּץ se refere também à área de mercado, ou de trânsito das pessoas onde elas se relacionam. Há muitas implicações para a nossa compreensão a respeito do clamor da sabedoria nesse ambiente público onde ocorrem as transações do dia a dia. Coloquemos em perspectiva os inúmeros acordos, sejam eles promessas particulares, acordos comerciais, todas as coisas que reclama um agir esclarecido, justo e honesto. Certamente alargaríamos a nossa compreensão a respeito desse versículo se mantivéssemos essa perspectiva.

    Imaginemos a sabedoria exigindo a sua presença nas relações comerciais, clamando contra a fraude e contratos mal pensados, assim como clamando contra os negócios escusos, e vis que tem aparência de lucro, mas que são destrutivos a longo prazo. Lembremos aqui a profecia dos profetas contra as balanças viciadas, o lucro injusto (Pv 11.1), assim como o desejo pelo lucro a qualquer custo. O que deveria ser aceito no comércio e o que deveria ser rejeitado? O comércio em si não é mal e nem bom, ele é um meio, e um meio levado adiante pelos costumes dos povos. Nesse sentido, há certo limite que mesmo culturalmente é aceito na distinção entre valor e preço: nem tudo o que tem valor é precificável, como é o caso da vida humana, que é, por definição, incomerciável. Também há um limite no comércio quando se negociam coisas que irão inevitavelmente destruir vidas humanas - como é o caso de drogas, armas ilegais etc. Também contamos como imorais os cartéis e a prática do preço desumano em épocas de calamidade - embora entendamos certa dinâmica de mercado que faz com que certos produtos recebam aumento de preço, quando, em meio a tragédias, isso possibilita uma distribuição até mais sensata dos mesmos produtos, que passam assim a ser mais racionalizados.

    A questão é que em épocas de crise sempre vemos o fio da espada se tornar muito mais cortante, e isso demanda a sabedoria dos homens para lidar com escolhas difíceis. É por isso que nesses lugares fora de casa ou na área de comércio (חוּץ), as decisões devem ser tomadas tendo em vista também a sabedoria para se tornarem decisões humanas, assertivas e justas.     

21) בְּרֹ֥אשׁ הֹמִיֹּ֗ות תִּ֫קְרָ֥א בְּפִתְחֵ֖י שְׁעָרִ֥ים בָּעִ֗יר אֲמָרֶ֥יהָ תֹאמֵֽר׃: "Sobre os muros clama e às portas da cidade profere suas palavras"

    Assim a sabedoria clama de locais onde ela pode ser ouvida, e de onde não há desculpa suficiente para ser ignorada, ou seja, do alto (בְּרֹ֥אשׁ), lembrando que a palavra רֹאשׁ também é usada para se referir à cabeça (רֵאשׁ), ou mesmo aos líder (רֹאשׁ), sendo que a palavra ראש também é a raiz da palavra princípio, ou início (רֵאשִׁית) - em Gn 1.1, quando falamos a palavra no princípio, é essa palavra a usada junto com a preposição בְּ sufixada na palavra רֵאשִׁית, formando a expressão no princípio, ou בְּרֵאשִׁ֖ית (bere'šiṯ). Portanto essa palavra se refere ao ponto mais alto da cidade, seja no topo das muralhas ou em um lugar alto. A ideia é que a sabedoria profere as suas palavras (אֲמָרֶ֥יהָ תֹאמֵֽר) de um lugar de destaque a partir do qual todos podem ouvir. E não profere a sua voz em um lugar de difícil acesso, nem a uma elite escolhida, em um lugar em que não pode ser ouvida, mas sim de um lugar amplo (חוּץ), mas também às entradas (בְּפִתְחֵ֖י) dos portões (שְׁעָרִ֥ים), algo a respeito do qual temos algo a dizer.

    Os portões das cidades no contexto de Israel significavam mais do que simplesmente um lugar de acesso. Antes, como evidentemente se nota nos textos bíblicos, trata-se de um lugar onde se realizavam julgamentos e se ajuramentavam testemunhas das demandas entre os cidadãos, sendo os anciãos os "magistrados" tanto dos juízos quanto dos testemunhos (Rt 4.1-12), assim como os reis (2Sm 15.1-6) e os líderes (Lm 15.14). Nesse sentido, o fato de a sabedoria clamar junto às portas da cidade também reflete o fato de que, neste lugar - até mais do que em outros lugares -, a presença da sabedoria se faz fundamental, para que os juízos sejam realizados com extrema sabedoria. Às portas da cidade é nefasto que o juízo seja torcido, provocando uma cascata de catástrofes, males, o que promoveria o triunfo do mal e da injustiça. Em nosso contexto é o mesmo que dizer que a sabedoria clama às portas do Fórum.

    Levando em consideração o texto bíblico, inúmeras denúncias dos profetas tem em vista o caráter deletério dos julgamentos viciosos, algo a respeito do qual já discorremos aqui no comentário aos versículos 11, 12, 13 e 14 de Pv 1, onde mencionamos o caso do juízo torcido por Jezabel no caso da Vinha de Nabote. Mas para reforço deste comentário lembremos de Is 10.1-4, onde não é apenas dos juízes que se reclama, mas também dos legisladores maus que criam leis malignas e opressoras. A distinção entre juíz e legislador era via de regra desconhecida em muitos casos, a exemplo de Moisés que era tanto juiz do povo como legislador. Em Davi e Samuel temos casos análogos, pois a ideia de tripartição do poder é algo recente na história. Mas levando em consideração a sabedoria, vemos aqui quão falta ela faz quando ela é desprezada em lugares e pessoas decisivas, tal como às portas (בְּפִתְחֵ֖י שְׁעָרִ֥ים) e em reis e sacerdotes. Os esmagados, neste caso, são aqueles sob suas tutelas, e isso, hoje, não é diferente para nós, o que também nos convoca à oração afim de que Deus nos conceda juízes sábios e legisladores sábios que ouçam fartamente e se inclinem à voz da sabedoria. É necessário termos justiça (צְדָקָה) e direito (מִשְׁפָּט) às portas (בְּפִתְחֵ֖י שְׁעָרִ֥ים).

22) עַד־מָתַ֣י׀ פְּתָיִם֮ תְּֽאֵהֲב֫וּ פֶ֥תִי וְלֵצִ֗ים לָצוֹן חָמְד֣וּ לָהֶ֑ם וּכְסִילִ֗ים יִשְׂנְאוּ־דָֽעַת׃ "Até quando, tolos, amarão a tolice? E os escarnecedores, até quando amarão o escarnecimento para eles? E os loucos, até quando odiarão o conhecimento?"

    A pergunta funciona como um gancho para a consciência, mas também se embasa na realidade da pertinácia e insistência obstinada em resistir o chamado da sabedoria, que a todo momento clama, em todos os lugares, para que os homens se convertam da sua ignorância. Nesse sentido a sabedoria clama: Até quando (עַד־מָתַ֣י), inexpertos [ou tolos] (פְּתָיִם֮), vocês amarão (תְּֽאֵהֲב֫וּ) a inexperiência [ou a tolice] (פֶ֥תִי)? Isso é uma pergunta séria, porque o ainda que consideremos a inexperiência algo no qual cada um passa, viver nela é algo indefensável. O clamor da sabedoria pede por homens crivados de experiência e habilidade. Um povo que faz pouco caso desse clamor pede a ruína para si, porque se condena à indefesa contra o mal, assim como à tortuosidade dos caminhos, o que só pode conduzir à ruína.     E continua a voz da sabedoria: E os escarnecedores (וְלֵצִ֗ים), até quando amarão o escárnio (לָצוֹן חָמְד֣וּ לָהֶ֑ם) para eles (לָהֶ֑ם)? A frase aqui tem várias saídas, pois podemos entender a pergunta em dois sentidos, como: 1) Até quando os escarnecedores amarão o escárnios? e isso bem no sentido mais direto sobre o amar escarnecer. Ou então poderíamos compreender essa frase no sentido: 2) Até quando, escarnecedores, pelo desprezo do conhecimento vocês amarão a infâmia e o serem vítimas do escárnio, ou do desprezo? e isso porque escárnio (לצון), no sentido de zombaria também pode ser compreendida como desprezo, mas também a raiz dessa palavra pode vir a significar mostrar-se como um estúpido (ליץ) que tagarela sem parar com insolência (לָצוֺן).

    No último caso o escarnecedor ama o escárnio para si, como aquele que ama a infâmia do ser escarnecido em virtude da sua arrogância e insolência que há de ser destroçada pelo peso dos fatos. O escárnio do escarnecedor é um mal para si porque é o desprezo pela sabedoria, e o atentado contra a sabedoria é uma atentado e uma sabotagem ímpia contra si mesmo. Quem despreza a própria vida despreza aquilo que pertence a Deus, pois nenhum de nós pertencemos a nós mesmos.

23) תָּשׁ֗וּבוּ לְֽתֹ֫וכַחְתִּ֥י הִנֵּ֤ה אַבִּ֣יעָה לָכֶ֣ם רוּחִ֑י אוֹדִ֖יעָה דְבָרַ֣י אֶתְכֶֽם׃:"Torneis para a minha repreensão e farei transbordar para vocês o meu Espírito; e farei vocês conhecerem a minha palavra".

    Uma frase a ser meditada: Torneis pela minha repreensão (תָּשׁ֗וּבוּ לְֽתֹ֫וכַחְתִּ֥י). A nossa vaidade moral sempre acha a repreensão uma ofensa à nossa dignidade. Na verdade, não é a dignidade que é a nossa preocupação de fundo em muitos casos, mas sim a nossa imagem de dignidade. A nossa vaidade moral cria inúmeras defesas para evitar as investida da verdade contra a nossa falta, porque o que queremos para nós é a aparência da incorruptibilidade, não a própria incorruptibilidade. Para o homem caído, parecer ser é mais importante do que ser. Essa é a constituição da hipocrisia pela qual evitamos, como evitamos a morte, nos humilharmos diante dos fatos para sermos vistos tais como somos, pois o que somos interiormente é trevas e degeneração, é o fato de sermos inveterados pecadores que não querem se dobrar diante da repreensão da sabedoria. O homem do pecado não regenerado deseja matar a sabedoria para que a luz da sabedoria não ilumine as suas trevas. A vaidade moral é o nosso leve verniz com o qual maquiamos a nossa própria corrupção, afim de que ela não se manifeste em toda a sua realidade hedionda e insuportável. A hipocrisia é a nossa substância pública pela qual nos tornamos propagandistas insossos de nós mesmos, vendendo não o que somos, mas o que acharíamos melhor ser. Como diria um moralista francês: a hipocrisia é o tributo que o vício presta à virtude. Resistimos à verdade, e fazemos isso em prejuízo próprio, pois a confissão, a verdade e a misericórdia são os únicos instrumentos da nossa cura, pois ela começa inevitavelmente pela retomada do caminho da verdade. A confissão, a submissão à verdade, é cura porque é ali que nos afastamos da tortuosidade e da mentira e retomamos o caminho da verdade e da fidelidade.

    Mas mesmo assim, a sabedoria, por ser o que ela é, não cansa de clamar apesar da nossa rebeldia. E ainda promete: Eis que (הִנֵּ֤ה) farei borbulhar, ou derramarei (אַבִּ֣יעָה) para vós (לָכֶ֣ם) meu espírito (רוּחִ֑י). O retornar pela repreensão da sabedoria confere o seu, ou nos marca com seu espírito. Teríamos muito a falar do tipo de sabedoria pneumática (pneuma é espírito em grego, ou seja: sabedoria ou conhecimento pneumático = sabedoria e conhecimento espirituais), que é o modo de conhecimento de Deus na Bíblia, que está ligada à inspiração, diferente do tipo de sabedoria noética (nous = mente no grego), que se trata de um tipo de sabedoria tal como nos legou a filosofia - mesmo que aqui não se negue a ação divina como causa eficiente da sabedoria. Faço essa distinção aqui, muito embora no cristianismo a harmonização entre entre o tipo de conhecimento pneumático e noético foi algo buscado pelos cristãos ao longo do tempo, Mas a questão principal e que fica para nós é que a humildade, que para Paulo era compreendida como ταπεινοφροσύνη, ou seja, a disposição mental que parte do curvar-se, é a única disposição de espírito com a qual podemos nos aproximar de forma efetiva da sabedoria (חָכְמָה), e ouvir a sua voz. Pois sem ela se faz impossível atendemos realmente a uma repreensão. Pois é ouvindo a voz da sabedoria que entramos nos caminhos pelos quais podemos conhecer o conteúdo da sabedoria que milita total e absolutamente contra a nossa tolice e dureza de coração. Assim, quando ouvirmos a sabedoria e ela fizer borbulhar seu espírito para nós, então acontecerá como o prometido: e farei saber (אוֹדִ֖יעָה) minhas palavras (דְבָרַ֣י) a vocês (אֶתְכֶֽם). De posse das palavras da sabedoria encontraremos honra, conhecimento, felicidade, instrução para o agir esclarecido, o que nos abrirá as vias para o desfrute verdadeiro da vidai.